As diferentes sensações de um b-o-r-d-a-d-o em uma investigação feminista radicalmente qualitativa
Las diferentes sensaciones de un b-o-r-d-a-d-o en una investigaciónfeminista radicalmente cualitativa
The Diverse Sensations of an E-m-b-r-o-i-d-e-r-y in a RadicallyQualitative Feminist Inquiry
As diferentes sensações de um b-o-r-d-a-d-o em uma investigação feminista radicalmente qualitativa
H-ART. Revista de historia, teoría y crítica de arte, núm. 6, pp. 130-149, 2020
Universidad de Los Andes
Recepção: 27 Junho 2019
Aprovação: 15 Novembro 2019
Resumo: .Este é um artigo feminista e radicalmente qualitativo, que faz uso de subversões de linguagem, buscando coe- rência entre forma e conteúdo. Conto como uma inves- tigação feminista radicalmente qualitativa sobre, do e com o corpo, arte e pedagogia, levou-me à Investigação Baseada nas Artes (IBA), e à produção do livro Para Mu- lheres Porcas, Malvestidas e Descabeladas. No livro, o b-o--r-d-a-d-o é a priori uma estratégia estética. Mas apóssua manufatura, reconheço no b-o-r-d-a-d-o um proces-so de reflexão sobre feminilidade, despatriarcalização deancestralidade, provocações sensoriais e afetivas, e deoutras possibilidades de construção de pensamentos e corpos
Palavras-chave: feminismo, investigação baseada nas artes, pesquisa qualitativa, arte, corpo.
Resumen: Este es un artículo feminista y radicalmente cualitativo, que hace uso de subversiones de lenguaje, buscando coherencia entre forme y contenido. Cuento como una investigación feminista radicalmente cualitativa sobre, con y de cuerpo, arte y pedagogía, me llevó a la Investigación Basada en las Artes (IBA), y a la producción del libro Para Mujeres Puercas, Malvestidas y Despeinadas. En el libro, el b-o-r-d-a-d-o era una estrategia estética. Más após la fabricación del libro, reconozco en el b-o-r- d-a-d-o un proceso de reflexión sobre feminidad, despa- triarcalización de ancestralidad, provocaciones sensorial y afectivas, y de otras posibilidades de construcción de pensamientos y cuerpos.
Palabras clave: feminismo, investigación basada en las artes, investigación cualitativa, arte, cuerpo.
Abstract: This is a feminist and radically qualitative article, which makes use of language subversions, seeking consistency between form and content. I count as a radically quali- tative feminist inquiry on, with and in the body, art and pedagogy, led me to the Art-Based Research, and to the production of the book For Grossy, Poorly Dressed and in a Bad Day Hair Women. In the book, e-m-b-r-o-i-d-e-r-y was an aesthetic strategy. But during and after the mak- ing of the book, I recognize in the process of reflection on femininity, despatriarcalization of ancestry, sensory and affective provocations, and other possibilities for the construction of thoughts and bodies.
Keywords: Feminism, Art-based Research, Qualitative Inquiry, Art, Body.
As lacunas
Éramos as pessoas que não estavam nos jornais. Vivíamos nos espaços brancos nãopreenchidos nas margens da matéria impressa. Isso nos dava mais liberdade.Vivíamos nas lacunas entre as matérias. 1
Eu sou uma pessoa que vive nas lacunas. Formada artista na graduação, entendi que precisava fazer meu mestrado em outro lugar e fui embrenhar-me na área de Ciências Sociais. Foi aí que me percebi nesse lugar nenhum, dessa artista que não estuda só Arte, dessa “cientista” que não é da Ciência. Ao contrário do que escreve Margareth Atwood em Conto de Aia, seu livro que parece tratar cada vez menos de um futuro distópico, mas sim de um presente assustador, eu não achei isso libertador. Pelo menos, não achei libertador em um primeiro momento.
Na foto, está a capa do livro que fiz no segundo semestre de 2018, para a disciplina As Pesquisas e as Investigações Baseadas nas Artes: experiência e interpretação, do programa de pós-graduação em Mudança Social e Participação Política (ProMuSPP), ministrada na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) pela minha orientadora de mestrado, aProfa. Dra. Marilia Velardi. Ao final da disciplina, foi pedido que entregás semosalgo que nós mesmas produzíssemos. ALGO: uma arte, um artesanato, um artefato. Algo feito por nós, movidas pelas nossas escolhas, nossas histórias, nossos afetos, para dar visibilidade ao nosso mundo.
Eu produzi o livro da foto, um livro de artista: tratase de um exemplar único, no qual eu fui inteiramente responsável pela sua criação e manufatura. Dentro do livro, além de contos e poesias feministas, existem texturas diferentes,um jogo com caligrafias e cores. A capa, o miolo, os textos, as texturas, a materialidade, o livro como um todo é entendido como obra de arte.
Por não acreditar que a foto seja suficiente para perceber os detalhes dacapa do livro, que é a parte que mais importa para este artigo, vou descrevêla: olivro possui aproximadamente 25 centímetros de altura e 15 centímetros de largura. A capa é de papelão, pintada de preto, com as bordas desgastadas. O títulodo livro está centralizado. A palavra Para está em letra cursiva preta, pequena.A palavra mulheres é b-o-r-d-a-d-a em vermelho e atravessa a capa de um lado aoutro. A palavra PORCAS está escrita em caixa alta, numa fita crepe, displicentemente colada. As palavras Malvestidas e Descabeladas estão escritas em preto,com letra cursiva, com as primeiras letras maiúsculas, com uma letra caprichada,em um pedaço de papelão centralizado, mas com as bordas desiguais. O que essacapa indica? Que é um livro de Arte? Um livro de Ciência? Um livro feito poruma mulher artista-cientista, que só existe pelo fato de eu ser as duas (e muitasoutras) coisas: uma artista que faz uma investigação feminista do, com e sobre ocorpo, arte e pedagogia.
