Recepción: 01 Marzo 2022
Aprobación: 01 Julio 2022
Publicación: 01 Mayo 2023
DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v6i12.42445
Resumo: A pesquisa contempla os atributos patrimoniais de Itatiaia, Ouro Branco, Minas Gerais. Considerando que cada sítio possui particularidades que o caracterizam no tempo e no espaço, parte-se do pressuposto de que é crucial levantar e compreender os bens patrimoniais de forma contextualizada para fomentar a sua valorização. A partir de averiguações in loco, de análise documental e bibliográfica e de entrevistas, o objetivo é evidenciar os principais referenciais desse vilarejo estabelecido em fins do século XVII para fornecer subsídios à população local nas necessárias (e urgentes) reivindicações ao Estado para fins de levantamento e salvaguarda. A perspectiva, nesta etapa inicial, é abordar as dimensões cultural, histórica e arquitetônica do valor patrimonial de forma objetiva e subjetiva. Os resultados preliminares apontam que na memória de habitantes locais há um expressivo valor patrimonial, envolvendo tanto os bens que não resistiram à passagem do tempo, quanto os que permanecem.
Palavras-chave: patrimônio, memória, Itatiaia-MG.
Resumen: La investigación contempla los atributos patrimoniales de Itatiaia, Ouro Branco, Minas Gerais. Visto que cada sitio tiene particularidades que lo caracterizan en tiempo y espacio, se asume que es fundamental relevar y comprender los bienes patrimoniales de forma contextualizada para promover su valorización. A partir de investigaciones in loco, análisis documental y bibliográfico y entrevistas, el objetivo es destacar los principales hitos de referencia de esta villa establecida a fines del siglo XVII para proporcionar subsidios a la población local en las necesarias (y urgentes) reivindicaciones al Estado con la finalidad de reconocimiento y salvaguardia. La perspectiva, en esta etapa inicial, es abordar las dimensiones cultural, histórica y arquitectónica del valor patrimonial de manera objetiva y subjetiva. Los resultados preliminares indican que en la memoria de los habitantes locales, existe un valor patrimonial expresivo, que involucra tanto los bienes que no han resistido el paso del tiempo, como los que permanecen.
Palabras clave: patrimonio, memoria, Itatiaia-MG.
Abstract: The research includes the heritage attributes of Itatiaia, Ouro Branco, Minas Gerais. Considering that each site has particularities that characterize it in time and space, it is assumed that it is essential to survey and understand the heritage assets in a contextualized way to promote their appreciation. Based on in loco investigations, documental and bibliographic analysis and interviews, the objective is to highlight the main references of this village established at the end of the 17th century. Another of the objectives is to provide supports to the local population in the necessary (and urgent) claims to the State for the purpose of assessment and safeguard. The perspective, in this initial stage, is to approach the cultural, historical and architectural dimensions of heritage value in an objective and subjective way. Preliminary results indicate that in the memory of local inhabitants, there is an expressive heritage value, involving both assets that have not withstood the passage of time, as well as those that remain.
Keywords: patrimony, memory, Itatiaia-MG.
Considerações iniciais
O patrimônio histórico-cultural é estabelecido em processos complexos que envolvem o modo de produção material e imaterial da vida entrelaçado ao campo da reprodução social, sendo que as sucessivas gerações vão construindo, moldando e recriando o espaço na sua vivência e convivência. Frutos da relação comunidade e lugar, a História e as histórias sucedem-se, atribuindo fisionomia ou personalidade aos territórios, os quais se diferenciam por certas particularidades e podem ser compreendidos também como espaços de conhecimento e de experiências (Chatzigrigoriou, Nikolakopoulou, Vakkas, Vosinakis & Koutsabasis, 2021). Nesse processo cumulativo cria-se uma identidade que não se cristaliza, pelo contrário, passa por constantes transformações socioprodutivas e culturais.
As múltiplas mediações fazem com que o espaço também tome a forma de lugar, o qual é provido de significados e de valores subjetivos (Grey & O’Toole, 2020) e que precisam ser analisados levando-se em conta a dialética entre as relações sociais estabelecidas na produção e a esfera da práxis. O lugar é, assim, um desdobramento da construção histórica, cujos valores (estéticos, culturais, tradicionais) lhe são atribuídos pela interação das comunidades (Freitas, Sousa, Ramazanova & Albuquerque, 2021). A partir dessa orientação, as dimensões cultural, histórica e arquitetônica do valor precisam ser tratadas, tanto de forma objetiva – o que envolve o fato patrimonial em si, com sua história, parâmetros estéticos, estado de conservação, autenticidade, originalidade, potencial educacional etc. –, quanto subjetiva – incluindo o significado pessoal e comunitário a partir de tradições, memórias, emoções, saudades.
Já a dimensão concernente à economia política refere-se ao “valor em movimento” (Harvey, 2018), possível pelas relações sociais travadas no campo da produção material e imaterial, o que perpassa questões acerca das formas de propriedade, das rendas, da atuação estatal e dos regimes de valor socialmente dinamizados. Integradas a essas duas dimensões, é fundamental levar em conta os elementos da natureza que especificam ou caracterizam as paisagens a partir da interação das comunidades locais, sempre em simbiose com seus costumes e técnicas produtivas. É o caso, por exempo, da paisagem rural, que, sendo resultado desse entrosamento merece ser entendida como patrimônio e, por isso, pode se constituir como elemento diferenciador de uma dada comunidade (Freitas, Martín Cea, Villanueva & Valdivieso, 2017).

