Resumo: Na virada do segundo para o terceiro milênio, percebem-se no campo da moda elementos peculiares da cultura atravessada pelo digital, que possibilitam traçar aproximações no que concerne o funcionamento daquela como desta. As hibridações intensificadas pelos formatos digitais promovem a dissolução de fronteiras e nos colocam diante do “estranho”, tal como o concebem Bauman e Zizek. Propõe-se aqui um revisão pontual de um través da moda sensível a esse estranho, sugerindo uma possível leitura de contribuição e questionamento para a atualidade da moda. Traça-se um fio em que se perfilam lado a lado os trabalhos de criadores como o brasileiro Alexandre Herchcovitch, os japoneses Yohji Yamamoto e Rei Kawakubo, os belgas Walter van Beirendonck e Martin Margiela, e de centros de pesquisa como o MIT (EUA), Textile Future Research Group (University of Arts, Reino Unido) e o grupo SymbioticA (Austrália), entre outros.
Palavras-chave:modamoda,estranhoestranho,milêniomilênio,contemporâneocontemporâneo.
Resumen: En el cambio del segundo al tercer milenio, percibimos en el campo de la moda elementos peculiares de la cultura construidos con lo digital, que permiten hacer aproximaciones con respecto al funcionamiento de ambos. Las hibridaciones intensificadas por los formatos digitales promueven la disolución de los límites y nos colocan ante el extraño, tal como lo concibieron Bauman y Zizek. Se propone aquí una revisión puntual a través de la moda sensible a este extraño, lo que sugiere una posible lectura de contribución y cuestionamiento a la moda actual. Se dibuja un hilo en el que lado a lado las obras de creadores como el brasileño Alexandre Herchcovich, los japoneses Yohji Yamamoto y Rei Kawakubo, los belgas Walter van Beirendonck y Martin Margiela, y centros de investigación como MIT (EUA), Textile Future Research Group (University of Arts, Reino Unido) y SymbioticA (Austrália), entre otros.
Palabras clave: moda, extraño, milenio, contemporáneo.
Abstract: At the turn of the second to the third millennium, some particular elements originary from the culture crossed by the digital are identified in the field of fashion. These elements enable new approches concerning the functioning of both fashion and digital culture. The hybridizations that are intensified by digital formats promote the dissolution of boundaries and put us face-to-face with the “uncanny” as Bauman and Zizek conceive it. This paper proposes a review of some experiences on the fashion field that are sensitive to the uncanny, suggesting a possible reading and questioning of current fashion. A thread is drawn in which the works of creators such as Brazilian Alexandre Herchcovitch, the Japanese Yohji Yamamoto and Rei Kawakubo, the Belgians Walter van Beirendonck and Martin Margiela are profiled side by side, as much as research centers such as MIT (USA), Textile Future Research Group (University of Arts, UK) and SymbioticA (Australia), among others.
Keywords: fashion, uncanny, milenium, contemporary.
I. ESCENARIOS
Um estranho través na moda na virada do milênio
An Uncanny Slant on Fashion at the Turn of the millennium
Un extraño cruce en la moda en el cambio de milenio
Recepção: 19 Fevereiro 2020
Aprovação: 21 Fevereiro 2020
O ex-estranho
– entre! Digo eu,
hora de ser igual,
hora de ser diferente,
entre você e entre
Fonte: Paulo Leminski
Percebem-se no campo da moda elementos peculiares da cultura contemporânea atravessada pelo digital, que possibilitam traçar aproximações no que concerne o funcionamento de uma e de outra. As hibridações intensificadas pelos formatos digitais promovem a dissolução de fronteiras que muito nos colocaram um formato sobre o estranho, tal como o concebeu Bauman. Propomos aqui um percurso através da moda sensível a esse estranho na virada do século XX para o XXI, um fio em que se perfilam lado a lado os trabalhos de criadores como Alexandre Herchcovitch, os japoneses Yohji Yamamoto e Rei Kawakubo, os belgas Walter van Beirendonck e Martin Margiela, e de centros de pesquisa como o MIT (EUA), Textile Future Research Group (University of Arts, Reino Unido) e o grupo SymbioticA (Austrália), entre outros.