Como artista, fui descobrindo minhas formas de trabalhar. Quando façoum texto, por exemplo, uma das últimas coisas que eu crio é o título. Eu sempre penso no título como uma primeira representação, para o público, do que virá. Eeu só consigo criar algo que represente o todo, depois que tudo —ou pelo menos grande parte do todo— já está pronto. Após escrever os contos e as poesias, edecidido o título desse livro, percebi que uma das palavras deveria ganhar destaque. Não qualquer palavra, mas a palavra M U L H E R E S. E não qualquer destaque, mas um destaque específico: o b-o-r-d-a-d-o.
Porém, como eu disse, o título é a última coisa que eu crio. Então, antesde falar sobre o b-o-r-d-a-d-o, preciso falar sobre o título da obra. E antes defalar sobre o título, gostaria de voltar um pouco e narrar a trajetória que levou uma pessoa que nunca tinha b-o-r-d-a-d-o nada a pegar uma agulha, uma linha vermelha, e b-o-r-d-a-r.
Costurando os saberes
Ao investigar o, com e sobre o corpo, durante anos eu recorri apenas à bibliografiade Arte, em especial Artes Cênicas e Dança. Porém, se gostamos de definir as áreas de conhecimento na teoria, a vida real parece desconhecer essas fronteiras. Minha investigação, naturalmente, trouxe inquietações e necessidades que não eram mais supridas pelas referências ligadas à área de conhecimento chamada de Arte. Para onde eu poderia ir?
Comecei a ler textos de filosofia, de sociologia, de literatura; a assistir aulas de anatomia, de artes marciais, de educação somática; a conversar com pessoas que não tivessem formação acadêmica na área da Arte. Saindo das fronteiras de meu mundo artístico, fui descobrindo coisas fascinantes, interessantes e que pareciam relacionar-se muito com o que eu investigava. Eu estava feliz, acreditando ter encontrado um novo lugar no mundo. Até que começaram a me contar sobre as regras da imigração para ser uma cientista: você precisa ter um objeto, um método, um foco. Fechar sua pesquisa, fechar mais um pouco. Você precisa escrever do jeito certo, na diagramação certa, com as palavras certas. Seguindo essa cartilha, eu estaria pronta para ser aceita no novo mundo: o da Ciência. Sónão haviam me contado que não estavam falando apenas de Ciência, mas sim de Ciência Positivista.
Assustada, porém movida pelo desejo de investigar, tentei descobrir um pouco mais sobre esse que me diziam ser o mundo da Ciência. Minha primeira descoberta foi que Arte e Ciência têm muito em comum, mais do que talvez imaginemos, dentro de suas fronteiras muito bem definidas: ambas são majoritariamente patriarcais, europeias, brancas e elitistas. Eu sairia de uma área do conhecimento (mas o conhecimento que adquiri lá nunca sairia de mim) para ser umaeterna estrangeira em outra área do conhecimento que eu já achava problemática?
Eu estava perdida. Porém, sempre têm as lacunas entre o final de uma frasee o começo de outra. Os espaços entre uma linha e outra. Um universo entre um mundo e outro. E nesse universo, existem outras possibilidades de se viver, dese pensar, de fazermos nossa investigação, nossa arte e nossa ciência. E foi nessa lacuna que encontrei o grupo de estudos e pesquisa ECOAR (Estudo em Corpoe Arte), situado na EACH-USP, e fui apresentada à pesquisa qualitativa e a diferentes formas de construção de conhecimento 2 .
Buscando diferentes propostas de construção de conhecimento, aprofundei na teoria feminista latino-americana, e fui entendendo, como bem aponta a pesquisadora Claudia Miranda, que a “cada encontro com outros territórios esujeitos neles presentes, reinventamos sentidos de fronteira” 3 . Talvez eu não estivesse em uma lacuna, mas minhas experiências haviam me levado para outros sentidos de fronteiras para a Arte e para a Ciência. E logo no primeiro encontrocom o ECOAR, vi que nessa lacuna, ou nessas novas fronteiras, eu não estava sozinha. Outras pessoas, presentes fisicamente naquele encontro, ou através dostextos lidos e discutidos, estavam descontentes com as antigas fronteiras e estudavam outras formas de pesquisar. Foi a primeira vez que vislumbrei a possibilidade de “virar” uma pesquisadora.
Yvonna S. Lincoln e Norman K. Denzin, duas referências de pesquisadoras sobre metodologias qualitativas norte-americanas, definem a pesquisa qualitativa como “uma atividade situada que localiza o observador no mundo. Consiste em um conjunto de práticas materiais e interpretativas que dão visibilidade ao mundo” 4 . Na pesquisa qualitativa, a pessoa que investiga é fundamental, pois aspesquisas são relacionadas a esta pessoa, às suas esperanças, necessidades, objetivos, desejos e às “promessas de uma sociedade democrática” 5 . Não existe uma pesquisa apartada de uma pessoa. E não existe uma pessoa “neutra”, recortada de seucontexto social, econômico, político. A pessoa que pesquisa não apenas existe, é entendida como alguém com uma história, uma geografia, uma temporalidade. Dessa forma, sabermos quem nós somos é fundamental na pesquisa qualitativa,afinal quem é você influencia não apenas O QUE você investiga, mas principalmente COMO você investiga. E é por isso que na pesquisa qualitativa não há um método prédefinido.
