DISCUSIÓN

Nicho de artefatos semióticos e externalismo cognitivo

Semiotic Artifacts and Cognitive Externalism

Pedro Atã
Universidade de Free State, Sudáfrica
João Queiroz
Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil

Nicho de artefatos semióticos e externalismo cognitivo

deSignis, vol. 35, pp. 211-227, 2021

Federación Latinoamericana de Semiótica

Recepción: 01 Marzo 2021

Aprobación: 01 Abril 2021

Resumo: Como fornecer um locus de observação para a noção formal de semiose? Temos sugerido que as noções de nicho e artefato são especialmente capazes de atualizar a tese, formulada por Peirce, de que não se pode pensar sem signos externos, associando-a a novos métodos e resultados empíricos e teóricos. Neste artigo, introduzimos a noção de nicho de artefatos semióticos. Em nossa abordagem, cognição é semiose, ação de signos, em um processo que toma a forma de construção de nichos. Em comparação com a noção corrente de artefato, artefatos semióticos são processos semióticos, signos-em-ação. Nichos de artefatos semióticos são espaços estruturados de condições fundamentais para estabilidade da semiose, como situacionalidade (co-localização) e distribuição temporal entre comunidades de agentes, artefatos, e seus ambientes. Nichos de artefatos semióticos oferecem condições para emergência de hábito e surpresa na semiose/cognição. Esta linha de investigação sugere uma semiótica cognitiva baseada em relações dinâmicas, distribuídas e emergentes.

Palavras-chave: semiótica, externalismo cognitivo, nicho cognitivo, construção de nicho, Peirce.

Resumen: ¿Cómo proporcionar un lugar de observación para la noción formal de semiosis? Hemos sugerido que las nociones de nicho y artefacto son especialmente capaces de actualizar la tesis, formulada por Peirce, de que no se puede pensar sin signos externos, asociándola con nuevos métodos y resultados empíricos y teóricos. En este artículo, presentamos la noción de nicho de artefactos semióticos. En nuestro enfoque, la cognición es semiosis, la acción de los signos, en un proceso que toma la forma de construcción de nichos. En comparación con la noción actual de artefacto, los artefactos semióticos son procesos semióticos, signos en acción. Los nichos de artefactos semióticos son espacios estructurados de condiciones fundamentales para la estabilidad de la semiosis, como la situacionalidad (co-ubicación) y la distribución temporal entre comunidades de agentes, artefactos, y sus entornos. Los nichos de artefactos semióticos ofrecen condiciones para el surgimiento del hábito y la sorpresa en la semiosis / cognición. Esta línea de investigación sugiere una semiótica cognitiva basada en relaciones dinámicas, distribuidas y emergentes.

Palabras clave: semiótica, externalismo cognitivo, nicho cognitivo, construcción de nicho, Peirce.

Abstract: How to provide a locus of observation for the formal notion of semiosis? We have been suggesting that the notions of niche and artifact are especially capable of updating the thesis, formulated by Peirce, that one cannot think without external signs, and that they associate this thesis to new empirical and theoretical methods and results. In this paper, we introduce the notion of niche of semiotic artifacts. In our approach, cognition is semiosis, sign-action, in a process that takes the form of niche construction. In comparison with current usages of the term artifact to mean a material “thing” which is produced, semiotic artifacts are processes, signs-in-action. Niches of semiotic artifacts are structured spaces of fundamental conditions for stability of sign-action, conditions such as situatedness (co-localization) and temporal distribution between communities of agents, artifacts, and their environments. Niches of semiotic artifacts offer conditions for emergence of habit and surprise in semiosis/cognition. This line of inquiry suggests a cognitive semiotics framework based on dynamical, distributed and emergent relations.

Keywords: semiotics, cognitive externalism, cognitive niche, niche construction.

1. INTRODUÇÃO: EXTERNALISMO COGNITIVO E SEMIOSE

Fornecer um locus para semiose é um problema persistente na semiótica peirceana. Em 1908, Peirce chamou um interpretante de “efeito sobre uma pessoa” (SS 80-81), admitindo no mesmo parágrafo que referir-se ao interpretante como localizado em uma pessoa tratava-se de uma concessão, uma “colherada para Cérbero”, que ele fazia para que sua teoria pudesse ser compreendida. O pragmaticismo peirceano conflitua, em diversas ocasiões, com a noção típica de pessoa como agente individual independente do seu entorno. O sinequismo (doutrina da continuidade) refuta a ideia de que uma pessoa é completamente idêntica a si mesma, e claramente distinta de outra. Peirce considera o individualismo que uma pessoa atribui a si mesma uma “ilusão vulgar de vaidade” (CP 7.571). Em outra ocasião, Peirce afirma que “o círculo social humano (por mais ampla ou restrita que essa frase possa ser entendida) é uma espécie de pessoa vagamente compacta, em alguns aspectos de posição superior à da pessoa de um organismo individual” (EP 2: 338). Uma versão recente destes resultados, sugeridos pelo pragmaticismo de Peirce, é formulada no domínio da cognição distribuída, no qual o locus da cognição não está no cérebro ou no sistema nervoso de uma pessoa individual, mas em sistemas cognitivos distribuídos que envolvem diversos agentes e artefatos situados (Davies e Michaelian 2016).

