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CHARGE: GÊNERO MULTIMODAL NO LETRAMENTO DOS ESTUDANTES DO SEGUNDO CICLO DA EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL

TIRITA: GÉNERO MULTIMODAL EN LA LITERACIDAD DE LOS ESTUDIANTES DEL SEGUNDO CICLO DE LA EDUCACIÓN PRIMARIA

CARTOON: MULTIMODAL GENDER IN THE LITERACY OF STUDENTS OF THE SECOND CYCLE OF ELEMENTARY EDUCATION

Elisângela Renata Tomaz DENARDIN
Secretaria Municipal de Educação, Brasil
Angela Rita Christofolo de MELLO
Universidade do Estado de Mato Grosso, Brazil

CHARGE: GÊNERO MULTIMODAL NO LETRAMENTO DOS ESTUDANTES DO SEGUNDO CICLO DA EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL

Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, vol. 16, núm. 1, pp. 20-36, 2021

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras

Recepção: 16 Junho 2019

Revised document received: 25 Setembro 2020

Aprovação: 18 Dezembro 2020

Publicado: 02 Janeiro 2021

RESUMO: O artigo publiciza resultados de uma pesquisa, realizada no âmbito do Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS), ofertado na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), campus de Sinop. A abordagem qualitativa pautou-se nos princípios da pesquisa ação e no planejamento de uma Sequência Didática (SD), com o propósito de trabalhar o gênero charge, a fim de motivar os estudantes para a leitura e letramento dos gêneros multimodais. A SD foi trabalhada em uma escola da rede pública, com estudantes do 5º ano da Educação Fundamental. A intervenção docente realizada suscitou debates e compreensões que propiciaram aos estudantes reflexões críticas, decorrentes da apropriação de diferentes níveis de letramentos, por meio do trabalho com o gênero charge.

PALAVRAS-CHAVE: Educação fundamental, Gênero multimodal, Letramento.

RESUMEN: El artículo propone presentar los resultados de una investigación, realizada en el ámbito del Programa de Maestría Profesional en Letras (PROFLETRAS), ofrecido en la Universidad del Estado de Mato Grosso (UNEMAT), campus de Sinop. El enfoque cualitativo se basó en los principios de la investigación acción y en la planificación de una Secuencia Didáctica (SD), con propósito de trabajar el género exageración burlesca, para motivar los estudiantes para lectura y la alfabetización de los géneros multimodales. Se trabajó la SD en una escuela de la rede pública, con alumnos del 5º año de la educación primaria. La intervención docente realizada suscitó debates y comprensión que propiciaron a los estudiantes reflexiones críticas, resultante de la apropiación de diferentes niveles de literacidades, por medio del trabajo con el género exageración burlesca.

PALABRAS CLAVE: Educación fundamental, Género multimodal, Literacidad.

ABSTRACT: The article disseminate the results about a research, accomplished by the scope of the Masters Program in Languages degree (PROFLETRAS), offered by the University of the State of Mato Grosso (UNEMAT), campus of Sinop. The qualitative approach was guided in the principles of action research and planning of a Didactic Sequence (SD), with the purpose of working in the cartoon gender, to motivate the students for reading and literacy about the multimodal’s gender. The SD was carried out in a public school, with students of 5th grade of elemantary school. The teaching intervention accomplished generate debates and understandings that provide to students, critical reflection, resulting the appropriation of different levels of literacy, by means of working with cartoon gender.

KEYWORDS: Basic education, Multimodal gender, Literature.

Introdução

O artigo publiciza resultados de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS), ofertado na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), campus de Sinop/MT. A dissertação defendida em fevereiro de 2019 trouxe resultados de uma intervenção realizada com o propósito de trabalhar com o gênero charge, a fim de motivar os estudantes para a leitura e letramento do gênero multimodal. A Sequência Didática (SD) denominada “Charge no Letramento dos Estudantes no Processo Final da Alfabetização do Fundamental I: Gêneros Multimodais que permitem a Leitura além da Decodificação” foi trabalhada em uma escola da rede pública municipal, no município de Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso/Brasil, com estudantes matriculados em uma turma do 5º ano da Educação Fundamental.

