Cidades e patrimonialização na América Latina-GECIPA
Memórias subterrâneas como patrimônio-territorial no Vale do Médio Paraíba do Sul, Rio de Janeiro, Brasil
Memorias subterráneas como patrimonio-territorial en el Vale do Medio Paraíba do Sul, Río de Janeiro, Brasil
Underground memories as territorial heritage in the Vale do Médio Paraíba do Sul, Rio de Janeiro, Brazil
Memórias subterrâneas como patrimônio-territorial no Vale do Médio Paraíba do Sul, Rio de Janeiro, Brasil
PatryTer, vol. 7, núm. 14, e53422, 2024
Universidade de Brasília

Recepción: 01 Febrero 2024
Aprobación: 01 Abril 2024
Publicación: 01 Junio 2024
Resumo: Este trabalho propõe identificar as memórias subterrâneas como patrimônio-territorial da região Vale do Médio Paraíba do Sul, a fim de divulgar e valorizar a importância das culturas originárias relacionadas à ocupação e uso deste território, antes e depois do processo colonizador. De tal modo, foi adotado a pesquisa qualitativa, do tipo exploratório e interpretativo, utilizando as técnicas de entrevistas e de observação direta em publicações oficiais e acadêmicas. As sociedades indígena, negra e cigana foram identificadas como memórias subterrâneas da região, pois suas existências no território foram historicamente silenciadas, deturpadas e excluídas dos registros oficiais, pelos interesses hegemônicos que consolidaram a colonialidade, o eurocentrismo e o pacto da branquitude contemporâneos. Futuras ações podem ser pensadas a partir dos resultadas desta pesquisa, a fim de fomentar o fortalecimento das comunidades e valorizar as culturas locais aqui identificadas.
Palavras-chave: memórias subterrâneas, patrimônio-territorial latino-americano, indígenas, negros, ciganos.
Resumen: Este trabajo propone identificar las memorias subterráneas como patrimonio-territorial de la región Vale do Medio Paraíba do Sul, con el fin de dar a conocer y valorar la importancia de las culturas originarias relacionadas con la ocupación y uso de este territorio, antes y después del proceso de colonización. Por lo tanto, se adoptó una investigación cualitativa, exploratoria e interpretativa, utilizando técnicas de entrevista y observación directa en publicaciones oficiales y académicas. Las sociedades indígenas, negras y gitanas fueron identificadas como memorias subterráneas de la región, pues su existencia en el territorio fue históricamente silenciada, distorsionada y excluida de los registros oficiales, por los intereses hegemónicos que consolidaron la colonialidad contemporánea, el eurocentrismo y el pacto de blancura. Se pueden considerar acciones futuras con base en los resultados de esta investigación, con el fin de incentivar el fortalecimiento de las comunidades y valorar las culturas locales aquí identificadas.
Palabras clave: memorias subterráneas, patrimonio-territorial latinoamericano, indígenas, negros, gitanos.
Abstract: This work proposes to identify the underground memories as territorial heritage of the Vale do Médio Paraíba do Sul region, to publicize and value the importance of the original cultures related to the occupation and use of this territory, before and after the colonization process. Therefore, qualitative, exploratory, and interpretative research was adopted, using interview and direct observation techniques in official and academic publications. Indigenous, black and gypsy societies were identified as underground memories of the region, as their existence in the territory was historically silenced, distorted and excluded from official records, by the hegemonic interests that consolidated contemporary coloniality, Eurocentrism and the pact of whiteness. Future actions can be considered based on the results of this research, to encourage the strengthening of communities and value the local cultures identified here.
Keywords: underground memories, latin american territorial heritage, indigenous, blacks, gypsies.
1. Introdução
Para Milton Santos (2014, p. 103), “A história é sem fim, está sempre se refazendo”. Porém, a história da produção dos fatos desencadeia contextos cada vez mais amplos. A interpretação e a construção do conhecimento sobre os fatos, por exemplo, sofreram, por muito tempo, graves manipulações e deturpações pelo jogo de interesses embutido nos discursos e narrativas oficiais colonizadoras.
A partir de um recorte sobre a América, Aníbal Quijano (2005, p. 107) apresenta que “a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista”, o que contribuiu para a produção da perspectiva hegemônica eurocêntrica do conhecimento e para uma nova maneira de legitimar as ideias e práticas colonizadoras entre dominantes e dominados. A “colonialidade do poder, do saber e do ser” e o “eurocentrismo” produziram uma perspectiva dominante de (re)produção do conhecimento que fortaleceu o padrão mundial “colonial/moderno, capitalista e eurocentrado” (Quijano, 2005, p. 115), invisibilizando e subalternizando outros saberes e sujeitos.
Com o olhar para o contexto do Brasil, Cida Bento (2022) corrobora com a reflexão ao apresentar o conceito de “pacto narcísico da branquitude”, ou seja, uma aliança estrutural não verbalizada entre pessoas brancas que mantêm uma cumplicidade entre si e que constrói narrativas com fins de perpetuação e manutenção de seus privilégios. Este pacto, profere a autora, “(...) expulsa, reprime, esconde aquilo que é intolerável para ser suportado e recordado pelo coletivo. Gera esquecimento e desloca a memória para lembranças encobridoras comuns” (Bento, 2022, p. 25).
A partir desse contexto, é possível compreender que a história da região Vale do Médio Paraíba do Sul, no Estado do Rio de Janeiro, também conhecida como “Vale do Café Fluminense”, não contempla de forma extensa ou com minudências o período antecedente à chegada dos colonizadores, ou seja, não valoriza em seus registros oficiais ou em abordagens no ensino escolar a formação inicial do território nem a presença, a constância e/ou o extermínio dos seus povos originários. Ela parte, em sua maior perspectiva, do período pré-colonial, o qual começa com a chegada dos europeus ao Brasil, em 1500, e considera os primeiros anos de colonização do território até os anos de sua formação e emancipação (dos povoados em vilas e das vilas em cidades), o que valoriza as ações europeias colonizadoras no processo de constituição do território (Carneiro, 2016; Couto, 2016; Lemos, 2004; Muaze, 2015; Teixeira, 2008).
