Cidades e patrimonialização na América Latina-GECIPA

O patrimônio-territorial afro-brasileiro da capoeira na educação: práticas por inclusão, equidade e justiça social

El patrimonio territorial afrobrasileño de la capoeira en la educación: prácticas para la inclusión, la equidad y la justicia social

The Afro-Brazilian territorial heritage of capoeira in education: practices for inclusion, equity and social justice

Rafael Fabricio de Oliveira
Instituto Federal de São Paulo, Brasil
Anna Carolina Salgado Jardim
Instituto Federal de São Paulo, Brasil

O patrimônio-territorial afro-brasileiro da capoeira na educação: práticas por inclusão, equidade e justiça social

PatryTer, vol. 7, núm. 14, e53132, 2024

Universidade de Brasília

Recepción: 01 Febrero 2024

Aprobación: 01 Abril 2024

Publicación: 01 Junio 2024

Resumo: As desigualdades socioterritoriais em todo Sul Global, especialmente na América Latina e Caribe, exigem papel ativo e revolucionário dos sujeitos e instituições, no sentido de maior equidade e justiça social nestes territórios. Esta proposta de trabalho busca contribuir com análises críticas e considerações do papel da educação patrimonial no fortalecimento identitário por meio da capoeira, patrimônio-territorial afro-brasileiro. Tal proposição justifica-se na urgência da escola e do espaço escolar na promoção de atividades esportivas e culturais, no sentido de fortalecer laços de cooperação e organização política da juventude periférica, dirimindo conflitos, promovendo embates emergentes acerca das distintas manifestações de racismo, e potencializando o temário do patrimônio como estratégia de mobilização e de luta coletiva por um mundo melhor.

Palavras-chave: São Roque, extensão, patrimônio-territorial, IFSP.

Resumen: Las desigualdades socioterritoriales en todo el Sur Global, especialmente en América Latina y el Caribe, requieren de un rol activo y revolucionario de los sujetos e instituciones, hacia una mayor equidad y justicia social en estos territorios. Esta propuesta de trabajo busca contribuir con análisis y consideraciones críticas sobre el papel de la educación patrimonial en el fortalecimiento de la identidad por la capoeira, patrimonio cultural inmaterial afrobrasileño. Esta propuesta se justifica por la urgencia de la escuela y el espacio escolar en promover actividades deportivas y culturales, con el fin de fortalecer lazos de cooperación y organización política de la juventud periférica, resolver conflictos, promover enfrentamientos emergentes en torno a las diferentes manifestaciones del racismo y potenciar el tema del patrimonio como estrategia de organización y lucha colectiva por un mundo mejor.

Palabras clave: São Roque, extensión, patrimonio-territorial, IFSP.

Abstract: Socio-territorial inequalities throughout the Global South, especially in Latin America and the Caribbean, require an active and revolutionary role from subjects and institutions, towards greater equity and social justice in these territories. This work proposal seeks to contribute with critical analyzes and considerations of the role of heritage education in strengthening identity through capoeira, an Afro-Brazilian intangible cultural heritage. This proposition is justified by the urgency of the school and the school space in promoting sporting and cultural activities, in order to strengthen ties of cooperation and political organization of peripheral youth, resolving conflicts, promoting emerging clashes regarding the different manifestations of racism, and enhancing the theme of heritage as a strategy for mobilization and collective struggle for a better world.

Keywords: São Roque, extension, territorial heritage, IFSP.

1. Introdução

Embasado por autores como Damiani (2015) em relação a urbanização crítica no contexto da contemporânea modernização e divisão territorial do trabalho, além de Costa (2017, 2016) fundamentando o diálogo acerca do conceito de patrimônio-territorial e dos utopismos patrimoniais desde territórios espoliados historicamente, e cujas resistências potencializam um outro vir a ser, o trabalho apresenta resultados compreendidos como estratégicos no que tange a educação patrimonial, em projeto desenvolvido com a temática e práticas da capoeira em escolas desde o ano de 2019, na periferia de São Roque, Macrometrópole de São Paulo, Brasil (figura 1). Estas ações iniciaram-se a partir de um projeto de ensino[ii], participando estudantes, professores, técnicos educacionais e voluntários, transformando-se em ações de extensão, envolvendo diferentes escolas e um público diverso dos bairros locais.

Além dos autores supracitados, cabe destacar a preocupação no processo de ensino-aprendizagem com a cidadania, a formação política, e em ações questionadoras da realidade, naquilo que se aproxima da definição de “políticas problematizadoras” por Canclini (2006). Tal definição não requer apenas buscar uma “comunidade cultural cooperativa e plural”, mas projetos compartilhados em que as diferenças possam ser expressas e respeitadas, a partir de possibilidades da redução das desigualdades (Canclini, 2006, p. 157). O que permite viabilizar uma ruptura com a indiferença sobre os bens culturais, tangíveis ou não, e assim também de sua apropriação e reconhecimento pela população de forma mais generalizada (Oliveira, 2016). E, neste sentido, a dimensão dos saberes afro-brasileiros passa por uma construção partindo da contribuição viva e coletiva da capoeira, afastando-se, portanto, de uma abordagem educativa focada na escravidão exclusivamente ou no desfavorecimento do negro, e sim na sua produção como forma de resistência, a diversidade e utopias possíveis de existência.

A proposta aqui, portanto, refere-se, a um esforço intelectivo em evidenciar e descrever não apenas uma experiência realizada no âmbito institucional, mas o impacto de ações calcadas em uma ciência preocupada em integrar valores, conhecimentos e saberes, qualificando o processo

Localização da área atendida pelo projeto Saberes Afro-brasileiros na Roda de Capoeira
Figura 1
Localização da área atendida pelo projeto Saberes Afro-brasileiros na Roda de Capoeira
elaboração dos autores, 2024.

educativo, em atividades cooperativas e culturais por meio da roda e de expressões como o Maculelê, o Samba de Roda, Puxada de Rede, ou modalidades mais tradicionais da capoeira, como a Regional de Mestre Bimba, ou a Angola de Mestre Pastinha. Tal proposta assenta-se, pois, não apenas na prática, mas na apropriação e compartilhamento de um bem cultural com grande latência imaterial que é a capoeira. Porém, sem ignorar seus produtos, materialidades e movimento dinâmico na sociedade, resultantes da sua manifestação.