Cognição distribuída, situada e incorporada são posições teóricas, paradigmas, abordagens e/ou domínios em filosofia da ciência cognitiva. Elas defendem que processos cognitivos, como ocorrem “na natureza” (in the wild, Hutchins 1995), não equivalem ao processamento de informação no interior de sistemas, ou agentes, cognitivos (sistema nervoso, cérebro, ou mente). A tese de que a cognição não acontece no interior do agente é conhecida como externalismo cognitivo ativo, em contraste com o cognitivismo clássico, ou internalismo (Clark 1998, Menary 2010). Muitas posições externalistas enfatizam o papel central exercido na cognição por sistemas motores e perceptivos, propriocepção, artefatos não-biológicos, e ambientes socio-técnicos que envolvem múltiplos agentes e instituições.

Já argumentamos anteriormente, em diversos trabalhos, que Peirce pode ser considerado um precursor do externalismo cognitivo e das teses de situacionalidade e distribuição cognitiva (Atã e Queiroz 2013, 2014, 2015, 2016, 2019; Atã, Bitarello e Queiroz, 2014). A semiótica de Peirce não isola, em domínios e sub-domínios, processos cognitivos e semióticos (W 1:173). A tese “cognição é semiose”, ou “ação dos signos”, surge, na obra de Peirce, associada à construção de um programa filosófico anti-cartesiano, em uma série de artigos publicados entre 1868 e 69, no Journal of Speculative Philosophy (W 2:211-42; Bernstein 2010: 145). A tese integra, em uma mesma estrutura teórica, cognição, experiência situada, ação dos signos, e realidade. Para Peirce, mente, semiose e manipulação de artefatos situados estão intimamente conectados.

A tese de que a cognição é semiose requer um foco em processos semióticos distribuídos, não em substratos materiais (ou imaterais) específicos, estáticos ou atemporais. Em especial, semiose e experiência não se encontram no agente, no interior de sua mente ou cérebro, mas em comunidades de agentes, e em um universo impregnado de signosem-ação. Entre diversas posições, conceitos e modelos sobre cognição situada e distribuída, temos sugerido que a noção de construção de nicho cognitivo é especialmente capaz de atualizar a tese formulada por Peirce, no século XIX, de que não se pode pensar sem signos externos. Anteriormente, associamos nichos cognitivos a disponibilização situada de hábitos semióticos (Atã e Queiroz 2016) e sugerimos que a semiose pode ser descrita como construção de nicho cognitivo (Atã e Queiroz 2019). Esta linha de investigação sugere uma semiótica cognitiva baseada em relações ambientais, dinâmicas, distribuídas e emergentes, em contraposição, portanto, a qualquer semiótica cognitiva centrada em agentes individuais e unidades estáticas e autônomas de significado, em que agentes são tutores ou controladores da ação de signos.

Neste trabalho, reexaminamos essa linha de desenvolvimento, e sugerimos que a tese de que semiose é construção de nicho cognitivo deve ser ajustada para nicho de artefatos semióticos. Em nossa abordagem, cognição é semiose, localizada em nichos de artefatos semióticos na forma de construção de nichos. Nas páginas seguintes, introduzimos a noção de nicho, em três versões — ecológica, cognitiva, e semiótica. Em seguida, reinterpretamos a noção de artefato cognitivo (elemento central da noção de nicho cognitivo) à luz da semiótica de processos de Peirce. Por fim, sugerimos a noção de nicho de artefatos semióticos, e exploramos algumas implicações.

2. NICHO ECOLÓGICO

A palavra “nicho” evoca a imagem de um recesso arquitetônico onde uma estátua é exibida, um espaço que pode ser ocupado, esculpido, e onde um elemento cumpre uma função. Em ecologia, o conceito de nicho ecológico descreve as combinações de fatores ambientais que permitem às espécies existirem em uma certa região física ou em uma certa comunidade biótica, bem como os efeitos que as espécies têm sobre esses fatores ambientais (Peterson 2011: 14). Em sua definição clássica, por G. Evelyn Hutchinson, um nicho ecológico é um hipervolume n-dimensional, cujas dimensões são fatores ecológicos significativos para o sucesso de uma espécie (Hutchinson 1957). O conceito assemelhase ao de contexto ambiental e/ou ecológico de um organismo, que é o seu entorno, o que torna possível e provável sua existência. Existe uma duplicidade na compreensão de nicho ecológico, que pode ser definido como “endereço” de um organismo, e como sua “profissão” (Hoffmeyer 2008). Essa duplicidade ilustra um traço importante do conceito de nicho ecológico, podendo ser generalizado para qualquer conceito de nicho — ele integra situacionalidade (co-localização entre agente e ambiente) e estabilidade de ação (atividades típicas de um agente neste ambiente), desafiando separações dualistas entre atividade e espaço material, entre agente e ambiente.