A região Vale do Médio Paraíba do Sul está localizada na parte Sul Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, às margens do Rio Paraíba do Sul (figura 1). Sua constituição se faz pelo conjunto dos municípios de Barra do Piraí, Barra Mansa, Itatiaia, Pinheiral, Piraí, Porto Real, Quatis, Resende, Rio Claro, Rio das Flores, Valença e Volta Redonda.
O território se desenvolveu por dois fatores históricos, relacionados ao período colonial do Brasil (Carneiro, 2016; Couto, 2016; Muaze, 2015). O primeiro, pelo desbravamento do interior a partir do litoral, entre Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, pelas tropas bandeirantes ou sertanistas (Holanda, 1995), que partiam em busca do ouro mineiro e dos indígenas – que eram escravizados na lavoura –, durante o século XVII. O segundo, pela divisão e concessão das terras para a produção cafeeira, a partir das sesmarias, para os aliados da Corte portuguesa, como forma de agradecimento aos serviços prestados que contribuíram para o seu estabelecimento no território do Rio de Janeiro, entre 1808 e 1821.
Diante do exposto, este trabalho retoma o conceito de “memórias subterrâneas”, criado pelo historiador Michael Pollak (1989), a fim de identificar e mapear as memórias subterrâneas da região Vale do Médio Paraíba do Sul, entendendo-as como aquelas que carregam em si as narrativas da história local, invisibilizadas, esquecidas e marginalizadas, mas que perduram, resistem e compõem a formação e a caracterização dos municípios aqui selecionados.
O conceito memória subterrânea representa a estruturação de lembranças originárias de experiências vividas e relacionadas à cultura de populações minoritárias, dominadas e exploradas por um determinado grupo social. Consiste no reconhecimento e na externalização de (res)sentimentos gerados por abusos e/ou abandonos, acumulados por muito tempo, e de memórias construídas por meio de violências sofridas em silêncio, por medo ou vergonha de serem descobertas e divulgadas. Essas sensações e ressentimentos também se articulam como uma forma de denunciar os responsáveis por esses abusos e dominações, responsabilizando-os pelos atos cometidos no passado (Pollak, 1989).

As memórias subterrâneas, conforme constrói o autor, são transmitidas internamente em núcleos familiares ou sociais, guardadas em estruturas de comunicação informais e podem se passar despercebidas e/ou escondidas por muitos anos. Ainda caracterizadas por Pollak (1989) como proibidas e clandestinas, elas, com o tempo, invadem o espaço público e ocupam toda a estrutura cultural da sociedade, podendo até se fazer presentes nos meios de comunicação, como por meio de editoração, cinema, teatro, pintura e música, expondo e denunciando as múltiplas atuações e imposições das ideologias oficiais (memórias coletivas hegemônicas e dominantes) de uma Nação, um Estado, partidos, sindicatos, igrejas, clãs etc.
Assim, esta pesquisa se enquadra como qualitativa, do tipo exploratório e interpretativo, na perspectiva da História Cultura, a partir de um olhar para o passado e suas ressignificações para o tempo presente. Como técnicas de pesquisa, adotou-se a observação direta sobre registros e documentos históricos. Para a análise documental foram consideradas como fontes os registros escritos em arquivos públicos, as publicações oficiais, os periódicos impressos ou digitais, artigos científicos, dissertações de mestrado, teses de doutorado, livros, folhetos ou opúsculos variados. Também foram realizadas três entrevistas com um historiador, uma assistente social e uma professora, a fim de se obter, dos registros orais, elementos que direcionassem o pesquisador às memórias subterrâneas da história de formação da região.
As sociedades indígena, negra e cigana, aqui identificadas como detentoras das memórias subterrâneas da região pesquisada, caracterizam-se como lembranças originárias das experiências vividas e estão relacionadas à violação, à exploração e à transformação do território, desde a colonização, sendo também tidas como invisibilizadas a partir da violência dos colonizadores europeus e dos proprietários das terras que foram doadas pela Coroa portuguesa para a produção cafeeira.
Os registros oficiais sobre a origem e a sobrevivência dessas comunidades foram historicamente alterados, esquecidos ou até mesmo destruídos com o tempo, o que contribuiu para que elas fossem tratadas como uma história abafada, clandestina e, em vários sentidos, proibidas e não ditas. Assim, esta nova historiografia destaca e valoriza essas culturas, reconhecendo-as como memórias subterrâneas, e revela uma diversidade cultural no passado e no tempo presente da região, pois elas ainda se fazem em movimento e compõem a história do Vale do Médio Paraíba do Sul.
Ademais, essas memórias ainda podem ser ativadas, pelos sujeitos autóctones dos municípios citados, como patrimônio-territorial (Costa, 2016; 2017), pois resistem ao esquecimento e ao apagamento, a partir das relações e ações de sobrevivência e permanência que esses sujeitos estabelecem com o território. A evocação dessas memórias subterrâneas, também consideradas pela perspectiva do patrimônio-territorial, poderão reverter os sentidos impostos pelos atores hegemônicos da historiografia oficial e global eurocêntrica, oportunizando a criação de futuras agendas de ações, a partir dessas sociedades, para uma manutenção e fortalecimento de seus sentidos, reverenciando-as como patrimônio-territorial a partir da dinâmica popular de construção e fortalecimento de suas próprias histórias no Vale do Médio Paraíba do Sul.
As Memórias Subterrâneas identificadas na região Vale do Médio Paraíba do Sul
O Vale do Médio Paraíba do Sul já era ocupado, por diversas etnias indígenas, muito antes da chegada dos posseiros e fazendeiros de café, que vinham explorar o território sob a ordem da Coroa portuguesa colonizadora. Após o processo de colonização, cidadãos africanos escravizados também foram brutalmente trazidos para terras brasileiras e incorporados nas relações sociais da época. Da mesma forma, a pesquisa ainda identifica a presença de sociedades ciganas na região, as quais foram deportadas de Portugal (inicialmente no século XIX) e de outras regiões da Europa (pela migração ocorrida no século XX no Brasil, durante o Período Vargas). Os registros e interlocuções sobre a presença desses povos no país, e na região pesquisada, ocorreram, em sua maior parte, por atores vários, por interesses divergentes e nenhuma representação real das coletividades identitárias das quais faziam parte, o que contribuiu para a manipulação, o esquecimento ou até mesmo o apagamento destas referencias na história do Vale do Paraíba Fluminense e do Brasil em geral.
