Ameaças ao patrimonio-territorial no conflito de remoção da comunidade do Jacó, Natal/RN, Brasil
Amenazas al patrimonio-territorial en el conflicto de desalojo de la comunidad Jacó, Natal, RN, Brasil
Territorial-heritage in the conflicts surrounding resettlement policies at the Jacó community, Natal city, Brazil
Ameaças ao patrimonio-territorial no conflito de remoção da comunidade do Jacó, Natal/RN, Brasil
PatryTer, vol. 6, núm. 12, e42839, 2023
Universidade de Brasília
Recepción: 01 Mayo 2022
Aprobación: 01 Julio 2022
Publicación: 01 Julio 2023
Resumo: O artigo aborda o tema do Patrimônio-territorial e conflitos de remoção. Tem como referência a Comunidade do Jacó, bairro Rocas, Natal/RN, Brasil, que desde 2018 sofre ameaça de remoção por parte da municipalidade. Evidencia-se que, além da moradia, a ameaça de remoção afeta a perspectiva de continuidade da vida cotidiana no bairro, além de fragilizar a rede de apoio e solidariedade existente na comunidade. O artigo busca refletir sobre essa ameaça, que abrange elementos constitutivos do patrimônio-territorial, considerando o contexto de remoção. Entende-se esse patrimônio-territorial como expressão da vida cotidiana e singular da periferia em suas diversas dimensões. A base de dados tem referência em pesquisa acadêmica e projeto de extensão universitária. Como resultado, verificou-se que historicidade, afetividade, memórias e laços sociais, além de estreitas relações entre moradia, trabalho, acesso à educação saúde e lazer estão presentes nas trajetórias de lutas da comunidade, o que possibilita identificar a constituição de um patrimônio-territorial, cujo reconhecimento e ativação popular se concretizam em cada ação e estratégia utilizadas para evitar rupturas com o território.
Palavras-chave: patrimônio-territorial, conflito de remoção, comunidade do Jacó.
Resumen: El artículo aborda el tema del patrimonio-territorial y conflictos de remoción. Tiene como referencia la Comunidad del Jacó, barrio Rocas, Natal/RN, Brasil, que desde 2018 sufre amenaza de remoción por parte de la municipalidad. Se evidencia que, además de la vivienda, la amenaza de remoción afecta la perspectiva de continuidad de la vida cotidiana en el barrio, además de fragilizar la red de apoyo y solidaridad existente en la comunidad. El artículo busca reflexionar sobre esta amenaza, que abarca elementos constitutivos del patrimonio-territorial, considerando el contexto de remoción. Se entiende este patrimonio territorial como expresión de la vida cotidiana y singular de la periferia en sus diversas dimensiones. La base de datos proviene de proyectos de investigación académica y de extensión universitária (realizados por XXX en XXX). Como resultado, se verificó que la historicidad, afectividad, memorias y lazos sociales, además de estrechas relaciones entre vivienda, trabajo, acceso a la educación, salud y ócio están presentes en las trayectorias de lucha de las comunidades, lo que posibilita identificar la constitución de un patrimonio-territorial, cuyo reconocimiento y activación se materializan en cada acción y estrategia utilizada para evitar rupturas con el territorio.
Palabras clave: patrimonio-territorial, conflicto de remoción, comunidad del Jacó.
Abstract: The article addresses the topic of territorial-heritage and the conflicts that surround urban resettlement policies. It explores the case study of the Jacó community, located at the Rocas neighborhood, Natal city, Brazil, which since 2018 has been targeted by the municipal administration as a community to be resettled. Beyond changing the houses location, the resettlement affects the perception of social cohesion of daily life in the neighborhood and weakens the support and solidarity network that exists in the community. The article seeks to reflect on this process, which encompasses constitutive elements of territorial-heritage, that strongly emerge from the resettlement context. Territorial-heritage is an expression of the everyday and unique life of the periphery in its various dimensions. The data sources are academic research and fieldwork following university extension projects. As results, historicity, affectivity, memories and social bonds, as well as close relationships between housing, work, access to education, health and leisure are present in the trajectories of community mobilization, which allowed the identification of the constitution of a territorial-heritage, whose recognition and popular activation underpin each action and strategy employed to avoid ruptures with the territory.
Keywords: heritage-territorial, removal conflict, Jacó's community.
1. Introdução
Este artigo aborda o tema de patrimônio-territorial e conflitos de remoção, tendo como referência a comunidade do Jacó, localizada no bairro das Rocas em Natal, Rio Grande do Norte, Brasil (figura1).
Caracterizada como Área Especial de Interesse Social (AEIS) e integrante do território da AEIS Jacó-Rua do Motor, de acordo com o instrumento de planejamento urbano local definido pela Lei Complementar de Natal nº 082/2007, essa comunidade constituiu ao longo do tempo um patrimônio-territorial, que se encontra ameaçado no contexto da política habitacional do município e do intenso processo de especulação imobiliária verificado na região onde se encontra. O patrimônio-territorial reflete o pertencimento da identidade de um povo, abrangendo aspectos culturais e naturais (Costa, 2017). Formada desde 1960 (figura 2), a comunidade do Jacó é uma região predominantemente residencial, próxima ao centro e à zona portuária de Natal, sendo adjacente a bairros de renda média e alta da cidade, e próxima a atrativos turísticos, como as praias urbanas e o Forte dos Reis Magos. Os moradores mantêm fortes vínculos com o seu território e entorno, onde se encontram os vínculos de trabalho, unidades de saúde, escola e onde vivenciam o lazer.