A partir de ideias propostas no livro Moda, globalização e novas tecnologias (Avelar, 2011), tentamos contribuir para uma percepção crítica da indústria da moda em seus funcionamentos tradicionais atuais e também em suas brechas, que deram lugar a manifestações mais inovadoras, pela ótica daquele período, apontando para o presente estado da moda. Através dessas brechas, será possível perceber o afloramento de referências peculiares na moda contemporânea, cujos modos de operação são permeados pelas tecnologias digitais e corpos criativos.
De início, pode-se elencar alguns elementos que aproximam a moda da cultura digital, e que cunham em ambas a marca das discussões do início do século XXI:
a. discussão sobre as fronteiras, tanto para diluí-las como para reafirmá-las, ou ainda para criar outras novas.
b. presença de movimentos que questionam fundamentos circunscritos a sistemas fechados e determinados.
c. inusitada aproximação entre áreas que permaneciam distantes e que agora servem para compor objetos de inovação.
É fato que a moda sempre teve, entre aqueles que pode assumir, o papel de ser um mecanismo para a ruptura de fronteiras e discursos do/sobre o corpo em determinados contextos. Mas a moda também pode contribuir para a reafirmação de desenhos tradicionais e conservadores. Enquanto campo de manifestação e invenção pública da subjetividade, a moda pode, portanto, apontar a direções diversas, quando não opostas.
Para Kaja Silverman (1994), a moda torna nosso corpo culturalmente visível (Elizabeth Wilson, 1992), valendo-se de referências mais recorrentes em seu contexto, ou ainda daquelas mais raras numa composição mais particular. Numa cultura onde a possibilidade de diversas combinações e composições pode ocorrer de forma imediata, em tempo real, a bricolagem (hibridação ou, ainda, copy-paste) parece ser uma prática recorrente. Isso não inviabiliza a existência de formas uniformizadoras, ao contrário, ambas as possibilidades cabem.
O corpo contemporâneo pode, na moda e através dela, compor-se nas mais possíveis manifestações que se possa imaginá-lo, inserindo-se ou descontextualizando-se dentro de um certo acordo nos modos de vestir. Tal como propõe Lev Manovitch (2001), a moda pode nos apresentar outras possibilidades de corpos em instâncias criativas de maneira a instigar novos engendramentos sobre nós mesmos.
[a moda] diz respeito ao belo; é bem consciente de sua história por muito séculos, em vez de apenas as décadas recentes; tem mais camadas semióticas do que o mais complexo compósito de Photoshop que você jamais tenha produzido; e tem um limite sempre presente (e só limites podem levar à grande arte) – a figura humana. Esse limite dá à arte da moda sua vitalidade, seu otimismo e sua inventividade. E enquanto o cinema, juntamente com a moda, também pode ser chamado de arte da figura humana, suas representações são realistas demais, limitadas à vida como ela de fato existe. Em contraste, a moda, ou pelo menos sua ala vanguardista, coloca uma questão mais lúdica e otimista: o que mais um ser humano poderia ser? O que teria acontecido se a evolução darwiniana tivesse tomado alguns passos diferentes? Então não precisamos esperar até que os cientistas comecem a fatiar nosso DNA para nos reinventar – porque a moda continuamente expele novas definições do humano.
A discussão sobre um corpo reinventado, manipulado, pode ser lida pela noção de ‘estranho’ em Zigmund Bauman (1999), que rompe a lógica das dicotomias. Segundo Bauman, O estranho é um membro (talvez principal, o arquetípico) da família dos indefiníveis – essas unidades desconcertantes mas ubíquas que [...] nas palavras de Derrida, “não podem mais ser incluídas na oposição filosófica (binária), resistindo-lhe e desorganizando-a, sem jamais constituir um terceiro termo, sem sequer dar espaço para uma solução sob a forma de dialética especulativa (Bauman 1999: 64).