Neste sentido, as informações apresentadas a seguir são tomadas como registros de memórias subterrâneas da região Vale do Médio Paraíba do Sul por possibilitar a reconstrução da história dos lugares aqui relacionados e por reverter a imposição do esquecimento dessas memórias pelos poderes hegemônicos da colonialidade (Quijano, 2005)
2.1. A presença das Sociedades Indígenas na região
Conforme apresenta Lemos (2004, p. 75), as primeiras informações registradas sobre os povos indígenas na região ocorreram entre 1500 e 1759 por moradores, padres jesuítas e o Estado, entre 1760 e 1822 por moradores e o Estado Português, e entre 1822 e 1845 pelo Estado Nacional. Essas informações circulavam em forma de correspondências, sejam familiares ou comerciais, e petições de negociação com a Coroa portuguesa, haja vista o aparecimento do correio terrestre no Brasil ter ocorrido em 1666. Conforme o autor, “(...) entre os assuntos que participavam do cotidiano dos comerciantes do interior a questão dos índios certamente tinha um espaço, na medida que representavam um risco aos seus negócios” (Lemos, 2004, pp. 89-90).
Em entrevista realizada com Nikson Salem[ii], historiador barra-mansense, juntamente com as pesquisas de Ramos (2017), Carneiro (2016), Muaze (2015), Aguiar (2012) e Lemos (2004) foi possível identificar que havia na região registros da presença dos povos Puris, Coroados e Coropós (descendentes dos Goitacás) e que esses teriam se desenvolvido nos recantos fluviais do território fluminense.
Segundo Ramos (2017, p. 93), “(...) os Puris ocuparam parte do Sudeste brasileiro, na região que vai desde o Vale do Paraíba que passa pelo Rio de Janeiro e São Paulo, até a área do Rio Pomba no sudeste de Minas Gerais”. Ainda pelos apontamentos de Ramos (2017, p. 124), destaca-se que “A região hoje conhecida como o Estado do Rio de Janeiro foi habitada de norte a sul pelos Puris, especialmente o norte do estado. Eles se instalavam próximos às margens do rio Paraíba do Sul e seus afluentes, que passa por todo o estado fluminense”. Para Carneiro (2016, p. 275), “O Vale do Paraíba era primitivamente ocupado pelos índios Puris e Coroados”. Muaze (2015, p. 74) apresenta que “Os únicos habitantes desta região eram os índios coroados e goitacases, que há muito ali viviam (...)”. Já Aguiar (2012, p. 204) cita que “(...) os últimos descendentes dos Goitacás, habitantes do litoral norte do que hoje é o Estado do Rio de Janeiro, seriam os Puri, refugiados nos Vales dos rios Paraíba, Paraibuna e Pomba”.
Lemos (2004, p. 48) ainda revela que:
Na documentação seja oficial, dos moradores, escritores e viajantes da época e também nos escritos posteriores aparecem várias denominações: Coroados, Araris, Puris, Purus, Pitas ou Petas, Xinimins ou Xeminin, Chuminis, Mitiris, Tapurús ou Tayporús, Xumetós, Tampruns, Sasaricons, Bacumins etc., que indicam a possibilidade de uma série de sociedades indígenas, sem, no entanto, abordarem diferenças linguísticas entre elas.
A citação dialoga com o posicionamento de Ramos (2017, p. 131), ao destacar que “As diversas sociedades que viviam no entorno do Paraíba do Sul tinham certa semelhança entre si e falavam cerca de 12 línguas diferentes, sendo vinculadas na família linguística Puri ou Coroado-Puri, do tronco Macro-Jê”, que comporta em si os dialetos Kamakã, Maxacali, Botocudo, Pataxó, Puri, Cariri, Ofaié, Jeikó, Rikbaktsá e Guató.
Lemos (2004, p. 49) destaca também que “O nome Coroado não se refere a uma tribo específica, foi dado pelos portugueses aos povos indígenas que tinham o hábito de cortar os cabelos no meio da cabeça, à maneira dos nossos sacerdotes (...)”. Já os Puri, apresenta Aguiar (2012, p. 204), provavelmente, “(...) haviam, em um passado que talvez remontasse a séculos, se apartado dos Coroado e dos Coropó. Desde então, tinham-se tornado terríveis inimigos (arem-grantshira), empenhados em uma ininterrupta batalha (garapé)”. Aguiar (2012) ainda reporta que os estudos mais recentes identificam diferenças físicas muito marcantes entre os Puris e os Coroados, ademais acredita-se que os Puris eram povos originados dos Coroados e dos Coropós.
Os estudos de Ramos (2017, pp. 124-125) apresentam que no final do século XVIII e início do século XIX foram criados aldeamentos[iii] para os indígenas Puris, Coroados, entre outras etnias, a partir de suas respectivas sesmarias doadas oficialmente pela Coroa portuguesa para o controle e domínio dos indígenas. Segundo a autora, “Os colonizadores se esforçaram em convencer a purizada com promessas e presentes ou utilizar a força para colocá-los em aldeamentos, fazendo alguns aceitarem para fugir de doenças, perseguições e fome”. Assim, os municípios de Resende e Valença (figura 2) são, até hoje, considerados territórios de localização dos antigos aldeamentos Puris no Estado do Rio de Janeiro.
Lemos (2004, pp. 83-84) ainda revela em seus estudos que, os debates realizados sobre os indígenas desde o período da colonização até o decorrer do século XIX, tanto pelos colonizadores que defendiam a humanidade dos ameríndios como para os que dela discordavam, tratavam que “(...) não existem sociedades indígenas: são hordas, bandos, famílias errantes etc., nunca são encarados como outras sociedades”. Assim, as comunidades eram observadas ainda como inferiores e fadadas à extinção.
