ESCENARIOS

Continuidade em e entre cognição, signos e classes

Continuity in and between cognition, signs, and classes

Priscila Borges
Faculdade de Comunicação e do Programa dePós-graduação em Metafísica da Universidade de Brasília, Brasil
Lethícia Angelim
Universidade de Brasília, Brasil

Continuidade em e entre cognição, signos e classes

deSignis, vol. 35, pp. 59-71, 2021

Federación Latinoamericana de Semiótica

Recepción: 10 Febrero 2021

Aprobación: 10 Marzo 2021

Resumo: A relação entre a semiótica de Peirce e a cognição se deve ao aspecto lógico da semiose que se aproxima do conceito de mente em Peirce. Esse aspecto é expresso no conceito de signo que indica uma lógica triádica em que a um signo determina outro criando um encadeamento lógico. Tal noção de signo funciona como um modelo para descrever a mente. No entanto, o aspecto lógico da semiótica expresso inicialmente na noção triádica de signo se expande nos sistemas de classes de signos (de 10, 28 e 66 classes). Nossa proposta é mostrar que podemos alcançar modelos mentais mais detalhados investigando os sistemas de classes de signos e que eles nos ajudariam a comprender melhor a noção de mente em Peirce.

Palavras-chave: mente, Peirce, cognição, semiótica.

Resumen: La relación entre la semiótica de Peirce y la cognición se da por el aspecto lógico de la semiosis que se acerca al concepto de mente en Peirce. Este aspecto se expresa en el concepto de signo que indica una lógica triádica en la que un signo determina a otro, creando un encadenamiento lógico. Tal noción de signo funciona como un modelo para describir la mente. Sin embargo, el aspecto lógico de la semiótica expresado inicialmente en la noción triádica de signo se expande en los sistemas de clases de signos (de 10, 28 y 66 clases). Nuestra propuesta es que podemos lograr modelos mentales más detallados investigando los sistemas de clases de signos y ellos nos ayudarían a comprender mejor la noción de mente en Peirce.

Palabras clave: mente, Peirce, cognición, semiótica.

Abstract: The relation between Peirce’s semiotics and cognition is due to the logical aspect of semiosis that approximates the concept of mind in Peirce. This aspect is expressed in the sign concept that indicates a triadic logic in which a sign determines another, creating a logical chain. Such a notion of sign works as a model for describing the mind. However, the logical aspect of semiotics expressed initially in the triadic notion of sign expands itself in the systems of classes of signs (of 10, 28 and 66 classes). Our proposal is that we can achieve more detailed models of mind by investigating the systems of sign classes and that they would help us to better understand Peirce’s notion of mind.

Keywords: mind, Peirce, cognition, semiotics.

1. INTRODUÇÃO

Parece inevitável que comecemos uma abordagem da cognição do ponto de vista da semiótica de Charles S. Peirce recuperando os três artigos da chamada Série Cognitiva. No primeiro desses artigos, Questions concerning certain faculties claimed by man (1868, EP 1: 11-27), Peirce apresenta quatro incapacidades da mente humana. Algumas consequências das quatro incapacidades são apresentadas no segundo artigo, chamado Some consequences of four incapacities (1868, EP 1:28-55), especialmente aquelas relacionadas à realidade e aos signos. Finalmente, no terceiro artigo, Grounds of validity of the laws of logic: further consequences of four incapacities (1869, EP 1: 56-82), Peirce se dedica a discutir a validade das leis da lógica a partir das quatro incapacidades.

As quatro incapacidades se referem à incapacidade de introspecção, de intuição, de pensar sem signos e de conceber o que é absolutamente incognoscível. Mas se não temos capacidade de introspecção, como se explica o conhecimento sobre nosso mundo interior? Segundo Peirce, tal conhecimento é derivado de raciocínios hipotéticos baseados em fatos externos. A capacidade de intuição é rejeitada, pois toda cognição é determinada por cognições prévias, logo, a intuição sendo definida como uma cognição não determinada por cognições anteriores é impossível. Não podemos, portanto, pensar sem signos, pois todo pensamento se dá em signos (1868, EP 1: 24).