A noção de nicho ecológico permite estabelecer uma estreita interdependência ontológica, e bidirecional, entre organismo e ambiente. Para Lewontin e Levins (1997), não há organismo sem ambiente, ou ambiente sem organismo. Construção de nicho ecológico é um processo de coevolução entre organismos e ambientes. A Teoria de Construção de Nicho (Odling-Smee, Laland, Feldman 2003; Scott-Phillips et al. 2013) está baseada na ideia de que organismos transformam ambientes, e que processos ambientais transformam organismos. De um lado, todo comportamento animal é criador de um ambiente e, potencialmente, transformador desse ambiente. Isso inclui tanto a transformação do ambiente com efeitos visíveis em grande escala (por exemplo, castores constroem barragens e mudam paisagens e ecossistemas inteiros), quanto casos sutis de transformação ambiental (por exemplo, animais de sangue quente que criam constantemente uma fina camada de ar quente e úmido ao seu redor — seu micro-ambiente individual constantemente mantido [Lewontin and Levins 1997: 97]). O ambiente acumula os resultados do comportamento dos organismos e as transformações ambientais são legadas às gerações futuras. Isso constitui um sistema de herança diferente da herança genética. Por outro lado, mudanças em um ambiente transformam as pressões seletivas sobre organismos e alteram o hipervolume de fatores ecológicos que definem os padrões de atividade típicos de um organismo.

Organismos e ambientes coevoluem como resultados emergentes de um processo auto-organizado de construção de nichos. As noções de nicho e de construção de nicho enfatizam como organismos e ambientes são interdependentes, tanto de uma perspectiva dinâmica, como partes codependentes de um processo evolutivo, quanto de uma perspectiva situada, sempre necessariamente co-localizados.

3. NICHO SEMIÓTICO

Jesper Hoffmeyer (2008) criticou o uso dessemiotizado do conceito de nicho ecológico. Para ele, não é suficiente descrever o conjunto de fatores ecológicos dos quais depende um organismo. É necessário considerar como o organismo, no interior do processo dinâmico de construção de nicho, interpreta seu ambiente. Os fatores ecológicos que constituem o nicho do organismo, neste caso, não são apenas fatores limitantes para sua vida plena. Eles são ativamente interpretados pelos organismos. Este reenquadramento pode ser considerado uma semiotização da noção de nicho ecológico. Hoffmeyer usou o termo nicho semiótico para se referir ao mundo de sinais (cues) no entorno de animais (ou espécies) que eles precisam interpretar para viver plenamente (Hoffmeyer 2008: 7).

A relação semiótica entre organismo e ambiente é bidirecional. Por um lado, o organismo deve ser capaz de interpretar informações do ambiente; por outro, fatores ecológicos relevantes para o organismo devem fornecer pistas que o organismo é capaz de interpretar. Hoffmeyer considera nicho semiótico como a contraparte externa do conceito de Umwelt (Brentari 2015). Enquanto Umwelt se refere a como um organismo percebe seu ambiente, nicho semiótico se refere às informações que um ambiente é capaz de disponibilizar para o organismo. O conceito de nicho semiótico situa o organismo em seu ambiente em uma dimensão semiótica.

4. NICHO COGNITIVO

Pesquisas sobre a evolução da cognição (Tooby e DeVore 1987), da cultura (Laland, Odling-Smee e Feldman 2000), e da linguagem (Bickerton 2009), permitiram que os conceitos de nicho e construção de nicho fossem “adaptados”, da ecologia e evolução, para a filosofia da ciência cognitiva (Clark 2005). Tooby e DeVore (1987) foram os primeiros a propor o termo “nicho cognitivo”: um nicho ecológico específico que os antepassados humanos teriam construído, em alguma fase da nossa evolução histórica, que explicaria uma série de características da nossa espécie a partir de uma origem comum, como comportamento organizado complexo, uso de linguagem, aprendizado e transmissão cultural, e divisão de trabalho. Pinker (2010) refinou e expandiu o conceito para abordar “a coevolução da cognição, linguagem e sociabilidade”. O conceito de nicho cognitivo passou por uma grande mudança de uso com Clark (2005). Enquanto Pinker considerou a linguagem uma adaptação do nicho cognitivo, Clark abordou a linguagem como o próprio nicho cognitivo:

A linguagem, tenho tentado mostrar, é entendida como uma estrutura material construída por animais (nicho cognitivo), que altera sistematicamente as cargas computacionais envolvidas na aprendizagem, raciocínio e autocontrole. A esse respeito, a linguagem está para o pensamento como um nicho auto-construído de aprimoramento de comportamento está para seu ocupante animal. (Clark 2005: 264-265)

Nos textos de Clark, nicho cognitivo está relacionado à materialidade dos artefatos e estruturas nos quais a cognição é distribuída. Essa compreensão material de nicho cognitivo se adequa à visão externalista do autor sobre mente estendida (Clark e Chalmers 1998). Para Clark, humanos são ciborgues cognitivos, simbiontes “cujas mentes, e eles próprios, encontram-se distribuídos em circuitos biológicos e não biológicos” (Clark 2004: 3). Clark define construção de nicho cognitivo como

[…] o processo pelo qual animais constroem estruturas físicas que transformam os espaços de problemas de maneiras que ajudam (ou às vezes impedem) o pensamento e o raciocínio sobre algum domínio-alvo ou domínios-alvo. Essas estruturas físicas combinam-se com práticas transmitidas culturalmente, apropriadas para melhorar a solução de problemas e, nos casos mais importantes, para tornar possíveis novas formas de pensamento e raciocínio. (Clark 2008: 62)