Assim como para mim não faz sentido dar um título para uma obra que não existe, não há como sabermos de antemão qual será a metodologia de uma pesquisa que não começou. Como bem define minha orientadora, Profa. Dra.Marilia Velardi, o método não é entendido como “forma de ação”, mas sim como“forma de pensamento” 6 . Eu não determino como irei agir, para depois refletir sobre como utilizar o material produzido em minha investigação. As ações são consequências de minha forma de pensar.
Eu, uma artista, aprendi a pensar como uma artista. E seja fazendo arte,ciência, dando aula, escrevendo este artigo, vou continuar pensando desse jeito. Por isso que tanto faz se eu estou escrevendo este artigo, fazendo o livro da foto, criando um espetáculo teatral. Do jeito que penso, o título virá sempre ao final.E é por isso que a necessidade de utilizar o b-o-r-d-a-d-o surgiu após a criação dolivro e do título. A ação foi consequência da minha forma de pensar.
É importante ressaltar que, como pesquisadora qualitativa, devo olhar bastante para mim mesma, para me localizar no mundo. Mas eu nunca esqueço que o foco não sou eu mesma, mas o mundo. Assim, eu olho para mim, me reconheço como artista, reconheço minha forma de pensar e de pesquisar. A partir disso, vou saber me relacionar com o que pesquiso e com as possibilidades de comunicar minha investigação.
Ao me assumir como uma artista E uma pesquisadora, pude reconhecers em medo minha forma de pensar. Como artista, aprendi a não ter pudor de relacionar diferentes materiais para as minhas criações: para um mesmo espetáculo, lia história em quadrinhos para me inspirar para uma cena, criava uma personagem pensando em um quadro, utilizava um filme como referência para criarum figurino. Sem saber, eu sempre agi como uma pesquisadora qualitativa, como alguém que “confecciona uma colcha” 7 , como aquela costureira que, ao olhar parasua sacola de retalhos, sabe quais retalhos selecionar para os transformar em umalinda roupa. Eu não precisava “virar” uma pesquisadora, eu sempre havia sidouma pesquisadora.
Estudando mais sobre pesquisa qualitativa, conheci a Investigação Baseada nas Artes (IBA), umas das várias possibilidades de realizar uma pesquisa. Se antes a única semelhança que eu via entre Arte e Ciência era uma base patriarcal, colonial, branca e elitista, comecei a perceber que elas possuíam outras semelhanças, muito mais interessantes para ambas e, principalmente, para o mundo que eu queria dar visibilidade.
“A ciência foi utópica e visionária desde o início; esta é a razão pela qual ‘nós’ precisamos dela” 8 . Essa afirmação da professora, cientista e feminista Donna Haraway poderia facilmente ser usada para a Arte. Ciência e Arte foram utópicas,visionárias e criativas desde o início, e podem (e devem, eu acredito) se manter assim. Se as fronteiras criadas para elas as limitam, ao invés de as libertar, que sejamos as pessoas que irão redefinir essas fronteiras (ou viveremos para sempre em suas lacunas).
Buscamos respostas, tanto na Ciência como na Arte, para nossas angústias, para o que desconhecemos. Como define o arte-terapeuta e pesquisador norte-americano Shaun McNiff, fazendo uma pesquisa artística ou científica, investigamos com o objetivo de produzir conhecimento sobre a vida 9 . Porém, parece que ao longo dos anos —e das criações de fronteiras entre os saberes—esquecemos dessas semelhanças.
o realizar uma Investigação Baseada nas Artes, desenvolvo com a minha investigação a mesma lógica que desenvolvo com minhas criações artísticas: utilizo diferentes materiais, comunicome através de criações artísticas e semprepenso na melhor forma de mostrar minha obra para meu público, pois o objetivo é que as pessoas tenham contato com minhas criações. Como artista, acredito que minha obra provocará um “processo cognitivo no espectador” 10 . Dessa forma, quando produzo minha arte, ou este artigo, penso sempre na estética do que produzo e nas possíveis reações/relações que posso provocar em minha espectadora, ou leitora, com minha obra. E foi por essa metodologia, por essaforma de pensar, que ao realizar uma investigação feminista radicalmente qualitativa do, com e sobre o corpo, a arte e a pedagogia, surgiu o livro Para MulheresPorcas, Malvestidas e Descabeladas.
Bordando conhecimentos
Quando crio uma dramaturgia, as palavras não são pensadas apenas para ficaremno papel. As palavras irão se tornar sons, imagens, movimento. As palavras irãovirar corpos. Para mim, as palavras nunca foram apenas palavras. A produção e aescrita de textos representam um posicionamento corporal, social e político queirão influenciar diretamente outros corpos.
Assim, se você é uma atriz que irá encenar minha peça, minhas palavras irão reverberar em seu corpo. Se você é uma leitora deste artigo, minhas palavras irão reverberar em seu corpo. Meu entendimento como autora é de que um texto sempre movimenta um corpo, seja um movimento externo —como o de quem se mexe em cima de um palco—, seja um movimento interno —como o de uma pessoa que se senta para ler estas linhas—. O que importa é que um texto irá gerarum movimento.
Mas as palavras não se tornam movimento apenas após serem lidas. Enquanto escrevo, meu corpo está em movimento: internamente e na movimentação das minhas mãos no teclado, dos meus olhos percorrendo a telado notebook, da postura que meu corpo assume ao fazer um material teórico .Produzir teoria é uma ação prática com nossos corpos. E, novamente, remeto para a importância de nos localizarmos no mundo. Sabermos quem somos é essencial para pensarmos como escrevemos, como podemos escrever e comoqueremos escrever.