Ramos (2017) contribui para esta crítica ao apresentar que esses povos sofreram todas as formas de dominação e extermínio, sendo por isso considerados quase extintos, em documentos oficiais, a partir do século XVIII (no Estado de Minas Gerais) e XIX (no Estado do Rio de Janeiro). Além disso, ao longo do século XIX, os registros e documentos sobre a presença dessas comunidades foram ignorados ou desapareceram totalmente, invisibilizando a trajetória dos povos na história oficial do território, tal como o ocorre no processo de “colonialidade” e de “eurocentrismo” apresentado por Quijano (2005). Ainda conforme a autora, “A etnia Puri passou a ser tida como extinta, mesmo existindo física e culturalmente. O povo Puri se dispersou e omitiu por um tempo sua identidade” (Ramos, 2017, p. 18), sofrendo silenciamento e invisibilidade por muito tempo, o que indica ser “memórias subterrâneas” ainda presentes nos territórios.

Entretanto, a partir da década de 1980, algumas comunidades já se movimentavam para romper a invisibilidade histórica e fortalecer a identidade indígena, se auto declarando e se identificando enquanto Indígenas, a fim de preservar sua ancestralidade, por meio de ações que fomentem a recriação da identidade (Ramos, 2017), principalmente no município de Araponga (MG), localizado na Zona da Mata mineira, sendo também considerado um dos locais em que mais se encontram os remanescentes autodeclarados e ainda resistentes, assim como os municípios de Resende, Itatiaia, Porto Real e Valença.
Nesses municípios ainda é possível encontrar, nos dias de hoje, algumas ruas, praças, espaços de lazer e até jornais impressos com nomes de origem indígena, os quais retratam antigas lendas que caracterizam os povos originários que formaram o território, as quais ainda perpetuam de geração em geração em nível familiar (Ramos, 2017).
Uma localidade que se destaca pela caracterização e resistência da memória indígena, ainda presente no território, é Vila da Fumaça, distrito do município de Resende. Antigo território dos povos Puris, a comunidade ainda tem uma forte valorização da cultura indígena, possível de se observada por falas de moradores que se autodeclaram descendentes dos Puris, além da denominação popular dada à vila como “Aldeia da Fumaça”, o que se permite um reconhecimento e uma perpetuação das memórias subterrâneas relacionadas ao antigo aldeamento Puris que lá existiu (Ramos, 2017).
Segundo dados da Prefeitura de Resende, a Vila surgiu no ano de 1788, sob a movimentação de nativos sobreviventes dos confrontos territoriais entre posseiros e indígenas, confinados na Aldeia de São Luis Beltrão, por ordem do quarto Vice-Rei do Brasil, Dom Luiz de Vasconcellos e Souza, sob a tutela do padre Francisco Xavier de Toledo (Prefeitura de Resende, 2024). No local a comunidade erigiu uma capela em honra a São Luis Beltrão. Em 15 de dezembro de 1938, por meio de decreto municipal, a comunidade passou a se chamar Vila da Fumaça, constituindo-se como o 7º distrito de Resende. O nome é dado pela característica da cachoeira existente no local[iv] , na qual é possível se observar uma neblina de fumaça em sua maior queda.
Nas entrevistas realizadas foi possível identificar ainda que, atualmente, há um movimento de preservação da identidade e memória indígena na Vila da Fumaça a partir de Francisco Donizetti Machado da Rocha, morador e pesquisador da história dos Puris na localidade. A atuação direta do historiador é voltada para a criação de um museu etnográfico na cidade. Uma solicitação na Prefeitura de Resende e na Câmara Municipal já foram protocoladas oficialmente e a proposta é de transformar uma casa existente na praça principal em museu. Por enquanto, o historiador realiza exposições itinerantes, com um pequeno acervo que possui, expondo objetos originários encontrados, como peças de artesanatos e alguns documentos, os quais contribuem para manter viva a história e a memória dos Puris na região.
O autoreconhecimento e a resistência cultural enquanto indígenas de alguns moradores situados no território também se fazem como elementos de resistência, a partir do entendimento de “sujeitos-patrimônio”[v] , definido por Costa (2017, p. 68), como os que “(...) carregam a memória histórica da formação dos territórios de exceção latinos (negros e indígenas)” e são capazes de reivindicar e operar, pela mobilização popular, a igualdade territorial junto aos órgãos competentes e à sociedade, com seu potencial de valor e atrativo simbólico. Esse entendimento contribui para a identificação da força e da atuação popular desses sujeitos (em defesa dessas memórias) como patrimônio-territorial latinoamericano.
Vale destacar que, neste mesmo movimento de valorização dessas memórias indígenas da região, o município de Barra Mansa, no ano de 2022, elaborou um material didático-pedagógico para as escolas de ensino fundamental, anos iniciais, o qual apresenta informações sobre a antiga região de Nossa Senhora do Campo Alegre da Paraíba Nova, área que constitui hoje as cidades de Resende, Barra Mansa e Volta Redonda, e que era habitada pelos indígenas Puris (Magalhães, et al., 2022).
Portanto, é possível identificar que o corredor territorial entre Resende, Itatiaia, Porto Real, Quatis, Volta Redonda, Barra do Piraí, Barra Mansa, Valença e Rio das Flores é constituído por municípios guardiões dessas memórias subterrâneas (relacionadas à cultura indígena), as quais ainda se mantém marginalizadas e apagadas no tempo presente, mas que já se movimentam para a sua valorização e permanência no território a partir dos sujeitos-patrimônio que atuam e transformam diretamente a relação das memórias com o território.
2.2. A presença das Sociedades Remanescentes Quilombolas na região
Os municípios de Valença e de Resende ainda foram destaque, durante o século XIX, devido ao significativo fluxo produtivo do café, em escala comercial, considerados na época como dois dos principais produtores que fomentavam a economia brasileira. A região teve o seu apogeu entre as décadas de 1850 e 1860, devido a importância econômica, política e social das fazendas cafeeiras (Tolentino, 2019; Couto, 2016; Ribeiro, 2006).
Importante destacar que esse apogeu só ocorreu por meio do violento e cruel processo de escravização da população negra, trazidas como mercadoria às terras brasileiras. Conforme apresenta Muaze (2015, p. 80), “As relações sociais e de poder que se configuravam no universo das fazendas de café do Vale do Paraíba Fluminense, por mais diferentes que fossem suas localidades, obedeciam à lógica excludente e hierárquica do Império”.
A cidade de Resende, por exemplo, como revelam as pesquisas de Tolentino (2019, p. 71) a partir dos dados da Prefeitura Municipal, constava com uma população de 19 mil pessoas aproximadamente, em 1848, sendo 8.663 de negros escravizados, ou seja, quase a metade da população.