Uma perspectiva diferente sobre “construção de nicho cognitivo” é apresentada por Lorenzo Magnani. Para ele, humanos são ‘caçadores de oportunidades’ (chance seekers) (Magnani 2007; Bardone 2011), “continuamente engajados em um processo de construção e extração de possibilidades latentes para descobrir informações valiosas, novas, e conhecimento” (Magnani 2007: 918). Ele enfatiza a construção de nicho cognitivo como um processo pelo qual criamos ‘oportunidades’ (affordances). Nichos cognitivos são definidos como conjuntos de possibilidades, e descritos ‘como exploração humana de recursos externos e incorporação desses recursos nos sistemas cognitivos’ (Magnani 2009: 332).

5. ARTEFATOS E PROCESSOS SEMIÓTICOS

Enquanto Hoffmeyer fala sobre pistas em um nicho semiótico, Clark fala sobre estruturas materiais, como ferramentas ou artefatos cognitivos. O conceito de nicho semiótico de Hoffmeyer concentra-se nas capacidades de atuação entre agente e ambiente, mediadas por pistas ambientais interpretadas. Já o conceito de nicho cognitivo, conforme usado por Clark, concentra-se nos artefatos como extensões materiais de um agente (“teoria da mente estendida” [Clark e Chalmers 1998]). Estamos interessados, aqui, tanto na semiotização da noção de nicho proposta por Hoffmeyer, quanto na abordagem de Clark em artefatos que incorporam o processo cognitivo. A noção de artefato é central em cognição distribuída e situada. Artefatos cognitivos são estruturas materiais que distribuem e externalizam processos cognitivos (Norman 1993; Hutchins 1995, 2014). Entretanto, a semiótica de Peirce requer que a noção de artefato cognitivo seja interpretada sob premissas específicas. Ela baseia-se em uma epistemologia e uma ontologia de processos, não de substâncias. Um artefato semiótico deve ser definido como um processo, não como uma unidade material estática ou uma “coisa”.

Processos são ocorrências coordenadas de mudanças na realidade (Rescher 1996). Uma ontologia de processos salienta propriedades relacionais e emergentes, e enfatiza a mudança como fundamento ontológico, ao invés da estabilidade e identidade. A noção contrasta com uma ontologia de substâncias. Substâncias são estáveis, unidades internamente indiferenciadas de “blocos de realidade”. Uma ontologia de substâncias salienta propriedades como aquelas intrinsecamente integradas por substâncias, e considera a estabilidade como mais relevante que a mudança (Bickhard 2011; Seibt 2012). Uma ontologia de processos salienta a centralidade do tempo e a onipresença da mudança. Ao considerar a mudança como fundamento ontológico ubíquo, a questão “por que mudanças ocorrem?” torna-se menos relevante do que a questão “por que estabilidade ocorre?” ou “por que há estabilidade ou regularidade na mudança?”.

Na semiótica peirceana, a noção que capta mais precisamente essa preocupação processualista com a ocorrência de estabilidades é a noção de hábito (Atã e Queiroz 2016, Määttänen 2010). Um hábito é um padrão estável de ação, um “padrão de constrangimentos”, e pode assumir a forma de uma “proposição condicional” em que certas coisas deveriam acontecer sob determinadas circunstâncias (EP 2.388), como uma “regra de funcionamento” (CP 5.397, CP 2.643), uma disposição para agir de determinada maneira sob determinadas circunstâncias, ou, simplesmente a “permanência de alguma relação” (CP 1.415). Um hábito é uma regularidade que possui algum grau de estabilidade. Na filosofia peirceana, a aquisição de regularidades estáveis é descrita como um processo de “incorporação de hábitos”, que é probabilístico e cumulativo:

... todas as coisas têm tendência para adotar hábitos. Essa tendência, em si, constitui uma regularidade e está continuamente aumentando. Ao olhar para o passado, estamos olhando para períodos em que uma tendência era cada vez menos estabelecida. Mas sua própria natureza essencial é crescer. É uma tendência generalizante, e faz com que as ações no futuro sigam alguma generalização das ações passadas; e essa tendência é ela mesma algo capaz de generalizações semelhantes; e, portanto, é autogenerativa. (EP 1: 277)

No núcleo da noção de semiose há uma dinâmica entre mudança e estabilidade, por meio do acúmulo de regularidades probabilísticas autogeradas. Para Peirce, “o que algo significa é simplesmente os hábitos que algo envolve” (CP 5.400). Uma consequência direta é que a semiótica de Peirce não se concentra no “signo” como uma unidade substancial, mas na “semiose”, no processo de “ação do signo” (Fisch 1986: 330). O “significado”, portanto, não é uma propriedade do signo, mas da ação do signo. Quando nos referimos aos artefatos semióticos no centro da semiótica cognitiva situada de Peirce, não estamos nos referindo a estruturas materiais, ou substâncias, mas a seus hábitos de ação. Um artefato semiótico é sempre observado como um artefato-em-ação.