A dissolução das dicotomias também figurou-se no Manifesto ciborgue de Donna Haraway, para lembrar-nos que “a fronteira entre o físico e o não físico é muito imprecisa para nós” (2000: 47) e as tradicionais categorias binariamente opostas são deliberadamente colocadas em crise: “As dicotomias entre mente e corpo, animal e humano, organismo e máquina, público e privado, natureza e cultura, homens e mulheres, primitivos e civilizados estão, todas, ideologicamente em questão” (2000: 69). Neste contexto, a autora precisa que alguns desenvolvimentos tecnológicos recentes instauraram um novo momento na configuração do corpo, já que “as tecnologias de comunicação e as biotecnologias são ferramentas cruciais no processo de remodelação de nossos corpos” e “a miniaturização acaba significando poder; o pequeno não é belo: tal como ocorre com os mísseis ele é, sobretudo, perigoso” (2000: 70 e 48).
É, portanto, a fragilização das fronteiras, dicotômicas por definição, que nos dá a possibilidade de construir e desconstruir nossos corpos. Se, historicamente, esse processo é do humano nos seus mais diversos contextos, as possibilidades associadas às novas tecnologias – biotecnologia, nanoeletrônica e nanoengenharia – favorecem esse aspecto de nossa condição humana e dão origem a seres híbridos e mutáveis, indefiníveis dentro da dialética em que nos acostumamos a viver até recentemente.
Derrick de Kerckhove (2009) afirmou que vivemos em paradoxo, pois esperamos indefinidamente a solução para tais antinomias, que são intensificadas pela globalização, ou seja, pelas dinâmicas que se estabelecem por meio da internacionalização das diferenças em tempo real. Contradições entre o ser e o outro, entre nacionalismo e globalismo, entre democracia e estado de controle, são algumas das questões presentes em nosso cotidiano daquele entremeio dos milênios. Convivem com a hibridação intensa, viabilizada pelas tecnologias digitais que produzem objetos, seres, corpos e culturas dificilmente definíveis.
O corpo híbrido integra o orgânico e o inorgânico através de processos biotecnológicos, redesenhando nossos corpos, tornando imprecisos os limites entre homem e máquina. Como afirma Priscila Arantes (Arantes e Avellar 2004), não se trata mais de buscar tais limites em um mundo permeado por próteses e vidas artificiais, é quase impossível identificar onde começa o humano e o não-humano. Não se trata de ver um abismo ontológico entre o natural e o artificial, uma fissura entre o orgânico e o inorgânico. Não se trata de defini-los por suas partes heterogêneas, mas pela maneira como estas partes se tornam inseparáveis, como em uma fita de Moebius que se dobra sobre suas partes.
Nessa indefinição proporcionada pela hibridação entre homem e máquina e manipulações genéticas conduzidas por tecnologias de ponta, vimos o surgimento de condições inéditas. As possibilidades geradas pareceram propiciar a emergência de silhuetas peculiares de um modo muito mais intenso e mais frequente, sobretudo em virtude das tecnologias digitais. Os corpos virtuais são imagens (re)produzidas digitalmente que se apresentam em inúmeras maneiras e podem tornar-se qualquer coisa que se imagine, dependendo apenas do alimento cotidiano que o compõe e da mente que o cria. Além do mais, tais intervenções ou criações abrem espaço para produzirem seres que, anulando seus “defeitos”, acabam por eliminar características de idade, de origem, podendo ser manipulados na direção de uma acentuada indefinição de gênero, a ponto de não ser possível diferenciar homens e mulheres, em suas configurações sempre culturalmente construídas. Da mesma maneira, houve uma intensa proliferação de imagens de novos seres no contexto das mídias digitais, muito praticada pelos videogames.
Os grupos de pesquisa Textile Future Research Group e SymbioticA realizam trabalhos de pesquisa que muito contribuem para outros direcionamentos da moda, colocando lado a lado artistas, designers e cientistas. Tais grupos viabilizam parcerias de áreas distintas a fim de criar novas ações na moda, inserindo-a em discussões contemporâneas.
Na coleção de primavera-verão 2007, nomeada “One hundred and eleven”, Hussein Chalayan colocou a tecnologia digital notoriamente remetendo-se à hibridação possível em tempo real. A passagem de um look da década de 1920 para um da década de 1960 em poucos segundos, sobre o mesmo corpo, com os mesmos materiais, narrava a lógica de nossa percepção acostumada a passar de um assunto ao outro através do hipertexto, de caminhos rizomáticos, possibilitando, ao mesmo tempo, caminhos para discussões simplórias como também para outras mais densas.