Com a abolição da escravatura, em 1888, houve a libertação dessa população escravizada. Muitos dos libertos permaneceram nas fazendas de café, com a esperança de serem remunerados, e outros precisaram se deslocar para novas terras, em busca de trabalho, especialmente para as plantações de laranja, já existentes na época, em áreas da Baixada Fluminense (Almeida, 2009). A crise do café, assim, intensificou o processo de desvalorização e transformação do território e os fazendeiros não tinham mais recursos para manter a mão-de-obra escassa, o que fez com que os cafezais se transformassem em pastos para a pecuária, durante os anos de 1930 e 1950 (Almeida, 2009).
Em entrevista realizada com Rozana Aparecida de Souza[vi], Assistente Social da Prefeitura Municipal de Itatiaia, além das informações obtidas nos trabalhos de Silveira (2014) e Almeida (2009), foi possível mapear duas comunidades remanescentes de quilombos ainda existentes na região do Médio Paraíba do Sul e que surgiram durante esse período do século XX (figura 3).
A Comunidade Negra Remanescente de Quilombo São José da Serra, estudada por Almeida (2009), está localizada em Santa Isabel do Rio Preto, distrito do município de Valença, e é reconhecida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) como a mais antiga sociedade quilombola do Estado do Rio de Janeiro. Segundo a autora, a comunidade é organizada pela:
(...) Associação da Comunidade Negra Remanescente do Quilombo da Fazenda São José da Serra, fundada em 30/09/1999, com início da personalidade jurídica desde 21/06/2000 – registro 1956 no 1º Ofício do Registro de Títulos e Documentos (Valença/RJ), com sede definitiva na Fazenda São José da Serra em Santa Isabel, 3º Distrito de Valença (Almeida, 2009, p. 2).
Dados do Relatório de Identificação da comunidade, produzido em 1998 e estudado por Almeida (2009), revelam que a característica inicial do grupo social observado era de crianças e adultos, totalizando 77 pessoas. Todos os moradores trabalhavam na fazenda sede como diaristas e o principal cultivo era o milho, comercializado fora de Santa Isabel. O núcleo habitacional era formado de 16 casas construídas de estuque (pau-a-pique), com cobertura de sapé e chão de terra batida, sendo apenas uma de alvenaria, com chão de cimento e cobertura de telha de cimento. Em 1998, não havia luz elétrica, com exceção da casa do proprietário. A energia elétrica somente foi instalada na comunidade em 2004. Atualmente, a comunidade sobrevive da agricultura de subsistência e do artesanato, além de considerarem as práticas turísticas, por meio de suas atividades culturais, como “um elemento econômico imprescindível” (Almeida, 2009, p. 5).
Tolentino (2019) contribui para a descrição do local ao apresentar que a comunidade recebeu do INCRA, em 2015, a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) das terras e que sua história originária se remete a presença de dois casais de negros escravizados que viveram nas terras da fazenda de São José da Serra, propriedade do português José Gonçalves Roxo. Com o falecimento do dono da fazenda, em 1877, os dois casais escravizados permaneceram no local, acolhendo os negros foragidos que buscavam abrigo.
Mantendo as suas tradições culturais, atualmente, a comunidade sobrevive da utilização dos recursos naturais disponíveis no território. A maioria de seus membros se tornaram agricultores e encontraram no turismo local, ao considerarem como atrativos os saberes e fazeres originários de seus antepassados, como oportunidade de base comunitária. Assim, a memória sobrevive a partir de festas populares e da expressão artística do Jongo, atraindo turistas, o que contribui para a promoção de incrementos econômicos. Conforme Almeida (2009, p. 5), pode-se aferir que “(...) a comunidade de São José é apontada como um dos atrativos turísticos que Santa Isabel tem a oferecer”, o que faz referência aos atrativos naturais e culturais existentes na comunidade.

O Jongo surge, portanto, como elemento de ligação entre o passado e o tempo presente, retomando a memória dos escravizados que fizeram parte da formação do território. As cantigas, os pontos tradicionais e as danças típicas, constituintes do Jongo de São José da Serra, materializam as memórias subterrâneas que compõem a história da comunicade, revelando em muitas delas a violência vivida pelos escravizados da época. Conforme Souza (2011, p. 302), o Jongo simboliza a herança cultural dos povos escravizados, “(...) associada ao momento econômico específico da economia brasileira da segunda metade do século XIX”, denunciando a relação violenta entre os senhores de café, às vezes denominados de “barões do café”, e os milhares de negros africanos escravizados, os quais “(...) viviam com suas práticas e costumes numa terra distante”.
Ainda com Souza (2011, p. 304), é possível identificar que os “jongueiros” (não apenas da sociedade São José da Serra, mas de outras) também promovem encontros anualmente, nos quais contam com a presença das comunidades da região Sudeste, dos praticantes do Jongo, e de grupos de pesquisadores, historiadores e antropólogos. “Nos encontros ocorrem rodas de Jongo onde as comunidades apresentam-se de acordo com um programa pré-estabelecido, é também um espaço de discussão das lutas dos representantes destas”.
Ativado pelos sujeitos que resistem, cultural e identitariamente no território, o Jongo representa uma resistência afro-brasileira e uma referência cultural para os remanescentes do legado dos povos de língua bantu, escravizados no Brasil no passado e que se posicionam no tempo presente se fazendo visíveis socialmente.
Da mesma forma, a Comunidade Quilombola de Santana, localizada no município de Quatis, tem sua origem, como apresenta Tolentino (2019), nas doações de terras da Fazenda Santana, realizadas por Maria Isabel de Carvalho, filha de Manuel Marques Ribeiro (conhecido como o Barão do Cajuru) e Anna Esmeria Nogueira, no ano de 1903, aos negros e negras que lá trabalhavam. A fazenda leva esse nome devido a devoção dos proprietários para com Santa Ana que, segundo histórias contadas pelos antigos moradores, curou Maria Isabel quando criança (Silveira, 2014).
As pesquisas de Silveira (2014) ainda contribuem para o entendimento da origem da comunidade, ao apresentar que os escravizados, e posteriormente assalariados, também trabalhavam nas fazendas ao redor e construíram suas casas nas terras doadas da propriedade. Entretanto, a comunidade encontrou grandes dificuldades de se manter após a crise do café.