Para Rosenthal (1994: 27), significados devem ser definidos como estruturas relacionais que emergem de padrões de comportamento. O termo “emergência” deve ser tratado tecnicamente, não se referindo apenas à ideia de “criação de novas propriedades” (Queiroz e El-Hani 2006a,b). Em um sentido técnico, propriedades “emergentes” podem ser compreendidas como uma classe de propriedades de alto nível (macroestruturais) relacionadas, de uma determinada maneira, à microestrutura de um sistema. Muitos investigadores defendem que o significado deve ser considerado em termos de propriedades emergentes em sistemas complexos, adaptativos e autoorganizados (ver Loula et al. 2010, Port 2009, Bickhard 2007, Briscoe 1998, Merrell 1997). Conforme Kelso (1995: 1) afirma, “símbolos, como redemoinhos em um rio, podem exibir padrões relativamente estáveis ou estruturas que perduram por certo intervalo de tempo; mas não são estáticos nem atemporais”.

A semiose é uma propriedade emergente (Queiroz e El-Hani 2006a). Ela corresponde a um padrão de estabilidade emergente que resulta da ação de três termos interrelacionados (Signo, Objeto e Interpretante), não redutível a propriedades individuais de qualquer um dos termos. Signo, Objeto e Interpretante são papéis funcionais desse padrão relacional triádico e irredutível. A propriedade triádica que emerge dessa relação é um fator de auto-organização, ou auto-correção, entre Signo, Objeto e Interpretante. De acordo com essa descrição, a semiose é uma relação consistente entre variações no Objeto e efeitos correspondentes no Interpretante, através do Signo. Isso corresponde a um processo comunicacional em que o comportamento de um intérprete (Interpretante) é constrangido pelo Signo, de modo a estar em uma coordenação com o hábito (“regra de ação”) de um Objeto (Queiroz et al. 2008).

A semiose, em uma ontologia de processos, sugere um ponto de vista situado e incorporado. Como um processo, a semiose só existe através da determinação de efeitos no tempo e no espaço. Se um signo age, ele precisa estar incorporado materialmente, ou pelo menos, resultar de uma operação anterior com signos materialmente instanciados (Emmeche 2003: 317). Um componente crucial, em termos explanatórios, é que a semiose não inclui apenas conceitos, mas também eventos e qualidades. Ela baseia-se numa grande variedade de padrões morfológicos. O espaço morfológico de processos semióticos no qual sistemas cognitivos estão incorporados incluem proto-símbolos (estruturas quasi-simbólicas) e variações de signos indexicais, além de diversos processos icônicos (imagens, diagramas e metáforas). O ícone é um importante componente na concepção semiótica da mente, porque incorpora um tipo de significado especialmente dependente do material do qual o signo é feito (Atã e Queiroz 2013).

Artefatos semióticos são signos-em-ação materialmente instanciados, e estabilizados através de sua incorporação material. Há uma notável incompatibilidade entre uma noção corrente de artefato, como substância ou estrutura material transformada pela ação humana, e a noção de artefato semiótico. Os artefatos materiais, que situam e distribuem os processos de significado e cognição, não são “coisas”, mas processos semióticos, signosem-ação. Linguagem, instrumentos de observação e medição, mapas e diagramas, notações musicais, modelos científicos e matemáticos, algoritmos e computadores, acoplamentos e extensões corporais como óculos, são signos-em-ação (hábitos emergentes), estabilizados e instanciados em estruturas físicas. Como signos-em ação, eles estão situados em contextos materiais e temporais como produtores de efeitos regulares nestes contextos.

Segundo Kirsh (2009: 297), “Peirce mencionou pela primeira vez essa ideia no final do século XIX — de que as pessoas usam objetos externos para pensar — quando afirmou que um químico pensa tanto com seus tubos de ensaio como com caneta e papel”. Nesta perspectiva, mente é semiose em uma forma materialmente situada e a cognição é o desenvolvimento de artefatos semióticos nos quais a mente/semiose está incorporada como uma capacidade para produzir interpretantes, conforme enfatizado por Skagestad (1999, 2004) e Ransdell (2003) sobre a noção de “inteligência aumentada”. A cognição assume a forma de desenvolvimento de artefatos semióticos. Processos semióticos adquirem hábitos de atuação material, e estabilizam-se através de artefatos materiais, não como substâncias que incorporam o processo semiótico, mas como o próprio processo em sua forma materialmente estabilizada. Conforme as premissas de uma ontologia de processos, tal estabilidade é dinâmica e contingente, dependente de condições de estabilidade distribuídas em um ambiente de atuação. Podemos, portanto, tratar cognição como construção de nichos de artefatos semióticos, em que a noção de artefato se refere a processos semióticos estabilizados e instanciados materialmente, e a noção de nicho se refere a como artefatos adquirem e perdem hábitos estáveis de ação de acordo com fatores de situacionalidade e coevolução.

6. NICHOS DE ARTEFATOS SEMIÓTICOS

Em outro artigo (Atã e Queiroz 2019), e baseados na definição de Andy Clark (2005) já mencionada anteriormente, argumentamos que um nicho cognitivo pode ser definido como um conjunto materialmente estendido de espaços de problemas que demandam, ou selecionam, um certo número de habilidades cognitivas. Exemplos de nichos cognitivos mencionados por Clark incluem, além da linguagem, estruturas arquitetônicas (Globe Theater, descrito por Tribble [2005] como um facilitador material do teatro elisabetano) e utilização de ambientes materiais como espaços para solução de problemas (bartenders usam o arranjo material de copos e taças para memorizar as bebidas que precisam ser preparadas [Clark 2008: 62]).