Como apontou Julie Clarke (2000: 185), reforçando as ideias de Bauman e Haraway, “estamos vivendo numa época em que as fronteiras entre gêneros, entre o self e a imagem, real e virtual, sintético e orgânico, interior e exterior, espaço público e privado, passado e futuro têm sido apagadas”. O nosso corpo torna-se um projeto da engenharia e do design, passando pela qualidade de mercadoria, como um produto da indústria de consumo.
Nesse sentido, a moda abriu espaços produtivos no campo do que ainda não é compreendido num sistema classificatório pré-legitimado. Cabe ressalvar que, enquanto processo que se dá num campo de produção de subjetividade, a instauração do inclassificável só pode existir mediante a confrontação de outras subjetividades, de modo que nunca será uma qualidade absoluta. Entretanto, a experiência do estranhamento pode ser algo vivido no contato com certas formas de moda e buscado por alguns criadores, de maneira que o estranho se instaura no seio de um contexto cultural, mais ou menos amplo, e sem dúvida contrasta com determinados referenciais construídos por instâncias da indústria da moda, amplamente exercitados por birôs de estilo mais próximos ao consumo imediato. Não se trata aqui de estabelecer critérios a priori para um juízo de valor, mais que isso, trata-se de reconhecer uma força de devir no interior da moda que a inserta em um (in)certo tempo.
Desde a década de 1980, diversos criadores de moda foram sendo legitimados por parte da indústria ocidental, para além de centros como Paris, Londres e Nova York. Importante lembrar que muitos dos estilistas mais associados à ruptura de padrões estudaram em escolas inglesas, norte-americanas e italianas, centros que representam uma longa tradição e grande reconhecimento, e cuja notoriedade e alta qualidade devem ser afirmados.
Os criadores provêm de nacionalidades diversas, e é certo que isso não determina totalmente o seu trabalho. São japoneses, belgas, holandeses, brasileiros, suecos, chineses, entre outros, introduzindo ideias de corpos peculiares no coração de uma indústria hierarquizada. No cenário teatralizado dos desfiles entre a década de 1980 e início do século XXI, houve uma explosão de silhuetas que ainda não pertenciam a uma classificação de um sistema digerível de informações em relação ao status quo da indústria da moda e daquilo que se mostrava popular na prática do consumo. Essa situação pode muito bem ser própria daquele período caracterizado pela cultura digital, em virtude da sua hibridização de imagens, culturas e seres.
O agenciamento dessa decodificação, que pressupõe algum sistema de referência mais ou menos formalizado ou consciente, ocorre pelo e no sujeito inserido no campo cultural, uma vez que o indivíduo formará seus julgamentos num contexto em que vigoram sistemas normatizadores – sobretudo no que tange a cultura do consumo e com especial força na indústria da moda – a regular padrões corporais. É nesse âmbito que algumas silhuetas subvertem padrões de beleza, atualizados recorrentemente por imagens publicitárias. Lembremos a capa da revista Dazed and Confused, na edição de setembro de 1998, com a paratleta Aimee Mullins, que aparece com uma de suas pernas de prótese, bem como o editorial que segue com pessoas com deficiência. Aquele fora um momento importante para trazer à tona a ideia de beleza e deficiência, uma vez que as tecnologias daquele período favoreceram próteses e órteses cada vez mais potentes e com design mais elaborado. Nada melhor do que a moda para figurar estas discussões, principalmente elaborada por Alexander McQueen. Também, as campanhas publicitárias de Comme des Garçons, trabalhando com Cindy Sherman em 1994, ou as criações dessa mesma marca, dirigida por Rei Kawakubo, com corpos disformes, rostos borrados e deslocados.