Assim, a pesquisa ação teve como objetivo geral analisar como o trabalho com a charge pode contribuir com a melhoria do nível de letramento e de proficiência em leitura de informações implícitas com estudantes do 5º ano. Em atenção a esse objetivo, várias ações foram realizadas. Primeiramente, mobilizou-se o interesse dos estudantes para a especificidade do gênero de criticar fatos atuais por meio do humor. Também se observou como os mecanismos linguísticos e visuais, presentes nessa composição verbo-visual, normalmente como uma crítica irônica, contribui para uma melhor compreensão leitora de textos pelos estudantes do 5º ano. Por último, analisaram-se como as noções básicas de leitura trabalhadas em sala de aula possibilitaram aos estudantes realizarem interferências e estabelecerem relação entre texto e contexto, no que concerne a função social da charge no contexto histórico, político e social.

O gênero charge não está proposto na matriz curricular do 5º ano da Educação Fundamental, ofertada na rede pública municipal de Lucas do Rio Verde. Por isso, esta pesquisa foi realizada neste ano da escolarização, com o fim de analisar possibilidades de trabalho com estudantes menores, tendo em vista que as charges propiciam condições para se trabalhar com os objetivos e direitos de aprendizagem específicos, a exemplo da localização de informações implícitas.

A intervenção realizada, por meio do planejamento de uma SD na perspectiva de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), foi escolhida porque se compreendeu que a estrutura sugerida pelos referidos autores é considerada adequada para desenvolver o projeto de intervenção proposto, pois a sua orientação didática permite trabalhar, de forma mais aprofundada, as características e a função social de um determinado gênero textual, no caso desta pesquisa, o gênero charge.

Charge: gênero multimodal e discursivo e sua contribuição no processo de reconhecimento da informação implícita e da apropriação da leitura proficiente

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) publicizaram que a função social da educação, no desenvolvimento das pessoas e das sociedades, ampliou-se ainda mais no despertar do novo milênio, e apontou para a necessidade de se construir uma escola com foco na formação integral, em atenção às exigências de um mundo em intenso desenvolvimento científico e tecnológico. Na era marcada pela competição e pela excelência, progressos científicos e avanços tecnológicos definem exigências novas para os jovens que ingressam no mundo do trabalho. Tal demanda implica em uma revisão dos currículos, que orientam professores e especialistas em educação, responsáveis pelo letramento dos estudantes, com vistas a habilitá-los a ler e a produzir textos de todos os gêneros, com compreensão das suas características e funções sociais.

Assim, é importante que os estudantes tenham conhecimento de que a charge é um gênero textual, cuja intencionalidade principal é fazer uma crítica por meio do humor. Por isso, as charges destacam-se pela criatividade e abordagem de temas da atualidade.

Consoante ao contexto, Bazerman (2015, p. 23) afirma que “Gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser. São frames para a ação social. São ambientes para a aprendizagem. São lugares onde o sentido é construído”. Os gêneros organizam os pensamentos que se formam e as comunicações por meio das quais se interagem. Gêneros são os lugares familiares para onde nos dirigimos para criar ações comunicativas, inteligíveis umas com as outras, e são, também, os modelos que utilizamos para explorar o não familiar.

Neste sentido, o eixo da discussão na Educação Fundamental centra-se, principalmente, no não domínio da leitura e da escrita pelos estudantes. Esta realidade é responsável pelo fracasso escolar que se expressa com clareza, nos dois funis em que se concentra a maior parte da repetência: no 1º ano e no 5º ano. No 1º, pela dificuldade de alfabetizar; no 5º, por não se conseguir levar os estudantes ao uso apropriado de padrões da linguagem escrita, condição primordial para que continuem a progredir. (BRASIL, 1998).

Em atenção aos diferentes níveis de conhecimento prévio, a orientação é que a escola valorize as diferentes áreas do conhecimento, para promover a aprendizagem, legalmente assegurada, enquanto direito de todos. Assim, espera-se que cada estudante seja capaz de interpretar os diferentes textos que circulam socialmente, assumir a palavra e produzir textos nas mais variadas situações e contextos ao concluir a Educação Fundamental.

O gênero textual charge está presente nos principais jornais e revistas de informação geral que circulam no país. Refere-se a fatos ocorridos em uma época definida, em um determinado contexto cultural, econômico, político e social, portanto o conhecimento desses fatores é fundamental para que suas mensagens sejam compreendidas. Fora desse contexto, provavelmente perderão suas forças comunicativas. Justamente por esta característica, a charge tem um papel importante como registro histórico. Vale lembrar que, como texto de caráter humorístico, pode manifestar, também, preconceitos e visões de mundo de forma implícita.