Ao abordarmos os elementos patrimoniais, apontamos que convergem como indutores de sua valorização não somente as possíveis ações institucionais com esse propósito, mas, sobretudo, o posicionamento, a mobilização e o enfrentamento coletivos a partir de bases educacionais formais e informais que subsidiem posturas e ações de reivindicação para a preservação e a conservação. Tal referencial pode se estender tanto à manutenção de métodos tradicionais de usos do solo e de produção como forma de contar uma história e propiciar outros desenvolvimentos sociais (Freitas & Koskowski, 2020), quanto a adoção de outras e novas técnicas/atividades produtivas que atendam às demandas de uma dada comunidade sem desmantelar seus elementos patrimoniais.
Mesmo considerando as contradições e os antagonismos gestados nas instâncias constitutivas da sociedade de classes e, mais especificamente, com a interação entre o patrimônio (material e imaterial) e o turismo enquanto mercadoria (os quais serão contemplados em uma segunda etapa da pesquisa), tal relação pode carregar elementos promotores de mobilizações sociais (Martoni, 2019), sobretudo em uma região devastada – social e ecologicamente – pela mineração. Nesta reflexão acerca da salvaguarda do patrimônio local como valor do lugar, abordou-se o vilarejo de Itatiaia, distrito de Ouro Branco, Minas Gerais (Figura 1).
Para este trabalho, adotou-se a indicação de Mason (2002) no que se refere ao levantamento de memórias e o mapeamento delas, posto que podem fornecer componentes importantes para a compreensão do território. Assim, foram analisadas fontes bibliográficas com o intuito de identificar o patrimônio por sua datação e importância cultural e artística, bem como realizados registros fotográficos, colocando em evidência os atributos em ruínas e os que estão em risco de desaparecer por intervenções que desconsideram sua importancia histórica ou mesmo a falta de encaminhamentos para a preservação/conservação. Tal reconhecimento de campo foi referenciado por um registro de memórias de três moradores escolhidos pela idade mais avançada, pelo reconhecimento como atores com forte carga de identidade local pela população residente e com gerações passadas também da localidade, sendo a amostra resultante dessa escolha dirigida.
Os seus testemunhos e memórias foram tratados como exemplos de identificação das materialidades e imaterialidades resultantes de vivências socioespaciais. Para isso, adotamos a observação direta participante, ou seja, procuramos não demonstrar a prática da pesquisa, uma vez que concordamos com Fernandes (1978, p. 09) que tal procedimento, ao dissimular os “propósitos reais do investigador [...], reduz as barreiras emocionais ou morais à observação [...]”, auxiliando na obtenção de informações. As conversas, em visitas informais, foram norteadas pelos seguintes tópicos: 1) quais locais vêm à memória e que marcaram sua infância / juventude?; 2) como era seu cotidiano de trabalho?; 3) como era o seu tempo livre?; e 4) quais eram as práticas mais comuns, festividades? O objetivo foi mapear o patrimônio material e imaterial identificado na pesquisa bibliográfica e de campo, mas, principalmente, levantar elementos de vivência nesses espaços, tanto aquelas relacionadas às relações estabelecidas no campo da produção (cotidiano de trabalho) quanto aquelas relacionadas às relações firmadas no campo da reprodução social (tempo livre, festividades, costumes, tradições, educação formal e informal, religiosidade). A partir desses procedimentos, foi possível levantar alguns importantes elementos da história e do patrimônio de Itatiaia no contexto regional e para a comunidade local.
2. Valor (subjetivo) do lugar e o caso de Itatiaia
Se o conceito ou categoria valor refere-se à questões de ordem subjetiva, espiritual (Freire, 2019) e, ao mesmo tempo, de produção material e imaterial da vida social, ao contemplarmos a primeira representação atrelada à coisa em si, o princípio elementar das relações dos sujeitos com o patrimônio pode envolver uma diversidade de questões, tais como: a herança histórica e cultural, os elementos estético-paisagísticos, os sentimentos de pertencimento, a manutenção dos bens para as gerações futuras e imprescindíveis à constituição de memórias. Nesse sentido, a memória pode ser compreendida como um processo contínuo de relação das comunidades com o seu passado; e de partilha de valores entre os elementos dessa mesma comunidade, desenvolvendo sentimentos coletivos de identidade e de pertencimento (Apaydin, 2020). Em vista disso, a memória transforma-se em registro de passagens de vivências que mantêm o passado em memórias vivas e retêm o patrimônio que ainda sobrevive ou o que tem capacidade para sobreviver (Welburn, 2007).
Este valor dos lugares, que reside na memória e nos saberes dos lugares, é importante para o desenvolvimento social dos territórios, sendo o turismo, nas suas possibilidades culturais (Duxbury & Richards, 2019), uma alternativa à promoção da conservação, das memórias, das tradições e dos produtos tradicionais (Mihăilă, Leonte, Boghiță & Robu, 2020), além de se constituir como forma de resistência à massificação, tal qual verifica-se em grandes cidades (Zinchuk, Kutsmus, Kovalchuck & Charucka, 2018) e/ou em localidades que se abrem sem enfrentamentos e contestações ao capital.