2. Capoeira: patrimônio-territorial afro-brasileiro em risco

Em 2014, a roda de capoeira passou a ser reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio, em Paris, como um dos símbolos do Brasil reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Enquanto manifestação cultural, conforme o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2019), a capoeira expressa “[...] simultaneamente o canto, o toque dos instrumentos, a dança, os golpes, o jogo, a brincadeira, os símbolos e rituais de herança africana [...]”. Além disso, ela ainda “[...] congrega cantigas e movimentos que expressam uma visão de mundo, uma hierarquia e um código de ética que são compartilhados pelo grupo. Na roda de capoeira se [...] reiteram práticas e valores afro-brasileiros” (IPHAN, 2019).

Originada no século XVII, em pleno período escravista, desenvolveu-se como forma de sociabilidade e solidariedade entre os africanos escravizados, estratégia para lidarem com o controle e a violência. Hoje, é um dos maiores símbolos da identidade brasileira e está presente em todo território nacional, além de praticada em mais de 160 países, em todos os continentes. A Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira foram reconhecidos como patrimônio cultural brasileiro pelo Iphan em 2008, e estão inscritos no Livro de Registro das Formas de Expressão e no Livro de Registro dos Saberes, respectivamente. (IPHAN, 2019)

A perseguição e criminalização da capoeira ao longo do tempo, especialmente entre os séculos dezenove e vinte (Assunção, 2005), expressam faces do patrimônio-territorial latino-americano. Ou seja, conforme substanciado por Costa (2017), trazem na sua essência problemáticas existenciais indígenas e negras, frente ao domínio e exploração colonial do pensar e agir europeu em seus territórios.

A capoeira carrega fatos paradoxais entre o reconhecimento imaterial enquanto patrimônio cultural da humanidade, e por outra via, o patrimônio-territorial que carrega a perseguição sofrida pelos povos negros no Brasil por sua prática. Estes elementos, no entanto, devem ser considerados em um processo histórico-geográfico amplo, com mudanças profundas em sua acepção, um fenômeno complexo e superposto. Na sua modernização, mesmo com a ressonância global difundida pela prática, acaba por incorporar ideologias e narrativas as mais diversas, que de forma geral, uma vez mais, reproduz sentidos de unidade cultural., de brasilidade. Mais uma vez, esta tentativa marginaliza as africanidades contidas na capoeira, escancara sua conversão em prática esportiva, sistematicamente, despreocupada com as problematizações em torno do racismo e da violência cotidiana como consequência, menos ainda no sentido de alcançar uma totalidade relacionando outros elementos como a religiosidade, a linguagem, ou a própria natureza.

De tentativas sistêmicas de apagamento, ou de apropriação cultural, como resultantes das forças promovidas pela “patrimonialização global” (Costa, 2011), elementos verificados não somente na inscrição das práticas por meio institucional, mas na instrumentalização que regula desde a permissão de ensinar a capoeira, até como deve ser ensinada, a sua prática é um legado secular de resistência. Assunção (2005) leva a compreender que a contínua criminalização no século dezenove da capoeiragem (considerando que a expressão poderia englobar as mais diversas práticas culturais de origem africana ou afro-brasileira), passa a uma mudança radical, a ser operada em dois caminhos distintos. O primeiro, com o processo de construção da identidade negra no país, por meio da capoeira, do samba, a partir das dimensões de hibridismo e crioulização, que ultrapassaria a escala nacional e abrangeria todo o continente americano, onde a diáspora africana se estendia, em manfestações afro-americanas como o jazz nos Estados Unidos, ou a cultura rastafari na Jamaica. Porém, com a República Velha e ao longo das três primeiras décadas do século vinte, um segundo caminho deixa a prática da capoeira de ser exclusivamente negra (Cucco 2014; Assunção 2005; Reis, 2000; Soares, 1994). E, neste momento, de ampliação da prática da capoeira, que conforme trata Cucco (2014, p. 225), emergem “ações que visam higienizar a capoeira a partir de minimizar ou destituir a sua herança africana”, o que ainda segundo o autor, desqualifica o negro como detentor da capoeira, em favor de uma lógica de desafricanização da prática, considerada agora pela mestiçagem e defendida como meio de edificação da identidade nacional. Isto leva a compreender que a capoeira, mesmo diante do reconhecimento institucional e internacional, seja no âmbito cultural, ou considerando sua prática em todos os continentes na contemporaneidade, ganha novos contornos, modernizando-se, o que potencializa seu desenvolvimento, e ao mesmo tempo, riscos pela apropriação indevida, a desvirtualização de suas raízes e o descompromisso com uma sociedade mais justa socialmente.

Por outro lado, como fruto do drama e de meios de (re)existência do povo negro escravizado no Brasil, a capoeira carrega uma profunda carga memorial e ritualística, que não se separa da cosmologia africana, ainda que o pensamento ocidental e colonialista queira a todo custo fragmentar sua essência, normatizar e regular sua prática, disciplinar neste caso a luta para propósitos espúrios as suas origens. O que de fato resta, é o sentimento de resistência cultural, talvez desta que é uma das mais emblemáticas manifestações do patrimônio-territorial afro-latino-americano:

A capoeira em um contexto global ainda fornece identidade. Apesar de seu uso como símbolo africano ou afro-brasileiro, sua prática globalizada, na maioria das vezes, não está mais ligada a uma classe ou etnia específica, mas sim ao sentimento de resistência abrangente contra a opressão, ou 'o sistema'. Parece oferecer a vantagem de benefícios imediatos aliados a objetivos de longo prazo. A capoeira tornou-se assim não apenas um estilo global, mas também parte de uma subcultura globalizada de protesto, para a qual a diáspora africana já fez outras contribuições substanciais através do R&B, salsa, samba, soca, reggae e rastafarianismo. Juntamente com outras artes crioulas do Atlântico Negro, a capoeira parece assim particularmente capaz de fornecer os meios e a linguagem para uma postura inconformista. (Assunção, 2005 – tradução dos autores)

Tal aspecto é comum na produção material e intangível de povos negros e indígenas latino-americanos, que no contexto periférico, das ex-colônias, ou mesmo das grandes cidades em desenvolvimento, enfrentam um processo de marginalização cultural, dependência e perpetuação do racismo. Isto significa pensar os sujeitos a partir de sua realidade histórica, mas também geográfica, ou seja, a partir dos subúrbios empobrecidos e as periferias metropolitanas. Como destaca Damiani (2015), a “urbanização crítica” trata de evidenciar a impossibilidade do urbano para todos, ou seja, verifica-se em grandes setores e grupos o desemprego, o déficit habitacional, a violência, os problemas ambientais, a precariedade de apoio a cultura e equipamentos urbanos, são sínteses da atual forma de produção do mundo, que só se transformará mediante organização e ações populares.

A capoeira embranquecida, padronizada como prática esportiva e patrimonializada globalmente, assevera que o reconhecimento e tombamento do bem cultural nem sempre leva a preservação, quiçá o conserva, se não enquanto um título diferencial, o projeta para sua mercantilização, segregando seu acesso pela mediação do dinheiro, ou inibindo grupos étnicos de uma identidade que lhe permita efetivamente qualquer representatividade. Neste caso, é importante, como Cucco (2014, p. 230), compreender que o abandono da cultura negra em favor da estética branca na capoeira, sob a ótica de subalternidade racial imposta por uma política pública nacional no âmbito do patrimônio cultural, cria um contínuo afastamento e responsabilização deste grupo.

Por isso, este patrimônio-territorial (Costa, 2017, p. 59), sendo um “elemento de arte, cultura e vivências situadas na periferia, bem material imaterial ainda em realização espacial no continente”, ajuda a vislumbrar que os saberes tradicionais, vinculados a um grupo subalternizado no território brasileiro e América Latina, dialeticamente ameaçado pelo risco de desapropriação, emerge por outra via enquanto possibilidade de enfrentamento e realização no que Costa (2016) assevera pela ativação e os utopismos patrimoniais. Condição última que amplia as possibilidade de uma reconexão com elementos do passado e que em alguma medida foram parcialmente expropriados ao longo da trajetória do grupo social. Esta reconexão não só pode ser mediada pelo processo de ensino-aprendizagem, que a educação patrimonial oferece, mas conforme explicam Costa & Voss (2018), é ela quem pode alinhar a África e América Latina em uma unidade conjunta de luta e resistência por um mundo melhor:

Como o povo negro criou a capoeira nas entrelinhas do livro da vida e escreveu sua ancestralidade e historicidade na complexa Cultura Africana e Afro-brasileira, suas raízes são tão nobres que permite ensinar e aprender. É tão grandiosa que mesmo quando a vogal se repete não lhe faltam atributos e adjetivos. (Costa & Voss, 2018, p. 775)

Tal realidade, históricamente permeada pela desigualdade e injustiça, geograficamente situada às margens dos grandes centros urbanos, exigi além do compromisso, da pesquisa e do ensino, ações de extensão com pautas educativas na luta antirracista e de práticas pela equidade, pluralidade, representatividade. Ou seja, pensar e atuar nos espaços de vida e das relações cotidianas das classes populares. Mais ainda, lutar coletivamente, com apoio do conhecimento científico, os saberes tradicionais e a tecnologia (Santos, 2001), reconhecendo a representatividade do patrimônio-territorial em sua essência para a população, criando meios de diálogos e enfretamento da lógica vertical que se impõem no atual modo de produção. E como Gravari-Barbas (2014), compreendendo que questões ligadas às identidades se delinearão mais intensamente na periferia, ou nas áreas novas da metropolização. Neste sentido, os esforços de um projeto de capoeira na escola (Campos, 2001) recaem diretamente sobre a problematização étnico-racial, ou do ataque multidirecional, especialmente pela instituição escolar, ao racismo estrutural no país, seja com respaldo legal (Brasil, 2008, 2003), ou de um trabalho mais amplo de ações afirmativas (Ribeiro, 2014; Munanga, 2004). Que no caso ancora-se em um contexto de práticas extensionistas já realizadas na periferia de São Roque desde o ano de 2016, com estratégicas parcerias com a comunidade, por meio de projetos do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) com o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), com a Associação Quilombola de Nossa Senhora do Carmo e as escolas municipais e estaduais do entorno imediato.

Este contexto urbano-metropolitano, o qual o projeto passa a ser desenvolvido, perfaz o conjunto de 174 municípios, denominado de Macrometrópole Paulista, que revela uma das áreas mais adensadas e não só do país, mas do planeta. Com aproximadamente 33,5 milhões de habitantes, essa região, conforme definido pela Emplasa (2019), é um dos maiores aglomerados urbanos do hemisfério sul. Neste sentido, em comunhão com a perspectiva de atuação do projeto de extensão junto com lideranças do serviço social do CRAS, o diálogo com Koga (2013, p. 34) explicita desde uma contribuição de outras disciplinas científicas, para além da própria Geografia, a necessidade de compreender as múltiplas escalas de análise da realidade dos territórios, além das grandes generalizações, através de uma relação direta, qualitativa e proximal de suas particularidades.

