Patrimônio-territorial indígena capixaba, legado das aldeias Guarani de Aracruz (ES), Brasil
Patrimonio territorial indígena capixaba, legado de los pueblos guaraníes de Aracruz (ES), Brasil
Capixaba indigenous territorial heritage, legacy of the Guarani villages of Aracruz (ES), Brazil
Patrimônio-territorial indígena capixaba, legado das aldeias Guarani de Aracruz (ES), Brasil
PatryTer, vol. 7, núm. 13, e42874, 2024
Universidade de Brasília
Recepción: 01 Enero 2023
Aprobación: 01 Abril 2023
Publicación: 01 Noviembre 2023
Resumo: Aracruz é um município situado no norte do Espírito Santo/Brasil que hodiernamente é a única cidade do estado que possui indígenas aldeados. O principal objetivo deste artigo é identificar as formas de morar e as técnicas construtivas que legitimam a casa indígena. Como objetivo específico, busca-se compreender a organização sócio-espacial da aldeia Piraquê-Açu, com o intuito de avaliar como essa comunidade vulnerabilizada sócio-economicamente sobrevive às práticas hegemônicas modernizantes e opressoras. Pautado na epistemologia da geografia, pesquisas bibliográficas e documental, observação participante e história oral constituem os mecanismos dialógicos de prática investigativa. A pesquisa busca contribuir para o registro e documentação da cultura indígena, assim como para a preservação do patrimônio-territorial latino-americano.
Palavras-chave: territórios de exceção, patrimônio-territorial, cultura indígena, organização espacial, casa indígena.
Resumen: Aracruz es un municipio ubicado en el norte de Espírito Santo/Brasil que actualmente es la única ciudad del estado que tiene aldeanos. El objetivo principal de este artículo es identificar los modos de habitar y las técnicas constructivas que legitiman la casa indígena. Como objetivo específico, busca comprender la organización socioespacial de la aldea Piraquê-Açu, para evaluar cómo esta comunidad socio-económicamente vulnerable sobrevive a las prácticas hegemónicas modernizadoras y opresivas. A partir de la epistemología de la geografía, la investigación bibliográfica y documental, la observación participante y la historia oral constituyen los mecanismos dialógicos de la práctica investigativa. La investigación busca contribuir al registro y documentación de la cultura indígena, así como contribuir a la preservación de este patrimonio-territorial latinoamericano.
Palabras clave: territorios de excepción, patrimonio-territorial, cultura indígena, organización espacial, hogar indígena.
Abstract: Aracruz is a city located in the north of Espírito Santo/Brazil that is currently the only city in the state that has villagers. The main goal of this paper is to identify the ways of living and the construction techniques that legitimize the indigenous house. As a specific objective, the purpose is to understand the socio-spatial organization of the Piraquê-Açu village, in order to assess how this socio-economically vulnerable community survives from the modernizing and oppressive hegemonic practices. Based on the epistemology of geography, bibliographic and documentary research, participant observation and oral history constitute the dialogic mechanisms of investigative practice. The research seeks to contribute to the registration and documentation of indigenous culture, as well as to contribute to the preservation of this Latin American territorial heritage.
Keywords: territories of exception, territorial heritage, indigenous culture, spatial organization, indigenous house.
1. Introdução
O legado dos povos indígenas possui significados singulares que reverberam a sua importância para a construção da cultura, da identidade, da história, da memória, assim como para a formação do próprio território brasileiro. Nesse sentido, preservar a cultura indígena implica reconhecer sua contribuição para diversos aspectos da sociedade brasileira. Todavia, esse reconhecimento perpassa alguns desafios. Ao longo de séculos, a história indígena no Brasil tem sido reconhecida como de resistência à dominação eurocêntrica colonial ou apenas como uma parte da história dos europeus na América, não tendo sido vinculada a outros momentos da história brasileira. Comumente, sua cultura é retratada de forma estilizada, homogeneizada e estereotipada na historiografia tradicional, não traduzindo a gênese de sua essência.
Em diversas narrativas de modernização, desenvolvimento ou dominação ocidental na América Latina, a história e a cultura indígena desaparecem. Pensar a existência de tipos distintos de historicidade (Lévi-Strauss, 1998) possibilita pensar a história a partir da diversidade e reconhecer situações circunstanciais onde grupos possam ser percebidos nos "territórios de exceção" (Costa, 2021).
Os indígenas são protagonistas de sua própria história, ou seja, constituem o que Costa (2021) denominou de "sujeitos dos territórios de exceção", pois tornam-se seus próprios historiadores. Sua cultura, sua história, seu modo de vida e suas narrativas definem sua própria identidade, pois são as narrativas, segundo Hall (1999), um dos elementos principais de expressão da cultura.
A Constituição Federal de 1988, no artigo 231, reconheceu a importância da cultura indígena para a “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” brasileiras e destacou ainda a responsabilidade do governo em realizar a demarcação de terras e a proteção dos bens indígenas. O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tem buscado reconhecer a relevância da cultura indígena em algumas ações protetivas. Desde 2002, o Iphan registrou diversas expressões e saberes da cultura indígena, tais como Arte Kusiwa do Amapá em 2002, a Cachoeira de Iauaretê em 2006, o Ritual Yaokwa do Povo Indígena Enawene Nawe em 2010, o Ritxòkò – Expressão Artística e Cosmológica do Povo Karajá & Saberes e práticas associados aos Modos de Fazer Bonecas Karajá em 2012, a Tava — lugar de referência para o povo Guarani em 2014. As ações supracitadas apesar de incipientes, não conseguem reverter o quadro de desvalorização, negligência e esquecimento da cultura indígena no nosso país, que permanece resistindo à “colonialidade do poder” (Costa, 2017, p. 73), e anuncia um "utopismo patrimônio-territorial" (Costa, 2021, p. 114) resultante das ações contraditórias envolvidas na colonização americana.