Bujdosó, Dávidb, Ęzsérc, Kovácsd, Gyöngyi, Major-Kathie, Uakhitovaf, Katonag & Vasvári (2015) referem-se à importância da cultura e do patrimônio – material e imaterial – como elementos fundamentais na composição do território e os identificam como expressões do valor em si por meio de comportamentos individuais, relações familiares, standarts, manifestações religiosas, artes, artesanato, tradições, costumes, rituais, estilos de vida, monumentos, arquitetura, gastronomia, símbolos, entre outros. Assim é, também, a memória, que enriquece os lugares e permite um constante regresso ao passado. Conforme explica Souza (2019), o território em uso, as “rugosidades” e as suas dinâmicas revelam-se nas paisagens, nas vivências, nos costumes e na cultura e, como tal, são de um valor enorme para os lugares.
Por cultura tradicional entendem-se as estruturas históricas enraizadas em elementos culturais que caracterizam os lugares na sua diversidade e identidade que permanecem diacronicamente na memória dos lugares. Doina, Calin, Elena-Adriana e Anisoara (2011) comentam que o conceito de tradição inclui palavras-chave como transmissão, valores culturais e espirituais, passado histórico, memória coletiva e modo de vida. É a partir desse entendimento de cultura tradicional que este estudo foi em parte orientado.
Aqui reside o patrimônio intangível, compreendido como práticas, representações, expressões, conhecimentos e habilidades que os indivíduos ou grupos reconhecem como parte da sua cultura e que são tansmitidos de geração em geração (UNESCO, 2003). Para Melis e Chamber (2021), este patrimônio intangível é um patrimônio vivo, um objeto de conhecimento que está enraizado e faz parte dos lugares. Tendo em vista a importância dessas formas culturais que remetem aos ambientes diários e costumeiros das comunidades, a sua preservação é crucial para a sobrevivência dos lugares. Por assim dizer, em 1989 a UNESCO recomendou a salvaguarda da cultura tradicional pelos seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais nos domínios do patrimônio, uma vez que considera tais elementos como verdadeiros tesouros vivos e ressalta sua fragilidade em um mundo onde a mundialização do capital, a globalização e os interesses atrelados a essas dinâmicas promovem a sua fragilização ou desaparecimento (Dimitropoulos, Tsalakanidou, Nikolopoulos, Kompatsiaris, Grammalidis, Manitsaris, Denby, Crevier-Buchman & Dupont, 2018).
É importante compreender o sentido do lugar e a vinculação da população aos seus atributos, bem como avaliar sua importância para as comunidades locais (Sebastien, 2020), uma vez que tal compreensão nos possibilita apreender os recursos do território não somente a partir do enfoque da produção de valores para a troca, mas, também, como valores compostos por vínculos emocionais, de significação e de memória. No entanto, só compreendemos o território em sua totalidade a partir das mediações entre gênese da vida (ou relações sociais de produção) e a construção cultural, o que envolve a inter-relação de todos os atores sociais e as suas diferentes posições ideológicas, de classe e culturais em um tempo histórico.
Nesse sentido, é preciso considerar, também, os elementos resilientes ao tempo que alcançam estatuto de atributos culturais estruturais de uma comunidade, os quais integram os domínios do patrimônio a serem desvendados em suas dimensões mais essenciais. Importante salientar aqui as diferenciações entre significância e significado de fatos e/ou objetos, sendo que o primeiro termo refere-se às suas formas ou aparências percebidas, enquanto o segundo alude às questões de conteúdo ou de essência que os formatam no tempo e no espaço (Lefebvre, 1991, Luckács, 2012). Para fins investigativos, Lukács (2012, p. 75) explica que uma pesquisa comprometida com a compreensão da dimensão de totalidade do objeto requer o estabelecimento das diferenças entre essência e aparência ou significado e significância: “por um lado, trata-se [...] de destacar os fenômenos de sua forma aparente dada como imediata, de encontrar as mediações pelas quais eles podem ser relacionados ao seu núcleo [...], por outro, trata-se de compreender o seu caráter e a sua aparência de fenômeno, considerada como sua manifestação necessária”.
As averiguações documentais e bibliográficas, bem como a pesquisa de campo com seus registros fotográficos e de memórias trouxeram algumas informações de relevo acerca da história do vilarejo de Itatiaia – mesmo que em uma primeira aproximação e apenas indicativas de processos mais amplos (nesta etapa da pesquisa) –, permitindo descrever e evidenciar cinco conjuntos de elementos patrimoniais e culturais fundamentais da história da comunidade: a) A sua localização nos caminhos do ouro enquanto trajetos regionais que alavancaram a construção de um importante patrimônio relacionado com as viagens efetivadas para o escoamento do minério para a metrópole; b) As edificações de relevo; c) A presença das Irmandades como forma de controle social e dinamização cultural; d) As crenças populares; e, e) A memória e suas relações com o patrimônio local.
Assim, e de forma exploratória, verifica-se:
a) A localização nos caminhos do ouro
Itatiaia nasce em local elevado, com certa distância dos cursos d’água principais, mas com ampla panorâmica para a Serra de Itatiaia (a leste), o Bico de Pedra (ao norte) e o caminho para Ouro Branco (a oeste). Salienta-se que a comunidade local constitui-se como arraial no contexto das incursões para a extração de ouro na região da então Villa Rica (atual Ouro Preto-MG) com a movimentação de tropas para o transporte de mantimentos e, sobretudo, de ouro, para o Rio de Janeiro, via “Caminho Novo”. O “Mappa da Comarca de Villa Rica”, elaborado por José Joaquim da Rocha em 1779 (Figura 2), é um retrato social e geográfico da expressiva ocupação regional como desdobramento da exploração aurífera mineira, sendo o trajeto por Lavras Novas e Chapada o mais direto para “Ititiaya” (assim indicada no “Mappa”). Está representada no caminho que partia de Villa Rica e passava por Chapada e Lavras Novas (atuais distritos de Ouro Preto). Importante salientar que, para além de o vilarejo estar inserido em uma importante via de comunicação, ele é representado não só por uma cruz, mas por edificações que o colocam em detaque perante as demais localidades.


