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Recepção: 12 Outubro 2018
Aprovação: 07 Dezembro 2018
Resumo: Neste trabalho discutiremos questões relativas à circulação dos livros de fantasia brasileiros na era da Internet, por meio de um estudo de caso da obra A batalha do Apocalipse (2007), de Eduardo Sporh. Com base nas premissas levantadas por Jenkins (2009) acerca da cultura digital e das discussões de Schiffrin (2006) e Thompson (2013) sobre mercado editorial, além dos conceitos de campo defendidos por Bourdieu (1997), discorreremos sobre os processos que envolvem desde a produção até a circulação do livro de literatura nacional fantástica. Analisaremos ainda como o público participa de modo cada vez mais ativo desse desdobrar e como se dá o processo de manutenção de leitores, antes mesmo do lançamento da obra, ponderando sobre como os processos que perpassam um livro estão cada vez mais multifacetados, tendo em vista que o “ciclo tradicional” vem sendo remoldado. Concluímos que a revolução na comunicação promovida pelo advento da internet alcançou de maneira ímpar a produção e circulação de livros, de modo que o meio editorial foi remodelado não pela decadência dos livros impressos, mas pelas novas formas de circulação e publicação que foram fundamentais para que os mercados de nicho alcançassem vias mais amplas para percorrerem o caminho autor, editor e público.
Palavras-chave: Internet, Circulação, Literatura fantástica brasileira, A Batalha do Apocalipse.
Abstract: In this paper we aim to discuss issues related to the circulation of brazilian fantasy books in the Internet era, through a case study of Eduardo Sporh's The Battle of the Apocalypse (A Batalha do Apocalipse) (2007). Based on Jenkins's (2009) premises on digital culture and discussions of Schiffrin (2006) and Thompson (2013) on publishing, in addition to the field concepts advocated by Bourdieu (1997), we will discuss the processes that involve the production up to the circulation of the fantastic national literature book. We will also analyze how the public participates in an increasingly active way of this unfolding and how is the process of keeping readers, even before the launch of the work, pondering how the processes that go through a book are increasingly multifaceted, aiming that the "traditional cycle" has been remolded. We conclude that the revolution in communication promoted by the advent of the internet reached the production and circulation of books in a unique way, so that the editorial medium was refashioned not by the decadence of printed books but by the new forms of circulation and publication that were fundamental for the niche markets reached broader paths to travel the author, publisher, and public.
Keywords: Internet, publishing circulation, Brazilian fantastic literature, A Batalha do Apocalipse..
Nas últimas décadas do século XX, a literatura fantástica ganhou notável espaço dentro da literatura contemporânea. Nesse sentido, vários autores se debruçaram sobre o gênero a fim de estabelecer discussões sobre suas características e aplicações, tendo em vista que, até então, tratava-se de um gênero marginalizado, restrito ao universo das fanzines e blogs e ao mercado de nichos. Tzvetan Todorov (1981) coloca que a literatura fantástica é um gênero literário em que os acontecimentos incomuns são explicados racionalmente e essa explicação é aceita pelos personagens no mundo ficcional. A literatura fantástica é, então, a possibilidade de transitar entre um mundo real, explicado logicamente, e um mundo sobrenatural, regido por leis que desconhecemos.
Entretanto, a natureza fantástica do texto não reside apenas nos escritos do autor, estando também intimamente relacionada ao modo como o leitor interpreta o texto. Por isso, trata-se de um gênero em que fica exposta a construção textual baseada nas palavras do autor e na leitura do leitor. Para Todorov (1981), três colocações são fundamentais ao texto fantástico:
Em primeiro lugar, é necessário que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo dos personagens como um mundo de pessoas reais, e a vacilar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. Logo, esta vacilação pode ser também sentida por um personagem de tal modo que o papel do leitor está, por assim dizê-lo, crédulo a um personagem e, ao mesmo tempo, a vacilação que está representada, converte-se em um dos temas da obra; no caso de uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com o personagem. Finalmente, é importante que o leitor adote uma determinada atitude frente ao texto: deve rechaçar tanto a interpretação alegórica como a interpretação “poética” (TODOROV, 1981, p. 19 e 20).