O conflito de remoção vivenciado pelos moradores da comunidade do Jacó foi originado no âmbito da implementação do Programa Minha Casa Minha Vida, por parte da gestão municipal de Natal. Em 2018, foi oferecida uma proposta de reassentamento, alegando-se urgência devido à identificação de situação de risco geotécnico em frações da encosta onde se encontra parte das moradias. Contudo, não foi apresentado laudo pericial completo da área e nem das edificações interditadas. Da mesma forma, não foram observadas questões como o direito de participação no planejamento da política pública.


Nesse contexto, a proposta de reassentamento da comunidade do Jacó para o Condomínio Residencial Village de Prata, situado a aproximadamente 14,5 km de distância da comunidade (figura 3) desagradou os moradores, que ressaltaram a localização central do bairro que permitia ter acessos básicos às unidades de trabalho, saúde e lazer. Além disso, consideraram a historicidade construída devido ao longo tempo de moradia, os investimentos realizados em suas casas, as dificuldades e alegrias vivenciadas, e todas as relações de vizinhança e solidariedade cultivadas ao longo dos anos. Desse modo, parcela da comunidade decidiu permanecer no local, recusando a proposta habitacional do município. Observa-se nessa dinâmica que os moradores revelaram raízes e reivindicaram permanências, ressaltando vínculos afetivos de memória coletiva com o bairro, tal como concebem Batista e Matos (2014). Nesse caso o patrimônio-territorial se expressou como algo sentido pelos moradores, através de seus elementos constitutivos, ou seja, modos de vidas, saberes populares, modos de assentamento e formas de luta (Costa, 2016). Ao mesmo tempo em que, diante da ameaça de remoção, perceberam a possibilidade de perda desse patrimônio, os moradores o ativaram continuamente nos processos de luta em defesa da comunidade.
Diante disso, a municipalidade ingressou com ação judicial de despejo e interdição da área com pedido liminar, tendo sido acatado. Porém, a sentença foi revisada após recurso que enfatizou o patamar de proteção jurídica das AEIS, sendo conferido o direito do pagamento do auxílio moradia. Com isso, os moradores foram removidos de suas casas que foram interditadas de forma temporária até que fossem realizados estudos geotécnicos completos na área.
Conferido o auxílio moradia, os moradores optaram por alugar casas no entorno da comunidade, demonstrando uma resistência que se territorializa (Andrade, 2021; Costa, 2017) e confirmando seu grau de vínculo com o lugar, com seus equipamentos públicos e com a memória do espaço.
Desta maneira, vislumbra-se que o conflito de remoção evidencia não apenas a ameaça à perda das moradias, mas da relação dos moradores com seu patrimônio-territorial. Assim, questiona-se nesse artigo de que maneira o patrimônio-territorial está ameaçado em face do conflito de remoção? O objetivo é refletir sobre a ameaça ao patrimônio-territorial da AEIS Jacó-Rua do Motor, considerando o conflito de remoção iniciado em 2018, que acentua o processo de segregação socioespacial da comunidade.

Essa reflexão ocorreu por meio das lentes da compreensão de patrimônio-territorial conceituada por Costa (2021, 2017). O autor considera que o patrimônio expressa a vida cotidiana e singular da periferia em suas diversas dimensões, considerando que as características advindas dessa vivência permitem à comunidade a permanência no território e a (re)existência na esfera individual e coletiva. Nessa perspectiva, são analisados dados históricos do processo de formação do território, que evidenciam o potencial patrimonial da comunidade, que é tensionado pela proximidade com as paisagens naturais e culturais atrativas ao turismo, e pela especulação imobiliária no seu entorno.
No campo teórico conceitual, abordam-se os conflitos de remoção e seus efeitos no âmbito da violação de direitos humanos e na dinâmica urbana. São enfatizadas análises e pesquisas desenvolvidas pelo Observatório das Remoções (Lins & Rolnik, 2018) e pela Campanha Despejo Zero (Campanha Despejo Zero, 2021). O tema está definido juridicamente no Brasil pelo Decreto-Lei n.. 14.216/2021. Esses conflitos tratam de processos coletivos de expropriação em que pessoas e/ou famílias são deslocadas de seus locais de moradia ou de seu habitat, como no caso vivenciado pela comunidade do Jacó.
A análise também levou em conta a compreensão sobre a AEIS no âmbito do ordenamento jurídico local e sua aplicação no conflito como uma ferramenta de resistência e afirmação de direito à cidade através do valor social das moradias e do patrimônio-territorial. Esse instrumento jurídico urbanístico assegura a inclusão de uma população excluída do mercado formal de habitação diante da crescente pressão do mercado imobiliário sobre a área na qual se encontra instalada, possibilitando que as condições de existência dos moradores com perfil socioeconômico de baixa renda e em situação de vulnerabilidade sejam consideradas no fazer urbano (Duarte, 2011).