O presente artigo traz para discussão duas etnias indígenas aldeadas - os Tupiniquins e os Guaranis, situadas na cidade de Aracruz, região norte do Espírito Santo. Essas aldeias são uma expressão clara dos "territórios de exceção" latino-americanos — comunidades marginalizadas, subalternizadas e vulnerabilizadas sócio-economicamente, que resistem às práticas sócio espaciais excludentes e universais. O município de Aracruz possui nove aldeias distribuídas, com cerca de 3.800 indígenas (Teão & Loureiro, 2009). Os Tupiniquins representam os povos mais antigos do Espírito Santo e foram aliados da Coroa Portuguesa na conquista das terras capixabas, além de terem sido muito influenciados pelos portugueses (Souza, 2020). Ao longo do tempo perderam algumas de suas características, mas conseguiram preservar as principais características da cultura do povo. Por outro lado, os Guaranis vieram do Sul do país na década de 1960 (Shaden, 1962). Estão localizados em Boa Esperança, Três Palmeiras, Piraquê Açu e Olho D’Agua. A aldeia de Piraquê Açu (figura 1) é objeto de estudo deste artigo.
O principal objetivo desta pesquisa é identificar as formas de morar e as técnicas construtivas da casa indígena na atualidade. Como objetivo específico, busca-se compreender a organização sócio-espacial da aldeia Piraquê-Açu, com o intuito de avaliar como essa comunidade vulnerabilizada sócio-economicamente sobrevive às práticas hegemônicas modernizantes. Busca avaliar ainda como esse "território de exceção" conecta territórios afetivos e simbólicos dessa comunidade subalternizada.
Pelo viés da epistemologia da geografia, o presente estudo aborda a produção do espaço indígena, sustentados por análises empíricas, com foco nas comunidades. Pesquisas bibliográficas e documental, observação participante e história oral constituem os mecanismos dialógicos de prática investigativa. A pesquisa de campo, realizada em 2021, efetuou entrevistas com indígenas e o cacique da comunidade Piraquê-Açu, levantamento métrico e fotográfico da aldeia e observação da vivência cotidiana. A execução dos mapas foi realizada no Photoshop, a partir da base do Google Earth. A representação gráfica das tipologias arquitetônicas e das técnicas construtivas foi realizada no Sketchup, com renderização no Vray e finalização no Photoshop, a partir das medições e observações realizada in loco na pesquisa de campo.
2. A gênese do processo de formação do território indígena
A história indígena enceta bem antes da chegada dos portugueses no território brasileiro. Por conseguinte, a junção de pesquisas e os avanços tecnológicos permitiu a interpretação significativa sobre a linhagem ancestral dos povos indígenas e o primeiro processo migratório no território americano. Por meio de dados genéticos, Genera (2020) destaca que foi possível identificar os primeiros paleoindígenas que chegaram há mais de 15 mil anos, em um processo migratório de haplogrupos (linhagens) maternos e paternos.

Há várias hipóteses sobre o processo de assentamento na América. Uma delas é o estreito de Bering, a partir de uma ponte natural emersa de travessia que levou anos por conta das condições climáticas da Era Glacial. Sendo assim, foi o elemento eminente para a divisão entre os grupos que “viriam a formar os nativos da América do Sul e os do Norte, inclusive com uma separação entre os que seguiram pelo litoral e os que seguiram pelo interior” (Genera, 2020, [s. p.]). Podemos observar na figura 2 o processo migratório e a divisão dos haplogrupos nas rotas A, B e C. Destaca-se que os grupos C e B caminhavam juntos antes de saírem da Ásia para América e seguiam sempre pelo litoral. O grupo A seguiu pelo interior do continente, onde esperaram a Era Glacial terminar. Esse processo durou cerca de 2 mil anos, pois o grupo acompanhava o movimento migratório dos animais de grande porte, por ser a subsistência da caça e alimento fundamental à sobrevivência dos indivíduos. Outra hipótese é a migração Malásio-Polinésia rumo à América do Sul. Nesse deslocamento marítimo em direção ao Leste, seguiu-se sempre o sentido das ilhas do pacífico. Acredita-se que essa trajetória migratória tenha sido realizada, por alguns grupos humanos, a partir do uso de canoas primitivas.
O modo de vida dos paleoíndios seguia uma relação íntima com a natureza. Segundo a arqueóloga norte-americana Anna Curtenius Roosevelt, os indígenas “alimentavam-se de peixes pequenos, frutos e óleos de palmeiras, como murici, ou da vagem de leguminosas, como o jatobá. Também comiam animais pequenos. Adoravam tartarugas” (Zorzetto, 2018, p. 32).
Importante destacar que nesse processo migratório para o continente americano, o Brasil apresenta remanescentes como o esqueleto humano mais antigo da América Latina, conhecido pelo nome de Luzia. Esse esqueleto, do gênero feminino, viveu a cerca de 11 mil anos atrás.
O povo de Luzia seria descendente de uma leva migratória vinda da Austrália e da Melanésia há cerca de 14 mil anos. Seria, portanto, uma leva distinta daquela que veio da Ásia 12 mil anos atrás pela rota da Beríngia. A chegada dos bereianos teria causado uma substituição da população com características australo-melanésias, deixando apenas vestígios dos habitantes originais. (Salles, 2018, [s. p.])