Expostas as especificidades do gênero, cabe-nos pensá-lo no contexto de produção do livro de análise, qual seja, no cenário editorial brasileiro. A fim de realizar tal discussão, vamos partir de teorias num contexto universal até sua aplicação em nossa perspectiva particular.
Toda a construção do cenário literário brasileiro deu-se, num primeiro momento, como reflexo dos movimentos vanguardistas que aconteciam no exterior. Com a literatura fantástica não foi diferente, pois o gênero chega ao Brasil representando um mercado de nicho. Em sua fase inicial, tratava-se de um gênero literário de desprestígio, tanto pela ausência de escritores brasileiros reconhecidos pelo cânone que se debruçavam sobre esse gênero quanto por questões ligadas à nossa tradição literária que privilegia histórias com cunho mais realista. Essa visão pode ser explicada pelos apontamentos de Pierre Bourdieu (1997) sobre a formação e a validação do campo literário, levando em consideração a história nacional e a trajetória brasileira na construção de sua própria literatura, após séculos como colônia portuguesa.
Segundo Bourdieu (1997), no âmbito das produções literárias, duas noções tinham primazia nas discussões sobre a construção dos textos. A primeira afirmava a autonomia do texto, ou seja, o significado reside nele mesmo. Já a segunda, mais marxista, sugeria que texto e contexto estão interligados: o social interfere no sentido do texto. Diante dessas colocações, a fim de apresentar uma alternativa mais ampla para ambas as correntes, Bourdieu propõe a noção de campo:
(...) para compreender uma produção cultural (literatura, ciência, etc.) não basta referir-se ao conteúdo textual dessa produção, tampouco referir-se ao contexto social contentando-se em estabelecer uma relação entre texto e contexto. (...) existe um universo intermediário (...) no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. (...) A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias (BOURDIEU, 1997, p. 20).
As estruturas do campo determinam o discurso do sujeito e o sujeito dominante determina a estrutura do campo. Isso significa que só compreendemos um agente do campo se sabemos de onde esse agente fala dentro desse campo. Ao pensarmos na estrutura, devemos considerar que ela
é determinada pela distribuição do capital científico em um dado momento. Em outras palavras, os agentes (indivíduos ou instituições) caracterizados pelo volume de seu capital determinam a estrutura do campo em proporção ao seu peso, que depende do peso de todos os outros agentes, isto é, de todo o espaço (BOURDIEU, 1997, p. 24).
Dentro dessa perspectiva, o campo de produção literária não é senão uma construção. Os agentes dominantes nele inseridos fazem não só os fatos científicos, mas o próprio campo, a partir do lugar que ocupam. Nessa perspectiva, o mercado editorial pode ser entendido como o macro da estrutura do campo literário, é nele que acontecem as legitimações, os rechaços, a instituição e a destituição dos títulos que compunham o cânone literário. Essa estrutura não está de modo algum imune aos acontecimentos externos, antes reage a eles. Por isso, justifica-se que, até bem pouco tempo, não houvesse espaço para outros gêneros na literatura brasileira.
No âmbito social, o país passava por um período de legitimação de sua tradição literária. Como ex-colônia de Portugal, era preciso construir uma literatura que desse enfoque aos nossos costumes, povos e tradições, o que explica nossa literatura nacional romântica, baseada na representação indígena estigmatizada e na afirmação exacerbada de um patriotismo cego. Foi fundamentado nessas perspectivas que o campo literário brasileiro tomou forma, deixando à margem outros tipos de literatura.
Bourdieu (1997) é categórico ao afirmar que a única coisa que rompe com a lógica estrutural de produção dos campos é a aparição de uma descoberta revolucionária, que questione os próprios fundamentos do campo, a distribuição de capitais ou até mesmo as regras do jogo. É nesse ponto que a literatura fantástica muda, pois, no início do século XX, o campo literário é revolucionado com o advento da internet.