Em relação à escolha dos gêneros, considera-se que todos são bons enquanto recurso para o trabalho em sala de aula, mas a orientação é que se dê preferência àqueles de maior circulação social, ou aqueles que detêm maior complexidade, ou seja, os gêneros secundários.

Com relação às divisões dos gêneros, Bakhtin (1992, p. 28) “divide os gêneros em primários - aqueles que ocorrem em situações cotidianas - e secundários - que ocorrem em contextos comunicativos mais complexos”. Observa-se que para o autor, os gêneros exercem efeitos normativos, pois funcionam como modeladores dos discursos, uma vez que em qualquer situação de interação verbal, os falantes recorrem a eles. Para tanta, exige-se diferentes habilidades de linguagem em que:

[...] há necessidade de leitores não apenas do texto verbal, mas de uma gama de textos multimodais, ou seja, de textos que têm vários sistemas de linguagem (verbal + visual; verbal + audiovisual; verbal + gestual, etc.) em sua constituição. Pudemos constatar que a relação palavra/imagem mantém uma relação cada vez mais estreita, assim não havendo mais lugar para a velha concepção de letramento, que se detinha apenas à habilidade de ler e escrever (DIONÍSIO, 2005, p. 159).

Na concepção interacional dialógica da língua, os sujeitos são concebidos como atores construtores sociais ativos, que dialogicamente se constroem e são construídos no texto, considerado o próprio lugar da interação e da constituição dos interlocutores. Desse modo, há lugar no texto para que diferentes informações implícitas sejam lançadas. Nessa perspectiva, o sentido de um texto é dado na interação entre texto e sujeito.

Por conseguinte, a leitura é uma atividade interativa altamente complexa, de produção de sentidos, que se realiza com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização. Todavia, para que as informações implícitas sejam lidas e compreendidas, um conjunto de conhecimentos precisa ser mobilizado no interior do evento comunicativo. Com isso, a leitura proficiente de um texto exige do leitor bem mais que o conhecimento do código linguístico, uma vez que o texto não é simples produto da codificação de um emissor a ser decodificado por um receptor passivo. Diante do exposto:

Uma proposta de ensino/aprendizagem organizada a partir de gêneros textuais permite ao professor a observação e a avaliação das capacidades de linguagem dos alunos; antes e durante sua realização, fornecendo-lhe orientações mais precisas para sua intervenção didática. Para os alunos, o trabalho com gêneros constitui, por um lado, uma forma de se confrontar com situações sociais efetivas de produção e leitura de textos e, por outro, uma maneira de dominá-los progressivamente (DOLZ; SCHNEUWLY, 1996, p. 41).

A afirmação dos autores reforça a compreensão acerca da necessidade do trabalho com os diferentes gêneros textuais em sala de aulas da Educação Fundamental. Conhecer as características dos gêneros, bem como suas funções sociais é de suma relevância, pois como destaca Bazerman (2006, p. 88), “a relação que cada texto estabelece com os outros textos à sua volta é chamada de intertextualidade”. Por outro lado, a análise intertextual investiga a relação de um enunciado com o seu oceano de palavras, como também o modo como tal enunciado usa essas palavras. Desse modo, pode haver várias razões para se analisar a intertextualidade de um texto. Daí a importância de se trabalhar com essa diversidade de gêneros textuais, uma vez que o reconhecimento intertextual demanda o conhecimento das especificidades de cada gênero e do contexto de produção.

Como afirma Romualdo (2000, p. 47-50), as relações intertextuais do gênero charge “não são só visuais, mas também verbais. É que ele é, essencialmente, um texto polifônico, ou seja, constituído por várias vozes”. Diante disso, o leitor desse gênero textual, como destaca Magalhães (2006, p. 191), “deve ser um leitor atento, já que a história, a política e o humor se mesclam, manifestando a posição do chargista”. Como a charge não é um texto isolado, para compreender a informação, a opinião, o humor nela contidos, exige-se do leitor uma leitura ampla dos fatos que aparecem no suporte (jornal, revista, internet) em que a charge é veiculada.

Abordagem metodológica: aspectos de uma pesquisa qualitativa pautada nos princípios da pesquisa-ação

Como afirma Thiollent (2008), na pesquisa-ação, a capacidade de aprendizagem associa-se ao processo de investigação, quase sempre relacionada ao contexto de pesquisa em educação. O fato desse tipo de pesquisa permitir associar pesquisa-ação e aprendizagem a destaca na pesquisa educacional.