Análises científicas constataram que os traços fenotípicos da Luzia tiveram uma relação muito forte com o grupo indígenas Botocudos ou Aimorés que habitavam o sul da Bahia, norte do Espírito Santo e Leste de Minas Gerais. Ao contrário do que se pensava antes do descobrimento do Brasil, há indícios da existência da presença de humanos no continente americano, como ilustra a figura 3, o que demonstra a distribuição dos grupos indígenas que mais predominavam antes da chegada dos portugueses. Historiadores calculam que existiam aproximadamente entre 3 a 4 milhões de indígenas no Brasil antes de 1500, espalhados pelos quatro cantos do país.

A expansão ultramarina comercial portuguesa, conhecida como o período das grandes navegações ou “quinhentismo português” (Moraes, 2000), enquadrou a expansão colonizadora nos trilhos de uma política mercantilista (Novais, 1995) que culminou no descobrimento da América (Faoro, 1998) e na “visão edênica do Novo Mundo” (Holanda, 1969, p. 45).
A 9 de março de 1500, partia do Rio Tejo em Lisboa uma frota de treze navios (...) aparentemente com destino às índias, sob o comando de um fidalgo de pouco mais de trinta anos, Pedro Álvares Cabral. A frota, após passar as Ilhas de Cabo Verde, tomou rumo oeste, afastando-se da costa africana até avistar o que seria terra brasileira a 21 de abril. Nessa data, houve apenas uma breve descida à terra e só no dia seguinte a frota ancorou no litoral da Bahia, em Porto Seguro. (Fausto, 1996, p. 16)
O processo de ocupação do território brasileiro ocorreu primeiramente no litoral da Bahia, especificamente na região de Porto Seguro. Nesse local, aconteceu também o confronto inicial entre os europeus e os povos nativos com língua e cultura diferentes. Vale ressaltar que a população indígena não constitui uma cultura única, mas sim diversa, pois cada tribo contém sua própria língua e costumes. A figura 3 ilustra os povos indígenas localizados na parte litorânea brasileira, certamente os principais grupos a entrarem em contato ou conflito com o homem branco. Nesse momento, houve um processo simultâneo de “construção de uma sociedade e de um território, em um movimento que sincronizou o povoamento, a apropriação do solo e sua exploração produtiva” (Moraes, 2000, p. 24). É relevante mencionar que esse conflito entre raças expõe relações de poder e controle, característicos de práticas colonialistas difundidas na América, que consolidaram um "utopismo patrimônio-territorial" que segundo Costa (2021), evidencia relações verticais de dominação, concepções distintas entre seres dominantes e dominados, assim como a resistência dos dominados.
As primeiras terras ocupadas pelos portugueses localizam-se na parte litorânea em decorrência da proximidade ao mar, determinando um território de “ocupação marinha” (Becker & Egler, 1993) com foco para a exploração. Anterior a essa ocupação, essas terras eram habitadas por seres nativos caracterizados entre Pataxós de língua Jê, Tupinambás, os Tupiniquins e os outros grupos. O processo de colonização brasileira, instaurada desde o descobrimento até a implantação do sistema colonial, passou por grandes conflitos entre disputas pelas terras e exterminações e desolação étnico-cultural. A família étnica indígena mais afetada foi a Tupi-guarani, que se estendia "por quase toda a costa brasileira, desde o Ceará até a Lagoa dos Patos, no extremo Sul do Brasil” (Fausto, 1996, p. 20).
O período posterior ao descobrimento do Brasil, denominado pelos portugueses como colonização, iniciou-se por volta de 1530 com a criação das capitanias hereditárias, que almejaram promover a ocupação das terras brasileiras (Reis Filho, 1968). Inicialmente, buscou-se utilizar a escravidão indígena como mão-de-obra, pelo uso da violência e captura. Houve resistência, conforme relatado por Fausto (1996), o que culminou com a busca pelo povo africano. Moraes (1996) ressalta que a sociedade escravocrata se consolidou pela força e pela violência. Dentro de uma visão de dominação eurocêntrica, Fausto (1996) destaca que os indígenas tinham uma cultura oposta ao trabalho escravo intensivo na perspectiva dos europeus, visto que não eram preguiçosos, mas sim sobreviviam de acordo com as necessidades de subsistência e a forma de viver livre perante a natureza no qual os seus costumes foram retidos. Uma forma de dominação dos portugueses aos povos indígenas foi a designação de missões missionárias religiosas principalmente pelos jesuítas como ato de catequização (Smith, 2012), ou seja, uma prática colonialista dominante oriunda do condicionamento moderno-europeu do território. A influência dos jesuítas foi fundamental para descaracterização e extinção das tribos indígenas: não apenas perderam as suas terras, como tiveram sua cultura alterada. No processo de “conversão dos indígenas” (Smith, 2012, p. 99), os costumes, a linguagem e o modo de viver foram praticamente extintos ao serem direcionados para a cultura do homem branco. Algumas tribos distantes conseguiram desviar as influências dos portugueses, tais como as tribos localizadas na região norte, no interior da Amazônia.
A união de vários biótipos ocasionou a mestiçagem dos povos indígenas, ou seja, a mistura genética entre grupos étnicos distintos. Fausto (1996, p. 22) descreve que o contato com o povo europeu “resultou em uma população mestiça, que mostra, até hoje, sua presença silenciosa na formação da sociedade brasileira”. O Brasil possui, na atualidade, uma população total aproximada de 214,8 milhões de habitantes (IBGE, 2020). Nesse montante, é possível verificar uma diversidade étnica composta pelos portugueses colonizadores, pelos africanos trazidos como escravos e pelos indígenas nativos.