O chamado “Caminho Novo” começa a ser viabilizado a partir de 1698 por Garcia Rodrigues Paes Leme, sendo que, por volta de 1700, já estava aberto para o trânsito de pedestres. Mesmo caracterizado pela precariedade, haja vista que “os caminhos coloniais foram quase sempre, ou mesmo sempre, feitos em cima de trilhas indígenas” (Prestes, 1999, p. 58), sua consolidação como rota principal promoveu a minimização dos fluxos comerciais (e produtivos) nas localidades integrantes do Caminho Velho, o primeiro eixo de ligação entre a então Villa Rica e Paraty, e do qual faziam parte localidades como Cachoeira do Campo (atual distrito de Ouro Preto) e Tiradentes.
A partir desse referencial, é possível colocar em relevo que o acesso principal a Itatiaia não era o corrente (pelos fundos da Igreja de Santo Antônio), mas, sim, o que chagava nas proximidades da praça atual, que, vindo de Chapada, dava na parte frontal da Igreja. Verifica-se, ainda, fragmentos dos antigos caminhos nas proximidades da localidade, tais como muros de contenção, redes de drenagem, leitos empedrados e pontes em cantaria, contudo, ainda não foram realizados estudos no sentido de georreferenciar integralmente esses remanescentes para fins de demarcação, manutenção, cuidados, restauro e visitação. Aliás, trata-se de um importante patrimônio local em situação de total abandono pelo Estado, sendo que os seus vestígios indicam antigas técnicas construtivas de caminhos que podem ser perdidas (Figura 3).
b) As edificações de relevo
Entre os elementos patrimoniais e culturais de Itatiaia, salienta-se a igreja matriz, de estilo barroco, dedicada a Santo Antônio (Figura 4), construída por iniciativa das Irmandades dos Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de São Benedito. Deve-se realçar as dimensões e riqueza decorativa desta edificação, em particular da fachada, indicando a importância histórica dos elementos religiosos de Itatiaia. Este valor do patrimônio religioso foi também identificado no mapa de José Joaquim da Rocha (Figura 2). A construção da igreja é dividida em dois momentos. Segundo Gutvilen, Silva, Pedrosa, Isenschmid & Paiva (2016, n. p.), “A capela primitiva nos remete à arquitetura religiosa do Vale do Piranga”, sendo a primeira edificação (capela menor e atual fundos da Igreja em pau a pique) datada do começo do século XVIII, mais precisamente 1712. Já a ampliação, com a constituição da nave e da parte frontal edificadas em pedras, têm as obras iniciadas em 1741, as quais se desdobram até o início do século XIX. Em documentos de manutenção da Igreja, verifica-se que:
Com a visita de Antônio Pereira Cunha em 1741, que “ordena a construção de uma nova igreja”, é que indícios são dados sobre a capela primitiva. Os desejos de uma nova igreja na região são estimulados pelo estado de degradação desta capela. Nesta mesma visita o cônego ainda aclama às irmandades da região: “esperamos que as irm.desdesta fregs.aconcorrão com o que poderem p.aque nella com mais decência possão ter colocadas as imagens dos stosque são de sua devoção” (6). Assim, atendendo, coube às Irmandades do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e São Benedito, a encomenda. (Gutvilen et al., 2016, n. p.).

A Igreja Matriz de Santo Antônio de Itatiaia é o lugar onde ocorreram e ainda ocorrem as principais atividades religiosas. Apesar de a capela primitiva ser referenciada pelo ano do primeiro batizado registrado no local, Gutvilen (et al., 2016) relatam que sua origem pode ter sido anterior, já no final do século XVII, por ser um dos principais pontos de parada do caminho de Rodrigues Paes Leme. Então, é possível afirmar que trata-se de uma das primeiras igrejas de Minas Gerais, com a curiosidade para o fato de que, apesar de serem encontrados nos registros pedidos para a construção de uma edificação integralmente em pedra, a capela em pau a pique foi recuperada e anexada à nova construção. Ainda em relação à relevância regional do arraial naquele período, Gutvilen (et al., 2016, n. p.) explicam que:
A presença da pia batismal evidencia um fato: a igreja tinha importância e procura. Do contrário, os batizados poderiam ser realizados em Ouro Branco ou Ouro Preto. Importância que se confirma, por documento de 1733, quando por ocasião da visita canônica do Doutor Manoel da Roza Coutinho, é descrita a capela primitiva com a presença de 5 altares além de quantidade vasta de alfaias e prataria. Em 1752 a Paróquia eleva-se à colativa [que possui um padre nomeado e formalmente remunerado], reforçando sua importância na região.
Além da Igreja matriz, o edifício designado de “Casarão”, antiga escola e atual biblioteca comunitária Reinaldo Alves de Brito, encontra-se em bom estado de conservação. Edificado em estrutura autoportante em pedras, está datado da segunda metade do século XVIII (Figura 5). Trata-se de um edifício muito representativo da arquitetura brasileira e das técnicas construtivas daquele momento histórico, sendo indicativo da importância da conservação dos elementos que concedem valor histórico aos lugares.