Aproximar-se do território no âmbito das políticas sociais implica em um deslocamento de rota e de escala, que se afasta das médias e das homogeneidades, ao mesmo tempo em que busca articular elementos estruturantes às expressões manifestadas nas particularidades e singularidades dos lugares. Aqui se dá “o choque de escala”, no momento em que se confrontam os grandes números produzidos pela escala mais abrangente da política social e os números miúdos das ocorrências e intercorrências da gestão local nos territórios de intervenção dessa mesma política social. (Koga, 2013, p. 34)

Nisto é importante reiterar que a área de atendimento do projeto é afligida por graves problemas sociais, marcados por indicadores de alta vulnerabilidade socioeconômica (SEADE, 2018), considerando ainda a diversidade de riscos ambientais mapeados pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas - IPT (Ikematsu, Macedo, Corsi, Ferreira, Mirandola & Argentin, 2015). Fato que evidencia precariedade das condições de vida, com alto risco de deslizamentos e escorregamentos de massa neste setor urbano do município, bem como ocupações irregulares ao longo dos afluentes do ribeirão Carambeí e de habitações subnormais identificadas em distintas áreas no Goianã, Jardim Conceição, Parque Aliança, entre outros bairros do município de São Roque. Diametralmente oposto ao pólo enoturístico, munido por equipamentos e infraestrutura urbana, esta área do município tem passado nas duas últimas décadas por intenso processo de periferização e abandono pelo poder público. Ocupada por aproximadamente 20 mil habitantes, a área em questão caracteriza-se naquilo que Damiani (2015) conceitua como “urbanização crítica”, supracitada. E, portanto, no qual projetos de extensão são urgentes, especialmente aqueles que compreendam os efeitos do modo de produção capitalista na espoliação urbana (Kowarick, 1979), as dimensões das utopias patrimoniais como meios concretos de realização social (Costa, 2016), bem como se envolvam no combate ao racismo e favoreçam alternativas de cultura e lazer, acolhimento e solidariedade a esta população, tendo, portanto, papel central na transformação social.

Metodologicamente, considerando a realidade exposta, do patrimônio-territorial da capoeira, suas contradições entre a institucionalização e distanciamento de suas raízes, como das demandas emergenciais postas pela comunidade por atividades culturais e educativas, o projeto foi desenvolvido a partir de espaços de diálogos propiciados em ambiente institucional, bem como pela articulação dos docentes com o mestre[iii] de capoeira e estudantes interessados na proposta. O compasso entre o conhecimento tradicional da capoeira passou então a adequações com os conteúdos curriculares, que foram estabelecidos a partir das seriações dos distintos anos do Ensino Médio, e os diferentes níveis do Ensino Superior e da Pós-Graduação. Para isso, estabelecendo conexões com a temática étnico-racial e do patrimônio cultural em cada curso e potenciais disciplinas. Após esta articulação e esboço, o passo seguinte foi legitimar institucionalmente o projeto, por meio da Diretoria Educacional, com submissão em edital envolvendo a melhoria dos processos de ensino-aprendizagem, possibilitando atividades extracurriculares e uma atmosfera colaborativa no ambiente da escola. Em outro momento, após aprovação, houve mobilização dos estudantes e adequações no cronograma, a partir de um plano, o qual, além dos encontros para rodas semanais, pelas manhãs, previam oficinas diversas, leituras e práticas de outras modalidades culturais associadas, como o Samba de Roda e a Puxada de Rede. De tal maneira, apoiando melhores condições de permanência aos estudantes, não apenas dando qualidade e alternativas aos temas transversais, ou conteúdos extracurriculares, mas contribuindo com a elaboração de material didático (caxixis, reco-recos, atabaques, berimbaus e instrumentos que foram sendo incorporados em aulas ou feiras), além de estabelecer roteiros de experiências para os cursos da unidade. Ao final, um quarto momento marca a ampliação do projeto para a comunidade externa, em práticas de extensão, atendendo demanda urgente das escolas do entorno, articulando-se com dirigentes das escolas, especialmente as de educação fundamental Carmem Lúcia, na Vila Amaral, e a Tetsu Chinone, no Goianã, além do próprio IFSP com ensino médio, graduação e pós-graduação. E, paralelamente, passando a também compor o Programa Escolas 2030 da ONU, por fim, com ações frequentes no município e outras cidades da região.

3. Capoeira na escola: extensão e educação patrimonial na periferia

Observando o potencial educativo do patrimônio cultural para a (tras)formação dos sujeitos frente ao drama periférico observado no entorno imediato do IFSP, projetos em desenvolvimento ao longo dos últimos anos, com ações de cartografia social, organização política, cursos ligados a educação para os direitos humanos, entre outros, estabelecem laços entre a comunidade, além de uma rede de sociabilidade e organização estratégicas para projetos conjuntos. De tal maneira, propiciando o diagnóstico de problemas vivenciados na realidade, o estabelecimento de uma atmosfera colaborativa entre os agentes envolvidos e a indicação contínua de demandas, fora sedimentada um conjunto de pautas reivindicatórias por direitos, com foco na juventude, por práticas esportivas e culturais a serem desenvolvidas localmente no âmbito de atividades institucionais de pesquisa, ensino e extensão.

Com a retomada das atividades presenciais no pós-pandemia, além de um projeto de iniciação musical, um curso ligado aos direitos humanos e de aprofundamento educativo e outro de treinamento de futsal, uma equipe de formadores, junto ao mestre de capoeira, agrupam-se para juntos ampliarem a oferta de ações, trazendo uma quarta proposta, com esforço de congregar a capoeira enquanto elemento de educação patrimonial capaz de atuar na qualificação das relações étnico-raciais e diversidade.

No âmbito legal, o projeto assentou-se na lei federal n.º 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira”, integrando a lei federal n.º 11.645/2008, que altera a lei supracitada, incluindo nesta temática também a questão indígena (Brasil, 2008, 2003). Na prática, o projeto mobiliza as bases, a população negra do bairro, no sentido teórico e prático de redefinir a universalidade contra a colonialidade do poder, ou seja, contra a patrimonizalização global. Esta estigmatiza e afasta o patrimônio-territorial da capoeira dos sujeitos situados, pois enquanto fruto construtivo da identidade nacional, continua a impedir a pluralidade dos modos de viver que representa as distintas classes e grupos étnicos no Brasil.