A descrição de nicho cognitivo introduzida acima baseia-se em um vocabulário técnico, e conceitual, que resulta da teoria de solução situada de problemas (Kirsh 2009). Resolver problemas consiste em mudar de um estado de problema inicial a um estado de problema final (objetivo) de acordo com regras e restrições que governam mudanças de estado em um espaço de estados de problemas possíveis (cf. Newell e Simon 1972). Solução situada de problemas é um domínio que reenquadra a teoria clássica, cognitivista, de solução de problemas, enfatizando a atividade situada de agentes que resolvem problemas utilizando recursos ambientais disponíveis. Na solução situada de problemas, resolver problemas não equivale a realizar operações simbólicas sobre espaços de problemas abstratos, mas realizar ações físicas sobre ambientes materiais. Na definição de Clark, nichos cognitivos são estruturas e ambientes materiais que estendem espaços de problema, modificando a capacidade de agentes de resolver problemas.

Notem que, em uma solução situada de problemas, e de acordo com a noção de construção de nicho cognitivo, há uma preocupação tanto com a experiência situada de um agente em seu ambiente, quanto com um espaço abstrato de estados de problemas possíveis. A preocupação com experiência situada, e com possibilidades de ação, também é um aspecto da semiótica de Peirce, em especial sobre como está baseada em um sistema de categorias lógico-fenomenológicas.

Podemos semiotizar a noção de nicho cognitivo tratando nichos cognitivos como nichos de artefatos semióticos. Ao fazer isso, baseamos a situacionalidade cognitiva da noção de nicho nas categorias lógico-fenomenológicas da semiótica de Peirce, e tratamos a atividade cognitiva (“solução de problemas”) como ação triádica de signos, ou semiose. Este tratamento tem diversas implicações. A semiose possui diversas propriedades que a solução situada de problemas não possui: irredutibilidade triádica (EP 2:171; CP 5.484; ver Brunning, 1997; Burch, 1997), processualidade (CP 5.484; ver Atkin, 2016: 132; Atã e Queiroz, 2019), irreversibilidade (CP 5.253, 5.421), continuidade (MS 875; Parker, 1998: 75, 147), tendência ao infinito (EP 2:478–83; CP 2.92, 2.303; Atkin, 2016: 136- 140), vagueza (CP 5.447), generalidade (CP 6.172; Potter, 1997: 89), crescimento (EP 1: 313; 2:10; 2:937).

Uma implicação importante está relacionada à temporalidade da semiose. Conforme explorado na seção anterior, um artefato semiótico deveria ser entendido rigorosamente em termos de processos, como capacidades materialmente instanciadas para gerar efeitos regulares. Neste caso, a distribuição da atividade cognitiva entre agentes e artefatos não é entendida em termos de fluxo de informações para solução de um problema (como, por exemplo, em Davies e Michaelian 2016), mas em termos de continuidade, que Peirce chama de sinequismo, e de crescimento de hábitos. A semiose é distribuída entre diversos artefatos (e agentes) pois desenvolve-se como acúmulo e autoorganização de padrões estáveis de determinação de efeitos entre instâncias materiais distintas. Esta distribuição é temporal, baseada na determinação de efeitos sucessivos em cadeias de interações. Contra qualquer interpretação atemporal da ideia de um espaço abstrato de estados de problema pelo qual se navega, compreendemos a atividade de agentes cognitivos como o comportamento habitual de artefatos semióticos em uma trajetória de interações. Esse comportamento habitual é dependente de um processo de coevolução entre artefatos e seus ambientes de atuação ― construção de nichos de artefatos semióticos ― pelo qual artefatos adquirem, desenvolvem, e eventualmente perdem, capacidade de atuar de maneira estável.

7. NICHOS DE ARTEFATOS SEMIÓTICOS OFERECEM CONDIÇÕES PARA EMERGÊNCIA DE HÁBITO E SURPRESA

Uma das definições de hábito, para Peirce, é de prontidão (readiness) para ação sob circunstâncias dadas (CP 5.480), ou ainda uma disposição (MS [R] 671:6-7). A noção de hábito ajuda a caracterizar como a ação de signos (desenvolvimento de artefatos semióticos) se desenvolve no tempo, adquirindo, perdendo, e transformando disposições e regularidades. Semiose (e hábito) se desenvolvem como trajetórias dinâmicas de generalizações de passados de interações, e de previsões sobre seus resultados futuros. Disposições para ação são situadas e relacionais, e necessitam de circunstâncias para ação (Määttänen 2010). A situacionalidade de um agente ou artefato é indissociável da distribuição temporal de uma cadeia de interações semióticas. A semiose é parte de um universo impregnado de signos que evolui (Hausman 1993). Assim como um nicho ecológico é caracterizado como um hipervolume de condições ecológicas e ambientais para o sucesso de um organismo ou espécie, a noção de nicho de artefato semiótico permite caracterizar as condições para que a ação de signos (semiose) se desenvolva de forma estável.