Henry Jenkins, pesquisador norte-americano e estudioso de comunicação, em suas obras Cultura da conexão (2014) e Cultura da convergência (2009), reforça como a Internet mudou e reorganizou a forma de consumo de cultura: o que antes era produzido por uma indústria cultural mais baseada no interesse único e exclusivo de alguns grupos passa a outro modelo mais aberto dentro do qual os nichos podem divulgar e disponibilizar seus conteúdos. Ainda na perspectiva do autor,
Hoje em dia, no entanto, há um modelo híbrido e emergente de circulação, em que o mix de forças de cima para baixo e de baixo para cima determina como o material é compartilhado através de culturas e entre elas, de maneira mais participativa e também desorganizada (JENKINS, 2009, p. 24)
Sendo assim, um campo, que anteriormente era mais centralizado, no qual a circulação de materiais se restringia à distribuição física, em locais pré-determinados pelos interesses dos grupos editoriais, passa a também ter um modelo de circulação mais frouxo por causa da circulação on-line. O poder do próprio autor de encontrar o seu público nicho e fazer com que seu material circule por meio das comunidades virtuais, que não mais demandam apenas de uma dispendiosa distribuição física, mudou a lógica da circulação criando um diálogo sem precedentes.
Para Jenkins (2009) a internet muda o modus operandi do campo editorial de nicho, principalmente no que tange a conteúdos relacionados à cultura pop e não necessariamente ligados a nichos valorizados pela alta cultura. A cultura de massa, antes vista como apenas um produto de consumo, torna-se um novo modelo de cultura no qual a interação e a participação do leitor são bem-vindas. Essa nova maneira de produção e circulação
(…) sinaliza um movimento na direção de um modelo mais participativo da cultura, em que o público não é mais visto como simplesmente um grupo de consumidores de mensagens pré- construídas, mas como pessoas que estão moldando, compartilhando e remixando conteúdos (JENKINS, 2009, p. 24).
Essas mudanças foram cruciais para a resistência das literaturas de nicho, se considerarmos o que coloca Schiffrin (2011) sobre as grandes corporações editoriais, em consonância com as colocações de Bourdieu (1992) sobre o campo literário. Em seu livro As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário (1992), Bourdieu coloca que o campo literário pode ser tido como um campo de produção de cultura e, entre as características principais relacionadas ao seu funcionamento, está aquela que afirma que as disputas internas se baseiam na concorrência por legitimidade.
Todos os agentes do campo estão em busca de legitimação, a qual ocorre, comumente, por meio do uso e da difusão dos capitais. Os capitais podem ser divididos em simbólicos, econômicos, territoriais, entre outros (BOURDIEU, 1997). Quando uma editora de grande porte anuncia seus livros pela metade do preço em detrimento do negócio estabelecido por uma pequena, ela o faz porque dispõe dos capitais necessários para resistir e lucrar, quais sejam, uma margem alta de estoque, um capital de giro duradouro e um plano de marketing bem aplicado.
São esses privilégios que favorecem a formação dos grandes monopólios editoriais apresentados por Schiffrin (2011):
Gradualmente, os editores se tornaram investidores, uma espécie de banqueiros, desesperados para encontrar tanto os best-sellers como as novas empresas, ou aquisições, que satisfariam seus novos donos ou os bancos que lhes haviam emprestado o dinheiro de que precisavam (SCHIFFRIN, 2011, p. 24).
Por essa lógica é compreensível que as grandes editoras não ofereçam espaço para autores iniciantes, tampouco se arrisquem com produções de cunho artístico e experimental. Isso faz com que tanto as publicações sejam limitadas quanto direcionadas. É nesse contexto que os mercados de nicho surgem como alternativa, mas eles também não são imunes à lógica estrutural do campo de produção literária, pois o capital que os legitima é o simbólico.