Parece-me coerente pensar que um corpo patriarcal irá gerarum conhecimento, uma escrita, um texto patriarcal. Quando adquirimos um conhecimento desenvolvido sobre uma base patriarcal, esse valor provavelmente estará refletido em nossa escrita, pois como aponta a pesquisadora feminista brasileira Tania Navarro-Swain, “as representações sociais e os valores” de quem escreve ordenarão sua narrativa 11 . Por isso, ao realizar uma pesquisa feminista, tive antes que reconhecer meu corpo construído em uma sociedade patriarcale colonial, e reconhecer esses traços em minha escrita, para então percebera necessidade de buscar outras formas de me relacionar com os textos, tanto aforma como leio outros textos, como a forma como escrevo os meus própriostextos. Ao escrever um texto, proponhome a buscar outras formas de narrar,de contar uma história, de produzir um conhecimento. Escrever não é apenas uma forma de relatar a investigação, mas é uma ação que complementa a investigação.
Assim, sob o domínio do patriarcado, quando se proclama ‘o homem descobriu, o homem criou’ não está se falando do humano, mas sim dos seres no masculino, dotados de um pênis, única marca definida para afirmar sua‘superioridade’. 12
Oprimida por anos na generalização do ser humano pelo uso do masculino, sem reconhecer meu corpo no homem “universal”, decidi que em meus textos, incluindo este artigo, a generalização se dá no feminino. É uma subversão gramatical como um posicionamento político e acadêmico. Acho importante apontar que, como homens e mulheres ocupam papéis muito diferentes na sociedade e na produção do conhecimento, generalizar utilizando o feminino não é, de maneira alguma, oprimir os homens ou apagálos da história. Ao utilizar ofeminino, trago a visibilidade feminina aos meus textos e provoco a pessoa que lê, seja causando um estranhamento, seja causando uma identificação, seja causando um enfado patriarcal.
Outra visibilidade textual é dada na bibliografia, ao colocar não apenas o sobrenome das autoras, mas também os seus nomes. Ao utilizar o primeiro nome,explicito que em nossas investigações estão presentes diferentes gêneros e dou visibilidade a outras ancestralidades que não apenas a patriarcal. 13 Na bibliografiae também nas citações, no caso de mais uma autoria no mesmo texto, coloco aautoria por ordem de gênero e não por ordem alfabética, assim as autoras mulheres aparecem primeiro.
Interessante pensarmos que a invisibilidade textual do corpo das mulheres parece ser inversamente proporcional à exposição do corpo feminino na Arteque, como aponta a pesquisadora e curadora de arte argentina Andrea Giunta, é amplamente retratado (e de preferência nu), apoiada “em parâmetros de representação regulados pelas convenções da arte acadêmica do século XIX e, depois, pelas convenções do modernismo do começo do século XX” 14 . Mas não nos deixemos enganar. Na Arte, os corpos femininos nus ocupam as telas, mas as assinaturas dos quadros continuam sendo predominantemente masculinas.
Atenta ao patriarcado presente em nossos corpos, nossa linguagem e nossa escrita, o que proponho como ação feminista não é negar a utilização das palavras, da minha língua, de todas as regras gramaticais, mas sim pensar outras formas deutilizá-las, outros temas, outras protagonistas, outras formas de redação e outras formas de comunicação além da textual. Não devemos nos recusar a escrever, mas precisamos escrever do mesmo jeito de sempre? E não devemos nos recusar a escrever, mas precisamos SÓ escrever para nos comunicar?
Por isso que, ao realizar uma investigação feminista radicalmente qualitativa sobre corpo e arte, escrevi um livro em que todas as protagonistas eram mulheres e no qual os textos foram criados a partir de experiências que vivi,ou do que mulheres próximas a mim viveram. Eram experiências de abusos sexuais, sociais, morais e estéticos, rotineiramente cometidos contra o corpofeminino:
Por el lado de las feministas, la noción de experiencia ha sido largamente teorizada y remite de manera fundamental a poner de relieve, precisamente, ladiferencia corporal y las consecuencias políticas que esto tiene para las mujeres. Desde los grupos de concienciación hasta la exposición de las marcas sexuales, corporales y subjetivas en la construcción del conocimiento, la deexperiencia es una categoría ampliamente trabajada por la teoría feminista.Así, la categoría de experiencia promete, precisamente a causa de sus ambigüedades, tender puentes y pensar de modo complejo las significaciones de laexperiencia entendida como subjetiva y corporal, como ubicada, como fuente de crítica y rebelión; como marcada por las relaciones de dominación. 15
Se a pesquisadora feminista argentina Valeria Fernández Hasan relaciona a importância das experiências entendidas como subjetivas e corporais na teoria feminista, acredito que é essencial pensarmos uma escrita que seja coerente como que se conta e com quem conta essa experiência. Palavras não são só palavras, são fontes de crítica e de rebelião. São subjetivas. São ações políticas, científicas eartísticas de quem produz o texto.
E escrever assim não é simples. Desde o começo de minha alfabetização, derramaram sobre mim uma enorme quantidade de formas que eu deveria seguirem meus textos. Limite de linhas, fonte adequada, tamanho padronizado. Issosem contar no papel de quem escreve: invisível, neutro (no masculino), imparcial. Toda essa educação não some de meu corpo do dia para a noite. Inclusive, setodas as referências nos forem tiradas de uma vez, nenhum conhecimento maisserá produzido, pois não conseguiremos nos localizar em nenhum mundo!