Nos ensina Hall (2006) que um processo unificador de identidade implica no questionamento sobre sua eficácia, no sentido de anular ou subordinar as diferenças culturais. Para Castro (2012) é nesta unidade que classes hegemônicas “conseguiram traduzir seus interesses como interesses gerais da sociedade, [...] criando instituições que reforçavam seu lugar de poder na estrutura social, e padrões racionalizados de condutas que englobassem as práticas dos indivíduos” (Castro, 2012, p. 38). Conforme Costa (2016) esta postura de afirmação do patrimônio para além dos desígnios verticais das instituições internacionais, do pensamento eurocêntrico, permite avançarmos

em um continente ainda marcado pela colonialidade do poder e do saber, pela modernidade e modernização seletivas no território, a potência das mudanças está com os povos periféricos, cuja formação social [que sempre demandou solidariedade espacial] especializa-se em cultura material e ideal, saberes e fazeres singulares localizados. A cultura popular, assim, tem fôlego no território e no lugar, tem sua história tópica pelo sentido atribuído pelos subalternizados. (Costa, 2016, p. 28)

Guiado por este caminho, o público-alvo do projeto fora constituído pela juventude periférica demandante, com apoio das escolas municipais e dos pais, situados nas áreas adjacentes do IFSP, que iniciaram ativa participação no planejamento e gestão das ações, junto a estudantes egressos e regulares que já participavam anteriormente. As atividades propostas constituíram-se em encontros semanais nas escolas, coordenados pela equipe executora, em conjunto com o mestre de capoeira (figura 2), com uma breve síntese na tabela 01 das atividades téoricas e práticas desenvolvidas anualmente.

Considerando que desde então o projeto ainda se desenvolve nas dependências da instituição, além dos objetivos em torno da educação patrimonial, os encontros servem de acolhimento, de acesso a infraestrutura da unidade, como biblioteca, ginásio, computadores e eventos, além de contar com uma metodologia dialógica, assentada em questões teóricas, de atividades práticas da roda de capoeira e um conjunto de oficinas para produção de instrumentos e ferramentas ligadas a capoeira e cultura afro-brasileira. Um aprofundamento tem sido ofertado, com leituras periódicas e análises de obras referenciais acerca da capoeira e da importância do patrimônio africano e afro-brasileiro.

Fundamentando-se no compromisso crítico-cultural, com leituras de textos, produção de músicas, contação de estórias, oficinas, há ainda um esforço de conexão entre corpo e mente, buscando conscientizar acerca do papel do povo negro na história do Brasil, estabelecendo novas perspectivas de uma nação mais equânime e justa socialmente, ao mesmo tempo o projeto opera exercícios físicos, manobras corporais e expressão típica do saber patrimonial da capoeira. Estes elementos permitem que, regularmente, mais de quarenta famílias se beneficiem da proposta extensionista do projeto, o que faz com que a mediação das escolas e o apoio da prefeitura municipal, os beneficiários das ações ultrapassem centenas de pessoas, considerando as apresentações periódicas do projeto em espaços referenciais da região (figuras 3 e 4).

Práticas extensionistas no Projeto Saberes Afro-brasileiros na Roda de Capoeira
Figura 2
Práticas extensionistas no Projeto Saberes Afro-brasileiros na Roda de Capoeira
Fonte: autores, 2023.

Tabela 1
Síntese das atividades desenvolvidas no projeto Saberes Afro-brasileiros na Roda de Capoeira
PERSPECTIVA TEÓRICAPERSPECTIVA PRÁTICA
1. Exposição de conteúdos sobre a filosofia, história, arte, geografia e corporeidade afro-brasileira na capoeira.1. Arte e mandinga na ginga de capoeira. Agilidade e movimentos fundamentados na ancestralidade afro-brasileira.
2. Difusão dos diferentes saberes e fazeres nas modalidades tradicionais e modernas da capoeira: Angola, Benguela, São Bento Pequeno, São Bento Grande, Regional da Bahia, Iúna, Maculelê, Puxada de Rede, Samba de Roda.2. Contribuição dos grandes mestres e a prática dos golpes e movimentos: cocorinha, meia-lua de frente, au, queda de rim, rolamento, ponte, bênção.
3. Apresentação de aspectos musicais e criação de cantigas da capoeira para execução na roda, considerando os ritmos, ladainhas, coro, expressividade vocal e inserção de letras que considerem questões do contexto atual da escola e região de São Roque.3. Apresentação e prática dos golpes fundamentais: armada, queixada, martelo, rabo de arraia, meia-lua de costa, rasteira frontal, chapa, banda, pisão, crucifixo, palma.
4. Resgate dos grandes mestres capoeiristas e trabalhos de conscientização dos estudantes acerca da diáspora africana e a formação do povo brasileiro, considerando a capoeira como um dos mais belos e simbólicos bens culturais da humanidade. 4. Golpes complementares, técnicas e movimentos fundamentais: asfixiante, bochecho, cabeçada, chibata, chapéu de couro, cotovelada, chave, escorão, esporão, galopante, godeme, joelhada, ponteira, palma, telefone, vôo de morcego.
5. Diálogos acerca dos atuais cordões e hierarquias na capoeira, desde o batizado, a graduação e transformação em Mestre de Capoeira.5. Prática de floreios e mandingas: peão de mão, peão de cabeça, au sem as mãos, au no rim, suicídio, xangô, macaquinho, bico de papagaio, entre outros.
6. Papel e origem dos instrumentos musicais para a capoeira: atabaque, caxixi, tipos de berimbaus, reco-reco, agogôs. 6. Esquivas e bases fundamentais de defesa: técnicas de esquivas laterais, negativa, cadeira, rolê alto, rolê no chão, esquiva na base.
7. Contação de estórias, ampliando o papel linguístico da oralidade na transmissão e intercâmbio de saberes, do conhecimento popular e tradicional por meio da capoeira: apelidos, músicas, acontecimentos, tragédias e ícones na capoeira. 7. Sequência Bimba: oito sequências de golpes e técnicas de defesa que consagraram a capoeira regional como uma das mais belas expressões culturais da contemporaneidade.
8. Exposição de habilidades e competências conquistadas como o projeto na forma de diálogos em roda, visando criar uma atmosfera onde a avaliação seja algo natural e focado na melhoria do processo de ensino-aprendizagem. 8. Oficinas de produção coletiva de instrumentos musicais da capoeira e cordões: (a) reco-reco de bambu; (b) atabaque e tambor de material reciclado; (c) caxixi e chocalho reciclado; (d) berimbau.
9. Prática de produção textual e cantigas de capoeira, com incorporação de ritmos e instrumentos como o berimbau, atabaque e pandeiro. 9. Exposição de rodas de capoeira em datas comemorativas no Instituto Federal, nas escolas parceiras e festivas, ou por meio de cooperação com disciplinas específicas.
Campos (2001). Adaptado e organizado pelos autores, 2024.