Importante elemento patrimonial do vilarejo é o moinho do Rio Garcia, datado do século XVIII, movido por um pequeno desvio no rio e cuja edificação foi preservada pelo uso, o qual é corrente até a atualidade (Figura 6). Já a Casa Paroquial, também conhecida por “Casa dos Padres”, situada ao lado da igreja de Santo Antônio, possui ricos elementos em cantaria na fachada, mas encontra-se em estado de total abandono, com rachaduras graves que, se não reparadas imediatamente, provocarão o seu desabamento (Figura 7). Trata-se de mais um edifício representativo da arquitetura brasileira deste período e que merece proteção, posto que conta, só por si, histórias que devem ser estudadas e “lidas”.



c) A presença das Irmandades e as festividades religiosas
Baseada em uma economia de subsistência e funcional como ponto de parada de viajantes e comerciantes, o vilarejo teve suas relações de reprodução social mediadas também pelas Irmandades. Tratava-se de entidades estabelecidas em moldes parecidos com as corporações de ofício medievais, dados os laços de associativismo de seus membros. Também chamadas de confrarias, foram trazidas ao Brasil Colônia pelo catolicismo tradicional com a função de representar e cuidar do seus membros, inclusive no que se refere à educação e assistência à saúde, lacunas essas deixadas pela Coroa Portuguesa. O missionário metodista Daniel Parish Kidder (2001, p. 73), em suas incursões por províncias brasileiras entre 1837 e 1840, refere-se às irmandades como associações que:
[...] pouco diferem das sociedades inglesas e norte-americanas de beneficência, conquanto seja mais vasto o seu campo de ação. Seus membros são, em geral, leigos, e as corporações denominam-se Ordens Terceiras [...]. Têm hábitos parecidos com vestes eclesiásticas, com os quais se revestem em dias festivos e trazem distintivos pelos quais são conhecidas as diferentes irmandades. [Elas] concorrem ainda para a construção de igrejas, cuidam dos doentes, enterram os mortos e zelam pela vida espiritual do povo.
Acerca da fundação das Irmandades e a atuação delas junto às comunidades, verifica-se que:
Seus integrantes apresentavam na assembléia Legislativa Provincial um documento denominado 14ª Ordem de Compromisso, onde descreviam estatuto e as intenções de suas confrarias [...]. As irmandades eram fundadas com a intenção primordial de divulgação e promoção do culto de um santo padroeiro e, por isso, realizavam anualmente a comemoração de sua festa, com procissões, missas e homenagens com velas e toques de sinos. Essas irmandades, entretanto, trazem em suas instituições uma ambigüidade que lhes é indissociável, já que foram implementadas como forma de submeter os negros escravos ou libertos às práticas religiosas oficiais, além de procurar divulgar a idéia (sic) de conformação promulgada pela Igreja católica. (Alves, 2006. p. 07)
A busca pela ampliação territorial das irmandades dava-se justamente com a edificação de igrejas, sendo que a construção delas efetivava-se como chamariz a novos membros, daí a importância das ornamentações e simbolismos que acabam por se constituir como elementos de diferenciação no espaço. Essa ação estratégica não se limita à religiosidade e à assistência em si mesmas obviamente, mas, particularmente, como instrumento ideológico e de controle social em uma época marcada pelas barbáries da escravidão.
Logo, as irmandades foram importantes para a manutenção da ordem nos arraiais: prestavam assistência e monitoramento às igrejas, auxílio aos enfermos, além das realizações das festas religiosas. É possível apontar que, por meio das irmandades, iniciaram-se as festividades nos povoados, e, em Itatiaia, as celebrações ao santo padroeiro, as festas de Maria Concebida, Santo Antônio, São Sebastião, Santa Luzia, São Benedito, entre outros santos devotos. Algumas dessas festividades ainda fazem parte da tradição local, como a de Santo Antônio, a do Rosário e a Folia de Reis. Outras, porém, se perderam no decorrer dos anos, tais como a de São Sebastião e a de Santa Luzia. Declarado patrimônio cultural imaterial, a Folia de Reis caracteriza-se como uma das tradições mais antigas de Minas Gerais, com cerca de 300 anos. Segundo o Iphan: “A Folia de Reis, considerada uma das mais belas manifestações populares do Brasil, é uma festa de origem portuguesa. Chegou ao país por volta do século XVIII, inspirada na tradição católica da visita dos três Reis Magos ao menino Jesus” (Iphan, 2021).
A festividade tem início em 24 de dezembro e prolonga-se até 06 de janeiro. Para celebrar o espírito natalino, os foliões passam de casa em casa cantando cantigas tradicionais e improvisadas, geralmente com o uso de instrumentos como violas, sanfonas e pandeiros. Seu integrante marcante é o palhaço, o qual é o responsável pelas encenações, entretenimento e recolhimento das esmolas (ou ofertas em dinheiro pelos moradores). Outra festividade significativa em Itatiaia é a Festa de Santo Antônio, realizada em 13 de junho, dia do padroeiro. Conta com a participação de bandas de músicas, enfeites nas residências e tapetes de decoração nas ruas por onde passa a procissão, além das cavalgadas e dos leilões realizados com a finalidade de arrecadar recursos para a igreja.
d) As crenças e as práticas populares
Para além das celebrações e festividades religiosas, tem-se as práticas tradicionais que caracterizam o povoado no tempo e no espaço, de que são exemplos as atividades de benzedeiras e benzedeiros: “Às práticas tradicionais empregadas pelas benzedeiras e benzedeiros quilombolas, na promoção da cura e proteção, alia-se uma religiosidade sincrética pelas influências culturais das matrizes africanas, católicas e indígenas” (Mendes & Cavas, 2018, p. 03).