Ora, se as grandes casas editoriais estão angariando publicações de sucesso certo, com gêneros delimitados e para um público de massa, resta às pequenas editoras o mercado de nicho, entre eles aquele pertencente ao gênero fantasia. Eduardo Sporh, autor do livro A Batalha do Apocalipse (2007), surge como integrante desse mercado de nicho. Escritor ativo das redes, colaborador do Jovem Nerd, (portal de notícias e entretenimento sobre a cultura pop), formador de opinião com grande relevância no nicho nerd brasileiro e um dos idealizadores do NerdCast, (podcast produzido com a mesma finalidade), o autor se deparou com um caminho de autopublicação subsidiado em grande medida pela internet, quando de posse do seu livro com mais de 600 páginas.
Acerca do papel da internet como mediadora no caminho para a autopublicação, Schiffrin (2006) coloca que
Muito tem sido dito acerca do valor da internet como método de disseminação de informação. Com pequeno capital e treinamento mínimo, qualquer um pode criar um site, qualquer autor pode publicar seu trabalho, qualquer periódico científico pode começar a editar e talvez atingir um público de pessoas que pensam de modo semelhante ao redor do mundo (SCHIFFRIN, 2006, p. 154).
E foi nesses termos que Sporh vendeu as 100 primeiras cópias de seu livro. O autor imprimiu inicialmente 30 cópias, com o objetivo de encaminhar para editoras visadas, submeteu três impressos a um concurso literário e, tendo vencido, recebeu 100 novas cópias de sua publicação. Não obteve retorno das editoras, mas, nesse ínterim, sua atuação no blog cresceu, bem como a popularidade do projeto, resultando na criação de uma loja on-line, a Nerdstore. Foi nela que Sporh anunciou os 100 exemplares que havia ganhado no concurso editorial. Quando disponibilizados para seus internautas, os livros foram esgotados.
Sporh imprimiu por conta própria uma nova tiragem, agora com 500 exemplares, que foi esgotada um mês depois. Reencaminhou o livro às editoras e novamente não obteve resposta. No Jovem Nerd, após publicar seu livro on-line, mais de oito mil pessoas aguardavam seu exemplar. Uma nova tiragem com 4.000 impressos foi feita, agora com o selo Nerdbooks e ISBN, e todos foram vendidos. O autor começou a perceber que esse campo funcionava e que, de fato, a publicação por meio de uma editora não era o único caminho possível ou mesmo o mais facilitador. As vendas alcançaram níveis recordes ainda no esquema da autopublicação e somente em 2010 o livro foi publicado pela Grupo Editorial Record. Hoje a tiragem já ultrapassa os 600 mil exemplares e foi seguida do título Filhos do Edén, trilogia que não encontrou resistência no caminho da publicação.
O caso de Sporh é um exemplo do poder dos formadores de opinião nos nichos, pois somente após divulgar seu livro no Jovem Nerd que este deve o reconhecimento na comunidade e suas vendas dispararam. Jenkis reflete acerca desse poder do formador de opinião nos mercados de nicho e coloca:
A razão é que o melhor caminho para alcanças qualquer pessoa em uma comunidade é achar as poucas pessoas proeminentes que influenciam a maioria dos membros. A linguagem do “formador de opinião”, em particular tem sido frequentemente usada pelos profissionais de relações públicas para justificar a importância de ir além dos jornalistas tradicionais- até os blogueiros (JENKINS 2015, p.114).
É importante falarmos, ainda, do novo papel dos leitores nesse processo. A Batalha do Apocalipse já possuía um público leitor antes mesmo de ter uma casa editorial, logo, Sporh fazia apostas certas subsidiadas pela demanda ocasionada pelo seu público internauta. De igual maneira, os livros que vieram após A Batalha do Apocalipse já possuíam um público alvo antes mesmo de serem publicados e esse público não só aguardava o lançamento das obras como construía a narrativa em conjunto com o autor. Essa quebra com o ideal de autor é uma das rupturas também ocasionadas pela internet. Poderíamos dizer que a morte do autor, anunciada por Roland Barthes (2004), concretiza-se na convergência proposta por Jenkins (2011), já que as multimodalidades de escrita desfazem a aura atribuída a essa figura.