Importante destacar, segundo Silveira (2014, p. 43), que a Comunidade Quilombola Santana está classificada como uma “neocomunidade”, pois “(...) alguns não se consideram quilombolas até hoje (devido fortes influências da Igreja Católica, no século XX, e da Assembleia de Deus, mais recentemente), pois se acredita que quilombo é um lugar de escravos fugidios, o que não é o caso deles”. Essa aceitação vem sendo construída com o tempo, fortalecida pelas lideranças da localidade e pela coordenação da unidade escolar municipal. Entretanto, a identidade negra e quilombola ainda precisam ser fortalecidas, pois, segundo Silveira (2014, p. 67), “(...) até mesmo os quilombolas, sentem-se inseguros com as práticas candomblecistas. (...) Ainda assim, alguns rituais da memória negra são praticados, como as rezas e a cura por ervas. Saberes da lida com a terra são bastantes usados”, muito relacionados à campesinidade.
Conforme as pesquisas de Silveira (2014) e Tolentino (2019), de 1903 até 2018, a comunidade muito se transformou, seja pela difícil condição de vida da população, ainda regulada pela agricultura familiar, que obrigou a saída de muitos jovens para a busca de trabalho, seja pela influência das religiões eurocêntricas durante a catequização dos sujeitos negros, seja pelo descaso ou posição parcial do poder público local, como também pelo não conhecimento das leis e seus direitos, por parte dos quilombolas.
Entretanto, também é possível observar na comunidade um movimento de permanência e ressignificação das memórias subterrâneas por meio da continuidade de saberes e práticas culturais que foram silenciadas com o tempo (Silveira, 2014). As relações com a terra e a natureza partem para uma reformulação de retomada com as tradições dos antepassados. Também o Jongo surge como forma de relembrar os ritos e celebrações dos antigos povos escravizados, manifestando e celebrando, assim, a cultura afro-brasileira no território.
Incentivados pela comunidade quilombola de São José da Serra, de Valença, a comunidade Santana vem retomando e ativando as cantigas, os pontos e danças tradicionais do Jongo, a fim de perpetuar as memórias historicamente silenciadas. Tal como demonstrado pela figura 4 a seguir, as duas comunidades se unem em encontros e festividades, no esforço de fortalecer os laços entre si e com o passado, retomando a tradição do Jongo em seus territórios.
Com o Jongo alguns elementos sociais são trabalhados e compartilhados coletivamente, incluindo com as crianças, como apresenta Souza (2011), tal como o respeito pelo passado, pelos mais velhos e pela sabedoria das mulheres anciãs. As fogueiras e os tambores são também elementos que voltam ao cotidiano da comunidade, devido as rodas de celebração do Jongo, as quais acontecem em terreiros, tirando em alguns casos como nas apresentações em ambientes fechados, como salões ou clubes.
Assim, segundo Costa (2016, 2017), os sujeitos se fazem como os principais bens culturais do lugar, em situação e em movimentação permanente pelo bem comum da preservação da vida e das relações em comunidade, tornando-se os resonsáveis reativadores do patrimônio-territorial.
Como apresenta Bento (2022, pp. 38-39), “A história dos quilombos, assim como a de muitos importantes levantes ou revoltas que ocorreram antes da abolição, forçando o fim da escravidão, é omitida na historiografia oficial”, salientando que “(...) o óbvio precisa ser relembrado, já que interesses podem moldar a cognição”. A autora ainda destaca que essa omissão pode ter ocorrida com fins de não desfigurar a imagem do país,


2.3. A presença das Sociedades Ciganas na região
As pesquisas sobre as memórias subterrâneas da região do Médio Paraíba do Sul ainda revelam a presença de mais uma sociedade que historicamente foi estigmatizada, perseguida e violentada no Brasil e no mundo, os povos ciganos.
Tolentino (2019, p. 22), em sua tese doutoral sobre os povos ciganos Calon na região do Médio Paraíba, apresenta que o nome “cigano” advém de uma “exoetnomia”, conceito antropológico que se refere justamente ao processo de um grupo identificar e nomear outro grupo, de acordo com seus valores e disputa identitária. A autora ainda esclarece que sua história originária é repleta de mitos e lendas religiosas, onde há diversos estudos que apontam sua origem indiana.
Os primeiros registros da chegada dos ciganos no Brasil fazem referência a João de Torres, sua esposa, Angelina, e filhos, condenados em Portugal no ano de 1574 e deportados para o Brasil pelo seu modo de vida relacionado à liberdade de pensamento, política e religiosidade. Entretanto, a deportação de ciganos portugueses para o país só se oficializou mesmo a partir de 1686, com registros de destino para Rio de Janeiro e Maranhão, seguindo com a atividade até o final do século XVIII, aproximadamente (Teixeira, 2008; Andrade Júnior, 2013).
Conforme Andrade Júnior (2013, p. 96) apresenta, “A ciganidade é a forma de se relacionar com o mundo e consigo mesmo que os ciganos desenvolveram em uma história milenar, permeada de perseguições e sofrimentos, sem nunca perder de vista que tudo isso serviria para reforçar sua identidade cultural”. O autor ainda traz como característica dessa população, em seu caminhar pela história, a vida nômade ou seminômade, a qual os define “(...) como um povo que se relacionou com o lugar e o tempo de forma particular, a seu modo, ou seja, não pertenceram a modalidades fixas da sociedade sedentária” (Andrade Júnior, 2013, p. 97).
Segundo Tambasco (2018), na região Sul Fluminense é possível identificar três comunidades ciganas, devidamente constituídas de forma fixa há mais de 10 anos, e que se autodenominam como sendo da etnia Calon ou Kalé, originários da Península Ibérica (Teixeira, 2008). Uma comunidade está localizada no Município de Angra dos Reis, na parte oceânica conhecida como Baia da Ilha Grande. As outras duas estão nos Municípios de Porto Real e Resende (figura 6), ambos localizados no extremo da região do Médio Paraíba do Sul. Ademais, Tolentino (2019) pontua que há relatos de moradores de Quatis, Resende, e Porto Real, sobre a existência de “acampamentos ciganos transitórios” nesses municípios, ao longo de mais de 60 anos.