Hodiernamente os grupos indígenas são formados por misturas culturais decorrentes de lutas e resistências às ações modernizadoras e de controle colonial do mundo, que denunciam um "utopismo patrimônio-territorial"(Costa, 2021) da história do território latinoamericano. “Milhões de indígenas viviam no Brasil na época da conquista e apenas cerca de 250 mil existem nos dias de hoje” (Fausto, 1996, p. 22), ou seja, inúmeros indígenas subalternizados refletem as "resistências sócio-culturais e memoriais da formação espacial latinoamericana" (Costa, 2021, p. 114, tradução nossa).
Na figura 4 ressalta-se os grupos indígenas existentes e a sua distribuição no território brasileiro. Segundo dados da Funai (2020), existem na atualidade cerca de “817.963 indígenas, dos quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180 habitam as zonas urbanas brasileiras. (...) representando 305 diferentes etnias. Foram registradas no país 274 línguas indígenas” (Funai, 2020).
Segundo Costa (2017), a exploração de riquezas no território latino-americano extirpou a cultura e a vida de muitos indígenas. As terras indígenas resultam dessas lutas e conquistas, que segundo a Funai (2020) representam 13,75% da extensão do território brasileiro. Essa área corresponde a uma porção de terra proveniente de um processo administrativo e legal, habitada por uma ou mais comunidades indígenas. Compreende uma área que expressa as atividades culturais, produção e reprodução física.
3. Espírito Santo: capixaba em tupi “roçado para plantar”
No período das Grandes Navegações em direção ao Novo Mundo para exploração de novas terras, por volta do dia 23 de maio de 1535, embarcações portuguesas chegaram à região de Vila Velha e ocuparam as terras da futura capitania do Espírito Santo. O nome "Espírito Santo" foi atribuído pelo donatário Vasco Fernandes Coutinho, por ser um dia de celebração de Pentecostes na fé católica. Segundo Santos (1999), a vegetação era exuberante, misteriosa e densa, o que atraía os marinheiros para o desembarque. O contato primitivo foi intenso, pois na primeira diligência no território houve o acionamento das armas de fogo apontadas para o alto, impulsionando um ato de pânico aos nativos. Esse ato demonstra a primeira hostilidade entre povos distintos (Santos, 1999).
O primeiro assentamento no contexto capixaba ocorreu na área hoje ocupada pelo sítio histórico da Prainha de Vila Velha (ES), onde os portugueses chegaram com a sua embarcação. A história relata que, nos primeiros anos, houveram muitos confrontos indígenas e, por uma questão de segurança, transferiram a capital para ilha de Santo Antônio, conhecida como a ilha de Vitória (Bentivoglio, 2019; Santos, 1999).

Segundo Bentivoglio (2019), os primeiros indígenas que evidenciaram a chegada dos portugueses foram os tupiniquins, um povo adaptado às condições climáticas e às fontes naturais locais. Os tupiniquins, como ilustrado na figura 5, ocuparam amplamente a costa litorânea, no trecho correspondente do sul da Bahia até São Paulo. Por meio de análises genéticas, Souza (2020) destacou que foi possível comprovar essa hipótese: "indígenas tupiniquim que habitam Aracruz, no Espírito Santo, (...) têm a mesma linhagem genética do grupo que povoavam o litoral brasileiro na época da chegada dos portugueses, no século 16. Eles possuem 51% de DNA nativo americano, 26% europeu e 22% africano" (Souza, 2020, [s. p.]). A figura 5 mostra a distribuição e migração das tribos tupiniquins, a partir da lógica que conduziu a ocupação ao longo do período colonial e determinou a ocupação do aldeamento jesuíta no estado do Espírito Santo. Certamente, vale mencionar que as rivalidades de outras tribos resultaram no escoamento para o norte do estado.
O estado do Espírito Santo possui três terras demarcadas como reservas indígenas, em uma área de aproximadamente 18 mil hectares, localizadas a aproximadamente 80 quilômetros ao norte de Vitória, no município de Aracruz. A figura 6 mostra a demarcação e a localização das reservas indígenas no território. O estado apresenta duas etnias indígenas - os tupiniquim e guarani - que juntas contemplam nove aldeias distribuídas em torno de Aracruz, com cerca de 3.800 indígenas (Teão & Loureiro, 2009).
Os povos tupiniquins “englobam os falantes de todas as línguas derivadas do tronco linguístico tupi” (Souza, 2020, [s. p.]) e os guaranis são conhecidos “por acreditarem na busca da terra sem mal, que consiste em um local apropriado ao nhandereko” (Bentivoglio, 2019, p.10). Desse modo, são dois grupos aldeados em Aracruz na atualidade.
Existem duas principais hipóteses de como se deu essa movimentação, baseadas em evidências linguísticas e arqueológicas. A primeira delas indica que essas populações partiram juntas em descida pelo território até a região da fronteira com o Paraguai, e ali se dividiram, uma parte continuando pelo sul, que daria origem à etnia Guarani (Tupi-Guarani do sul), e outra para o litoral, onde surgiriam os Tupiniquim (Tupi-Guarani da costa). Já a segunda hipótese é de que essas duas ramificações tiveram início ainda na Amazônia, e os povos teriam partido de lá já como grupos independentes – os Guarani direto para o sul, e os Tupiniquim (junto com Tupinambá e outros Tupi costeiros) para o norte e em seguida o litoral. (Souza, 2020, [s. p.])

A figura 7 mostra essa migração originada na floresta amazônica, onde a dispersão pode ter ocorrido pelo crescimento populacional, ou seja, pelas novas necessidades e pela busca por alimentos. Assim, com o movimento de novas terras, surgiram também novas variações linguísticas e culturais.