A base de dados que fundamenta a análise no presente artigo tem referência em atividades acadêmicas de pesquisa e em projeto de extensão universitária centrado em assessoria técnica popular, notadamente o Núcleo Urbano do projeto Motyrum de Educação Popular de Direitos Humanos vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Considerando que o Projeto atua na Comunidade do Jacó desde 2016, os dados sobre a relação dos moradores com seu patrimônio foram sistematizados antes do início do conflito. Constam anotações e produtos de reuniões, entrevistas e oficinas realizadas junto à comunidade do Jacó. Nessa base de dados, destaca-se a entrevista que possibilitou registrar o tempo de moradia no local, além do mapeamento das relações de trabalho e lazer no território. Considerando que a comunidade possui 75 residências, foi aplicada, no dia 16 de março de 2019, à moradores representantes de 30 residências da Comunidade do Jacó, esse instrumento, além de contribuir para revelar a relação dos moradores com o território diante do conflito de remoção, tornou-se importante instrumento junto aos processos dos órgãos de justiça.
Outra base de dados provém de produtos audiovisuais elaborados no âmbito do projeto de extensão. As falas dos moradores permitem verificar sua relação com o patrimônio-territorial no contexto do conflito fundiário. O minidocumentário “Entre Muros: vida escondida na Comunidade do Jacó” (Wanderlley, 2018) é resultado de uma oficina realizada com as moradoras mais antigas da comunidade e trata da constituição histórica do território a partir da narrativa e memória delas. No minidocumentário "Resistências na desconstrução de direitos urbanos: narrativas da comunidade do Jacó, Natal/RN” (Motyrum Urbano, 2019) são feitas considerações sobre a remoção por meio da narrativa dos moradores.
Como resultado, verifica-se que o conflito de remoção vivenciado pela comunidade do Jacó, para além da remoção dos moradores de suas casas, também afeta os sujeitos em sua (re)existência por meio do patrimônio-territorial, uma vez superada a concepção tradicional de patrimônio e a exigência da excepcionalidade, nota-se a importância do reconhecimento do patrimônio através da história do lugar e das pessoas. Nesse sentido, a AEIS se confirma como ferramenta que protege o patamar de direito à moradia e que também assegura a ativação do patrimônio-territorial, de tal maneira que os próprios moradores se percebam como detentores desse espaço, levando ao enfrentamento dos estigmas sociais impostos no âmbito do conflito.
2. Patrimônio-territorial da comunidade do Jacó
A decisão da municipalidade em remover a comunidade do Jacó, a partir da oferta de empreendimento habitacional localizado em bairro distante, ao contrário de promover a sua regularização fundiária e urbanização como Área de Interesse Social, evidencia a prevalência de uma visão de desenvolvimento presente na gestão de cidades fomentada pela lógica da rentabilidade, que reforça a ideia de uma gestão empreendedora e mercadológica dos espaços públicos. Com isso, o chamado “desenvolvimento” da cidade de Natal subordina os interesses dos sujeitos subalternizados em prol dos interesses das classes elitizadas e internacionais. O resultado dessa ação se verifica na reprodução de espaços urbanos segregados, que repercute na produção de uma cidade desigual e excludente.
Parte desse resultado é motivado pelas premissas de um “desenvolvimento” baseado em um ideal de modernidade que é tido como meta universal, e que serve às estruturas centrais do capitalismo. Tais estruturas são reafirmadas pela colonialidade do poder, que para Quijano (2009) está alicerçada no capitalismo e no eurocentrismo, nos quais a raça é utilizada como principal classificador de superioridade. Costa (2016) infere que tal característica nos leva ao julgamento baseado em características genotípicas e fenotípicas da população para justificar a dominação. Com isso, Quijano (2005) considera que a colonialidade do poder é a base padrão de poder mundial, que se constitui em uma junção de controles da esfera cultural, econômica, do conhecimento e da subjetividade dos povos subalternizados. Sabendo que a colonialidade está presente nos mínimos detalhes do cotidiano de países colonizados, se faz necessário atentar-se ao fato de que esse tipo de controle também reflete nas definições de patrimônio. Para Mesquita (2020), o patrimônio segue uma concepção patriarcal onde a herança é um fator influente na construção da memória. Diante disso, é importante questionar a quem se referem os registros herdados e porque foram eleitos a permanecer.
Para tal indagação, Costa (2017) partilha sua conceituação a respeito da patrimonialização global, a qual compreende como responsável pelas decisões de reconhecimento e permanecimento de patrimônios. Para o autor, a UNESCO é um exemplo de entidade fortalecedora da patrimonialização global, tendo em vista que busca de certa forma alcançar uma homogeneização cultural, tratando-se de uma estratégia de eleger produtos que valorizam símbolos universais que servem a intenções políticas, culturais e principalmente mercadológicas, porém que não são representativos de grupos marginalizados. Esse processo também tem sido chamado de geopolítica da patrimonialização (Santamarina, 2013).
É diante deste cenário que a colonialidade do poder permanece desenhando a história e a cidade. Nessa perspectiva, Costa (2016) propôs uma construção teórica, metodológica e decolonial que visa amenizar as violências urbanas e rurais advindas de conflitos socioeconômicos, que resultam em uma produção espacial deturpada para a América Latina. Segundo o autor, o patrimônio-territorial se refere ao reconhecimento de símbolos de resistência à colonialidade do poder, tratando-se de elementos que não interessam necessariamente aos órgãos de preservação, mas que carregam em si um poder simbólico para a comunidade. Os modos de vida, saberes populares, modos de assentamento e formas de luta são exemplos desses elementos e suas (re)existências são importantes para firmar direitos historicamente negados, fomentar aspectos da política, economia e cultura, dado o contexto em que foram condicionados os territórios na América Latina.