O desfile de Walter van Beirendonck de 1999, inspirado no trabalho da artista Orlan, trouxe rostos alterados através de uma nova tecnologia em maquiagem da época, traduzia-se em possibilidades de metamorfozear-se cotidianamente, sem necessariamente passar por processos cirúrgicos. O belga chegou a realizar um desfile inspirado nesse e em outros trabalhos de Orlan, em que os modelos traziam alterações corporais, especialmente faciais, de acordo com os questionamentos propostos pelo artista. Alguns rostos seriam dados como imperfeitos e havia erros na colocação de próteses. Esse foi o seu desfile Verão 1999, registrado no livro Corpos mutantes. Numa publicação de 2001, chamada Mutilate, a coleção de Beirendonck dizia respeito a todos os dados utilizados pela indústria da moda, mas de maneira estranha e explícita. Temas como “sem referência”, “gênero” e “mutante” foram abordados. O próprio Beirendonck se apresentava algumas vezes através de imagens de um ser mutante, de um homem-camaleão, realizadas mediante tecnologia digital. Assim como Orlan (Clarke 2000: 188), esse estilista utilizou manipulações digitais buscando novas imagens possíveis a partir do sampleamento digital.
Talvez a moda ali, ou seja, o corpo vestido, fosse associado a essa possibilidade da metamorfose, criando resistências aos estereótipos marcados pelo mainstream da indústria da moda. O trabalho de uma artista como Orlan discutiu precisamente esse ponto. Em uma entrevista, ela declarou que espera lembrar aquilo que define o humano e a sua fragilidade, pois o feio e o esquisito remetem a algo desconfortante, como a ideia da morte: “talvez a beleza esteja ligada à saúde, enquanto características não atraentes e não desejáveis estejam ligadas à doença” (Clarke 2000: 189).
Como afirma Featherstone, a ideia de criar novas formas, “bem como de lutar para retrabalhar e voltar a moldar o significado dos signos existentes, de solapar hierarquias simbólicas existentes, para seus próprios objetivos particulares”, torna difícil “ser ignorado por aqueles que se situam nos centros culturais dominantes” (1997: 154). O gesto subversivo desses criadores, seja de dentro ou de fora da indústria da moda – que pode ser entendida como a força hegemônica de organização de símbolos a serem produzidos e difundidos –, instaura o estranho na dinâmica mesma dessa indústria e, assim, questiona os referenciais de beleza que ela veicula e produz.
Segundo o dicionário de moda da editora Thames e Hudson, o termo “desconstrucionista” surgiu na década de 1990 para descrever um grupo de criadores que utilizavam o acabamento aparente e cores cruas – como por exemplo o grupo dos Seis de Antuérpia. Além do mais, os criadores considerados desconstrutivistas ou desconstrucionistas (Koch-Mertens 2004: 167) trabalharam em direção à ressignificação do corpo naquele período, alterando seus limites e estabelecendo constantemente novas estéticas. Desconfortam o olhar com seus desfiles-performance, nos quais a percepção sofre algum tipo de deslocamento. Para Koch-Mertens, tudo aquilo que a princípio surge como estranho pode tornar-se, em algum momento, parte de nosso cotidiano.
Um alvo central desse questionamento foram as relações de gênero. A androginia, tão presente na moda contemporânea, frequentemente colocou em crise e não raro submeteu ao sarcasmo as muito sedimentadas construções da relação entre masculino e feminino. É fato que a androginia esteve sempre presente na moda e, nesse sentido, é oportuno rememorar algumas silhuetas marcantes: Amelia Bloomer no século XIX; os cabelos à la garçonne e as linhas retas femininas que iconizaram a década de 1920; na década de 1930, o andrógino se fez presente na alfaiataria, por exemplo pela utilização de calças compridas por atrizes de cinema; na década de 1960, as mulheres incorporaram o hábito de usar calças no cotidiano; a moda unissex e os movimentos gays marcaram a década de 1970; e, na década de 1980, houve o power dressing (mulheres de terno) e homens no show-business usando maquiagem. Este é um levantamento bastante simplista, sem dúvida, mas que indica algumas linhas para discussões mais densas sobre a moda e as relações de gênero que, na realidade, tratarão das construções socioculturais do que sejam noções tradicionais como o masculino e o feminino e, muito além dessa dicotomia, das múltiplas possibilidades de configurações de gênero que a contemporaneidade fez emergir, complexificando também o lugar da moda na construção de papéis sociais.