A atividade de benza, um saber tradicional, é realizada como auxílio no tratamento de males diversos (físicos e espirituais), utilizando-se, para isso, de rezas, chás, banhos com ervas, e de que são exemplos o benzimento de espinhela caída; o mal olhado; a torção; o aguamento; o cozer e até mesmo práticas auxiliares ao trabalho de parto. O sincretismo religioso que aconteceu no Brasil a partir do século XVI promoveu a troca de saberes e fazeres de diferentes povos, sendo que a diversidade e a simbiose entre crenças de matrizes africanas e o catoliscismo contribui na formação cultural. Em Itatiaia verifica-se que o patrimônio imaterial da benza está se perdendo, uma vez que não é praticada tal como há algumas décadas, sobretudo quando havia mais dificuldades de acesso ao vilarejo; e os laços tradicionais entre as gerações eram mais fortes no seio da própria comunidade.
e) A memória e suas relações com o patrimônio local
Em adição às considerações acerca do valor do patrimônio material e imaterial até aqui realizadas, deve-se evidenciar o papel da memória atrelada à vida social. Com esse propósito foram efetivadas as entrevistas, por meio das quais buscou-se revelar a memória de um espaço coletivo e, ainda, traçar elementos de identificação de significância e de significado. Nesse contexto, os princípios defendidos em La Valeta são fundamentais para entender a importância do património material e imaterial, em particular os testemunhos da passagem do tempo nos lugares como garantidores da identidade das comunidades (ICOMOS, 2011). As narrativas de memória são registos de identidades, de tradições, mitos e de relações socioprodutivas que podem constituir, elas próprias, um patrimônio que pemite recuperar traços fundamentais do passado para continuar a viver e nortear o futuro (Minarova-Banjac, 2018).
Conforme exposto, empregamos a observação direta participante, por meio de visitas e conversas informais norteadas por questões semiestruturadas, mas sem demosntrar que tratava-se de uma entrevista. Nessas conversas, buscamos contemplar: 1) os locais que vêm à memória e que marcaram a infância/juventude; 2) o cotidiano de trabalho; 3) as atividades no tempo livre; e 4) as práticas mais comuns, festividades. Tais entrevistas foram dirigidas com vistas a mapear o patrimônio material e imaterial identificado na pesquisa bibliográfica e de campo, mas, principalmente, levantar elementos de vivência nesses espaços que, por assim dizer, acabam absorvidos como lugares. Como critério de seleção dos entrevistados foram identificados os sujeitos mais idosos da vila, uma vez que teriam mais potencial para compartilhar elementos de memória. A amostra foi, assim, resultante de escolha dirigida. Os tópicos principais são apresentados nos quadros a seguir (01 a 04), os quais foram subdivididos de acordo com o tema principal e subtemas levantados nas conversas. Na seleção de tópicos, há referenciais gerais levantados pelos entrevistadores e, entre aspas, palavras dos próprios entrevistados.




A partir das entrevistas é possível evidenciar a riqueza das memórias dos(as) entrevistados(as) em temas como os edifícios históricos mais simbólicos e mais representativos para a comunidade que remontam ao século XVIII, tais como a Igreja matriz de Itatiaia, dedicada a Santo Antônio, a “Casa Paroquial”, o moinho, as escolas que ruíram e o Casarão, além daqueles frequentados no tempo livre do trabalho, como a pracinha e as vendas. Importantes são as anotações referentes ao patrimônio desaparecido, como é o caso das capelas de Nossa Senhora do Rosário e do Santíssimo Sacramento, além de outras edificações de grande valor histórico que precisam ser levantados possíveis vestígios e testemunhos materiais ou imateriais da sua existência. Deve-se evidenciar a emotividade com que se referem ao patrimônio abandonado ou desaparecido, sendo que tal sentimento encontra-se explícito na identificação dos edificios pelo adjetivo “bonito” ou, pelo contrário, a caracterização do abandono e desaparecimento como “tristeza” e “revolta”. Há, aqui, uma forte identificação com o patrimônio local, sempre presente nas vidas dos entrevistados.
As referências ao patrimônio imaterial permitem revelar um pouco da gastronomia local, com evidência para a “canjica” e o “melado”, e mostram práticas gastronômicas relacionadas com as culturas agrícolas do local. No âmbito do imaterial salientam-se as festividades como elemento cultural de grande relevo, assim como as práticas de cura através de chás e “benzeção”. Curiosas e não de menor valor são as figuras do imaginário local que produziam medos à comunidade, como a “mula sem cabeça”, “mãe de ouro” ou as pessoas e luzes estranhas. Embora em número reduzido, as entrevistas permitiram validar a importância da história oral no local. O tempo de trabalho e o tempo livre demonstram dois lados de uma mesma moeda, onde as práticas laborativas eram caracterizadas por uma produção mercantil simplificada no seio da comunidade, posto que as famílias produziam muito do que consumiam, trocavam ou compravam somente o necessário ou o que era possível e, além disso, cooperavam na roça ou na edificação da moradia de seus vizinhos. O tempo livre era o que sobrava do trabalho necessário de cada dia, inclusive o doméstico (que geralmente sobrecarregava e ainda sobrecarrega as mulheres), sendo mediado, não raras vezes, por práticas religiosas. Por fim, evidenciamos que as referências aos elementos que fazem parte da vida diária das populações locais são de enorme importância para entendermos a história local, no entanto, conforme explica Peralta (2018), a inexistência de um sistema estável de valores que envolvam o patrimônio e as populações locais sem gerar contradições sempre será um elemento desfavorável ao desenvolvimento social.