Também não é simples achar espaços que estejam abertos para outras formas de escrita. Alguns editais, alguns programas de pós-graduação, algumas pesquisadoras nos pedem que inovemos cada vez mais nossas referências, nossos conteúdos, nossas investigações, mas que continuemos mantendo a mesmaforma, a mesma fonte, a mesma diagramação. Já ouvi que devemos manter ospadrões, pois eles facilitam nossa redação e comunicação.
Pergunto: os padrões patriarcais facilitam? Ou os padrões patriarcais engessam? A provocação que faço não é —ainda— a de um processo radicalmente anarquista na escrita científica, caso seja coerente com o que e quem investiga. Muitas regras são importantes e facilitam realmente que um conhecimento se propague. E assim como devemos usar essas regras, também podemos refletir sobre essas regras. É importante que ao ler um texto, caso eu me interesse por uma referência, consiga localizá-la facilmente na bibliografia. Mas vamos olhar menos para as regras e nos atentar para as lacunas. Eu não conseguiria localizar o mesmo material se ele fosse escrito em outra fonte? Em outra diagramação? A padronização estética exigida em muitos editais seriam uma forma de facilitar a propagação de um conhecimento? Ou seria uma forma de controlar e limitar a propagação de outros conhecimentos?
Se trata también de considerar las formas estéticas no sólo como objeto de la ciencia, sino como formas de producción de sentidos, de significados en los que se mezclan las experiencias y sentimientos con la estructuración meditada de los significantes. Pensar de qué manera nos permitimos incorporar a la reflexión crítica de una ciencia comprometida el valor cognitivo de la producción artística. 16
Concordando com a proposta que conecta arte e ciência das pesquisadoras Natalia Fischetti e Pablo Chiavazza, pergunto: de que forma a estética, fundamental ao pensarmos em arte, pode nos ajudar a construir outros sentidos para nossas investigações? E como já podemos levar essa inquietação para nossos textos, utilizando as lacunas dos editais? Se eu só posso usar a fonte Times New Roman, eu ainda posso utilizar algumas estratégias para que a estética do texto também seja uma forma de comunicar minha investigação, de provocar a pessoa que lê meu texto. Eu posso utilizar o negrito, o itálico e/ou sublinhar um texto. Posso escrever com MAIÚSCULAS, posso MiStUrAr maiúsculas e MINÚSCULAS, posso brincar com o E S P A Ç A M E N T O das letras (ou das linhas), posso tentar trazer as linhas e textura do b-o-r-d-a-d-o brincando com o hífen.
Provavelmente, essa performance estética causará estranhamento em um primeiro contato. E talvez esse estranhamento se torne desconfortável para algumas pessoas, talvez seja agradável para outras. Quando fazemos uma obra de arte —ou um artigo—, não podemos controlar a reação de nosso público.Talvez a maior barreira a ser enfrentada inicialmente seja a de entendermos que todo o texto apresenta uma estética que irá reverberar de alguma forma em quem lê. E é por isso, por exemplo, que quando me deparo com um texto em fonte Times New Roman ou Arial, com espaçamento 1,5, tamanho A4, etc., eu logo penso que será um texto acadêmico, científico e sério. E, muito provavelmente, chato.
Em nosso mundo atual, a visão não apenas é o sentido mais estimulado, mas é a principal responsável pela propagação do conhecimento. Se assumimos a importância da visão em perceber, construir traduções e modos de vida 17 , parece-me estranho ignorar que a estética de nossos textos é fundamental na comunicação de nossas pesquisas. Além de utilizar a estética para nos auxiliar a contar nossas experiências, atento-me também ao vocabulário a ser utilizado. Quais são os significados que as palavras assumiram em uma sociedade patriarcal? Quais palavras e línguas tornam um texto mais acessível para além dos muros da Academia? Quais palavras e línguas nos são autorizadas a serem utilizadas na Arte, na Ciência, na Academia, em nossas casas?
Eu escrevo um texto que eu gostaria de ler. Poderia afirmar que tento escrever meu texto de uma forma simples, preocupada com a pessoa que irá ler. Mas estou preocupada também comigo, em respeitar minha origem, meus gostos e minha crença em saber que palavras difíceis constroem barreiras, não conhecimento.
Sei que sou uma pessoa privilegiada por conseguir ler em três línguas. Mas sei também que não devo usar esse privilégio como forma de exclusão. Por isso, sempre coloco em meus textos uma tradução livre de referências que não estão em português. Pode parecer uma ação pequena, mas apenas quem teve contato com muitos textos de teatro referenciados em francês sabe como é ruim a sensação de sermos excluídos de alguns trechos de uma experiência...
Conforme conta a pesquisadora e artista visual argentina Maria Angélica Melendi, algumas artistas latino-americanas (e nesse caso, refiro-me apenas a artistas mulheres) que criaram suas obras entre as décadas de 60 e 85, utilizaram termos “vulgares para descrever a experiência” como “estratégia de liberação que começava com as mulheres usando e assumindo palavras que, essencialmente, lhes haviam sido negadas” 18 . Mesmo só conhecendo essa ação das artistas feministas latino-americanas após a criação do meu livro, eu já usava da mesma estratégia de liberação que elas usaram anos atrás ao criar o título do livro: Para Mulheres Porcas, Malvestidas e Descabeladas.
Essas três palavras são xingamentos associados à mulher (os homens não são geralmente xingados de porcos, malvestidos e descabelados. Essas podem ser, no máximo, características negativas de alguns homens, mas não xingamentos). Apropriei-me de três xingamentos que eu já havia escutado, direcionados ao meu corpo ou ao corpo de outras mulheres. Ao tirá-los da boca de quem me oprime, ressignifico minha relação com essas três palavras. Não consigo dizer tudo o que esses xingamentos já causaram em meu corpo e nos corpos de várias outras mulheres, assim como não posso definir o que esse título causa em quem o lê. Mas o que sei é que este título causou/causa/causará ALGO.