Costa (2017, 2021) aponta que é por meio do empoderamento e reconhecimento do patrimônio- territorial dos povos periféricos que se denuncia a colonialidade do poder, uma vez que isso resultará em diminuir os estigmas atribuídos a esses povos.
Dado o exposto, cabe a reflexão quanto à relação dos moradores da comunidade do Jacó com os elementos simbólicos do território que se configuram como patrimônio-territorial, tendo em vista que enfrentam um conflito de remoção. Vale ressaltar que de um lado do conflito há a predominância de valores individualistas e interesse empresarial eminente, tratando-se de um exemplo real do processo de modernização neoliberal. E do outro lado há valores coletivos que se alicerçam pela luta popular. Isso reforça a importância de abordar a comunidade do Jacó como exemplo de resistência à colonialidade do poder empregada neste processo.
Por meio do projeto de extensão Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos – Núcleo Urbano, PROEX/UFRN, que se realiza na comunidade do Jacó desde 2016, obteve-se uma base de dados que atesta o perfil social e cultural dos moradores, além dos processos de resistência que evidenciam a relação da comunidade com os símbolos constitutivos do patrimônio-territorial. Os dados apresentam o tempo e a forma de assentamento da comunidade no território, revelando a historicidade e memória coletiva que dão sentido à permanência. Demonstram também as relações de trabalho e lazer que compõem a paisagem pertencente ao lugar e a organização social da resistência.
Os dados foram coletados no dia 16 de março de 2019 através de uma pesquisa de caráter qualitativo. Foram aplicadas entrevistas abertas junto a 30 moradores representantes de 30 residências. O objetivo principal foi verificar a relação dos moradores com o território. A definição das pessoas que seriam entrevistadas foi baseada principalmente no seu envolvimento frente ao conflito e cujas casas foram interditadas pela defesa civil. Entretanto, a pesquisa abrangeu também aqueles moradores cujas casas não haviam sido interditadas, mas cujas famílias participavam regularmente das atividades do projeto de extensão na comunidade e se mostravam ativas na luta pelo território. Assim, os dados são relativos a moradores de 19 casas interditadas e de mais 11 casas não interditadas. Os resultados dessa pesquisa foram enviados para os órgãos de justiça e anexados ao processo que tratou o conflito de remoção.
Segundo os moradores entrevistados, o início de formação da Comunidade do Jacó data da década de 1960. A figura 4 demonstra o período em que ocorreu a construção das moradias, considerando apenas as vivências dos moradores entrevistados. O eixo y representa a quantidade de casas construídas, enquanto o eixo x demonstra a década em que ocorreram as construções, de forma não cumulativa. Revela-se assim a existência de um tempo considerável para que vivências, memórias e costumes tenham sidos cultivados no território.
A construção de habitações em uma encosta representa o padrão periférico de urbanização metropolitana, onde se enfatiza a ocupação de loteamentos irregulares e casas autoconstruídas (Grostein, 2001). Para Maricato (2003), esse tipo de habitação evidencia o processo de segregação urbana, pois tende a relacionar territórios que possuem dificuldade de acesso a serviços e a infraestrutura urbana básica. Além disso, essa segregação territorial também ocasiona dificuldades de oportunidades de emprego e lazer, além de potencializar discriminações. Inicialmente, a área ocupada pela Comunidade do Jacó se encontrava em uma região periférica da cidade do Natal. Atualmente possui uma localização privilegiada, pois se encontra no bairro das Rocas, Região Administrativa Leste de Natal-RN. Trata-se de uma área dotada de infraestrutura urbana e potencial de adensamento (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo, 2019), e contém áreas de interesse turístico e de interesse histórico.
Sua proximidade com a Praia do Meio revela o pioneirismo em atividades turísticas e no manejo da atividade pesqueira da cidade. Cascudo (1999) menciona já ter sido considerada a praia preferida para veraneio, e abrigou o Hotel Reis Magos, que foi considerado a principal referência para a rede hoteleira a partir da década de 1960, tendo sido demolido devido a visões predominantes de mercado, em 2020. Além disso, a proximidade da comunidade do Jacó com os bairros comerciais e históricos da Ribeira e Cidade Alta, além da praia, possibilitou que o processo de resistência fosse favorável, trazendo alternativas de trabalho e acesso ao lazer. Apesar disso, há uma convergência quanto aos acessos à infraestrutura básica dentro da própria comunidade, o que revela a complexidade das estruturas urbanas.


Segundo Clementino e Ferreira (2015), o período de 1980 a 2010 em Natal buscou atender a agenda neoliberal de desenvolvimento gerando uma ocupação territorial marcada pela segregação residencial.