3. Considerações finais
Ao considerarmos os cinco conjuntos de elementos patrimoniais e culturais, é possível identificar que Itatiaia possui um passado histórico de grande relevo nos caminhos do ouro e na arquitetura dos séculos XVII e XVIII, passado este que pode ser revelado hoje se a sua conservação for efetivada; e se o lugar for incluído em uma rede dinâmica que comunique o patrimônio memorável no sentido de ser conhecido e vivido pelas atuais gerações. Mesmo que seus remanescentes sejam poucos, é preciso inventariar e valorizar os elementos que se encontram em estado de degradação, como pontes, muros de contenção, leitos de estradas e edificações, sendo este um processo que enquadraria Itatiaia em uma marco de valorização mais amplo, posto que envolveria tanto o seu centro histórico – onde estão localizadas outras edificações da mesma época da Igreja de Santo Antônio – quanto o entorno com os vestígios dos caminhos que permitiam acesso ao vilarejo. Tal prática de valorização permitiria recuar no tempo, (re)viver a história, as tradições, as técnicas de produção e incentivar os residentes a encontrar novas formas de vivência, não sem contradições e antagonismos. Para isso, a história oral também deve ser registrada.
Por um lado, coincidem nas averiguações históricas e nas entrevistas, a grande importância dos caminhos do ouro, o patrimônio edificado e o imaterial ainda conectados com muitas das histórias que a população recorda. Por outro, é evidente a falta de políticas de preservação da História e do patrimônio local, conforme apontam os residentes e é empiricamente registrável ao percorrermos o vilarejo. Podemos apontar que, preservados, há a Igreja de Santo Antônio e o Moinho do Rio Garcia; e, conservados, o casarão de 1773 – o qual funcionou como escola e abriga, hoje, a biblioteca comunitária Reinaldo Alves de Brito. Outros importantes referenciais do arraial de “Ititiaya”, tais como os muros de contenção dos antigos caminhos, a Casa Paroquial e alguns poucos vestígios de antigas edificações estão relegados ao abandono.
A preservação da Igreja de Santo Antônio deve-se antes ao seu uso e à sua importância histórica, cultural e de memória auferidas pela população, e, depois, ao turismo local e regional. Na década de 1950, ela já estava em estado de abandono, sendo significativa a carta do Padre Marcelino Braglia ao presidente Getúlio Dorneles Vargas acerca de sua relevância histórica. Nela, Braglia se refere à Igreja de Santo Antônio como “a mais antiga do município de Ouro Preto”, informa que a população local pouco pode fazer “por ser pequena e paupérrima”, e solicita reparos urgentes (Gutvilen, et. al. 2016, n. p.). As obras têm início no mesmo ano, mas a primeira grande obra de restauro vem com o tombamento, em 1983, seguida das restaurações de 1996, 1999, 2001, 2003, 2007 e 2014 (Gutvilen, et. al. 2016, n. p.).
Consideramos, assim, que a sua permanência no tempo e no espaço se deve tanto pelo fato de a comunidade manter suas atividades religiosas quanto pela integração do distrito ao trajeto das cidades coloniais mineiras. Não fossem as duas primeiras frentes (lugar de fé e em uso e referencial da história regional inserido em um trajeto largamente utilizado, inclusive por turistas e excursionistas) provavelmente a edificação estaria em ruínas, tal como as edificações de Miguel Burnier (distrito de Ouro Preto assolado pela mineração), a Capela de Santa Quitéria, no distrito de Rodrigo Silva (Ouro Preto), a Matriz de Nossa Senhora das Dores, em Dores do Paraibuna, dentre outras.
Importante notar que, se os remanescentes do patrimônio hisórico não são muitos, a memória deles e daquilo que se perdeu ainda se efetivam como patrimônio cultural, assim como as práticas tradicionais. Por isso, é preciso evidenciar que, na ausência de trabalhos que busquem resgatar e contextualizar esses saberes, são memórias que tendem a se perder, tal como as práticas das benzedeiras. Subdividimos alguns referenciais da memória local (nas conversas-entrevistas) em atividades praticadas no tempo de trabalho e aquelas realizadas no tempo livre do trabalho, justamente para verificar os usos, costumes e práticas efetuadas em demarcações temporais características das relações sociais de produção e das interações concretizadas no campo da reprodução social.
Ao tratarmos das memórias atreladas ao tempo de trabalho, verificamos práticas características de um mundo rural com poucas ligações externas. Isso é muito marcante até meados da década de 1990, quando a ligação entre Ouro Preto e Ouro Branco é asfaltada e o isolamento do vilarejo é quebrado, o que irá promover desdobramentos diversos, tanto no que se refere à especulação imobiliária ligada aos negócios turísticos (ainda em estado incipiente se comparado a distritos próximos, como Lavras Novas), quanto ao rompimento ou fragilização de certas tradições que eram passadas dos pais para os filhos.