No que se refere à capacidade de intuição, que é definida como uma cognição não determinada por cognições anteriores, Peirce afirma que a intuição é impossível de ser demonstrada, pois não conseguimos distinguir uma intuição de uma cognição. Ele segue dando vários exemplos de como nossa mente se engana facilmente. Testemunhas em julgamentos têm dificuldade para distinguir o que viram do que inferiram, ilusionistas enganam seus espectadores o tempo todo com seus truques, até mesmo um sonho pode ser confundido com uma experiência atual, podendo ser tão vívido que é tomado como experiência atual na memória. Os exemplos mostram que nossa capacidade de distinguir entre uma premissa e sua conclusão nem sempre é acertada. Segundo Peirce, nossa única segurança está nos signos a partir dos quais podemos inferir que algo foi visto ou foi inferido (Peirce, 1868, EP 1:13-14).

Em seguida, Peirce (1868, EP 1: 15-17) parte para exemplos que mostram que também a percepção não é fruto de uma experiência direta. Nossa retina, por exemplo, é formada por uma série de pontos, mas o que vemos não é uma coleção de pontos, mas uma superfície contínua. O mesmo ocorre com o som, cujo tom é uma sucessão de vibrações que não podem ser percebidas individualmente, mas apenas já como tom. Até mesmo a textura, segundo Peirce, depende de uma sucessão de impressões, uma vez que ela só pode ser sentida quando o dedo se desloca sobre o tecido, isto é, quando há movimento. A percepção depende de uma soma de impressões e, portanto, nenhuma dessas sensações são imediatas, pois elas têm duração.

Ao fim do artigo, Peirce (1868, EP 1: 26-7) apresenta uma imagem para demonstrar o que vinha defendendo até então sobre a impossibilidade da intuição, o experimento mental do triângulo invertido na água. Peirce propõe ao leitor refazer o trajeto do texto, das conclusões para as premissas, das cognições determinadas para as determinantes, de modo geométrico: seja um triângulo invertido (▼) gradualmente mergulhado na água e as marcas do líquido em sua superfície o correspondente às cognições. À medida que o triângulo é mergulhado, as primeiras cognições têm um comprimento menor em relação às subsequentes, mais próximas à base do triângulo (que está virada para cima), ainda que ambas sejam determinadas pelo mesmo objeto, externo à mente. Este é indicado pelo vértice O, que demarca o tempo zero, do início da mudança (isto é, momento em que se daria a intuição). Peirce pede que consideremos que o tamanho das linhas seccionais formadas pela água indique a vivacidade da consciência destas cognições. Assim, uma cognição mais antiga (CD), num primeiro momento (t1), é de consciência menos vívida (por ser menos extensa) do que a cognição que a sucede no tempo (t2), da qual é determinante − chamaremos, portanto, a cognição determinada de Cd. O objeto externo à mente, por ser um ponto, e não uma linha, não possui vivacidade em nossa consciência, bem como o estado do triângulo antes de atingir a água representa um estado de cognição vazio de determinação (ver figura 1). Do mesmo modo que Aquiles infinitesimalmente se aproxima da tartaruga de Zenão, podemos traçar tantas linhas (cognições) quanto quisermos, da base ao vértice do triângulo. Sendo α a distância entre a cognição determinada e o objeto − isto é, entre Cd e o vértice −, à medida que seguimos a instrução de Peirce de nos dirigirmos o máximo possível para as cognições iniciais, estas, por serem linhas, sempre estarão a uma distância (isto é, uma fração de α) do vértice. Portanto, não há uma cognição primeira, que não seja determinada por uma anterior, a cognição é sempre um processo, o que acaba com a possibilidade de possuirmos a capacidade de intuição.

Imagem do triângulo descrita por Peirce em Questions concerning certain faculties claimed by man (1868, EP 1: 26-27). Fonte: Própria (2020)
Figura 1
Imagem do triângulo descrita por Peirce em Questions concerning certain faculties claimed by man (1868, EP 1: 26-27). Fonte: Própria (2020)

Mladenov (2019: 18) aponta que, curiosamente, Peirce finaliza seu texto com a promessa de traçar as consequências dos princípios que vinha defendendo em um escrito posterior acerca da realidade, individualidade e validade das leis da lógica − o que ele referencia pouco antes de descrever o experimento, ao discutir a existência de uma cognição intuitiva ou não-mediada. Algo que, inclusive, ele nega com a conclusão do experimento que explicou em seguida. Neste texto, portanto, Peirce já trazia uma proposta que defenderia até o fim da vida, da cognição como processo relacional e contínuo constituído por signos, que ocorre ao longo do tempo.

