Cidades e patrimonialização na América Latina-GECIPA

Recepción: 01 Mayo 2024
Aprobación: 01 Junio 2024
Publicación: 01 Junio 2024

O movimento histórico abrange a cidade em constante transformação, repleta de vivências e significados, além de ser um local de acúmulo material. Essa perspectiva permite uma análise crítica da gestão das novas configurações socioterritoriais resultantes da valorização comercial e turística nas áreas centrais das cidades. Tal análise esclarece questões cruciais sobre o tipo de cidade histórica sendo moldada e o modelo de preservação consolidado no Brasil e mesmo na América Latina.
A obra "Cidades da patrimonialização global: simultaneidade totalidade urbana - totalidade-mundo," publicada em 2015 pela Humanitas e financiada pela FAPESP, oferece uma investigação profunda sobre o que se conceitualiza “patrimonialização global” e seus efeitos nas cidades históricas brasileiras, o que se replica para outros estudos latinoamericanos. Everaldo Batista da Costa, docente da Universidade de Brasília, UnB, promoveu um debate inclusivo e abrangente sobre o futuro das chamadas cidades históricas, abordando as transformações urbanas e os desafios da patrimonialização sobre o território. Costa amplia a compreensão sobre o papel da memória e do patrimônio no planejamento urbano territorial e mesmo na construção das identidades urbanas contemporâneas.
A obra, fruto da tese de doutorado do autor, a qual foi defendida no ano de 2011, na Universidade de São Paulo-USP, sob orientação do professor Francisco Capuano Scarlato, evidencia vasta pesquisa e profundo envolvimento no tema. O objetivo da pesquisa foi aprofundar o debate teórico e desenvolver uma metodologia para interpretar as cidades históricas para além dos centros institucionalizados, afetados pela “patrimonialização global”. O autor questiona práticas tradicionais de preservação, sugerindo novas maneiras de compreender e valorizar o território urbano, destacando a importância de envolver, concretamente, as comunidades locais nas tomadas de decisão. A obra contribui, significativamente, para a compreensão das dinâmicas contemporâneas das cidades históricas, abordando desafios e oportunidades na gestão territorial do patrimônio urbano e promovendo a leitura da interação entre desenvolvimento socioterritorial e políticas de patrimônio.
A essência de um objeto ou fenômeno não pode ser apreendida apenas por observação superficial; cada objeto ou fenômeno integra um todo específico, muitas vezes não percebido explicitamente, como sugere a filosofia materialista e existencial dialogada no livro. A realidade deve ser interpretada ou explicada pela dinâmica do mundo contemporâneo ou, como assinala K. Kosik citado em Costa, através do desenvolvimento de suas etapas. Nesse sentido, é na periodização do objeto, como produto de um processo de desenvolvimento universal, que se baseia o trabalho de Costa, explorando a relação entre urbanização e patrimonialização.
O objetivo é compreender as dinâmicas e transformações que moldam as cidades patrimonializadas, considerando as implicações sociais, culturais e econômicas das intervenções territoriais setorizadas. A pesquisa de Costa revela como urbanização e patrimonialização interagem e se influenciam, destacando desafios e oportunidades na gestão do território e na preservação do patrimônio urbano. O estudo enfatiza a importância de entender essas interações, para promover uma abordagem mais integrada na gestão territorial das cidades históricas, minimizando o impacto do ideal e práticas de desenvolvimento urbano nos valores culturais e históricos desses lugares para a população local.
O livro discute o ordenamento territorial das cidades-patrimônio, à luz dos exemplos de Ouro Preto e Diamantina, em Minas Gerais, consagradas como Patrimônio Mundial. O autor propõe uma nova abordagem que integra planejamento urbano e políticas de patrimônio, considerando a transformação dessas cidades pelo processo de mercantilização da terra urbana e da cultura local. Além de abordar a tensão entre preservação cultural e desenvolvimento econômico territorial, o livro sugere soluções que equilibram a valorização do patrimônio com o crescimento urbano contemporâneo.
A abordagem proposta baseia-se em um processo dialético contínuo, lendo os territórios da patrimonialização global em Minas Gerais, sem perder a oportunidade de contextualizar com a escala mundial do fenômeno, para apresentar uma metodologia inédita que trata a cidade histórica para além do centro institucionalizado, inserindo-se no contexto da patrimonialização global. Essa perspectiva permite uma análise crítica e propositiva da gestão das novas configurações socioterritoriais resultantes da valorização comercial e turística nas áreas centrais de cidades.