Em atenção ao objetivo proposto, algumas etapas foram realizadas: identificação, por meio de observação in loco, do interesse do estudante para a intencionalidade específica do gênero; observação e registro de como os mecanismos linguísticos e visuais presentes nas charges composição verbo-visual, normalmente como uma crítica irônica, contribui para uma melhor compreensão leitora dos estudantes do 5º ano; análise de como a charge trabalhada em sala de aula possibilita que os estudantes realizem interferências e estabeleçam relação entre texto e contexto, no que concerne à função da charge no contexto histórico, político e social.

É importante destacar que em cada situação proposta em uma pesquisa-ação, o pesquisador e os demais participantes podem redefinir o caminho a ser seguido, e, no caso desta intervenção, o planejamento inicial da SD foi apenas um ponto de partida. Mesmo porque esse tipo de planejamento é flexível, como qualquer outro, há sempre um reorganizar nas propostas, e isto aconteceu em diversos momentos no decorrer da intervenção, quando as aulas previstas para se trabalhar determinados módulos da SD não foram suficientes, sendo necessária a reorganização das atividades.

No decorrer da realização da intervenção, as observações, assim como os episódios vivenciados junto aos estudantes, foram registradas em um caderno de campo (CHARLON, 2010). As informações registradas compuseram o corpus de análise, partes destas, apresentadas nos próximos itens.

O trabalho pedagógico com sequências didáticas

Para trabalhar um gênero de forma adequada é preciso conhecer suas características, como também a compreensão que os estudantes possuem acerca da aprendizagem do mesmo. Isso é necessário para que a SD seja planejada de maneira que não fique nem muito fácil, porque a ausência de desafios poderá desestimular os estudantes, nem muito difícil, porque também poderá desencorajá-los a iniciar o trabalho e envolver-se com as atividades.

De acordo com Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 97), a SD é um planejamento de aprendizagem que compreende “[...] um conjunto de atividades escolares organizadas de maneira sistemática, em torno de um gênero oral ou escrito [...]”, cuja principal finalidade é a de ajudar o estudante no melhor domínio sobre as características de um gênero específico, permitindo-lhe, assim, uma maneira mais adequada de falar ou escrever em uma dada situação de comunicação. Neste sentido, a SD apresenta uma estrutura básica que compreende: a apresentação da situação; primeira produção; módulos e a produção final.

Ainda de acordo com Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 97), para que haja uma significativa aprendizagem é preciso um ensino sistemático, que permita ao estudante explorar, experimentar, reorganizar informações e conceitos, com vistas à conquista de novas aprendizagem. Daí a relevância de se trabalhar com esse planejamento na intervenção em sala, pois ao organizar uma SD, o professor poderá incluir atividades diversas como leitura, pesquisa individual ou coletiva, aula dialogada, produções textuais e aulas práticas. A SD, na perspectiva dos referidos autores, visa trabalhar um conteúdo específico, um tema ou um gênero discursivo de exploração inicial até a formação de um conceito, uma ideia, uma elaboração prática, uma produção escrita.

O que propõe Dolz e Schneuwly (1996), é que o professor, ao longo do ano letivo, escolha como objeto de ensino vários gêneros com características composicionais, sociodiscursivas e linguísticas, relativamente diferentes entre si, pois, assim, contribuirá para que os estudantes realizem diferentes operações de linguagem e se apropriem de diversas práticas de letramento. Dessa forma, terão a oportunidade de refletirem sistematicamente sobre gêneros semelhantes e diferentes entre si no decorrer da sua escolaridade.

Desenvolvimento da sequência didática

O desdobramento da SD planejada aconteceu de abril a julho de 2018, ocasião em que foram trabalhados a produção inicial, os cinco módulos e a produção final. As intervenções, com duração de duas horas semanais, aconteceram às segundas-feiras, porque nesse dia estava disponível o Laboratório de Informática e a assistente para colaborar. Mediante a extensão da intervenção realizada e os limites de páginas do artigo será descrito apenas o trabalho realizado no módulo IV, que foi o mais longo, e a produção final da SD trabalhada.