4. Aracruz: a Aldeia Piraquê-Açu - em guarani “Rio do Peixe grande”
As aldeias em Aracruz correspondem a dois grupos étnicos, os tupiniquins e os guaranis (Prefeitura de Aracruz, 2021). A figura 8 demonstra as sete aldeias existentes: Areal, Amarelos, Caieiras Velhas, Irajá, Pau Brasil, Comboios e Córrego do Ouro - de etnia tupiniquim - e três aldeias da de etnia Guarani - Boa Esperança, Três Palmeiras e Piraqueaçu. Na atualidade, a aldeia de Boa Esperança possui em torno de 50 famílias, Três Palmeiras possui 14 famílias e Piraquê-Açu 10 famílias (Funai, 2020).
As aldeias estão localizadas na região litorânea do município e às margens do Rio Piraquê-Açu - considerado o maior estuário do Espírito Santo e um dos mais representativos da América Latina. O bioma criado pelo clima tropical, as matas, rios, manguezal e mar, dão o tom da vida indígena aracruzense. (Prefeitura de Aracruz, 2019)
A área de estudo desta pesquisa corresponde a aldeia Piraquê-Açu, da tribo de etnia guarani, que segundo a Funai (2020) compreende dez famílias e 35 moradores, em sua maioria Kaiowá, que ocupam aproximadamente 50,5 ha. A aldeia Piraquê-Açu constitui a aldeia menos povoada e se localiza a 45 km da BR ES-010 - a rodovia que liga a região metropolitana de Vitória (capital do Espírito Santo) ao norte do estado.

É importante mencionar que os indígenas guaranis não são precedentes no território capixaba, pois vieram do Sul. “Em 1967, cerca de 30 indígenas guarani chegaram ao Espírito Santo” (Bentivoglio, 2019, p.16). São grupos conhecidos por se deslocar de regiões para outras em busca das “Terras sem Males” coincidindo com as terras capixabas. "Foram expulsos de suas terras por fazendeiros de erva-mate na década de 1940, sendo guiados durante vinte anos pela chefe espiritual Tãtãtxi Ywa Reté até a Terra sem Males, um lugar apropriado ao seu modo de vida e que reunisse condições físicas" (Neiva, 2016).
As terras nas quais os Guaranis procuravam deveria permitir a subsistência da tribo por meio da retirada de riquezas da natureza, tais como alimentos e água. Vale ressaltar, que o deslocamento dos guaranis é sempre motivado por questões ecológicas-culturais na busca de suas necessidades econômicas e sociais (Bentivoglio, 2019). O deslocamento pode ser gerado pela escassez da caça, da pesca ou do cultivo, assim como por conflitos internos. Para os guaranis, a escolha do território é fundamental, pois está associada ao seu modo de vida, à nomeação da aldeia e à formação das suas regras.
Os Guarani Mbya da Região Sudeste buscam um território com as seguintes condições ambientais: localizado em sentido leste, situado próximo ao mar e com presença de Mata Atlântica. Os Guarani Mbya buscam esses lugares próprios ao seu modo de vida e nomeiam as aldeias conforme os elementos míticos para identificar esses espaços. A religião é um fator decisivo de diferenciação étnica que se dilui no cotidiano, nas diferenças de hábitos, na dieta alimentar. O território guarani é formado pela relação entre os aspectos socioambientais, espaciais e de acordo com os princípios éticos que regem o modo de ser guarani. As regras de reciprocidade e de convivência social mantêm a dinâmica de ocupação territorial guarani. (Bentivoglio, 2019, p. 12)
Outro aspecto relevante a ser destacado refere-se a forte espiritualidade associada à prática do deslocamento pelo território. Segundo o cacique Pedro da Silva - da Aldeia Piraquê-Açu (entrevista concedida em Aracruz, Espírito Santo, Brasil, em dezembro de 2019) - o "caminhar" para o povo guarani simboliza o seu fortalecimento e sua evolução espiritual, pois significa a busca por "terras sem males - um paraíso mítico", um local passível de sobrevivência, sem interferências. Esse deslocamento, característico desde o período da colonização, permanece até a atualidade. O líder espiritual de cada aldeia é o responsável por liderar e coordenar todas as mudanças. Desse modo, o cacique Pedro destaca que podem ocorrer motivos distintos para o deslocamento. Um deles decorre do aumento do número de famílias e, consequentemente, do crescimento espacial, o que gera a possibilidade de criação de novas aldeias, como foi o caso da Aldeia Nova Esperança em Aracruz/ES. Outra possibilidade de deslocamento advém do desejo de um membro mais velho da família agregar seus familiares. Nesse caso, ele se torna o responsável, como foi o caso das aldeias guarani em Aracruz-ES, onde descendentes da líder espiritual Tatatxi Ywa Reté se juntaram para formar as aldeias.
A localização da Aldeia Piraquê-Açu é considerada sagrada pelos indígenas, pois apresenta condições ambientais que estão em consonância com o Tekoa dos Guaranis - formada por astros que se interligam com os meios naturais da terra, sobretudo pela presença da Mata Atlântica, que está no Leste e próximo ao mar. A tribo guarani de Piraquê-Açu exibe uma relação de reciprocidade entre os indígenas que identificam os seus espaços por meio dos elementos místicos, que articula a consciência da identidade através de características próprias e intransferíveis do lugar (Bentivoglio, 2019).