No período da emergência da cultura digital, esse papel parecia ir sendo reforçado pelo constante questionamento do dualismo, sobre o que era humano e o que era máquina, o que era natural e o que era artificial, o que era mais ou menos manipulado. Para Santaella (2003), o já citado Manifesto Ciborgue de Donna Haraway vem permeado por questões sobre androginia, denunciando “a concepção ocidental de mundo, mas também o próprio feminismo, quando, mantendo-se no universo dos dualismos forjados, este glorifica o lado dos atributos do feminino nas equações opositivas entre masculino e feminino” (2003: 187).
Haraway desconstruiu os conceitos de masculino e feminino que, numa via de mão dupla, fundamentam e são fundamentados pelos valores burgueses. Observou que a sociedade burguesa tornou o corpo um protagonista, por passar a ser aquele que contará a história do sujeito e o afirmará no mundo: valores aristocráticos como o nome, a herança e afins ficam fragilizados frente a potência de um corpo vestido – a construção do ser cultural e social encontram subterfúgios na moda mediados pelo consumo. De acordo com Hobsbawm, a família nuclear é o pilar da sociedade burguesa; quando a figuração masculino-feminina é fragilizada pelas novas possibilidades de construções do corpo por meio da moda, a própria dicotomia vai a pique levando consigo as distinções tão demarcadas que evidenciavam os papéis sociais do homem e da mulher.
Mas o gênero é apenas um aspecto de um nublamento de fronteiras que toca o corpo e o humano. Para Goodall (2000: 152-3), o corpo humano é um campo para uma constante negociação, no qual decisões são tomadas, sempre em confronto com a pergunta: “O que significa ser humano?”. A questão ganha destaque e nova abrangência quando se torna corrente a prática de implantação de próteses, de alteração corporal e de criação de seres virtuais, na construção e desconstrução de um corpo imaginado ou idealizado, apoiado pelas biopolíticas do espaço digital.
Esses movimentos de construção e desconstrução evocam um aspecto já destacado por Ana Méri de Carli (2002: 111), numa forte tendência à intensificação das sensações, por meio de alterações virtuais e de desfiles performáticos da moda tão praticados ao final do século XX, onde a intenção se exprime no desejo de teatralizar aquilo que se apresenta, no espetacular, superando padrões, a partir de criações que fogem da “roupa pronta para ser vestida”, como também pela utilização de tecidos inteligentes e wearable computers. De uma forma aproximada, Caroline Evans, em seu livro Fashion at the Edge (2007), compõe o mesmo período através de produções enigmáticas que trazem à tona qualidades sensíveis de um ser humano pela ótica da fantasmagoria, da dor, da angústia, tão presentes e pouco figuradas nos espaços legitimados da indústria da moda. Lugares e intensidades de estranhamento de sujeitos escritos pelos corpos da moda, num escopo pouco definido – ainda que potente
É interessante notar que muitos criadores de moda propuseram novas formas de corpo a partir da constatação de que os padrões de beleza não eram mais suficientes para aquele tempo. Buscando dar conta das inúmeras tarefas que exercemos hoje, imersos nas diversas possibilidades de inter-relacionamentos, especialmente os que resultam da cibercultura, esses criadores lançaram-se à tentativa de geração de novos universos, valendo-se da potência que a cultura digital proporciona, através de espaços legitimados e legitimadores até então.
Em todos, nota-se a preocupação de superar os limites dados como naturais por meio de volumes que escapem às formas orgânicas do corpo. Eles indicam, assim, a necessidade de imagens novas para que, de alguma forma, em algum momento, as mudanças dos padrões comecem a acontecer e proliferem: “O convite para especular sobre corpos radicalmente ampliados é também um convite a tentar ampliar a ideia de agenciamento humano e de imaginar as pontecialidades de uma vontade humana que suplante a vontade da natureza” (Goodall 2000: 149).
Trata-se da possibilidade de manipular o corpo humano a partir de um desejo multi/dis/pluri-forme, alterando-o com ferramentas especialmente criadas para isso. E ainda, podemos perguntar qual o eco de tais exercícios da moda na atualidade.