Nessa trajetória, mesmo em meio à precarização da moradia, os moradores da comunidade do Jacó destacaram as possibilidades existentes de trabalho advindas do setor terciário, o que é favorecido principalmente pela localização de suas residências. As pessoas entrevistadas afirmaram vínculos empregatícios no próprio bairro das Rocas e em bairros adjacentes, como Ribeira, Praia do Meio, Cidade Alta e Petrópolis. Grande parte dos moradores que responderam a entrevista são aposentados ou não têm emprego fixo, vivendo de trabalhos informais. Esses que sobrevivem na informalidade costumam tirar o sustento da praia, na condição de ambulantes. Apenas um morador relatou que trabalhava na rede hoteleira da Via Costeira, mas que ainda considerava a localização da comunidade favorável, pois precisava de apenas um ônibus para chegar ao trabalho. Apenas um morador relatou que trabalha distante da comunidade, vendendo espetinho na praia de Ponta Negra. A figura 5 evidencia a espacialização das relações de trabalho com a localização da comunidade.
Através das relações entre moradia e trabalho identificadas pelos moradores, verifica-se que a localização atual da comunidade do Jacó proporciona o direito a um tempo de deslocamento adequado, tendo em vista a proximidade com as praias urbanas de Natal, onde grande parte dos moradores desenvolvem atividade de comércio e serviços. Nesse sentido, o tempo de deslocamento e o custo do transporte não se colocam como problema central para essa comunidade. O fato de não aceitarem ir morar no Condomínio Village de Prata, localizado no bairro Planalto, distante 14,5 Km, em muito se justifica por essa realidade. Conforme Ojima e Marandola (2012) a metropolização vem gerando aos pobres periféricos a necessidade de se submeter aos deslocamentos pendulares, que vem ocasionando o gasto de muitas horas no transporte coletivo e a formação de novas periferias distantes que são povoadas de migrantes trabalhadores.
Diante disso, a Comunidade do Jacó se vê beneficiada pela facilidade de deslocamento tanto para acessar o trabalho, quanto as atividades de educação, saúde e lazer. Dentre trinta (30) entrevistados, vinte e dois (22) moradores afirmaram que preferem se deslocar a pé, relatando que o transporte coletivo é a sua última opção. Seis (6) moradores destacaram a condição estratégica da comunidade. Confirma-se que o principal meio de locomoção da comunidade é baseado no deslocamento humano, de acordo com o relato seguinte de três moradores, que também reiteram a importância da localização para a manutenção das relações cotidianas de trabalho, serviços, equipamentos de saúde, educação e lazer.
A gente mora próximo de tudo, de posto de saúde, de hospital, de escola, de creche, de tudo [...] de mercardo, de tudo! A partir daqui das Rocas a gente tem acesso a toda cidade se a gente quiser, zona norte, zona sul, zona leste que é onde a gente mora [...] pra todo lugar a gente tem acesso e por isso do foco deles de tirar a gente daqui. (Entrevista concedida pelo morador da comunidade do Jacó, gênero masculino, 38 anos, Negro, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, em 2019)
[...] o meu trabalho, eu trabalho aqui na via costeira, eu trabalho na portaria de um hotel na via costeira, a empresa que eu trabalho me paga duas passagens diárias, e se eu for morar mais longe? eles não vão querer me pagar mais duas passagens. (Entrevista concedida pelo morador da comunidade do Jacó, gênero masculino, 38 anos, Profissional de Turismo, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, em 2019)
[...] e tudo nós resolve a pé, pra praia a pé, pro cinema a pé, médico a pé, tudo a pé, mercadinho a pé. (Entrevista concedida pela moradora da Comunidade do Jacó, gênero feminino, 26 anos, Negra, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, em 2019)
Portanto, é dado que a localização da comunidade do Jacó exerce forte influência no valor social e simbólico do território, sendo este fato considerado como um símbolo de patrimônio-territorial reconhecido para esta comunidade.
Através dos registros audiovisuais produzidos no minidocumentário "Resistências na desconstrução de direitos urbanos: narrativas da comunidade do Jacó, Natal/RN” (Motyrum Urbano, 2019)[i] confirmam-se os vínculos socioafetivos da comunidade com o lugar. O legado de memórias reafirma a luta pelo território em disputa, conforme se verifica na fala dos três moradores:
[...] tenho 36 anos que moro aqui, foi onde construí uma família aqui dentro, meus netos todos ganham o pão de cada dia aqui dentro no Jacó, não é a gente tomando [...] é o que a gente tem direito. (Entrevista concedida pela moradora da Comunidade do Jacó, gênero feminino, 72 anos, Negra, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, em 2019)
[...] a gente tá aqui um ano ou dois anos não, minha mãe tá aqui [...] e eu tô aqui desde que eu nasci. (Entrevista concedida pela moradora da Comunidade do Jacó, gênero feminino, 26 anos, Negra, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, em 2019)
Eu tenho minhas filhas que foram criadas aqui dentro, minha esposa foi criada aqui dentro, cresceu dentro do Jacó e eu conheço todo mundo aqui na comunidade. (Entrevista concedida pelo Morador da comunidade do Jacó, gênero masculino, 31 anos, Negro, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, em 2019)
Constata-se a existência de uma historicidade das famílias que ali se desenvolveram, havendo também uma dimensão imaterial implícita, que se concretiza através da vida cotidiana. O lugar que consideram como aquilo que denominamos patrimônio-territorial, proporciona relações de trabalho, promove o lazer e usufruto do tempo livre. De acordo com Bartoly (2011) pode-se interpretar que se trata de um lugar permeado de significados, afetividade e com sensação de pertencimento.