O modo como ocorre a organização espacial da Aldeia Piraquê-Açu (figura 9) demonstra a intrínseca relação com a natureza – está circundada pela Mata Atlântica e por uma extensa área de mangue defronte às margens do Rio Piraquê-Açu. Possui uma fauna e flora riquíssimas, com peixes que sempre serviram como alimento principal da pesca para tribo. É importante mencionar que a contaminação do Rio Piraquê-Açu em 2015, em decorrência do desastre-crime da mineradora Samarco, proveniente do rompimento da barragem de Fundão, despejou na bacia do Rio Doce uma lama contaminada com rejeitos de mineração, que deixou o rio praticamente sem peixes ao comprometer todo seu ecossistema. Os impactos desse desastre-crime influenciaram tanto uma das fontes de coleta de alimentos e abastecimento de água dessas comunidades, quanto o seu modo de apropriação com o rio, na medida em está associado à aspectos culturais, ritualísticos, memoriais, sem contar na questão de saúde dos indígenas.
Após a pesquisa - tanto pelo viés documental quanto pela história oral - foi possível identificar singularidades na organização espacial das aldeias tupi-guaranis de Aracruz. Um aspecto importante a ser mencionado se refere a implantação. Comumente, o desenho das aldeias está associado a uma planta ideal que traduz uma ordenação que regula a sociedade. Os estudos de Novaes (1983) e Crockrer (1976) evidenciam que geralmente a organização espacial das aldeias indígenas é circular, com as casas situadas ao redor do círculo.
As pesquisas de Sá (2001) e Neiva (2016) demonstram que as aldeias tupi-guarani capixabas não seguem essa lógica circular. Elas possuem uma organização espacial semelhante umas às outras, porém estruturadas a partir do desenho de uma rede, onde as casas estão isoladas entre si e conectadas por caminhos que se espalham na mata (figura 8). Essa pesquisa tornou evidente que há uma ordem espacial claramente definida: o terreno é predominantemente plano, com leve inclinação na direção oeste, onde localiza-se o rio para abastecimento. A casa do cacique e o pátio das cerimônias e rituais, também utilizados na atualidade para receber pessoas de fora - estão situados logo na entrada, no maior espaço aberto da aldeia. As demais casas ficam isoladas, em caminhos secundários - onde cada casa corresponde a um clã que faz parte de uma hierarquia social pré-definida.

Logo de entrada tem uma oo djere, casa redonda para receções, reuniões e confraternizações entre as aldeias e os que vêm de fora da aldeia, é nesse local que são realizadas as festas principalmente as que recebem os brancos (não índios). (...) Na entrada da aldeia fica também a casa do cacique para ter controle de quem entra na aldeia, e para facilitar a localização do mesmo. Há também umas cinco ou seis casas próximas umas das outras e da entrada da aldeia, as demais ficam espalhadas na mata. (DER-ES, 2019, p. 11)
Desse modo, corrobora-se com a visão de Novaes (1983, p. 75) ao destacar que cada aldeia ''concebe o espaço a ser habitado de forma absolutamente distinta'', para promover sua adaptação ao meio. Fica claro que a organização espacial não é aleatória, pois segue uma lógica sócio espacial hierárquica condicionada a aspectos culturais e religiosos, que resiste aos riscos e influências externas. Nesse sentido, as aldeias configuram-se como "patrimônio-territorial" no sentido cunhado por Costa (2021, p. 120), pois expressa tanto as "vulnerabilidades-negatividades" oriundas do Estado, quanto as "potencialidades-positividades" necessárias para permanência dos grupos sociais.
5. A casa tradicional indígena: o locus da morada do clã
Para o completo entendimento da organização espacial das aldeias, faz-se necessário a compreensão da casa - o locus da morada do clã, ou seja, da família matrilinear inserida em uma hierarquia social pré-definida. Para Novaes (1983), cada casa pode abrigar uma família, até duas ou três, porém sempre pertencentes ao mesmo clã ou sub-clã.
Para nortear a análise da casa indígena da Aldeia Piraquê-Açu, utilizou-se alguns parâmetros propostos por Baldus (1942) para orientar os pesquisadores em suas incursões etnográficas iniciais nas aldeias indígenas brasileiras. Destaca-se, a seguir, os critérios analíticos a serem utilizados nesta pesquisa, a partir do roteiro de Baldus (1942): a) identificação dos tipos de casas presentes na aldeia; b) estudo da planta da casa; c) compreensão do processo construtivo; d) identificação da divisão dos trabalhos na execução da casa.
No que se refere à identificação dos tipos de casas presentes na Aldeia Piraquê-Açu, verifica-se que na atualidade os indígenas habitam casas pequenas, inseridas no meio da mata ou em clareiras, construídas em pau-a-pique cobertas por fibra de palmeira ou alvenaria com cobertura de telha cerâmica (figura 10). Segundo declarações do cacique Pedro da Silva (entrevista concedida em Aracruz, Espírito Santo, Brasil, em dezembro de 2019), o nomadismo prevalecente na cultura Guarani sempre influenciou diretamente no tamanho e no sistema construtivo das casas: pequenas, com rapidez e facilidade de montagem/desmontagem e transporte.
O cacique relatou que a inserção do banheiro no corpo da casa, das antenas de televisão e internet, assim como da rede elétrica são práticas recentes. Na atualidade, segundo o relatório do DER-ES (2019), o abastecimento de água para as habitações provêm da captação de um poço artesiano comunitário, que abastece outros poços individuais por meio de canalização. A aldeia não possui sistema de coleta para tratamento de esgoto. Por isso, todos os efluentes residenciais são direcionados para fossas sanitárias individuais.
Referente ao segundo aspecto de análise das casas — as plantas — Baldus (1942) destaca a importância de se compreender seu formato e sua divisão interna. O autor ressalta ainda a necessidade de representação gráfica do corte transversal para ilustrar aspectos construtivos específicos, tais como a altura das paredes, a inclinação do telhado e o fechamento das laterais.