O estudo analisou como esses territórios do Patrimônio Mundial são organizados e como as populações locais percebem e são impactadas pelas mudanças urbanas resultantes da mercantilização da cultura. A análise socioterritorial, além dos limites do tombamento, oferece uma contribuição significativa. O enfoque multiescalar do território e do pensamento assumidos pelo autor contrasta com as abordagens uniescalares, que tem sido feitas sobre tais cidades em diversos estudos, focados no centro histórico.
O livro apresenta três partes interconectadas: "As cidades face à patrimonialização global e à dialética da memória" com três capítulos; "Da projeção global ao ordenamento territorial das cidades," com dois capítulos focados na transição global das cidades; e "Simultaneidade totalidade urbana - totalidade-mundo" também com dois capítulos, problematizando a hipótese do estudo. Essas seções oferecem uma visão integrada dos principais temas tratados (cruzados pela urbanização e patrimonialização brasileiras), destacando a complexidade e interdependência dos fatores analisados, com um robusto aporte teórico-metodológico.
No primeiro capítulo “Fundamentos de uma emergente patrimonialização global”, Costa desenvolve o conceito de “patrimonialização global” como um processo indissociável da dialética da construção destrutiva na consagração do Patrimônio Cultural da Humanidade. Ele aborda a patrimonialização global utilizando o método dialético e a teoria geográfica da dialética espacial, visando defini-la teoricamente e compreendê-la processualmente.
Segundo Costa, a patrimonialização global, mediada pela dialética da construção destrutiva (que é o processo interno da patrimonialização), ressignifica material e simbolicamente os lugares da história e da memória. Ele enfatiza a importância de discutir esses processos nas ciências sociais, aportando aos grupos de pesquisa focados no ordenamento territorial das cidades-patrimônio brasileiras e mesmo à gestão pública. O texto busca entender as cidades históricas como totalidades urbanas, além da noção de conjunto tombado inserido na "totalidade-mundo", categoria miltoniana que é um dos fios condutores do livro.
Costa, alinhando-se a G. Lukács, K. Kosik, H. Lefebvre, W. Benjamin, T. Adorno, H. Marcuse e outros, reflete sobre a patrimonialização considerando o movimento do particular ao universal das cidades históricas, que são retratadas, comumente, pelo recorte de seus centros históricos, mas o autor trabalha numa dimensão de interescalaridade. Ele critica a lógica da patrimonialização global, que negligencia o cotidiano e a essência das relações nos lugares, e ressalta que as cidades históricas não são realidades passivas e inertes, mas sim dinâmicas e em constante movimento.
O autor reconhece que as dimensões do espaço devem ser interpretadas no ordenamento do território através das ações econômicas, políticas e culturais, de maneira relacional, na perspectiva da interação histórica local-global. Ele destaca que a particularização exige um método de análise que busca as distintas e indissociáveis dimensões do espaço total ou em movimento. Assim, o mundo, visto pelo método dialético, é compreendido como um complexo de processos em constante mudança, e não como algo estável, imutável ou congelado.
No capítulo dois, “Inquirição geográfica sobre as cidades coloniais barrocas: periodização necessária” o autor indica que a paisagem permite ao geógrafo desvendar o movimento histórico do mundo e as desigualdades pelo território. As paisagens refletem as relações sociais e, portanto, o trabalho geográfico deve buscar no passado os elementos que formam o presente.
Analisar uma paisagem, mais que um conjunto de objetos, implica buscar seu significado, essência e espírito. Assim, a paisagem é uma particularidade que sintetiza as singularidades locais e o contexto do barroco inerente às cidades turistificadas. Compreender as paisagens requer questionar sua constituição histórica, pois toda mudança social desafia as concepções e representações simbólicas existentes.
O autor afirma que a paisagem é, por natureza, política. A paisagem urbana histórica apropriada pelo turismo ou patrimonializada deve ser compreendida na perspectiva da dialética espacial, sendo um produto material, simbólico e ideológico que atravessa a história universal e é sintetizado no barroco relacionado aos conjuntos analisados. As cidades coloniais mineiras emergem de seu ordenamento inseridas na geografia histórica da ocupação humana. No ambiente urbano barroco, as cidades-patrimônio são reformuladas para que especuladores maximizem ganhos ao ressignificar as cidades.
O espaço barroco é produto da vontade material do homem moderno, voltado para a dimensão existencial, representando o ritmo material e conflituoso da existência social. O espaço barroco expressa a verdadeira situação do homem no mundo, de mobilidade predominante; a cidade é lida como resultado da história territorial.