2. SEMIÓTICA E COGNIÇÃO.

Embora a relação entre a semiótica de Charles S. Peirce e a cognição tenha sido defendida e rejeitada ao longo dos anos por diferentes autores (Houser, 1995), ao lermos os três artigos acima dedicados à cognição podemos perceber que a generalidade da doutrina semiótica de Peirce permite que ela seja aplicada aos signos mentais e, consequentemente, que os processos mentais sejam descritos como semiose e tenham as mesmas características dos processos sígnicos em geral.

Peirce se dedicou ao estudo dos signos em geral numa intensidade muito maior do que ao estudo específico da cognição. Nessa série publicada em 1868-9 em que ele apresenta os fundamentos de sua teoria da cognição, Peirce afirma que toda cognição é da natureza de um signo. Logo, sua dedicação para desenvolver sua teoria dos signos nos anos seguintes não significa o abandono das questões cognitivas, mas um alargamento no conceito de mente ou pensamento, uma vez que “onde quer que o movimento lógico descrito na semiose for encontrado, aí haverá mente ou pensamento, em alguns casos, desenvolvidos em sua genuinidade triádica, outras vezes, em modos mais rudimentares.” (Santaella, 2019: 397)

Alguns autores (Skagestad, 2006: 247) reivindicam a ideia de um modelo semiótico da mente, o qual considera a interpretação de signos e a intencionalidade como atributos essenciais dos sistemas cognitivos − o que não é, contudo, o caso da consciência. Disso decorre que a mente peirceana não equivale aos estados de consciência, mas a uma um contínuo dinâmico de semioses. Consequentemente, ela não pode ser tomada como substância, pois diz respeito à relação temporalmente demarcada entre signos (Santaella, 2019: 396).

Sendo da natureza de um signo, a cognição em Peirce é definida como um processo mental e não como uma coisa que está ou compõe a mente. É um processo que ocorre no tempo e não é completamente presente numa mente em um dado instante (Lane, 2011: 109-10). Em textos anteriores, Peirce já havia defendido que todo raciocínio é da natureza de um signo, pois as premissas são um signo da conclusão. No entanto, a partir dessa série de textos, ele deixa claro que não só o raciocínio, mas qualquer tipo de cognição é da natureza de um signo (Bellucci, 2018: 128-133).

Na semiótica de Peirce, o signo não é um tipo de coisa que deve ser distinguida de outras (Fisch, 1986: 329-330) e sequer o conceito de signo de Peirce ajuda nessa distinção, uma vez que ele descreve como o signo age ou performa e não como ele é. Em uma de suas mais famosas definições de signo Peirce diz, “Um signo, ou representamen, é algo que representa algo em algum aspecto ou capacidade para alguém. Ele se dirige a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido.” (Peirce, 1897 [c.]: CP 2.228) Além de mostrar como o signo age, nessa citação, Peirce acrescenta a ideia de que o signo gera outro signo encaminhando para a ideia de que há um encadeamento de signos. Sendo o processo cognitivo um processo sígnico definido como um processo infinito de encadeamento de signos, Peirce rejeita a capacidade de intuição, pois uma cognição não determinada por cognições anteriores, geraria uma ruptura nesse processo.

Consciência, autoconsciência e mente em termos peirceanos não são nada além de signos que emergem de signos anteriores e que geram signos posteriores num processo contínuo de signos encadeados que é chamado de semiose (Merrell, 1996: 4). O pensamento não ocorre no instante, requer tempo, encadeamento de signos. Um signo em outro, um pensamento em outro.