A figura 11 mostra a tipologia tradicional utilizada na construção das moradias indígenas. Nessa tipologia, é possível observar uma planta retangular, com uma forma curva achatada nas pontas, característica dos povos guaranis. Internamente, essas casas não possuíam divisões. No centro da planta, localizam-se os esteios centrais da cobertura, que sustentam a "cumeeira". Pelo corte, é possível observar o formato triangular da construção, formada por duas estruturas de madeira inclinadas em 45 graus, apoiados sobre um esteio central.
A figura 12 ilustra a tipologia residencial prevalecente na aldeia na atualidade. Essa tipologia possui planta retangular, com a presença de janelas e portas. Internamente, o espaço é dividido em quarto, sala, banheiro e cozinha e o desenho da planta pode possuir variação de família para família. O telhado de duas águas, possui caimento sempre no sentido de maior extensão da construção. A presença de janelas garante a iluminação e a ventilação interna.
Segundo Baldus (1942), o terceiro critério de análise da casa corresponde à compreensão do processo construtivo, desde a escolha do sítio à sua execução. Sobre a escolha do sítio, já foi explicado anteriormente a importância da proximidade da mata e da água, pois os guaranis, como os outros grupos étnicos indígenas, conduzem o meio de viver a partir da natureza. Através desses fatos, é possível averiguar que esse modo corresponde à forma mais sustentável de se construir, onde se retiram os materiais da floresta. Esse processo, na linguagem arquitetônica, expressa a prática vernacular - recursos tirados do próprio ambiente ou local para promover edificações de materiais provindos de recursos regionais e adaptados às questões climáticas locais.
Em uma primeira aproximação pode-se dizer com base em recursos humanos e materiais acessíveis, alcançar, mediante seu aperfeiçoamento e desenvolvimento, o mais alto grau de produtividade para conseguir um habitat adequado para cada região e seus modos de vida, tanto em qualidade como em quantidade. (Moreira, 2021, [s. p.])
A retirada de materiais da natureza sempre foi uma prática comum aos indígenas. De acordo com os relatos dos indígenas, a retirada de materiais possui períodos específicos. No caso das árvores, por exemplo, o corte da madeira para execução do sistema construtivo é realizado em função do ciclo da lua. Todavia é relevante mencionar como as influências modernizadoras do território podem alterar essa prática. Durante as entrevistas, alguns indígenas relataram a ausência de fibra de palmeira na região de Aracruz, o que dificulta a execução das coberturas das casas com as técnicas tradicionais. De acordo com o cacique, às vezes é necessário importar a fibra do sul da Bahia para poderem construir, o que torna caro e demorado o processo. É nesse contexto que, muitas vezes, fica mais fácil, rápido e barato adquirir materiais como concreto e telhas de barro para construções.

Fica evidente nas narrativas o grande desafio cotidiano de equalizar a preservação da sua cultura frente às influências externas. O cacique Pedro relatou que eles ainda constroem com a técnica tradicional para perpetuar o legado do saber fazer - o domínio da técnica, passado de gerações em gerações. A figura 13 ilustra esse legado - a técnica construtiva da tipologia tradicional da moradia indígena. Segundo relatos dos indígenas ao longo das entrevistas, a construção inicia-se com a consolidação da estrutura, por meio dos esteios de sustentação principal, representados pelas madeiras de espessuras maiores conectando a fundação à cumeeira - viga horizontal principal. O próximo passo é a colocação de madeiras menores - conhecidas como ripas - nas extremidades. Por fim, executa-se o fechamento por meio de um painel constituído por amarrações por folhas secas de palmeiras entrelaçadas.
A atual versão da casa indígena guarani utiliza o pau-a-pique, também conhecido como taipa de mão ou taipa de sopapo. O pau-a-pique é considerado a técnica mais tradicional do Brasil e foi amplamente difundido na construção civil desde o período colonial. A facilidade de execução, aliado à farta disponibilidade de argila e o despojamento do equipamento necessário, certamente contribuíram para essa difusão.
A técnica de execução é bastante simples (figura 14): ela inicia-se pela preparação do terreno, onde são fixados os baldrames e os esteios centrais e laterais - os pilares de madeiras que consolidam o sistema estrutural. A cumeeira - a viga principal horizontal é fixada sobre os esteios centrais e as travessas (vigas secundárias) sobre os esteios laterais, ambos no sentido longitudinal. As cruzetas - vigas secundárias do sentido transversal, servem de apoio para inserção do encaibramento e das ripas - como elementos terciários - definindo a estrutura da cobertura. Finalizado a parte estrutural, inicia-se a execução do sistema de fechamento. As molduras das janelas e portas são colocadas antes do pau-a-pique - uma trama xadrez vazada compostas por madeiras finas, bambu ou cipó, amarrados nos sentidos horizontais e verticais. O barreado (mistura de terra, água, e agregante) é inserido com a mão nos vazios do pau-a-pique para formar o revestimento das paredes e as divisórias da edificação.



A última etapa de construção da casa corresponde à cobertura executada com amarrações de folhas secas. Em muitas regiões do Brasil é comum o uso do sapê - um tipo de capim. Na região de Aracruz, segundo relato dos indígenas, verificou-se que é comum a utilização de folhas de palmeiras secas amarradas com cipó.
Um aspecto que chamou a atenção foi a precisão na execução das técnicas construtivas observadas na aldeia de estudo, minimamente trabalhadas nos detalhes (figura 15). Os indígenas utilizam amarrações com a palha, enlaçamento por meio de cipós nas interligações das estruturas e nas conexões do pau-a-pique e encaixes precisos na estrutura para conectar esteios e vigas. Essas técnicas podem ser reconhecidas como patrimônio imaterial, preservados pela perpetuação do saber-fazer - o domínio da técnica.