Roda de Capoeira no Espaço Cultural Brasital em São Roque
Figura 3
Roda de Capoeira no Espaço Cultural Brasital em São Roque
Prefeitura de São Roque, 2022.

Ensaio do Maculelê com a comunidade no IFSP
Figura 4
Ensaio do Maculelê com a comunidade no IFSP
autores, 2023.

Se compreendermos como Horta, Grunberg & Monteiro (2024), a educação patrimonial torna possível a “alfabetização cultural” dos sujeitos envolvidos no processo de realização plural da manifestação. A capoeira torna-se assim um instrumento singular, no sentido de trazer elementos ancestrais, de uma memória, que mesmo diante da violência do apagamento, ou da instrumentalização global, resiste, conectando passado, presente e futuro em suas práticas. Elemento da cultura popular, a capoeira revela na sua ritualidade expressão da memória coletiva, conectando a origem e celebrando os ancestrais pelo rito contemporâneo (Abib, 2017, p. 25). Assim, observa-se algumas cantigas consagradas no universo da capoeira, e amplamente exploradas nas leituras e compreensão acerca da trajetória de formação de nosso povo:

Que navio é esse, que chegou agora, é o navio negreiro. com os escravos de Angola, vem gente de Cambinda, Benguela e Luanda, eles vinham acorrentados, pra trabalhar nessas bandas, [...] aqui chegando não perderam a sua fé, criaram o samba, a capoeira e o candomblé. (Navio Negreiro, Grupo Abadá Capoeira)

Como a tradição do Maculelê, lida e analisada em uma das práticas semanais no ginásio esportivo, esta música evocou questões pelos participantes, como por exemplo o “apagamento da memória do povo africano”, considerando que se não houvesse iniciativa de mestre Popó do Recôncavo Bahiano talvez a tradição já não mais fosse lembrada, trazido por uma das jovens, ou o revelar acerca da inércia e reprodução das desigualdades provocadas pelos séculos de violência que a escravização humana produziu, ponderado por outra estudante da equipe executora, que demonstra a capacidade de esclarecimento destes jovens ao longo das rodas de capoeira. Alguns dos resultados obtidos ao longo do projeto evidenciam ainda formação de uma rede de sociabilidade que permite hoje fortalecer identidades comuns e laços de amizade, solidariedade, que contribuem com vias de desenvolvimento pleno da comunidade escolar e vem dirimindo atos de racismo e de bullying no cotidiano escolar.

O projeto ainda espera ser capaz, junto à comunidade, de fortalecer pautas pela igualdade de gênero e diversidade no ambiente escolar, ajudando a combater evasão e consolidando a permanência em tempo integral do estudante na escola, ou em volta de projetos como este. Outra questão importante resulta na concretização de um trabalho crítico, porém lúdico, com a presença da brincadeira, da festa, em conjunto com a função política-cidadã, potencializando alguns conteúdos escolares e ampliando a noção de resistência que a capoeira como patrimônio-territorial oferece. Bem como o papel do trabalho, enquanto categoria central da instituição, tema emergente em todas as oficinas de construção dos artefatos da capoeira, como o reco-reco, o berimbau e os cordões de graduação.

Como projeto educativo, com a temática do patrimônio-territorial da capoeira, a avaliação perpassa inquirições contínuas, divididas entre avaliação pela equipe, com reuniões periódicas e agrupada em três níveis de indicadores: (i) Compromisso institucional para a estruturação e efetivação das atividades de extensão; (ii) impacto das atividades de extensão junto aos segmentos sociais que são alvos ou parceiros; (iii) processos, métodos e instrumentos de avaliação das atividades de extensão. Em relação a avaliação pelo público, ela é mais horizontalizada, sendo realizada em todas as atividades, em roda e agrupada a partir dos seguintes indicadores: (i) viabilidade das ações conforme coerência e articulação entre os objetivos propostos; (ii) tempo adequado para o cumprimento das ações propostas; (iii) relevância em aspectos como: social, cultural, ambiental, educacional, econômica ou política dos problemas abordados na comunidade; (iv) segmentos sociais envolvidos, considerando a proximidade do local; (v) apropriação, utilização e reprodução do conhecimento envolvido na atividade de extensão pela comunidade; (vi) objetivos e resultados alcançados segundo os participantes (figura 5).

Assim também, no âmbito do Programa Escolas2030, do qual o IFSP Campus São Roque faz parte como escola polo e coletivo pesquisador, espera-se que o desenvolvimento desse projeto contribua para a sistematização de práticas de ensino

Orientação e avaliação contínuas, pedogicamente horizontalizadas com o grupo
Figura 5
Orientação e avaliação contínuas, pedogicamente horizontalizadas com o grupo
autores, 2024.