(...) todas as faculdades cognitivas que conhecemos são relativas e, consequentemente, seus produtos são relações. Mas a cognição de uma relação é determinada por cognições anteriores. Portanto, nenhuma cognição não determinada por uma cognição anterior pode ser conhecida. Ela não existe, então, primeiro, porque é absolutamente incognoscível, e segundo, porque uma cognição só existe até onde é conhecida. (Peirce, 1868, EP 1: 26)

A passagem de uma cognição para a outra se dá por um processo de determinação que se aproxima mais de uma restrição do que de uma determinação total. Assim como o objeto determina o signo que por sua vez determina o interpretante, uma cognição determina a cognição subsequente. Devemos entender a determinação como algo que limita o signo ou a cognição subsequente (Short, 2007: 167). Isto é, o objeto restringe o signo. Ou seja, o signo posterior é limitado pelo anterior.

O sentido de limite aqui aproxima-se àquele da Matemática, em que se tem um valor tão próximo quanto se queira de uma dada cognição inicial, que não chega, contudo, a ser atingido em termos reais. Dito de outro modo, por mais próximo que se chegue da cognição primeira (processo indicado pelas várias cognições representadas por linhas seccionais ao triângulo), tal início, assim como o limite, não participa dos valores do conjunto Real: o objeto externo à mente é algo que assumimos, mas não alcançamos efetivamente. Portanto, a determinação limitar o signo ou a cognição subsequente significa dizer que o signo ou a cognição anteriores assumem o lugar de objeto, do qual podemos nos aproximar, mas não efetivamente delimitar com precisão absoluta (do que se apreende também o caráter contínuo da semiose, que não apenas gera novos signos, mas também afasta o objeto real cada vez que dele nos aproximamos). “Mas nenhuma ação mental parece ser necessária ou invariável em seu caráter. (...) Sempre permanece uma certa quantidade de espontaneidade arbitrária em sua atividade, sem a qual [a mente] estaria morta.” (Peirce, 1892, EP 1: 329) Devemos considerar que Peirce destinou no interior de seu sistema uma relevante atuação do acaso. Ele funciona como mecanismo que confere dinâmica aos processos, inclusive ao mental, pois caso este fosse apenas a reprodução cega de um mesmo hábito, estaria fadado à estagnação. Tendências incertas e estados instáveis de equilíbrio são essenciais para a manifestação da mente (Peirce, 1902, CP 7.381).

Como o signo não é totalmente determinado por seu objeto, o objeto pode determinar vários signos distintos, mas não qualquer signo, uma vez que o objeto restringe as possibilidades do signo. A determinação apresenta graus, sendo o limite máximo da determinação o totalmente determinado (Lane, 2011: 111). Processos totalmente determinados perderiam toda generalidade e vagueza, enquanto processos com graus de determinação também apresentam graus de generalidade e vagueza. Portanto, generalidade e vagueza são os dois tipos de indeterminação que fazem parte dos processos sígnicos.

Uma vez que o signo e a cognição são limitados por signos e cognições prévias, e por participarem do processo da cognição, a mente é também limitada segundo ações mentais anteriores: ela possui uma tendência a reagir a sensações de modos padronizados. No entanto, esse não é o único componente de causalidade presente nesse processo. Para Peirce, cada ato de causalidade tem dois componentes, o eficiente e o final.

As causas finais são tipos gerais que tendem a realizar-se por processos teleologicamente determinantes de causação eficiente. Dessa forma, as causas finais não são propriamente eventos futuros, mas sim possibilidades gerais. O aspecto eficiente da causação é que cada evento ou fato é causado por um evento ou fato anterior (a causa eficiente). O aspecto teleológico é que cada evento ou fato faz parte de uma cadeia de eventos com uma tendência definida. A tendência é determinada pela causa final do processo. Isso implica que cada ato de causação é mediado por uma causa final. (Borges; Franco, 2019: 86).