Costa diz que toda cidade é histórica, produto de um processo elucidado na compreensão da história do território reconstituída no presente. O movimento do espaço é efeito e condição do movimento da sociedade global, e o autor dedica-se à interpretação geo-histórica das cidades barrocas mineiras para buscar seu novo e real conteúdo.
Inicia-se o capítulo três, “Da identidade pelo território ao território como identidade do capital: sobre a dialética da memória” com a pergunta: “qual a relevância da relação entre valor de uso, valor de troca e valor simbólico para compreendermos o ordenamento atual dos territórios que agregam as cidades barrocas Ouro Preto e Diamantina?” O autor já sugere que não é simples tratar dessa tríade quando os objetos geográficos e os lugares são investidos de simbolismo relacional, de uso e de troca.
Para falar sobre uma “dialética da memória”, ele trata do significado de valor, na teoria marxista. Costa propõe a tríade indissociável entre valor de uso, valor de troca e valor simbólico, demonstrando como a patrimonialização acrescenta valor econômico aos bens culturais. Ele destaca a influência da recriação simbólica dos lugares e da memória coletiva inerentes às ações políticas estatais-mercadológicas de preservação do patrimônio urbano, criticando a valorização rememorativa que transforma o patrimônio em mercadoria, não raras vezes desconsiderando as práticas culturais locais.

Costa tensiona a teoria do valor em Marx a partir do valor simbólico também inerente aos objetos. Além dos processos visíveis há a simbologia atribuída aos lugares e suas conotações objetivas-subjetivas, buscando eventos que ressignificam a memória. O uso, a troca e o simbolismo das cidades históricas permitem ao capital fragmentar, recriar e projetar seus sentidos históricos, favorecendo a distinção paisagística e territorial. Fica claro no livro que o capital mobiliza localmente uma dialética da memória, ao rememorar fatos e objetos enquanto, simultaneamente, desconstrói ou apaga criações humanas objetivas-subjetivas.
No capítulo quatro, “O Patrimônio da Humanidade e a centralidade dos Arquitetos do Mundo” o autor analisa a relação entre turismo, desenvolvimento econômico-territorial e preservação do patrimônio em cidades históricas. Ele discute como o turismo, ao gerar renda, sustenta a vida e a conservação do patrimônio, questionando se as iniciativas econômicas e turísticas são eficazes na preservação e manutenção da ordem socio-territorial. O texto aborda os desafios na preservação dessas cidades, incluindo a falta de recursos administrativos e institucionais e o impacto da urbanização na paisagem urbana histórica.
A influência das agências multilaterais nos projetos de desenvolvimento urbano em cidades Patrimônio Mundial é significativa. Elas intervêm no ordenamento territorial em várias escalas, impondo ideologias por meio de estratégias globais que acompanham programas de requalificação urbana. Além disso, influenciam a economia urbana, promovendo o turismo e reproduzindo os discursos de autenticidade e integridade promovido pela UNESCO. Essas agências desempenham um papel central na criação de um mercado urbano, enfatizando representações espetaculares das localidades e facilitando a divulgação de projetos urbanos alinhados às diretrizes globais. A legitimação e o investimento são aspectos críticos, com as agências moldando a venda do patrimônio através de redes de informação, programas de financiamento e prêmios, determinando a legitimação internacional de imagens e projetos urbanos.
No capítulo cinco, “Das abordagens teóricas unidirecionais à prática de planejamento urbano uniescalar”, Costa examina como as instituições globais e nacionais se apropriam das cidades históricas, avaliando o impacto do capital financeiro e das políticas de governança urbana no ordenamento territorial e preservação do patrimônio cultural. Defende uma abordagem integrada que considere a qualidade de vida urbana e a justiça social, avaliando o Programa Monumenta, que focou na mercantilização e recolonização dos centros históricos. Costa sublinha a necessidade de políticas de patrimônio que incentivem a inclusão social e a participação cidadã, verdadeiramente.
Costa argumenta que a gestão e o planejamento urbanos refletem interesses econômicos e políticos específicos, favorecendo a valorização da terra urbana em detrimento da habitação e do espaço público, por exemplo, frequentemente negligenciados pelas administrações. O planejamento urbano, assim, se torna uma atividade teórica, desvinculada das políticas públicas e da ação concreta do Estado.
Estudar a cidade de modo compartimentado pode apagar o entendimento concreto das novas espacialidades, resultantes das estratégias de planejamento urbano e gestão do patrimônio. É necessário considerar a cidade dentro de uma rede ampla, abrangendo um território de modalidades técnicas e econômicas. A história da cidade deve ser analisada em termos de mudanças na produção paisagem e do ordenamento do território urbano e suas modalidades funcionais, um desafio para as ciências sociais.