Minha investigação feminista radicalmente qualitativa sobre corpo e arte tinha, então, virado um livro com contos e poesias feministas, que narravam diversos abusos sofridos por corpos femininos, com um título que se apropriava de termos ofensivos para o universo feminino. Estava claro que a MULHER era o ponto principal deste projeto e que, com este livro, eu repensava, discutia, reconstruía o significado desta palavra. Foi nesse momento que percebi que, se o título é uma espécie de resumo de meus trabalhos, só havia uma forma de materializar esse ato crítico, político e poético de,com e sobre nos nossos corpos de MULHERES para meu público: b-o-r-d-a-n-d-o.
Agulha, linha e sentidos
“Artistas também se envolveram em uma pesquisa sistemática de preocupações que ainda não haviam sido exploradas. Com materiais, substâncias e linguagens inéditos, eles solaparam os sistemas de representação existentes. O eixo de suas intervenções foi a desestruturação dos formatos sociais que regulavam o corpo, levando ao surgimento de um novo corpo e à destruição o corpo anterior, culturalmente estabelecido.” 19
Quando as artistas latino-americanas decidiram fazer uma arte de, sobre e com mulheres, é importante ressaltar que elas entendiam suas obras, corpos, vidas e sociedades extremamente entrelaçadas. Então, ao dizer que suas intervenções levaram ao surgimento de um novo corpo, este novo corpo é o corpo da artista, o corpo na arte, o corpo do público, o corpo na sociedade.
Ao escolher utilizar o b-o-r-d-a-d-o em uma investigação, os sentidos dessa escolha não ficam restritos apenas à obra. Os sentidos do b-o-r-d-a-d-o reverberam no corpo de quem investiga e no corpo do público e, por isso mesmo, irá reverberar no mundo. Eu não posso dizer quais são os sentidos do b-o-r-d-a-d-o para quem teve contato com o livro que produzi. Eu apenas posso narrar os diversos sentidos que o b-o-r-d-a-d-o teve para mim, a investigadora, e como esses sentidos influenciaram a mim, meu corpo, minha investigação, minha forma de pensar e de agir.
Ao refletir sobre o b-o-r-d-a-d-o nesta investigação, desloco os processos que vivi “do pessoal para o político, do local para o histórico e para o cultural” 20 . Como uma artista pesquisadora feminista qualitativa, utilizo minha experiência para criar um diálogo com meu público, um espaço de reflexão pessoal e social. Eu nunca havia b-o-r-d-a-d-o nada em minha vida. Filha de uma mulher que, entre muitas coisas, é uma excelente costureira, nunca tive paciência para aprender nada de costura. Lembro-me de um momento de minha adolescência, quando pedi que minha mãe me ensinasse a costurar, desejando fazer todas as minhas roupas e não precisar nunca mais depender das roupas sem graça e malfeitas das grandes lojas de departamento. Minhas aulas duraram exatamente uma tarde, tempo suficiente para que minha paciência, e a de minha mãe, esgotasse.
Mesmo sem saber b-o-r-d-a-r, escolhi utilizar o b-o-r-d-a-d-o. Para mim (e não esqueçamos que a arte, assim como a ciência, é sempre pessoal), o b-o-r-d-a-d-o traz diferentes ações, sensações, lembranças e sentidos que me remetem à mulher, ao corpo e à arte. O b-o-r-d-a-d-o é uma forma de comunicar minha investigação e toda a complexidade que envolve a produção de um conhecimento. Vou tentar detalhar ponto a ponto dessas sensações despertadas pelas linhas queperfuram um tecido ou papel.
Em meu imaginário, o b-o-r-d-a-d-o sempre esteve ligado à ideia da dona de casa prendada, daquela mulher que preparava com capricho os enxovais de casamento e os enxovais de bebês. O b-o-r-d-a-d-o, sinônimo de delicadeza e capricho, proporcionava à mulher que bordava essas mesmas características: a mulher que borda é delicada e caprichosa. Como aponta a professora feminista negra Angela Davis em seu livro Mulheres, Raça e Classe, a ideia de feminilidade criada no século XIX relacionou a mulher branca à figura frágil da dona de casa 21 . Para mim, feminilidade era definição das características da mulher queb-o-r-d-a-v-a.
Ligando o b-o-r-d-a-d-o, então, ao capricho, à delicadeza, à fragilidade e à feminilidade, b-o-r-d-a-r a palavra MULHERES faz uma referência a esseideal de feminilidade construído há tantos anos e ainda presente em nossa sociedade (e tão forte em mim mesma). Ao mesmo tempo, quando vemos a palavra MULHERES b-o-r-d-a-d-a, seguida das palavras PORCAS, MALVESTIDAS e DESCABELADAS, quais outros sentidos esse b-o-r-d-a-d-o ganha? O estranhamento causado pode levar a questionarmos nosso entendimento da palavra mulher, nossa relação com o b-o-r-d-a-d-o e o sentido das palavras porcas, malvestidas e descabeladas. Pelo menos foi neste lugar de questionamento que me encontrei como investigadora.
Como já expliquei, para mim, b-o-r-d-a-d-o era coisa de mulher caprichosa. Eu, que algumas vezes já ouvi como eu era porca, achava que meu corpo não poderia ser o responsável por quebrar esse binarismo: ou eu era porca, ou eu b-o-r-d-a-v-a. É estranho colocar-se nesse lugar em que você deixa de ser OU e passa a ser E. Eu continuava sendo a mulher porca, mas agora era também a mulher que b-o-r-d-a-v-a. Ainda que meu b-o-r-d-a-d-o possa ser considerado tosco, malfeito, porco, eu tinha me transformado na mulher porca E caprichosa.