4. Educação de qualidade: o IFSP como escola polo do Programa Escolas 2030 da ONU

Projetos como o de capoeira na escola, considerando criticamente as nuances e o respeito pela ancestralidade desta tradição, demandam metodologias de trabalho que favoreçam a troca de saberes e a construção de um conhecimento técnico, científico e representativo socialmente. Construído em conjunto com as comunidades, difundido pelo ensino e aprofundado indissociavelmente pela pesquisa, estas ações descritas inserem-se no escopo da proposta institucional do IFSP (2014-2018), acerca da extensão, que

[...] como um processo educativo, cultural e científico, ela possibilita, às comunidades interna e externa, o diálogo, a produção de novas relações e de trocas de saberes e o repensar das ações institucionais, bem como oportuniza o contato de pessoas da comunidade externa com o conhecimento produzido no interior da instituição. (IFSP, 2019)

De maneira mais ampla, o IFSP Campus São Roque possui pesquisas (Carvalho & Andrade Neto, 2019; Jardim & Carvalho, 2017; Carvalho, 2015), práticas e iniciativas que visam promover a Aprendizagem Cooperativa, o que tem favorecido o intercâmbio de experiências e cooperação entre os estudantes e servidores do campus, com os estudantes e professores de outros estados brasileiros, em especial o estado do Ceará, bem como a participação nas ações vinculadas ao Programa Escolas2030, situando o campus em uma rede de 100 escolas que atuam como um laboratório de inovação pedagógica no Brasil, em uma perspectiva integral e transformadora.

O Programa Escolas2030 é um programa global de pesquisa-ação que busca criar novos parâmetros para a avaliação da aprendizagem com base na prática da educação integral e transformadora, com vistas a garantir o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 4 (ODS-4), “Educação de Qualidade”, fixado durante uma conferência de cúpula da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2015. Do programa, que envolve todas as etapas da educação básica, participam 1.000 organizações educativas de 10 países: Brasil, Afeganistão, Índia, Paquistão, Portugal, Quênia, Quirguistão, Tajiquistão, Tanzânia e Uganda, formando uma rede de cerca de 50 mil educadores e 500 mil estudantes.

No Brasil, o Programa Escolas2030 é coordenado por meio de uma parceria entre a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e a Ashoka (organização internacional sem fins lucrativos, com foco em empreendedorismo social) e conta com financiamento do Itaú Social (ESCO-LAS 2030, 2022). O Programa acompanha 100 escolas brasileiras e outras organizações educativas, que atuam como “laboratórios de inovação” para uma educação integral e transformadora.

No ano de 2022, o Campus São Roque do IFSP foi aceito como parte das 100 organizações educativas pensadas como Coletivo Pesquisador no Programa Escolas2030 e uma equipe-base foi montada para coordenar, planejar e executar as ações do Programa na instituição. Inicialmente, foi necessário que a equipe se envolvesse em um curso de extensão ofertado pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), que é uma das organizações gestoras do Programa no Brasil. A equipe base do Campus São Roque se matriculou no curso e se engajou ativamente nas ações propostas ao longo da capacitação. Dentre as atividades, foi proposta a criação de um documento chamado “Marco Zero”. Esse documento conta um pouco sobre a trajetória da instituição e os projetos que desenvolve, bem como aborda a infraestrutura física e o modelo de gestão desenvolvido pelo Campus.

Os projetos que vinham sendo desenvolvidos por diversos professores e servidores técnico-administrativos, incluindo o Projeto Saberes Afro-brasileiros na Roda de Capoeira, ao qual esse artigo se dedica, somados à dedicação da equipe-base do Programa Escolas2030, e às ações propostas pela equipe da FEUSP e da Ashoka, fizeram com que no mês de junho de 2022, o Campus São Roque do IFSP fosse convidado a compor o grupo de Escolas Polo do Programa Escolas 2030 no Brasil.

Cada escola polo tem o desafio de desenvolver um projeto de pesquisa-ação que visa a implantação de uma inovação pedagógica - no caso do campus São Roque, a inovação é a implantação da Metodologia da Aprendizagem Cooperativa e Solidária na educação básica (turmas de 1º ano dos cursos técnicos integrados ao ensino médio) - buscando o desenvolvimento de cinco dimensões de aprendizagem, quais sejam: colaboração, empatia, autoconhecimento, protagonismo e criatividade. Em paralelo, já no ano de 2023, o campus São Roque do IFSP foi convidado a desenvolver uma pesquisa sobre equidade, visando verificar se, por meio do processo de pesquisa-ação, o campus São Roque do IFSP está desenvolvendo a equidade de gênero, interétnica e de pessoas com e sem deficiência.

Nesse sentido, o projeto de pesquisa-ação intitulado “Colaboração, criatividade, empatia, protagonismo e autoconhecimento: desenvolvendo uma pesquisa ação com os estudantes dos 1º anos dos cursos técnicos integrados ao ensino médio da IFSP Campus São Roque” foi submetido a um edital de fomento à pesquisa do IFSP, ainda no ano de 2022, passou a ser executado no ano de 2023, com o objetivo de investigar se a implantação da Metodologia da Aprendizagem Cooperativa e Solidária favorece o desenvolvimento das dimensões de aprendizagem, como colaboração, empatia, criatividade, protagonismo e autoconhecimento. A participação no Programa Escolas2030 tem oportunizado experiências interessantes aos estudantes da educação básica, como por exemplo, no ano de 2022, representantes do Grêmio Estudantil Mário de Andrade participaram do Fórum Nacional do Programa Escolas2030, realizado no mês de novembro, na Faculdade de Educação da USP. No evento, eles debateram com outras escolas e profissionais importantes aspectos relativos às possibilidades de construção de indicadores qualitativos para a melhoria das políticas públicas para a educação básica no Brasil.