Essa interação entre autor e leitor, viabilizada por meio da internet, propiciou também que novas plataformas atuassem como facilitadoras no caminho da publicação. Dentre elas, as redes sociais que permitem que os leitores acompanhem e interajam com as propostas de escrita do autor, além de serem também um instrumento que viabiliza a noção do público-alvo. Segundo Araújo (2013), a tecnologia possibilitou não só a realização de um projeto gráfico por meio de ferramentas digitais relativamente simples, como a impressão de pequenas tiragens a um preço acessível, o que fez com que o autor tivesse a autonomia de se auto publicar e realizar a circulação de sua obra sem a necessidade de um estoque ou de grandes demandas, facilitando e agilizando o caminho entre livro e leitor, além de tornar possível a inexistência da figura do editor:
Com um computador pessoal e um razoável conhecimento de softwares como Page Maker (posteriormente substituído pelo Indesign), Photoshop e Corel Draw, a diagramação do miolo (parte interna do livro) e a criação de um layout de capa tornaram-se processos bastante acessíveis, podendo as edições independentes serem impressas com qualidade gráfica semelhante à dos livros publicados por editoras (ARAÚJO, 2013. p. 27).
A possibilidade de o autor ( ) publicar seu livro sem qualquer investimento, gerando um arquivo de computador que será comercializado eletronicamente e impresso apenas após a confirmação da venda (...) tem movimentado o mercado de publicações independentes (ARAÚJO, 2013. p. 34).
A autopublicação por meio de plataformas onlineseguiu o mesmo caminho facilitador da web e fez com que as livrarias especializadas em obras físicas investissem não só em vendas online, mas em alternativas para a autopublicação. Alguns sites foram criados exclusivamente com esse propósito, como é o caso do Catarse, plataforma de financiamento coletivo que permite que o autor angarie fundos para realizar suas publicações. A divulgação e as solicitações de apoio acontecem, principalmente, por meio das redes sociais. Desse modo, percebemos que a confluência entre diversas plataformas e modalidades de produção e circulação do livro foi a principal saída para que o mercado se adequasse às novas mudanças do cenário editorial brasileiro.
Segundo Jenkins a divulgação e a propagação de conteúdos de mídia nos ambientes virtuais mudou a ótica do mercado que teve que se adaptar aos custos mais baixos de produção, circulação e divulgação de conteúdo: “a mídia propagável pode desfrutar de custos irrecuperáveis menores de produção[ ], porque a mídia propagável reduz os custos ao esquivar-se da distribuição paga” (JENKINS 2015, P 245).
Entretanto o próprio Jenkis reforça que esse processo de divulgação e propagação de conteúdo online não tem caráter universal e muitas vezes é restrito a determinados nichos:
Até agora, entretanto, nossa discussão sobre a propagação potencialmente conflitante e potencialmente complementar do material entre comunidades múltiplas tem se concentrado apenas em determinados tipos de comunidade: aquelas com probabilidade de ter capacidade técnica e cultural de para propagar tal material. Uma variedade de divisões econômicos, sociais e geográficas impede algumas comunidades de tar um papel importante na mídia propagável (JENKINS, 2015, p. 344).
À vista disso, resultantes também do processo de modernização e do advento das novas tecnologias são os e-books. A criação de instrumentos de leitura próprios para a tela e de ambientes de venda on-line especializados nos livros digitais fez com que as grandes editoras investissem em massa nessa tecnologia. A princípio, isso gerou certo receio de que o livro digital acabasse por extinguir o livro impresso e boa parte da cadeia editorial, já que ele isenta as editoras dos problemas mais comuns da produção livreira, principalmente os relacionados aos gastos da distribuição e da circulação do livro, que são, desde muito tempo, o grande “calcanhar de Aquiles” das pequenas e médias editoras.