O processo sígnico é um processo determinado, embora apresente indeterminações, e guiado a um fim, que é sua causação final. A causação final no contexto da semiótica “é uma lei que guia o modo de ação dos signos de forma que os interpretantes gerados pela semiose tenham um certo caráter geral.” (Borges; Franco, 2019: 87) Isso ocorre por meio dos processos de determinação que compõem a noção de signo: o objeto que determina o signo, o signo que determina um interpretante que seja capaz de ser um novo signo capaz de determinar outro interpretante e assim infinitamente. Embora tendam a esse fim, nem todas as semioses ocorrem desse modo. Causas eficientes atuam nesse processo fazendo com que haja uma grande variedade de modos como as semioses ocorrem. Por isso, embora a semiose tenda a alcançar uma generalidade capaz de governar a atualização de particulares (Santaella, 2019: 398), o que corresponderia a uma mente que apresenta complexos processos de inteligência, ela também pode apresentar modos menos sofisticados de causalidade, como o da ação mecânica. Pape (1993: 583) aponta que no nível da causalidade final, os conceitos são gerais sob dois aspectos: toda orientação (seja ela uma lei da natureza, propósito, desejo ou hábito) não atua sobre a totalidade de propriedades do objeto; e nenhum objeto individual ou conjunto individual de objetos é determinado unilateralmente. Assim, nem a norma dá conta de determinar completamente o objeto sob o qual age, nem os objetos dão conta de caracterizar uma classe com precisão absoluta.

Enquanto permanecermos com as causas finais, lidaremos com conceitos que são gerais em dois aspectos. Todo propósito, desejo, toda lei da natureza e todo hábito tem que ser vago, isto é, nunca especifica todas as propriedades dos objetos descritos completamente. É também geral na medida em que nenhum indivíduo específico ou conjunto finito de indivíduos é suficiente para caracterizar uma classe natural completamente. Enquanto nos limitarmos ao nível das causas finais, nenhum objeto individual ou conjunto individual de objetos é determinado de forma única. (Pape, 1993: 585)

Ao apresentar a concepção ampliada da mente em Peirce, Santaella (2019) destaca o aspecto lógico da semiose para explicar que onde houver semiose haverá mente. O aspecto lógico está expresso no conceito de signo, pois ele apresenta a lógica da relação triádica do signo que faz com que ele determine outro signo, isto é o interpretante, que é o signo na relação triádica posterior, criando assim um encadeamento lógico.

No entanto, o aspecto lógico da semiótica não termina na noção triádica de signo. Ao contrário, ele começa na noção triádica e se expande nos sistemas de classes de signos. Por isso, levaremos a proposta de Santaella adiante mostrando que não só a definição de signo pode ser um modelo para descrição da mente, mas que podemos alcançar modelos mais detalhados e altamente complexos se investigarmos os sistemas de classes de signos.

3. AS CLASSES DE SIGNOS

A classificação é um método amplamente usado por ciências como a biologia e a química, que Peirce conhecia bem. Num processo de classificação as diferenças e as semelhanças de algo devem ser exibidas levando a algum conhecimento sobre esse algo observado. Peirce (1878: EP1:143) exemplifica o funcionamento do método de classificação descrevendo o trabalho de um naturalista que coleciona um certo número de membro de uma mesma espécie, observa os espécimes coletados e percebe que embora sejam similares em alguns aspectos, eles apresentam certas variações, isto é, são diferentes sob/em relação a algum traço. Ao perceber as diferenças entre os espécimes o naturalista questiona se ele poderia encontrar algum espécime com características intermediárias que poderiam conectar os dois aspectos diferentes encontrados em indivíduos de uma mesma espécie. A suposição do naturalista de que poderia existir espécimes intermediárias que conectam as duas diferentes está fundamentada na hipótese de que deve haver continuidade entre indivíduos de uma mesma espécie.

Todo o método de classificação deve ser considerado posteriormente; mas, no momento, desejo apenas salientar que é aproveitando a ideia de continuidade, ou a passagem de uma forma para outra em graus insensíveis, que o naturalista constrói suas concepções. Agora, os naturalistas são grandes construtores de concepções; não há outro ramo da ciência em que grande parte desse trabalho seja realizada como na deles; e devemos, em grande medida, levá-los como nossos professores nesta parte importante da lógica. (Peirce, 1878: EP 1: 143)

A ideia de continuidade destacada no método de classificação do naturalista é muito semelhante ao modo como Peirce propôs os sistemas de classes de signos. O continuum é definido por Peirce como sendo aquilo cujas partes têm partes do mesmo tipo (1869, EP 1: 68). Isto é, qualquer parte de um contínuo possui partes e tais partes possuem outras partes infinitamente, não sendo possível alcançar a última parte, pois toda parte é composta de outras partes. Assim como não é possível encontrar a primeira, pois cada parte é parte de alguma parte. Se a cognição é um contínuum, então todo processo cognitivo é composto de processos cognitivos mais curtos não sendo possível encontrar o primeiro, ou o menor processo (Lane 2011: 114).