A noção de nicho de artefatos semióticos se refere a um espaço estruturado de condições fundamentais para estabilidade da semiose, como situacionalidade (colocalização) e distribuição temporal entre comunidades de agentes e seus ambientes. Se artefatos semióticos equivalem à semiose estabilizada em instanciações materiais, nichos de artefatos semióticos referem-se às condições dinâmicas de estabilidade destes processos em seus contextos ambientais e históricos. Espaços conceituais (Boden 1999), mídias, escolas e movimentos artísticos, disciplinas e domínios de conhecimento, podem ser descritos como nichos de artefatos semióticos. O que ganhamos, ao descrevê-los assim, é que os associamos a um domínio explanatório de fenômenos de significado baseado em processos auto-organizados, suas condições de estabilidade e perturbação. Nichos de artefatos semióticos: (i) possibilitam comportamento semiótico estável de artefatos semióticos, que se acumulam e se modificam de acordo com regras de ação, (ii) explicam como artefatos semióticos adquirem condições para manter sua estabilidade frente a perturbações, (iii) criam condições lógicas (frequência indutiva), em um ambiente, para inferências preditivas sobre atuação futura de artefatos semióticos, isto é, nichos permitem a ocorrência de expectativas sobre produções de interpretantes, (iv) criam condições normativas para caracterizar interpretantes da atuação de artefatos semióticos como estando dentro ou fora de expectativas, isto é, nichos permitem que certos artefatos e suas formas de comportamento sejam experimentados como familiares àquele nicho e outros como surpresas naquele nicho.

Dito de outra forma, nichos de artefatos semióticos oferecem condições iniciais e condições de contorno para emergência de semiose habitual (artefatos materialmente estáveis e que se comportam de maneira previsível), e por consequência, de surpresas (quebras de hábito na atuação de artefatos semióticos).1 Essa formulação é uma semiotização da noção de que nichos cognitivos estendem materialmente espaços de problemas, possibilitando novas habilidades e comportamentos cognitivos. A regulação de espaços de problemas por regras, em nossa descrição, é tratada como semiose habitual, e o aparecimento de novos artefatos semióticos, é tratado como surpresa. Em uma semiótica cognitiva peirceana orientada por uma ontologia e epistemologia de processos, em que a interação dinâmica entre estabilidade e instabilidade tem primazia explanatória sobre qualquer noção atemporal de substâncias materiais e/ou espaços estáticos, as noções de hábito e surpresa devem ser consideradas centrais para entender fenômenos de significado (Atã, 2020). (Abordagens recentes em ciência cognitiva e filosofia da mente têm enfatizado a ubiquidade e centralidade de processos de predição e surpresa, e.g., Friston 2010, Clark 2015). Isto é, a produção de interpretantes por artefatos semióticos é temporalmente distribuída, depende de generalizações do passado e predições do futuro, e é centralmente relacionada às condições de hábito e surpresa em um nicho que se desenvolve no tempo.

8. SEMIOSE = CONSTRUÇÃO DE NICHO DE ARTEFATOS SEMIÓTICOS

Em Atã e Queiroz (2019) sugerimos que nichos cognitivos podem ser considerados o locus da semiose. Aqui, ajustamos essa tese para nichos de artefatos semióticos. Ao sugerir nichos de artefatos semióticos como locus da semiose, atualizamos a “colherada para Cérbero” de Peirce, com vantagens importantes. Em uma delas, o debate mais recente sobre externalismo cognitivo é orientado por uma literatura científica robusta em termos de evidências empíricas (Clark 2008), baseada no desenvolvimento de métodos experimentais em antropologia cognitiva (Hutchins 1995), psicologia experimental (Kirsh 2009), biorrobótica (Laschi e Mazolai 2016), modelagem de sistemas dinâmicos (Chemero 2009,Wheeler 2005). Outra vantagem é que a noção de construção de nicho cognitivo também recruta uma literatura, especialmente em filosofia da biologia, sobre processos evolutivos, centrado na noção de construção de nicho ecológico e de evolução cultural (Odling Smee et al. 2003, Laland 2017).

Em nossa abordagem, localizar a semiose em nichos de artefatos semióticos (e não em agentes individuais ou em seus sistemas nervosos) equivale a afirmar que cognição é desenvolvimento de artefatos semióticos externos. Deixamos de caracterizar o “pensamento” como uma atividade individual, interna ao agente, e não separamos “pensar” e “agir”. Quando afirmamos que cognição, ou semiose, não estão localizados no agente individual, estamos sugerindo que a noção de agente individual não é a escala de observação mais apropriada para localizar interpretantes e explicar como eles são produzidos. O pensamento exige situacionalidade e distribuição temporal — o pensamento “puramente interno” (manipulação de modelos mentais [Johnson-Laird 1980]) é contingente e apenas uma etapa possível, em um processo de signos incorporado na forma de artefatos em atuação, e portanto externo e comunitário.