O b-o-r-d-a-d-o surgiu, então, como elemento decolonial na minha investigação. Pelo b-o-r-d-a-d-o, não só ficou claro como o patriarcal moldou meu entendimento de feminilidade, como ocorreu a compreensão de um corpo além das dicotomias, além do binarismo. Eu poderia continuar sendo eu mesma E poderia, também, ser feminina. Ao me propor a b-o-r-d-a-r, meu corpo, ou seja, eu, envolvi-me de outra forma com a minha investigação. Houve uma quebra da relação corpo-máquina: desliguei-me de meu notebook, saí de minha cadeira, de minha mesa. Precisei adquirir ferramentas que eu não possuía, precisei achar um outro espaço para a mobilidade que o b-o-r-d-a-d-o exigia de meus braços, meus olhos, meu tronco.
Meu corpo assumiu outra atitude para a produção de um conhecimento. E é interessante pensarmos que, se outras formas de conhecimento pedem outras formas de comunicação, também não devemos pensar em outras possibilidades de ações corporais para manufaturarmos nossas investigações?
Haraway atenta para a “relação frouxa entre o que os cientistas acreditam ou dizem acreditar e o que eles realmente fazem” 22 . O b-o-r-d-a-d-o fez com que, em uma investigação sobre, do e com o corpo, eu me mexesse de outra forma, ocupasse outros espaços, investigasse praticamente —e não apenas na teoria— meu corpo e minha arte. O b-o-r-d-a-d-o não apenas trouxe coerência entre teoria e prática, mas borrou as fronteiras entre teoria e prática.
Na pesquisa qualitativa, a trajetória da investigação vai sendo desenvolvida de acordo com as necessidades da investigação e da investigadora. A escolha do b-o-r-d-a-d-o trouxe uma necessidade que eu não pensaria que iria surgir em meu processo: eu precisava aprender a b-o-r-d-a-r. E por mais que eu já tivesse frequentado muitas aulas na Academia, por mais que eu já tivesse lido muitos textos sobre sociologia, filosofia, feminismo, corpo e artes, surgia ali a necessidade de adquirir um outro conhecimento. E, principalmente, um conhecimento que não era acadêmico. Um conhecimento que, descobri, estava ali em mim, nas vezes que observei minha mãe costurando, naquela tarde de aula de costura que minha mãe me deu, nas vezes em que brincava na confecção da amiga de minha mãe, em uma tarde de férias que minha avó havia tentado me ensinar a tricotar (o excesso de suor das minhas mãos sujavam meus tricôs e minaram minha vontade de aprender mais sobre tricô).
O b-o-r-d-a-d-o remete à essa sabedoria, a esse conhecimento que não é acadêmico. Um conhecimento que muitas vezes não está nos livros. O b-o-r-d-a-d-o me levou a lembrar dos outros conhecimentos que me foram passados fora das cadeiras e das mesas da Universidade. Saberes marginalizados, esquecidos, desvalorizados. Técnicas manuais muitas vezes consideradas inferiores por uma cultura elitista e binária, na qual o intelecto (de preferência com base nos pensamentos europeus) é entendido como oposto ao físico, ignorando que ambos fazem parte do mesmo corpo!
Ao utilizar o b-o-r-d-a-d-o em um trabalho acadêmico, sou coerente com a teoria feminista e decolonial que venho estudando, e considero o trabalho manual, o trabalho criativo e o trabalho intelectual “igualmente válidos” e “parte de um mesmo processo de trabalho” 23 . E novos saberes trazem novas necessidades. Percebi então que precisava de agulha e linha para b-o-r-d-a-r um papel. Em minha casa, achei uma agulha e uma linha. A agulha era fina demais e entortaria ao tentar furar o papel. E a linha era de cor azul, e eu queria uma linha vermelha, cor de sangue, cor de menstruação, cor forte, vibrante e ligada ao universo da mulher. A necessidade da agulha e da linha certa para o livro levou-me a mais um sentido do b-o-r-d-a-d-o na minha investigação: uma nova relação com a minha ancestralidade.
Como já foi citado, minha mãe é, entre tantas coisas, uma excelente costureira. Agulhas, linhas e retalhos sempre fizeram parte da minha infância. Uma lembrança recorrente que tenho de minha mãe é dela sentada no seu quartinho de costura. Ela ficava de costas para a porta, com as pernas cruzadas, as costas curvadas, com um tecido que caía pelas suas pernas, passando agulha e linha pelo tecido. Lembro do barulho da máquina e da mesa de madeira na qual a máquina ficava.
Eu adorava brincar com o imã que prendia todos os seus alfinetes, pulava por horas usando sua fita métrica como corda, e ficava muito orgulhosa da minha visão e da minha coordenação motora que conseguiam fazer passar a linha pelo pequeno buraco da agulha.
Ao pedir para minha mãe uma agulha e uma linha, fui transportadanovamente para seu quartinho de costura e novamente me vi cercada de linhas,agulhas, retalhos, da fita métrica. Após termos mudado de casa inúmeras vezes,o quartinho da minha mãe não era mais o mesmo de minha memória, mas ascoisas, as histórias e os sentidos ainda estavam todos ali. E agora eu não era maisuma criança, mas sim uma mulher. Uma mulher artista, cientista, feminista. E foiassim que o b-o-r-d-a-d-o levou-me de volta ao meu passado, com a consciênciado meu presente. Sim, o b-o-r-d-a-d-o alterou o meu futuro.