Já em 2023, no dia 08 de maio, houve a 1ª Jornada de Protagonismo Juvenil. No período de preparação para a jornada, a Escola Polo IFSP Campus São Roque realizou uma roda de conversa articulada pelo Grêmio Estudantil Mário de Andrade, cuja temática era: Protagonismo das Juventudes na Transformação da Educação. A roda de conversa teve como objetivo discutir propostas para uma educação integral e transformadora. O Grêmio ouviu e sistematizou as respostas dos participantes. De posse dessa sistematização, o presidente do Grêmio Estudantil participou da “Escuta de Estudantes do Escolas 2030 pelo Ministério da Educação”, que fez parte da 1ª Jornada de Protagonismo Juvenil e consistiu em reunião remota realizada também no mês de maio de 2023, com o objetivo de colaborar com a melhoria da educação básica no Brasil. A reunião foi mediada pela Sra. Raquel Franzim, Coordenadora Geral de Educação em Tempo Integral da Diretoria de Políticas e Diretrizes de Educação Básica Integral do Ministério da Educação. O tema gerador da jornada foi: “Como podemos melhorar a Educação no Brasil?”. No mês de junho, do mesmo ano, representantes do Grêmio Estudantil Mário de Andrade participaram do Fórum Global do Programa Escolas2030, evento que reuniu educadores e estudantes de 10 países. Eles participaram remotamente de uma Roda de Conversa com jovens dos países-membro do Programa Escolas2030 e com o Ministro da Educação de Portugal – Sr. João Costa. Além dessas, outras ações como campanhas, rodas de conversa, eventos culturais e esportivos, como os Jogos Internos do IFSP-SRQ são protagonizados pelas representações estudantis.

Salientamos que o Programa Escolas2030 e os projetos e ações a ele vinculados estão afinados aos valores institucionais e ao desenvolvimento da educação integral enfocada pelo IFSP, pois, conforme colocado pela UNESCO buscamos aprendizado além dos muros da escola e ao longo da vida, enfocando a formação do cidadão com pensamento crítico e com autonomia para a tomada de decisões que o impulsionem para uma vida digna e para uma sociedade mais equitativa e menos desigual (IFSP-SRQ, 2022). No âmbito específico do projeto de extensão Saberes Afro-brasileiros na Roda de Capoeira, vale dizer que também são desenvolvidas as dimensões de aprendizagem enfocadas na pesquisa-ação, assim como a busca por relações mais equânimes, incentivo ao autoconhecimento, o respeito ao próximo, a colaboração, empatia e as trocas de experiências e saberes são aspectos trabalhados em todas os encontros do projeto.

5. Considerações Finais

Os desafios enfrentados por países como Brasil dependem de uma educação transformadora, capaz de engendrar condições concretas de subversão das desigualdades regionais, de gênero, classe e raça. Esta perspectiva está no embasamento do projeto de capoeira na escola, assim em outros correlatos executados já referenciados. Por eles, com foco na extensão, gera-se condições mínimas, como observado, de propiciar um ambiente escolar representativo, receptivo e mais igualitário, o que sugere maior qualidade de vida aos estudantes e possibilidades de preparo ao enfretamento desta realidade.

Além da perspectiva qualitativa apresentada, a capilaridade do projeto na comunidade evidencia numerosas rodas de capoeira realizadas, seja no ambiente escolar, como fora dele. Junto a elas, oito oficinas materializadas em três anos de atuação, com a produção de instrumentos musicais, dinâmicas de contação de história, práticas de oralidade, ações dialógicas e musicais, trabalhos de campo para aquisição de matérias primas e reconhecimento de espaços simbólicos da capoeira em âmbito regional, intervenções em aulas, eventos e no cotidiano da escola.

Este patrimônio-territorial, por tanto tempo proibido e perseguido no país, em risco na atualidade pela apropriação e modernização produtiva, hoje na escola, ou mesmo fora dela, amplia possibilidades para novos caminhos e horizontes aos seus praticantes, no processo de ensino-aprendizagem, tanto por meio de ações ativas e cooperativas, quanto pela produção de materiais e relações através dos valores e saberes tradicionais. Observa-se que a educação patrimonial tem papel estratégico para ativar bens e práticas culturais, neste caso, qualificando a educação em sua totalidade e potencializando ações de respeito e consideração às diferenças, a criação de identidade pela alteridade, dentro e fora do espaço escolar. Portanto, como ação afirmativa, seu incentivo e prática, mais que conectar corpo e mente, permite conscientizar o papel do povo negro na sociedade brasileira, estabelecendo, como defende Costa (2016) pelo patrimônio-territorial uma esperança enquanto utopia concretizável, ou como ensinou Paulo Freire (1992), a esperançarmos, como prática ativa de quem não espera, e não pode esperar, a urgência por meio da educação é uma das principais, se não a única via de um país mais equânime e justo socialmente.

6. Contribuições dos autores:

Rafael Fabrício de Oliveira: conceituação; metodologia; análise formal; investigação; escritura original; redação – revisão e edição; recursos; administração do projeto; aquisição de fundos.

Anna Carolina Salgado Jardim: conceituação; metodologia; análise formal; investigação; escritura original; redação – revisão e edição; recursos; administração do projeto; aquisição de fundos.

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Notas

[1] Professor doutor do Instituto Federal de São Paulo, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4265-370X. E-mail: rafael.oliveira@ifsp.edu.br
[2] Professora doutora do Instituto Federal de São Paulo, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7315-0531. E-mail: annajardim@ifsp.edu.br
[i] Pesquisa resultante de projeto institucional de extensão, financiado pelo IFSP por meio de Programa de Apoio a Projetos de Ensino e Extensão (2019, 2022, 2023, 2024).
[ii] O projeto Saberes Afro-brasileiros na Roda de Capoeira desde o ano de 2019 tem apoio de recursos do Instituto Federal de São Paulo, ora do ensino, ora de extensão, fomentando e qualificando as atividades realizadas ao longo dos últimos anos.
[iii] Reiteramos os mais sinceros agradecimentos ao Mestre Cabelo, Jair Vieira dos Santos, pela parceria e dedicação integral desde o início do projeto, transmitindo seus conhecimentos e saberes a toda comunidade.
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