O conceito de signo mostra uma lógica triádica de funcionamento dos signos que pode ser aplicada recursivamente, gerando assim as classes de signos. A noção mais geral da semiose é a ideia de que um signo gera outro infinitamente. Essa ideia foi melhor descrita quando Peirce concebeu o signo como uma relação triádica entre objeto, signo e interpretante. Objeto, signo e interpretante não são três substâncias diferentes, mas posições lógicas ocupadas pelos signos. Objeto, signo e interpretante são signos. O objeto é um signo antecedente, o signo é o signo atual, o interpretante é um signo posterior. Numa semiose há infinitas relações sígnicas, em cada uma delas podemos distinguir os três termos, sabendo que o objeto indica uma série de signos anteriores àquela relação sígnica que está sendo observada e o interpretante indica os signos posteriores. A semiose é um contínuo de signos encadeados e quando tentamos observar um ponto desse contínuo, ou seja, uma das relações sígnicas, encontramos outras três relações.

As classes de signos nascem da continuação desse processo. Isto é, agora que estamos vendo uma tríade, a relação signo, objeto e interpretante, Peirce propõe observar uma das relações. A relação entre signo e objeto, aquela que diz respeito ao modo de representação do signo foi a primeira a ser observada e a que leva as primeiras três classes de signos. Peirce identifica três modos de representação: a representação por semelhança, por correspondência de fato e por um caráter imputado, ou seja, pela convenção de uma lei (Peirce, 1868, EP1: 6-7). Esses três modos de relação entre o signo e o objeto são conhecidos, respectivamente, por icônico, indicial e simbólico. Esses três modos de relação aparecem pela primeira vez no texto On a new list of categories, também de 1868, em que Peirce apresenta suas categorias fenomenológicas postulando logo no início do texto que “essa teoria dá origem a uma concepção de gradação” (EP 1: 1). Tanto as categorias, primeiridade, secundidade e terceiridade, quando os modos de representação do signo devem, portanto, ser entendidos como conceitos gradativos. Isto é, as categorias não são excludentes, mas gradativas no sentido de que são graus de um fenômeno. Sendo graus, as categorias subsequentes envolvem as antecedentes, isto é, a segunda categoria envolve a primeira e a terceira envolve a segunda e a primeira. O mesmo ocorre com os tipos de representação. Relações icônicas, indiciais e simbólicas não são excludentes, mas gradativas. Podemos diferenciá-las, mas sem perder de vista que as relações posteriores envolvem as anteriores.

Relações icônicas são aquelas que apresentam maior vagueza, relações indiciais apresentam maior determinação e relações simbólicas apresentam maior generalidade. Com apenas três classes de signos já podemos perceber como os processos sígnicos tentem à generalidade, mas sempre envolvendo vagueza e determinação. Houser (1983) analisa as classificações da consciência a partir das três categorias semióticas iniciais. À primeridade corresponderia o sentimento-qualidade (geralmente referido simplesmente por “sentimento”). O autor indica que o sentimento é um estado que, em si mesmo, num estado instantâneo, não é consciência, e sim mera possibilidade. Enquanto secundidade, a consciência pode ser genuína (sendo, portanto, uma volição) ou degenerada (sensação). A diferenciação entre estes dois tipos de secundidade estaria no esforço envolvido ser ativo (primeiro caso) ou passivo (caso da sensação). A terceridade da consciência se manifesta no modo de estar ciente da aquisição de um hábito ou de uma representação, ou na percepção que a experiência é inteligível (ou seja, governada por lei). São, enfim, apreensões de que as conexões (secundidade) entre sentimentos (primeridade) são direcionadas por regras ou hábitos, constituindo-se em “concepções gerais” (Houser, 1983: 343).

Ao propor três tipos de representação, Peirce inicialmente está propondo que a ação do signo poderia ser descrita a partir dos graus de representação do signo. Mas a ação do signo não poderia ser reduzida apenas ao modo de representação, especialmente quando o signo é definido como sendo uma relação entre o signo em si, o objeto e interpretante. Portanto, o modo como o signo representa o objeto é apenas um aspecto a ser considerado no processo sígnico e outros aspectos podem ser igualmente considerados, descrevendo essa ação em mais partes.