Com relação às escolhas e acesso ao lazer, dez (10) moradores citaram a praia como o lugar preferido para desfrutar do tempo livre, devido à proximidade com a comunidade e o acesso independente de transporte pago. Para Gastal e Moesch (2007) esse posicionamento de valorização dos recursos naturais existentes revela o sentimento de pertencimento e certo grau de cidadania, o que contribui para que os cidadãos venham a ser protagonistas do seu território.
Além da praia, três (3) moradores citaram as praças públicas existentes no entorno da comunidade como principais equipamentos de lazer ideais para confraternizar com as crianças. Outros três (3) moradores elegeram a feirinha das Rocas como lugar de afetividade e troca social. Atividades religiosas também realizadas na região foram citadas por seis (6) moradores que consideraram o culto às suas crenças como oportunidade de encontro e partilha.
Dessa forma, observa-se que o lazer representado através dos elementos simbólicos elencados confere à paisagem um teor histórico, cultural, contínuo e vivo. Revela-se que essa paisagem que abriga relações de trabalho e de lazer, trata-se de um patrimônio-territorial que é portador de uma identidade coletiva. Entretanto, no contexto de uma cidade turística, o valor agregado à paisagem não ocorre apenas pela comunidade, pois também é valorizado pelo mercado imobiliário e turístico. Este fato pode ocasionar o processo de patrimonialização da paisagem, podendo vir a ser interpretada como um produto cultural meramente mercadológico que coloca em risco sua atuação como herança visível do território (Batista & Matos, 2014).
Com referência ao patrimônio-territorial, destacam-se ainda os processos de resistência, que articulados com os fatores da localização geográfica e do lugar revelam que a Comunidade do Jacó é permeada por historicidade, afetividade, memórias e laços sociais, além de estreitas relações entre trabalho e lazer.
A resistência marca o início da construção do território de exceção (Costa, 2021). Sendo possível notar nas falas das moradoras a seguir as ações de luta pelo patrimônio-territorial.
Tão tirando uma coisa que é muito sagrada pra nós, o nosso lugar. (Entrevista concedida pela moradora da Comunidade do Jacó, gênero feminino, 26 anos, Negra, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, em 2019)
Porque é um direito adquirido por tempo de moradia, por filhos e gerações e gerações e estamos aqui e não tem pra onde correr mais não. É ficar e resistir mesmo. (Entrevista concedida pelo Morador da comunidade do Jacó, gênero masculino, 54 anos, Negro, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, em 2019)
A resistência expressa no ser e no saber foi compreendida por Costa (2021) como uma limpeza da colonialidade que a comunidade do Jacó demonstra exercitar, tendo em vista que seus posicionamentos seguem uma racionalidade contra hegemônica.
A oficina coordenada pelo Projeto de Extensão Motyrum Urbano, em 2019[ii], com aplicação de técnicas de anotações sobre um mapa expandido do lugar (figura 6), tendo sido veiculado no minidocumentário “Entre Muros: vida escondida na Comunidade do Jacó”(Wanderlley, 2018)[iii] demonstra as moradoras mais antigas da comunidade interagindo sobre um mapa expandido do lugar onde puderam relatar as ações de luta pela moradia.
A partir dessa dinâmica, foi visto que a formação do território teve início por meio do trabalho coletivo, abrangendo tanto a produção das casas, quanto a configuração dos acessos entre o território e o seu entorno. As moradoras relataram a existência de uma lagoa, conhecida como “Lagoa do Jacó”, que conferiu o nome à comunidade que ali se formava. Essa lagoa foi aterrada com entulho de construções vizinhas. O material de construção descartado na lagoa também foi reaproveitado, servindo como alicerce das primeiras casas. Além disso, foi relatada a existência de plantas como bananeiras, capim-elefante, carrapateiras e urtigas, que aos poucos foram dando lugar às construções. Com o passar dos anos, a comunidade foi crescendo e aprofundando as relações socioespaciais, além dos vínculos históricos e culturais com o lugar.
Contudo, a partir da década de 1990, a comunidade passou a ser cercada por muros advindas da construção de condomínios (C e E), via pública (B), subestação de energia elétrica (A) no seu entorno (figura 7).
Na atualidade, a comunidade do Jacó está configurada a partir de becos, vielas e por parte da encosta que define seus limites. Por se tratar de uma área que possui localização estratégica e de grande interesse do mercado imobiliário formal, esse território se encontra fortemente pressionado e ameaçado quanto à sua permanência delineando-se um conflito fundiário, cuja ameaça de remoção se coloca a partir da municipalidade, no âmbito da política habitacional.
Diante desse conflito, e movidos por elementos simbólicos, que nesse artigo se entende como constitutivos de um patrimônio-territorial, a comunidade do Jacó atua sobretudo no campo da resistência, conforme a descrição do conflito a seguir.
3. Patrimônio-territorial: ameaças e risco no conflito de remoção
De acordo com o Observatório de Remoções, as remoções consistem em processos coletivos de expropriação em que pessoas e/ou famílias, em geral de baixa renda, são deslocadas de seus locais de moradia ou de seu habitat (Lins & Rolnik, 2018). Ações de remoção forçada podem revelar conflitos complexos no contexto da disputa da terra urbana, justificadas sob o manto jurídico do interesse público, reintegração de posse e da avaliação geológica da área, podendo inclusive se tratar de uma etapa primária de um projeto de renovação urbana de maneira a contemplar a agenda econômica do mercado imobiliário (Smith, 2006 apud Almeida & Franco, 2018).