Pensar com artefatos externos cria condições para que eles se desenvolvam no tempo, atualizando a freqüência de seus hábitos de ação, mantendo hábitos de ação, ou sujeitando esses hábitos a situações de surpresa e transformação. Assim como um comportamento animal modifica, de alguma maneira, seu ambiente no tempo e para as gerações posteriores, qualquer utilização de um artefato semiótico modifica, ainda que de maneira imperceptível, a disponibilidade de expectativas e regularidades materialmente instanciadas para interpretantes futuros. Semiose é construção de nichos de artefatos semióticos. Um processo semiótico é construído através de restrições, freqüências, possibilidades e acasos, que estão co-localizados e temporalmente distribuídos em ambientes repletos de artefatos. Ao mesmo tempo, processos semióticos constroem esses ambientes, mantendo sua estabilidade ou transformando-a. A cognição depende das histórias evolutivas de especialização de ambientes e estruturas (construção de nicho).

9. CONCLUSÃO

Nossa abordagem fornece uma direção processualista para semiótica cognitiva — processos semióticos/cognitivos acontecem em nichos de artefatos semióticos, não nas “cabeças” de agentes. A Teoria da Construção de Nicho, conforme exibida aqui, atualiza a teoria da mente de Peirce, enfatizando seus aspectos situacionais, distribuídos, e dinâmicos. As noções de nicho e de artefato, aplicadas à cognição distribuída, funcionam como uma atualização empírico-teórica da tese anti-cartesiana, formulada há cerca de 150 anos por Peirce, de que não se pode pensar sem signos externos (W 2:211-42). A filosofia de processos de Peirce concebe a semiose como um padrão emergente de organização e estabelecimento de hábitos, e, em nossa abordagem, como desenvolvimento de artefatos semióticos em um processo situado e coevolutivo de construção de nichos.. A semiose é descrita como estabilidade emergente, probabilisticamente adquirida, entre Signo, Objeto e Interpretante. Esse processo possui extensão espaço-temporal, é situado e incorporado, cumulativo e auto-organizado, e pode ser observado, numa perspectiva comunicacional, como um padrão emergente irredutível de Signos em ação. Trabalhos recentes sobre cognição distribuída e situada podem fornecer à semiótica cognitiva de Peirce, e suas principais premissas sobre a mente como signos externos em ação, uma bateria empiricamente robusta de novos métodos e resultados. Baseados nestes desenvolvimentos, podemos afirmar que a semiótica concebe a mente como um processo distribuído, situado e enativo (enactive). Similarmente, a Teoria da Construção de Nicho, que é uma parte importante da síntese evolutiva estendida, é um avanço recente em biologia, capaz de atualizar a visão evolucionária semiótica de Peirce.

A noção de nicho cognitivo permite considerar a cognição como um processo de desenvolvimento em que agentes, artefatos e ambientes são codependentes. Aqui, compreendemos nichos cognitivos como nichos de artefatos semióticos. Ao fazer isso, baseamos a situacionalidade e distributividade cognitiva nas premissas processualistas da filosofia de Peirce, como continuidade e distribuição temporal, bem como nas categorias lógico-fenomenológicas da semiótica de Peirce, e tratamos a atividade cognitiva (“solução de problemas”) como ação de signos, ou semiose, materialmente instanciada na forma de desenvolvimento de artefatos em um nicho. Em nossa abordagem, nichos de artefatos semióticos devem participar da explicação sobre como a semiose adquire e mantém estabilidade de ação, o que tratamos como uma dinâmica entre hábito e surpresa. Este objetivo está alinhado com uma epistemologia processualista que considera mudanças como ubíquas e coloca seu foco sobre a explicação de estabilidades (incluindo estabilidade na mudança).

Quais as possíveis implicações relacionadas ao tratamento da semiose como cognição e como construção de nichos de artefatos semióticos? Um programa de investigação em semiótica cognitiva que examina nichos de artefatos semióticos como locus da cognição/semiose deve ser capaz de integrar proposições e teses formuladas em um domínio de especulação filosófica com avanços teóricos e empíricos em ciência cognitiva (cognição situada e distribuída) e evolução (teoria de construção de nicho). Trata-se da formulação de um programa de investigação pragmatista em filosofia da mente e ciência cognitiva, alinhado à noção de construção de nicho, e inaugurado pela tese peirceana “mente como semiose” — mente externalizada e temporalmente distribuída na ação de signos. Nossa abordagem deve integrar o que tem sido chamado de “virada pragmática” (pragmatic turn) em ciência cognitiva (Engel et al. 2016). Um programa de investigação baseado em nichos de artefatos semióticos deve reenquadrar a discussão sobre materialidade e situacionalidade da cognição, em termos processuais: artefatos cognitivos podem ser descritos como atividade estabilizada de signos em ação. Tal paradigma concentra-se na ação materialmente instanciada de signos, ao invés de materialidade (estática). A noção de nicho de artefato semiótico deve fornecer novos problemas de pesquisa relacionados a abertura, estabilização e transformação de nichos, incluindo uma nova abordagem de propriedades, relações e dinâmicas de nichos como robustez, disponibilidade de recursos e partição de recursos em nichos de artefatos semióticos.

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Notas

1. Sobre a ideia de que a semiose é emergente, e de que a emergência envolve condições iniciais e condições de contorno, ver Queiroz e El-Hani (2006a, b).
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