Em um segundo momento, então, a ação do signo é descrita como envolvendo tanto o modo de representação do objeto, como o modo de apresentação do signo e o modo de produção do interpretante. O processo sígnico passa a ser descrito em três partes ou etapas, sendo cada uma delas necessária e determinante da etapa posterior. As três etapas da ação do signo são, portanto, relacionadas, dependentes e orientadas, representando um processo. Cada uma dessas etapas poderá apresentar três modos de ser, sendo que a etapa anterior restringe os modos de ser da etapa posterior a depender do seu próprio modo de ser. Isto é, relações de primeiridade restringem as relações subsequentes à primeiridade. Relações de secundidade restringem as relações subsequentes à primeiridade ou secundidade. Relações de terceiridade permitem relações subsequentes de qualquer uma das três categorias. Obedecendo a lógica de restrição, surgem 10 classes de signos que juntas descrevem 10 processos sígnicos com diferentes gradações de vagueza, determinação e generalidade. A primeira classe é a mais vaga a última é a mais geral, portanto, juntas as 10 classes formam um conjunto que mostra a tendência à generalidade dos processos sígnicos apresentando maior gradação entre a primeira e a última classe do que aquela apresentada com três classes de signos.

Posteriormente, a ação do signo é descrita em seis e dez etapas, todas com as mesmas características das etapas descritas anteriormente. A partir desse processo de divisão da ação do signo em cada vez mais partes ou etapas, os sistemas de classes de signos se ampliam. Enquanto o sistema de dez classes de signos descreve a ação do signo em três etapas, o sistema de 28, descreve 6 etapas na ação do signo e o sistema de 66 classes descreve 10 etapas na ação do signo. Portanto, a ação sígnica que começa sendo descrita em apenas uma etapa, considerando apenas e de modo geral a ação de representação do signo, termina no último sistema proposto por Peirce sendo descrita em dez etapas. Em todos os sistemas as classes são gradativas e todos eles começam com classes em que predominam relações de primeiridade, passam por classes em que predominam secundidade e alcançam classes em que predominam terceiridade. Todos os sistemas mostram um processo sígnico que tende à generalidade, mas sempre envolvendo vagueza e determinação. A diferença entre eles é uma diferença de gradação. O primeiro sistema apresenta apenas 3 gradações entre a vagueza e a generalidade, tendo apenas uma classe intermediária que indica a determinação, quanto o último apresenta 66 gradações entre a vagueza e a generalidade e uma série de classes intermediárias em que vagueza, determinação e generalidade atuam em conjunto de modo a alcançar classes cada vez mais gerais. Isto é, os sistemas com um número maior de classes mostram claramente como o processo é gradativo.

Relação entre a série de cognições explicada pela imagem do triângulo na água e as classes de signos. Fonte: Própria (2020)
Figura 2
Relação entre a série de cognições explicada pela imagem do triângulo na água e as classes de signos. Fonte: Própria (2020)

A gradação nesses sistemas nos faz lembrar da série de cognições de que Peirce fala em sua imagem do triângulo na água, ao final de Questions concerning certain faculties claimed by man (1868, EP 1: 26-27). Ali, a gradação era de vivacidade de consciência, muito semelhante à que vemos no processo descrito pelos sistemas de classes, pois a consciência vem com o crescimento da generalidade.

Mladenov (2019) assinala que Peirce deriva como consequência do experimento do triângulo invertido que o conhecimento se dá através de concepções (aquilo que representa nosso julgamento da experiência) e que o ato cognitivo é, desde o início, relacional, provando, assim, que não haveria uma começo pontual da cognição. Segundo ele,

Todas as combinações de cognições ocorrem primeiro em julgamentos de experiência. As combinações de cognições criam abstrações. Só então, a cognição pode começar. Em seguida, vem a nossa capacidade de combinar cognições (abstrações), em outras palavras, para criar concepções. Uma concepção representa nosso julgamento da experiência. Relacionar as coisas umas com as outras e depois abstraí-las, ou seja, fazer concepções − é como o conhecimento começa. Segundo Peirce, não podemos vincular uma concepção ao absoluto incognoscível, porque uma concepção é sobre significado. Assim, o conhecimento começa como um processo desde o seu início. (Ibid.: 18, grifo do autor)

Chama a atenção que o conhecimento seja, deste modo, não só um processo, mas um processo específico de combinações organizadas, hierarquizadas. Não é uma mera repetição da mesma operação, mas uma combinação em classes. De julgamentos de experiência combinados, temos cognições. Da combinação destas, temos abstrações. Da combinação destas, temos concepções.