O universo de pesquisa sobre remoções é caracterizado também pela indisponibilidade de dados e informações que configuram o que Rolnik (2015) classifica como uma “geografia da invisibilidade”. Ou seja, no Brasil não há bancos de dados do poder público ou do sistema de justiça que indique a quantidade de pessoas ameaçadas de remoção ou removidas. Muitas vezes as violações de direitos são constatadas caso a caso e possuem suas particularidades, como na presente pesquisa.
No âmbito de desigualdades aprofundadas pela pandemia do Covid-19, iniciada em 2020, o tema das remoções ganhou maior relevância. Nesse sentido, diversos segmentos da sociedade se organizaram em torno da Campanha Despejo Zero, “que visa a suspensão dos despejos ou das remoções, sejam elas fruto da iniciativa privada ou pública, respaldada em decisão judicial ou administrativa, que tenha como finalidade desabrigar famílias e comunidades, urbanas ou rurais” (Campanha Despejo Zero, 2021, p. 317). O cenário é caracterizado como desesperador, “com a queda da renda da maioria das famílias, que não se reflete na redução do valor do aluguel, por outro lado, milhões de imóveis estão abandonados nas cidades e não cumprem sua função social” (Campanha Despejo Zero, 2021, p. 316). A Campanha tem impulsionado a produção de dados estatísticos sobre os casos de despejos nos estados brasileiros e as ações que contribuem para fortalecer o sistema de defesa de direitos, notadamente Defensorias Públicas, Ministério Público, Conselhos de Direitos Humanos, Comissão de Direitos Humanos de Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas, entre outros espaços de exigibilidade do direito à moradia adequada. Mesmo iniciado em 2019, o conflito da comunidade do Jacó também se insere nesse contexto e está incluído nos dados estatísticos, pois o processo judicial ainda tramita na Justiça.
A construção coletiva proporcionada pela campanha serviu para a aprovação da Lei Federal contra os despejos coletivos forçados até 31 de dezembro de 2021, entre outros mecanismos de defesa do direito à moradia. É realizado o destaque à Lei Federal em função dela conferir definição jurídica para desocupação ou remoção forçada coletiva. Compreende-se pela leitura da lei brasileira que esses conflitos podem envolver a violação de diversos direitos humanos, não somente de moradia.
Art. 3º Considera-se desocupação ou remoção forçada coletiva a retirada definitiva ou temporária de indivíduos ou de famílias, promovida de forma coletiva e contra a sua vontade, de casas ou terras que ocupam, sem que estejam disponíveis ou acessíveis as formas adequadas de proteção de seus direitos, notadamente:
I - garantia de habitação, sem nova ameaça de remoção, viabilizando o cumprimento do isolamento social;
II - manutenção do acesso a serviços básicos de comunicação, de energia elétrica, de água potável, de saneamento e de coleta de lixo;
III - proteção contra intempéries climáticas ou contra outras ameaças à saúde e à vida;
IV - acesso aos meios habituais de subsistência, inclusive acesso a terra, a seus frutos, a infraestrutura, a fontes de renda e a trabalho;
V - privacidade, segurança e proteção contra a violência à pessoa e contra o dano ao seu patrimônio. (Decreto-Lei Federal 14.216, 2021)
Para além desse rol de violações já destacados na lei brasileira, verifica-se que a remoção forçada também sinaliza o rompimento com as relações no território e, logo, com o patrimônio-territorial. Isso fica bem claro no conflito vivenciado pelos moradores da comunidade do Jacó.
Inicialmente o conflito decorreu do contexto do implemento de políticas habitacionais. A gestão municipal, por meio da Secretaria Municipal de Habitação, Regularização Fundiária e Projetos Estruturantes (SEHARPE), apresentou proposta de reassentamento da comunidade para o Residencial Village de Prata em razão de alegada existência de risco em frações da encosta onde se encontra parte das moradias na comunidade do Jacó.
Ocorre que mesmo com a garantia de uma nova habitação, o conflito fundiário da comunidade do Jacó se caracteriza como uma ação de remoção coletiva forçada, que repercute no rompimento de acesso aos meios habituais de subsistência, inclusive o acesso à terra e seus frutos, à infraestrutura, e a fontes de renda e de trabalho, nos termos da lei. Mas não só. Sobretudo, coloca-se em curso uma dinâmica de ruptura com os vínculos históricos e simbólicos que integram o patrimônio-territorial dessa comunidade. Afinal, o condomínio Village de Prata localiza-se a cerca de 14,5 km da comunidade do Jacó. Trata-se de uma distância considerável para as dimensões urbanas da cidade do Natal, conforme visto anteriormente (figura 3).
Compreende-se que a ação da municipalidade em relação a implementação da política habitacional não incluiu os moradores da comunidade nos seus processos de decisão, por isso o projeto de reassentamento para a região distante é entendido como um conflito de remoção coletiva (Wanderlley & Bentes Sobrinha, 2021). Ou seja, o processo de violação de direitos no conflito em questão, se verifica, entre outros, pela total ausência do princípio da gestão democrática da cidade. Segundo Wanderley e Bentes Sobrinha (2021, p. 17), a estratégia de oferta do programa habitacional optou pela “busca do rápido preenchimento de vagas do empreendimento em detrimento da operação dos instrumentos balizados pelo princípio da gestão democrática da cidade”.