A comunidade cigana de Porto Real, apresenta Tambasco (2018), ocupa uma área central do município, onde residem diversas famílias, em lotes, e estão ligadas a uma liderança que administra a ordem e a organização do “acampamento”. É também conhecida pela produção e venda de vestidos ciganos típicos, confeccionados pelas mulheres e procurados por outras comunidades da região, até mesmo dos Estados de São Paulo e Minas Gerais.
Já a comunidade cigana de Resende tem como característica a ocupação de diversos pontos de uma localidade, em terrenos próximos, por famílias e seus agregados, porém sem uma liderança entre o grupo, mas que mantem as relações de amizade e cooperação (Tambasco, 2018). Os homens ciganos trabalham na compra e venda de mercadorias e transitam continuamente entre as cidades da região, apresenta Tolentino (2019), no que a autora destaca a escolha da relação geográfica com os municípios de Resende e de Porto Real como sendo eles cortados pela Rodovia Presidente Dutra e estão próximas às rodovias federais que cortam Minas Gerais e dão sentido a São Paulo.
Apesar de distintas, essas comunidades carregam alguns elementos culturais e identitários comuns entre si. Há um percurso histórico constituído por preconceitos, perseguições e violências de todos os gêneros, que partem de estereótipos imputados socialmente. Esse posicionamento, promove a esses sujeitos um comportamento de defesa contra a hostilidade
sofrida, muitas vezes de forma expressada por silenciamento, sentimento de desconfiança e um suposto comportamento nômade (Teixeira, 2008; Andrade Júnior, 2013), os quais também contribuem para um distanciamento social.
Tolentino (2019, p. 64) contribui para essa caracterização com o seguinte trecho:
Indubitavelmente, os ciganos vivenciam um processo de exclusão para zonas da cidade mais afastadas do centro urbano. Os estigmas que vivenciam fazem com que o poder público quando não expulsa-os de seus limites territoriais, fortaleça ainda mais o processo de invisibilização negando-os atenção as suas necessidades básicas, muitas vezes pautando-se na premissa de que nenhuma melhoria da condição de vida pode ser realizada, visto estarem acampados em área proibida. Entretanto as populações ciganas persistem e resistem!
Entende-se, a partir de Costa (2017, p. 71), que a ativação popular do patrimônio-territorial “(...) efetiva-se quando ocorre o reconhecimento interno dos valores do grupo”. Nesse sentido, pode-se identificar como elementos que resistem como memória e cultura cigana (e em ambas as comunidades aqui analisadas) os seus valores, as formas próprias de organização social, o modo como se relacionam e usam o território (e seus recursos naturais), além das características comportamentais defensiva. Esses, assim, seriam alguns dos elementos culturais comuns que as identificam e as unem enquanto coletividade cigana. Da mesma forma, os trajes típicos, as canções tradicionais, as danças e instrumentos também comporiam essa identidade cigana, com suas singularidades e representações particulares.
Assim, a ativação como patrimônio-territorial só se realizaria “(...) na ação concreta de sujeitos conscientes; (...) enquanto esse patrimônio for vivo dentro e fora desses sujeitos, daí o protagonismo da comunidade” (Costa, 2017, p. 71).
As comunidades ciganas, portanto, carregam em sua essência elementos identitários que resistem ao tempo e se fazem representativos no tempo presente, contribuindo para a perpetuação cultural dos sujeitos. Em diálogo com Costa (2017, p. 72), reconhece-se que “A reafirmação da ‘existência periférica’ e a indicação das ‘diferenças socioterritoriais’ têm na singularidade de suas expressões memoriais e culturais o potencial de uma ‘preservação sinérgica do patrimônio’, apesar das nuanças da urbanização latina (e da colonialidade/modernidade), que podem ser minimizadas ao se tirar proveito do sistema dos bens simbólicos universais instituídos”.
A partir de um outro movimento, externo à comunidade, já é possível observar outras ações que contribuam para o respeito e inclusão social dos povos ciganos. O município de Resende, por exemplo, no ano de 2021, propôs o projeto de Lei nº 3702/2021, de autoria do vereador Roque Cerqueira (PL), para instituir o dia 8 de abril como o “Dia Municipal da Comunidade Cigana”, além de propor ao Poder Executivo local que promova seminários, palestras e outros eventos com a finalidade de difundir a história, a cultura e os valores do povo cigano (A Voz da Cidade, 2021). Ações como essas podem incentivar outras ações que efetivem a valorização e a ativação (pelos próprios sujeitos-patrimônio) dos elementos identitários ciganos, tal como um patrimônio-territorial latinoamericano.
Portanto, faz-se importante incluir essas sociedades como memórias subterrâneas do Vale do Médio Paraíba, pois, conforme apresenta Teixeira (2008, p. 31), “(...) os historiadores brasileiros nunca deram a mínima importância à História Cigana. O pior, no entanto, é que, quando existem informações históricas, se tratam de dados enviesados, distorcidos pela visão etnocêntrica dos informantes e dos próprios historiadores”. O autor ainda relata que os povos ciganos, em geral, “São identificados como elementos incivilizáveis, inúteis à sociedade, supersticiosos, corruptores dos costumes, vândalos, enfim, uma anomalia social e racial” (Teixeira, 2008, p. 32).
Andrade Júnior (2013, p. 103) ainda esclarece que “Os grupos nômades têm poucos espaços para organizar seus acampamentos, por conta de leis proibitivas que impedem sua permanência em terras que não sejam especificamente destinadas a eles”. Por essa razão, percebe-se um número cada vez maior de grupos que se descaracterizam e perdem sua identidade, desvirtuando-se para a sobrevivência. O que nesse caso ocorre por imposição da colonialidade e do etnocentrismo e não por convicção.
3. Proposta de ativação das memórias subterrâneas como patrimônio-territorial
Segundo Mészáros (2008, p. 35), “O impacto da incorrigível lógica do capital sobre a educação tem sido grande ao longo do desenvolvimento do sistema”. Ao longo dos últimos 150 anos, a educação institucionalizada serviu para alterar as circunstâncias históricas e transmitir valores que legitima os interesses dos grupos dominantes, “(...) através de uma dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente imposta”. A própria história foi totalmente adulterada e, de fato, falsificada para esse propósito.