Do mesmo modo, quando consideramos a cognição apenas em seus atributos racionais, isto é, na sua expressão mais complexa, com autocontrole e consciência de si, tenderíamos a jamais perceber processos cognitivos em âmbitos externos à humanidade. Contudo, uma vez que i) a maior quantidade das classes de signos permite uma diminuição da diferença entre as classes e ii) que a cognição em Peirce é de caráter sígnico; uma maior quantidade de classes de cognições permite-nos falar em vários tipos de cognições não tão apartadas, de modo que a mente pode ser encontrada sob diferentes formas (mas partindo uma mesma estrutura inicial). Assim, podemos perceber uma continuidade gradativa entre processos cognitivos, que a despeito de sua maior ou menor complexidade, constituem-se, para Peirce, enquanto mente.

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PEIRCE, C. S. (1992–1998) The Essential Peirce. Selected Philosophical Writings. Vol. 1 (1867–1893), ed. by N. Houser and C. Kloesel. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press (Citado como EP 1 seguido por número de página).

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Notas

1. Em The Law of Mind (1892), terceiro artigo da famosa série publicada na Monist, Peirce ressalta a importância de Questions concerning certain faculties claimed by man: “A tendência de considerar a continuidade, no sentido em que a definirei, como uma ideia de importância primordial na filosofia, pode ser convenientemente denominada sinequismo. O presente artigo tem como objetivo principal mostrar o que é o sinequismo e a que ele conduz. Eu tentei, uns bons anos atrás, desenvolver essa doutrina no Journal of Speculative Philosophy (Vol. II.); mas agora sou capaz de melhorar aquela exposição, na qual estava um pouco cego por preconceitos nominalistas.” (Peirce 1892, EP 1: 313, grifos do autor).
2. Do que não deve ser entendido que Peirce negava a existência da consciência ou a possibilidade de seu conhecimento, mas o que ele de fato rechaça é a restrição de fenômenos mentais aos estados conscientes. Dito de outro modo, a mente, sendo um fenômeno externo, não pode ser reduzido a momentos internos do pensamento (vide a definição que Peirce faz de consciência enquanto sentimento, em CP 7.364, 1902).
3. Uma classificação triádica da mente não foi uma invenção peirceana. À sua época, já haviam sido propostos vários modelos de organização da cognição em três categorias (dos quais, inclusive, Peirce tinha conhecimento), e mesmo os de maior destaque, como o modelo kantiano e o platônico, por sua vez, foram desenvolvimentos de tríades mentais prévias (Houser, 1983: 332).
4. Deve-se ter em mente, porém, que o objeto dinâmico não diz respeito a uma realidade externa à qual não temos nenhum acesso (Franco; Borges 2015: 85), como é o caso do objeto externo à mente representado pelo vértice do triângulo. Ambos, contudo, só existem enquanto alvo, mas enquanto espera-se que a correspondência entre signo e objeto seja encontrada in the long run (Ibid.: 88), o objeto externo à mente, uma vez que é inconcebível enquanto cognição, também o é em realidade. À medida que recuamos em direção às cognições determinantes, mais próximas do objeto externo, percebe-se sua perda de vivacidade e generalidade. O início ideal deste processo cognitivo é completamente externo à consciência, é a coisa-em-si, não existe como tal. Isto é, aquilo que existe, só existe em relação à mente. (Peirce 1868, EP 1: 52).
5. C. S. Peirce era químico e estudou com o método de classificação dos animais de Agassiz. (Fisch 1982: W1: xix-xxii)
6. O que nos remonta à lógica da fractalidade, o que também foi apontado por Esposito (2005: 5): “Em uma passagem tardia [CP 4.642], antecipando noções dentro da geometria fractal, [Peirce] continuou a refinar sua noção de continuidade.”
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