Pode-se observar que os(as) entrevistados(as) relatam que a simbiose entre trabalho para um terceiro, a produção própria para o consumo e as atividades domésticas ocupavam parte significativa do tempo de vida. Já a fé religiosa e as festividades atreladas aos santos eram elementos centrais do tempo livre, pelos quais os sujeitos tanto se recompunham para o árduo trabalho cotidiano, quanto buscavam, por meio da fé, aceitar a vida sem perder a perspectiva de uma situação menos adversa. Nesse sentido, foi a prática social da religiosidade associada ao valor histórico da igreja que acabam por promover a permanência de um bem significativo da história regional do século XVIII. Considerando esse fato, o uso tem significado central: não fosse por ele, não saberíamos o desfecho do moinho do Rio Garcia, ainda hoje utilizado por moradores.
O estabelecimento de outros trajetos de ligação do distrito com localidades próximas e a negligência estatal com os fragmentos dos antigos caminhos, incluindo muros de contenção, redes de drenagem, leitos empedrados e pontes em cantaria, prejudicam o uso turístico desses trajetos, o qual poderia se constituir como atividade auxiliar à manutenção e cuidado do patrimônio. No entanto, é preciso considerar que o turismo regional é relegado a segundo plano diante da expressividade econômica e do poder corporativo das mineradoras, as quais não somente desqualificam – direta ou indiretamente – o turismo, mas comprometem sobremaneira a segurança nas vias de ligação entre muitos distritos, vilarejos e cidades. A própria rodovia estadual MG-129 (Figura 1), a qual possui remanescentes riquíssimos do “Caminho Novo” e de que são exemplos as pontes em cantaria, as redes de drenagem, os muros de contenção e os leitos empedrados, está abandonada e ameaçada pelo tráfego de veículos pesados, sobretudo a serviço das mineradoras.
Evidenciamos que, dentro de certos limites e configurações, o turismo pode se firmar como instrumento de valorização patrimonial dos lugares, bem como de preservação das suas memórias (Hickenbick, Schemes, Carrelas & Remoaldo, 2021). Assim, é importante salvaguardar e dar visibilidade a esse importante patrimônio de forma a conservar práticas e conhecimentos que possam beneficiar economicamente os habitantes locais (Bondi & Sezzi, 2021). É importante disseminar a história humana dos lugares (Djabarouti, 2020), enquanto histórias, acontecimentos, vivências e saberes como valor identitário (Djabarouti, 2020) para manter o espírito do lugar (Zanirato, 2020).
Chamamos a atenção para o fato de que os elementos culturais revisitados ou recuperados em memória podem permitir às comunidades a organização de atividades diversas, quer patrimonializando esses elementos culturais, quer usando a criatividade na criação de novos produtos. Muito em particular, as práticas gastronômicas são de um evidente valor, como a broa referida por uma das entrevistadas e que pode, no âmbito do turismo, marcar a diferença pelos gostos tradicionais. A broa, a canjica, a garapa ou melado, o chá da alfavaca, a água de alecrim e de berinjela surgem nas memórias permitindo identificar elementos tangíveis ou intangíveis a preservar. Contemplando o domínio do intangível, as descrições das festividades e da benzeção se efetivam como enorme riqueza cultural, as quais também devem ser registradas para que a história e a memória não as esqueça.
Paralelemente a isso, outras medidas de patrimonialização precisam ser levada a cabo, como é o caso da classificação e dos processos de reabilitação, de conservação e de restauro, as quais irão incentivar a capacitação social da comunidade local através de sentimentos de pertença e de identidade (Zanirato, 2020) e o desenvolvimento do turismo (Guimarães, Maia, Oliveira & Tricário, 2019). Releve-se a técnica de “pau a pique”, a tradicional taipa, identificada pelos entrevistados e que representa uma técnica tradicional e com inúmeras possibilidades de aplicação, quer em novas construções, quer na reabilitação e conservação da autenticidade arquitetônica local. Esta técnica permite fazer a diferença e ser um atrativo no artesanato e no turismo.
As descrições das festividades e das tradições a elas ligadas, a medicina tradicional e natural plena de saberes, a gastronomia local e as técnicas de construção tradicionais, são elementos culturais relevantes a serem conservados, registrados e comunicados como fortes atributos distintivos da região e da sua cultura. A fragilidade dessas materialidades e imaterialidade certamente as condenará ao esquecimento, se nada for feito. Haja vista que a pesquisa realizada teve como foco as memórias locais e o valor do patrimônio em Itatiaia a partir de uma perspectiva objetiva e subjetiva da coisa em si, ao darmos prosseguimento à outra etapa do trabalho, pretendemos abordar as mediações do valor do ponto de vista econômico, o que envolve a produção de valor a partir dos bens patrimoniais de forma direta e/ou indireta via atividades características do turismo; as relações entre diferentes classes sociais nos processos produtivos e distributivos; qual tem sido o papel do turismo para o restgate, conservação e preservação patrimonial local; e os desdobramentos socioespaciais dessas dinâmicas em Itatiaia.
4. Contribuição dos autores
Isabel Vaz de Freitas: elaboração do texto; metodologia; análise formal; pesquisa; correção e edição; coordenação da pesquisa; recursos.
Rodrigo Meira Martoni: elaboração do texto; metodologia; análise formal; pesquisa; correção e edição; levantamento de dados in loco; fotografias; coordenação da pesquisa; recursos.
Kelvin Adam Bruno: auxílio na elaboração do texto; pesquisa documental; entrevistas; levantamento de dados in loco.
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