Assim, a história deve ser reescrita, compartilhada e reensinada, de forma que promova a construção desse conhecimento como “(...) o elemento necessário para transformar em realidade o ideal da emancipação humana” (Mészáros, 2008, p. 47), ou seja, de modo a se trasformar, a partir dos sujeitos e dos educandos, em outros modos de comportamento que concretizem os objetivos de ressignificar e tranformar o atual sistema estruturante da sociedade. Essa proposta se relaciona com a “pedagogia do compromisso” de Paulo Freire (2021).
Entende-se esta pedagogia freireana como uma prática educadora de concretização da esperança, modo este que transforma a realidade, que parte da “indignação” e avança para os “inéditos viáveis”.
Como apresenta Freire (2021, p. 33), “(...) não há prática docente sem curiosidade, sem incompletude, sem seres capazes de intervir na realidade, sem seres capazes de serem fazedores da História e ao mesmo tempo sendo feitos por ela”.
Portanto, propõe-se neste trabalho uma devolutiva social que contribua para que nos assumamos enquanto “sujeitos da história”, que se fazem e se refazem socialmente no tempo presente. Prática que deve se basear na “solidariedade” de Freire (2021, p. 34), nos “instrumentos de pressão que rompam a lógica mistificadora do capital” de Mészáros (2008, p. 48) e no “patrimônio-territoal” de Costa (2016; 2017).
A ideia de ativação popular do patrimônio-territorial da região Vale do Médio Paraíba do Sul, a partir das memórias subterrâneas (que denunciam as violências dos povos tradicioinais), surge a partir das construções teórico-metodológicas de Costa (2016; 2017), ao considerar que “O patrimônio-territorial identifica e ilumina a cultura barbarizada pela presente colonialidade, julgando os subalternizados latino americanos como necessários à escrita da nova história continental” (Costa, 2016, p. 9). Propõe, assim, romper com a lógica da modernidade eurocêntrica a partir da recuperação de valores memoriais, práticas culturais e dar novos sentidos às relações dos sujeitos com seus territórios, construindo uma outra história para a América Latina.
Conforme Costa (2016, p. 3):
(...) o utopismo patrimônio-territorial latino-americano enfatiza bens a serem preservados e difundidos, assegurados por prestígio adquirido na história das barbáries da própria modernidade. Denuncia, se apropria e perverte simulações impostas à história cultural latina. Considera que a sociedade estabeleceu-se e permanece dividida em classes, etnias e regiões, assumindo que esse e outros disparates estão na essência da grandiosidade de obras, fatos e sujeitos históricos.
A proposta deve, portanto, partir do interesse e da vontade dos sujeitos detentores das memórias subterrâneas, aqui identificadas, ou seja, das sociedades indígena, negra e cigana do “Vale do Café Fluminense”, entendidas como uma história fecunda do próprio território, detentora de múltiplos saberes possíveis de serem compartilhados entre todos, e por cada sujeito. São eles, os detentores dessas memórias subterrâneas, que elegerão quais serão os elementos mais representativos (ou não) da história local e quais poderão ser reverenciados como patrimônio-territorial.
Para sua efetivação, as sociedades precisarão trabalhar coletivamente, elencando ações e estratégias que contribuam para a consolidação e o fortalecimento de sua identidade, enquanto indígena, negra ou cigana, a fim de preservar e difundir sua cultura como parte integrante da história da região. Estas estratégias e ações ainda deverão contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos sujeitos, a partir das relações internas e externas que compõem os seus municípios originários.
Vale ressaltar que a proposta de ativação dessas memórias subterrâneas como patrimônio-territorial pode ser entendida como uma forma de se posicionar contra e como forma de romper por completo com o atual sistema hegemônico da colonialidade do poder, do saber e do ser (Quijano, 2005), do “pacto da branquitude” (Bento, 2022) e do capital (Mészáros, 2008), emergindo como “alternativa real de valoração dos subalternizados da história” (Costa, 2017, p. 55), a partir dos sujeitos e de suas culturas populares locais. Pois, como apresenta Mészáros (2008, p. 108), “Ajustes parciais e melhorias marginais na ordem sociorreprodutiva existente não são suficientes para cumprir o desafio” de uma saída das contradições e dos antagonismos do tempo presente.
4. Considerações finais
A efetivação deste trabalho, sobre as memórias subterrâneas da região Vale do Médio Paraíba do Sul, resultou a identificação e a empatia para com os grupos sociais aqui selecionados, os quais foram historicamente dominados, violentados, escravizados, silenciados e conduzidos ao esquecimento histórico. Foi a partir dessas violentas ações que também houve a consolidação da classe dominante brasileira (Ribeiro, 2006). As populações indígena, negra e cigana foram (e ainda são) vistas com a perpetuação de estigmas e como ameaças ou, até mesmo, como instrumentos aos interesses hegemônicos dominantes do pequeno grupo favorecido pela “colonialidade do poder, do saber e do ser” (Quijano, 2005), pelo “pacto da branquitude” (Bento, 2022) e pelo “sistema sociometabólico do capital” (Mészáros, 2008).
Portanto, a importância deste trabalho se faz, também, como uma denúncia às violências históricas ocorridas a esses povos, as quais ainda persistem estruturalmente no tempo presente. Ele contribui para uma construção do conhecimento crítico sobre o tema e avança com os debates sobre os conceitos aqui relacionados (memória subterrânea, colonialidade, eurocentrismo, pacto da branquitude, pedagogia do compromisso, patrimônio-territorial), a fim de que seja possível, na prática, se pensar futuras ações que transformem a qualidade de vida dos coletivos sociais aqui representados. Propõe ainda o incentivo ao respeito, à inclusão e à valorização dos direitos humanos de cada cidadão da região Vale do Médio Paraíba do Sul, a partir da proposta de ativação de suas memórias subterrâneas como patrimônio-territorial.
A pesquisa não se encerra com este trabalho e demanda uma continuidade aos estudos e às práticas, pois a responsabilidade e o compromisso com a mudança social e a educação transformadora devem seguir juntos e ininterruptamente, na concretização da esperança de uma sociedade mais solidária, respeitosa e equitativa.
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