Toda a execução dos detalhes construtivos supracitados, sobretudo as amarrações, são executadas pelas mulheres, enquanto os homens são responsáveis pela execução do sistema estrutural e de fechamento. A clara divisão e organização das funções demonstra que o trabalho é coletivo, com a participação de todos, porém com atividades específicas de cada gênero ao longo do processo. Destaca-se que a compreensão da divisão dos trabalhos na execução da casa constitui um outro aspecto de análise proposto por Baldus (1942), pois envolve questões sociológicas de extrema importância a respeito da construção da casa e das relações envolvidas nela.
6. Considerações finais
Compreender a cultura indígena é resgatar algo da própria essência da cultura brasileira e aprender com nossos antecessores aspectos que compõem o território e a identidade do país. Possibilita também avaliar como essas comunidades vulnerabilizadas sócio-economicamente sobrevivem historicamente às práticas hegemônicas coloniais eurocêntricas. A pesquisa evidencia que as comunidades indígenas de Aracruz anunciam um "utopismo patrimônio-territorial" que expressa resistências sócio-culturais e memoriais da formação espacial latinoamericana.
A pesquisa torna evidente a influência dos aspectos externos no modo de vida das comunidades indígenas que resistem para sobreviver e preservar suas tradições face a distintos riscos e vulnerabilidades. A contaminação do Rio Piraquê Açu pela mineradora Samarco deixou o rio praticamente sem peixes, influenciando diretamente uma das fontes de coleta de alimentos. O medo da violência contra os indígenas nas cidades se destaca como outro aspecto negativo. Embora os indígenas saíam pouco das aldeias, agressões físicas e verbais foram relatadas e despertam esse sentimento. A cultura urbana influencia a indígena, que na atualidade tem que se adaptar para sobreviver.

A pesquisa marcou uma quebra de paradigmas, que desmistificou a ideia de que os indígenas vivem em ocas ao redor de um espaço central circular e oval. A implantação das casas destaca outra mudança significativa: as casas são edificadas em grandes clareiras ao longo da estrada. Algumas soluções e adaptações às condições ambientais adotam materiais retirados da natureza.
A pesquisa mostrou ainda que os indígenas das aldeias de Aracruz/ES moram, há alguns anos, em casas de pau-a-pique ou alvenaria e não em ocas como se tem no imaginário. Há pouco tempo o banheiro foi inserido nas casas. No entanto, verifica-se que aspectos externos à sua cultura estão presentes nas construções, como o uso de alvenaria, telhado em duas águas, telhas cerâmicas ou de amianto. As construções são simples e pequenas, porém refletem o modo de vista dos indígenas, que sobrevivem da caça, da lavoura, da venda de artesanato nas cercanias das aldeias e do turismo por meio de visitações ao local. As aldeias ainda possuem forte relação com o rio, de onde garantem sua sobrevivência. Todas essas relações supracitadas influenciam na configuração da paisagem cultural das aldeias indígenas, pois a paisagem cultural configura uma "porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores" (Depam/Iphan, 2009).
A pesquisa verificou que os indígenas possuem amplo domínio das técnicas construtivas observadas na aldeia de estudo a saber: amarrações com a palha, enlaçamento por meio de cipós nas interligações das estruturas, encaixes e conexões e o pau-a-pique. Essas técnicas podem ser reconhecidas como patrimônio imaterial, preservados pela perpetuação do saber-fazer.
Fica evidente que a cultura e o modo de vida indígena, ainda que preservado, passou por modificações e ressignificações para se adequar à vida contemporânea. Eles usam roupas como o homem branco, possuem celulares com internet, moram em casas de adobe ou concreto, possuem energia nas suas casas.
A pesquisa identificou a relação ontológica da comunidade e a vida nas aldeias com o território - seja pela constituição da sua identidade, pois está associado às suas crenças, as suas relações de parentesco ou as alianças, seja pela adaptação ao meio e sua subsistência. Porém, fica claro, que independente do desenho, a configuração espacial do território é definida pelas redes que se consolidam, ao constituírem verdadeiramente as fronteiras. "A aldeia guarani constitui uma rede viva e encontra-se em permanente mutação. Nada mais contemporâneo que uma aldeia guarani" (Neiva, 2016).
O maior legado dessas aldeias não está nos bens materiais remanescentes, mas nas suas tradições, no saber-fazer, no domínio das técnicas, no lugar das práticas e materialização dos rituais, na perpetuação das suas crenças. Ele sobrevive nas vivências e na memória do lugar e se manifesta por meio do seu patrimônio imaterial, não institucionalizado pelo mercado e pelo Estado. Ele pode ser considerado um “patrimônio-territorial”, como definido por Costa (2017, p. 53), por consolidar uma “estratégia contra a invisibilidade de grupos subalternizados no desenrolar da modernidade/colonialidade que, contraditoriamente, faz emergir o indivíduo”, ou seja, "reconhece a força do sujeito situado diante dos riscos e vulnerabilidades sócio-espaciais tratados, de forma negligente, na sua dimensão física-mercantilista" (Costa, 2021, p. 114, tradução nossa).
7. Contribuiçoes dos autores:
Melissa Oliveira: conceituação; metodologia; análise formal; investigação; escritura original, preparação do borrador; redação – revisão e edição; recursos; curadoria de dados; administração do projeto; aquisição de fundos.
Esdras Almonfrey: conceituação; metodologia; análise formal; investigação; escritura original, preparação do borrador.
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