O quartinho de costura da minha mãe, aquele que está nas minhas memórias, foi por anos o quarto de empregada. Mesmo morando em 5 apartamentos diferentes, em TODOS os apartamentos, o espaço reservado para minha mãe costureira era o quarto de empregada. Afastado do resto da casa, apertado, mal ventilado. Ainda que dentro da mesma casa, o espaço reservado para ela era afastado do convívio social, relegado ao canto esquecido dos apartamentos. A costura ocupava as margens de nossa vida familiar.
Em tempos de crise econômica, suas costuras muitas vezes haviam sido responsáveis por não termos passado maiores dificuldades financeiras (na verdade, até hoje, são suas costuras que permitem alguns pequenos luxos em sua vida de aposentada e pensionista). Porém, quando criança, não era essa a história que nos era narrada. Suas costuras “ajudavam” a pagar as contas, mas quem trabalhava de verdade era meu pai. Minha mãe “ajudava” na parte financeira da casa, mas não era igualmente responsável ou igualmente importante como meu pai na questão das finanças. Interessante também que, enquanto minha mãe “ajudava” nas finanças, meu pai não ajudava nos serviços domésticos...
Eu não sabia que isso aconteceria, mas ao decidir b-o-r-d-a-r, acabei sendo levada para um novo entendimento de minha ancestralidade. Uma outra forma de enxergar minha mãe, nossa história e sua importância em minha formação econômica, corporal e social surgiu através do b-o-r-d-a-d-o. Como afirma María Galindo, pesquisadora, artista, ativista e anarquista boliviana, a despatriarcalização é uma “nueva oportunidad histórica que nos damos las mujeres de construir alianzas amorosas, duraderas, sólidas entre nosotras sin la mediación de relaciones patriarcales”. 24
O b-o-r-d-a-d-o atuou, então, como responsável pela despatriarcalização de minha ancestralidade. Sua produção não me moveu apenas na teoria, mas também na prática, já que essas fronteiras foram borradas. Suas consequências são teóricas e práticas. Por fim, o b-o-r-d-a-d-o representa uma ativação de outros sentidos corporais em quem b-o-r-d-a e em quem se relaciona com o b-o-r-d-a-d-o. A materialização através da linha traz à palavra M U L H E R E S um relevo, uma textura, uma dimensão diferente. Eu não apenas leio um texto, eu leio, eu vejo, eu passo minha mão, eu sinto aquele material. Eu não uso apenas a visão, mas outros sentidos são ativados. “Os sentidos existem para nos despertar para realidades situadas além dos sentidos. O apelo dos sentidos é de nos levar além dos sentidos” 25 .
O tato é ativado ao encostarmos na linha fibrosa e felpuda. As sensações desse toque trazem uma movimentação diferenciada para quem b-o-r-d-a e para quem desliza os dedos sobre as linhas vermelhas que estão na capa do livro. Os conceitos de artista e público, pesquisadora e leitora, através do b-o-r-d-a-d-o, dão outros sentidos para a obra-conhecimento, alterando a relação de nossos corpos com aquele material, aquela palavra, aquela investigação.
Arremate final
Em uma investigação feminista radicalmente qualitativa sobre arte e corpo, o b-o-r-d-a-d-o foi o meu processo e a minha estratégia artística e artesanal de despatriarcalização, levando a uma reflexão crítica sobre minhas construções culturais, sociais e corporais e minha ancestralidade. Ao b-o-r-d-a-r a palavra M U L H E RE S, construí uma “nova memória social, de um novo sujeito político, filosófico, artístico”, conferindo à palavra uma “plasticidade ‘impossível’ nas condições de imaginação patriarcais” 26 . Uma ressignificação surgida da prática para a teoria, da teoria para os afetos, da ação de b-o-r-d-a-r para as reflexões sobre esse ato, para as sensações da linha em minhas memórias, em meu tato, no visual do livro.
O b-o-r-d-a-d-o tornou-se ação feminista, performance artística, reflexão crítica, provocação afetiva. O b-o-r-d-a-d-o é sarcástico, é respeitoso, é um deboche delicado. O b-o-r-d-a-d-o quebrou binarismos, trouxe outros saberes para minha investigação e para meu corpo. Através do b-o-r-d-a-d-o, fronteiras entre conhecimentos, valores e tempo foram borradas. Ao apontar todos os sentidos do b-o-r-d-a-d-o do meu ponto de vista de investigadora, sei que deixo lacunas na relação do b-o-r-d-a-d-o com o público, com a pessoa que lê o livro. Mas não posso corroborar com a falsa ideia de que dominamos as sensações que nossas obras despertarão em nosso público.
Não acho que todos os sentidos que apontei serão percebidos por qualquer pessoa que tenha contato com o livro. Assim como tenho certeza que alguém perceberá outros sentidos para o b-o-r-d-a-d-o que nem haviam passado pelo meu corpo. E também acredito que muitas pessoas apenas leriam o título, veriam o b-o-r-d-a-d-o e não gastariam mais um segundo de suas vidas fazendo reflexões teóricas sobre aquelas linhas vermelhas atravessando o papel preto. Pois, muitas vezes, na pressa de nossas vidas, nas urgências de nossas investigações, na ganância de adquirir mais e mais conhecimento, nós nem nos damos conta dos subtextos, do que está nas lacunas entre um ponto e outro.
Se nada disso fizer sentido para quem tiver contato com o livro, o b-o-r-d-a-d-o é, pelo menos, uma manifestação artesanal que deixou a capa do livro “bonitinha”. E deixemos que as impressões subjetivas sejam, aos poucos, b-o-r-d-a-d-a-s ponto a ponto em cada uma de nós.
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Notas