Entretanto, quase duas décadas depois do lançamento dessa tecnologia, percebemos que aparentemente o mercado livreiro se reinventou e encontrou um modo de se adaptar às mudanças ocasionadas pela internet, o que não resultou na extinção do livro impresso, conforme previsto por Chartier (1998), que afirmou que esta não se tratava da primeira grande mudança pela qual o livro seria submetido.
A atenção voltada para nichos e temas específicos foi preponderante para que, assim como as grandes editoras, as pequenas casas também formulassem uma rede. Aos poucos conhecidos como editores independentes – entendendo, num primeiro momento, a independência como o poder de produzir e publicar o que se quer e o poder de escolha que desconsidera a demanda das massas, favorecendo a proposta da editora e o desejo do editor –, esses editores deram início a LIBRE, Liga Brasileira dos Editores, que se apresenta como uma “rede de editoras independentes, que trabalham cooperativamente, pelo fortalecimento de seus negócios, do mercado editorial e da bibliodiversidade” (LIBRE, [s.d.], [s.p.]).
Entretanto, a existência desse grupo levanta questionamentos no cenário editorial brasileiro, os quais se acentuam quando pensamos na promoção da bibliodiversidade. Não pretendemos entrar nesse mérito, visto que se trata-se uma discussão extensa, mas, uma vez que a LIBRE agrega em seu conjunto editorial editoras consideradas de médio porte, que permeiam entre a publicação independente e a resposta ao mercado de consumo, a questão mais pertinente no cenário editorial brasileiro, neste momento, vem sendo: independente de quê?
À vista disso, podemos afirmar que há não só uma ruptura com o ciclo tradicional de publicação editorial, como uma nova proposta para autores de gêneros marginalizados ou estigmatizados, e essa proposta foge tanto da imponência das grandes casas editoriais que, geralmente, não se arriscam com a publicação de autores ainda desconhecidos, quanto das especificidades das editoras de nicho que querem garantir seu status simbólico. Como aponta Schiffrin (2006), hoje qualquer pessoa pode produzir, editar e publicar qualquer coisa via internet. Em casos como o de A Batalha do Apocalipse (2007) a rede atuou como facilitadora favorecendo a ascensão de novos escritores e sendo crucial para o crescimento e reconhecimento da literatura fantástica no Brasil. Ademais, foi uma das grandes estratégias utilizadas pelos autores para promover a disseminação do gênero e de uma autoria brasileira relacionada a ele.
Cabe-nos pensar até que ponto a facilidade de publicação é realmente um fator positivo para esses gêneros, posto que, em um local em que tudo é passível de publicação, não seria relevante pensar a autonomia do editor? Se tudo é publicável, como decidir a qualidade do que se publica? Longe de levantar respostas, esse trabalho visa à problematização, entendendo que muito há de se discutir sobre a autopublicação e a multifacetada estrutura do mercado editorial brasileiro. Num contexto ainda mais específico, há que se tecer muitas considerações sobre o gênero fantasia enquanto pertencente a essa estrutura. Nossa contribuição baseia-se no pressuposto de que a internet, enquanto facilitadora no caminho entre autor-editor-público, remodela os meios de produção e de circulação do livro, criando novas possibilidades que visam, em uma primeira mirada, facilitar o caminho do gênero em uma sociedade marcada pela manutenção da tradição literária.
Referências
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MONA´ALVÃO JR. Arnaldo Pinheiro. As multimodalidades da literatura nerd brasileira: consolidando uma identidade cultural. Estudos Linguísticos. São Paulo, p. 1287-1302/ set-dez. 2015.
RONAI, Cora. O nerd assumido que conquistou os leitores antes de convencer as editoras. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/o-nerd-assumido-que-conquistou-os-leitores-antes-de-convencer-as-editoras-8048888. Acesso em: 17 out 2017.
SCHIFFRIN, André. O negócio dos livros: como as grandes corporações decidem o que você lê. Trad. Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006.
SCHIFFRIN, O dinheiro e as palavras. São Paulo: BEĨ Comunicação, 2011.
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TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Trad. Silvia Delpy. México: Premia Editora de Livros, 1981.
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