Para Costa, o planejamento urbano centrado na gestão do núcleo histórico como mercadoria é problemático. Ele defende um planejamento urbano que veja a cidade como um todo, valorizando seu uso integrado, em vez do direcionamento da renda particular sobre o capital simbólico. Para Costa, a dialética da memória se dá ao abandonarmos a natureza das coisas e, simultaneamente, tentarmos recuperá-las. A tese central do livro é que, dialeticamente, a cidade histórica se universaliza e se decompõe, pois, paradoxalmente os mesmos mecanismos que a universalizam a fragmentam.
No capítulo seis, “Simultaneidade totalidade urbana totalidade-mundo” Costa explora o empoderamento do patrimônio cultural pelas comunidades locais, enfatizando a importância da participação cidadã e mobilização social para enfrentar a lógica mercantilista da patrimonialização global em Ouro Preto e Diamantina. Ele conclui que a democratização dos bens culturais requer um planejamento urbano que valorize tanto o uso comunitário como a preservação simbólica dos lugares históricos.
No capítulo sete, “As cidades coloniais e as possibilidades contraditórias de seu devenir universal-particular: uma síntese”, Costa observa que, tanto em Ouro Preto quanto em Diamantina, os traços barrocos são preservados, mas envolvidos por uma dinâmica de acumulação desigual que rebate sobre o território. A recolonização dos centros históricos considera o urbanismo e a arte barroca, promovendo uma incipiente terciarização e estetização turísticas. É crucial não negligenciar as resistências e possibilidades de empoderamento popular em diferentes graus e grupos nas cidades históricas. As necessidades urbanas cotidianas, como moradia, comércio, serviços, lazer, festividades sagradas e eventos profanos, mostram a busca pela sobrevivência e o potencial de empoderamento dos bens culturais, apesar das falhas nas políticas urbanas em termos de acessibilidade e mobilidade, assegura Everaldo Costa.
O autor diz que a democratização dos bens culturais deve considerar as contradições nas cidades barrocas, envolvendo a dialética inerente à “fragmentação articulada do território urbano”. Ainda, revela que a situação geográfica, acessos, localizações e mobilidades em Ouro Preto e Diamantina refletem a incoerência com as exigências das populações, o que pode comprometer o futuro do patrimônio urbano. A democracia só será alcançada ao considerar todos os cidadãos como iguais, independentemente de sua localização no território. O teórico e o empírico revelam que o planejamento urbano e a preservação patrimonial são ideais utópicos, mas possíveis, destacando uma gestão territorial baseada em consciência moral e ética da totalidade urbana enquanto fato de vidas em ação.
Como desenlace desta resenha, importante destacar que Everaldo Batista da Costa, em "Cidades da patrimonialização global: simultaneidade totalidade urbana - totalidade-mundo" apresenta uma análise crítica e abrangente sobre urbanização e patrimonialização, contextualizada entre escalas (do local ao global), propõe o conceito de patrimonialização global, destacando as contradições e desafios na preservação e mercantilização das cidades históricas, com foco especial nas cidades mineiras de Ouro Preto e Diamantina. O livro não é um estudo de caso, mas uma contribuição ao pensamento das cidades para além do que se convencionou tratar por centro histórico, este que é feito mercadoria pelo turismo.
A obra é particularmente relevante no contexto atual, onde a globalização e o turismo impactam significativamente a vida dos sujeitos viventes nas cidades mercantilizadas e, de certa forma, favorece a perda do patrimônio cultural. Costa enfatiza a importância da participação cidadã e da mobilização social nos processos decisórios, argumentando que a verdadeira preservação do patrimônio só pode ser alcançada com o envolvimento ativo das comunidades locais. O livro é uma contribuição significativa para os estudos sobre as cidades e o patrimônio cultural, trazendo perspectivas de método e metodológicas inspiradoras a outros estudos relacionados ao tema.
Referências bibliográficas
Costa, E. B. (2015). Cidades da patrimonialização global: simultaneidade totalidade urbana - totalidade-mundo. São Paulo: Humanitas/FAPESP.
Costa, E. B. (2014). Fundamentos de uma emergente patrimonialização global. Geografia, 2(39), 241-256. https://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/ageteo/article/view/9318.
Kosik, K. (1976). Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra.
Lukács, G. (1965). Prolegomenos a una estética marxista. Cidade do México: Editorial Grijalbo.
Lukács, G. (1967). Estética: la peculiaridad de lo estetico. Barcelona, México, D.F., Ediciones Grijalbo.