Sobre a alegada existência de risco em frações da encosta onde se encontra parte das moradias da comunidade do Jacó, verificou-se divergências entre as abordagens sobre a gestão de riscos. Enquanto a municipalidade analisou o problema a partir dos princípios de “enquadramento de risco”, que em geral indicam a remoção das famílias como solução, estudos recentes sobre o tema, apontados por Bentes Sobrinha, Moretti e Lélis (2019), sugerem as ações de “qualificação de segurança” como metodologia adequada para a proteção das famílias e do seu território. Nesse caso, o princípio é remover o risco e não as famílias. Com isso, coloca-se igualmente a possibilidade de preservação do patrimônio-territorial existente. Concluída essa etapa, a municipalidade insistiu no processo de desocupação forçada da comunidade, porém sem a contrapartida habitacional. Ingressou no sistema de justiça com uma ação de despejo e interdição da área, ameaçando o desmonte da comunidade do Jacó. Como resposta, os moradores que optaram por resistir se mobilizaram para acionar coletivamente o sistema de justiça e de proteção de direitos. Compreende-se que esse processo inclui a ativação do patrimônio-territorial em face do conflito de remoção.
4. Ativação popular do patrimônio-territorial como ferramenta no conflito de remoção
Dada a condição de território de exceção da Comunidade do Jacó marcada pelas vulnerabilidades sociais e pela resistência, identifica-se o desafio marcado pela colonialidade expressa no conflito de remoção. É no processo de condicionamento do território segregado que surgem práticas políticas que devem ser enaltecidas. A ativação popular do patrimônio-territorial vem como mecanismo de identificação e reafirmação de valores, saberes e poderes dos povos subalternizados. Para Costa (2017, 2021), o processo de reconhecimento de patrimônios-territoriais pelos grupos subalternizados leva a dignidade aos povos, sendo considerado como uma alternativa de ruptura com políticas, fazeres e ideologias determinantes.
O processo de resistência da Comunidade do Jacó frente a tentativa de remoção pela municipalidade começa em 2018 com o acionamento do trabalho de assessoria técnica em educação popular e direitos humanos, promovida pelo projeto Motyrum Urbano que já era atuante na comunidade desde 2016. A partir deste ponto, uma série de processos organizacionais e de mobilização dos moradores foram emergindo. Convocou-se a Comissão de Direitos Humanos da câmara municipal de Natal para a realização de uma Audiência pública na comunidade, fato inédito no histórico do território. Junto a isso notificou-se oficialmente a rede de proteção formada pela Defensoria Pública e Ministério Público, que foram articulados juridicamente ao processo, na busca pela concretização do direito à moradia e ao território.
Em meio à ameaça ao patrimônio-territorial e ao direito à moradia, por meio da assessoria técnica urbanística e jurídica do Projeto Motyrum Urbano, a comunidade acionou um importante instrumento do Direito Urbanístico, as Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS), quanto ao reconhecimento e permanência dos territórios populares. Naquele momento, o Plano Diretor de Natal – PDN, que se encontrava em processo de revisão, apresentou ameaças relacionadas às medidas protetivas das AEIS. Da mesma forma, o Projeto Motyrum Urbano foi acionado pelas lideranças da comunidade para que fossem realizadas oficinas com os moradores sobre a importância das AEIS, das discussões e possíveis mudanças disputadas naquela arena política (figura 8).

O fruto da luta, da resistência e do processo de ativação do patrimônio-territorial contra a colonialidade são vistos nas intenções de fiscalização e remoção da comunidade, que resultaram no aluguel social como medida de redução de danos e permanência dos moradores no território. Uma vez que foi conferido o auxílio, os moradores optaram por alugar casas no entorno da comunidade, demonstrando uma resistência que se territorializa (Andrade, 2021; Costa, 2017). O relato dos moradores a seguir descreve essa atuação:
...] com o auxílio, todo mundo procurou morar no próprio Jacó, na própria comunidade, ou pra quem não conseguiu, ficou perto [...]. (Entrevista concedida pela moradora da Comunidade do Jacó, gênero feminino, 26 anos, Negra, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, em 2019)
[...] só deu porque a gente correu atrás né? se a gente não tivesse corrido atrás a gente tava no “oco da pelada”. [...] Quando a gente foi atrás do pessoal da universidade, disseram "não, o negócio aqui tá errado, vamos ajudar vocês”. [...] Aí começou a pegar papel, começou a pegar endereço, levou pra lá e graças a Deus deu certo. (Entrevista concedida pela moradora da Comunidade do Jacó, gênero feminino, 72 anos, Negra, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, em 2019)
A escolha da comunidade por permanecer e dar continuidade à vida cotidiana no bairro e no entorno com seus serviços e condições oferecidas pelo território, além da rede de apoio que a vizinhança proporciona, confirma seu grau de vínculo e apreço pelo patrimônio-territorial. Este identificado como o lugar, a historicidade, a memória coletiva, a moradia, a paisagem e o acesso aos equipamentos e serviços públicos. Apesar da permanência conquistada, a ameaça de remoção continua a assolar a comunidade que se mantém atenta e ativa na busca de alternativas que resultem na garantia de sua permanência.
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Notas