Módulo IV: Possibilidades de leitura

O quarto módulo foi o mais extenso de todos, durou um mês e necessitou do dobro de aulas planejadas. Com um projetor de imagens trabalhou-se em sala de aula as charges:

Charge 1
Figura 1
Charge 1
Fonte: Chirlam (2013)

Ao apresentar a charge 1, propôs-se aos estudantes que observassem por alguns minutos, em seguida foram feitas algumas perguntas: Qual o tema dessa charge? Qual é o contexto-histórico social em que se insere esse fato? Por que a professora não tem coragem de dizer a nota para o aluno? Explique como você chegou à conclusão. O que produz o efeito humorístico nessa charge? A discussão foi finalizada com um debate acerca da realidade social representada, os fatores e condições que provocaram essa situação e o que poderia ser feito para diminuir a violência nas escolas.

Especialmente na apresentação desta charge, na discussão sobre o tema abordado, os estudantes participaram de uma roda de conversa e tiveram dificuldade para identificar o tema. Após a pesquisadora comentar a temática da charge, identificaram que se tratava de violência. Ao fazer a pergunta em que contexto se apresentava a charge, ficaram em silêncio, mas ao explicar o que era contexto e os diversos contextos existentes, identificaram que se tratava do escolar, pelo fato de aparecer uma professora, um estudante, carteira, nota, prova. Contudo, um estudante atentou-se à frase no alto da charge “violência nas escolas”.

A conversa continuou em relação à violência ser um fato nas escolas, discutiu-se sobre a época em que o professor era uma autoridade, o respeito que lhe era atribuído, e como está a situação na atualidade. Neste processo, o diálogo se constituiu como um importante recurso didático, pois promoveu a interação, aspecto importante, mesmo por que “[...] para o processamento textual, recorremos a três grandes sistemas de conhecimento: conhecimento linguístico, conhecimento enciclopédico e conhecimento interacional” (KOCH; ELIAS, 2006, p. 39-40), neste caso, viabilizados por meio do diálogo.

Ao abordar o gênero charge com o 5º ano, observou-se que a dificuldade dos estudantes perpassava pelos três eixos de conhecimento. Quanto ao conhecimento linguístico, os estudantes tiveram dificuldades de compreender o significado de algumas frases destacadas nas charges, principalmente durante as pesquisas feitas na sala de informática, para obter um contato maior com o gênero. Em relação ao conhecimento enciclopédico, conhecimento de mundo que é um dos fatores que interferem na produção de sentido, os estudantes tiveram dificuldades, principalmente em ler as charges que abordavam questões sociais e políticas. Também o conhecimento interacional, que é o conhecimento sobre as ações verbais, isto é, formas de interação por meio da linguagem, os estudantes tiveram dificuldades para entender, principalmente, as mensagens que representavam o cenário político do país.

Diante das dificuldades apresentadas, a intervenção da pesquisadora se fez necessária. Em todos os módulos se esforçou para trabalhar as dificuldades apresentadas pelos estudantes com vistas a superá-las. Entretanto, é importante destacar que tais dificuldades fazem parte do processo de escolarização formal, pois não é fácil apropriar-se de todas as áreas do conhecimento, mesmo por que:

[...] o conhecimento linguístico abrange o conhecimento gramatical e lexical. Com este conhecimento, podemos compreender a organização do material linguístico, na superfície textual; a seleção lexical adequada ao tema ou aos modelos cognitivos ativados. O conhecimento enciclopédico, ou de mundo, são conhecimentos alusivos às vivências pessoais e eventos espaço-temporalmente situados, permitindo construção de sentidos. Já o conhecimento interacional, refere-se às formas de interação por meio da linguagem e engloba os conhecimentos: ilocucional; comunicacional; metacognitivo; superestrutural (KOCH; ELIAS, 2006, p. 40-45).

Prosseguindo com a leitura das imagens contida na charge, a professora questionou aos estudantes como estava vestido o aluno, o que ele portava em sua mão, bem como a expressão facial do estudante. Também questionou o fato de a professora, por estar de costas para o estudante, não mostrava a expressão do seu rosto, mas o balão expressava o seu pensamento: “Meu Deus eu não tenho coragem de falar a nota dele”.

As discussões em sala sobre essa charge foram produtivas, os estudantes participaram ativamente, ora com a intervenção da professora, ora tirando suas próprias conclusões a respeito do que estava sendo projetado no quadro. Concluíram que a professora não tinha coragem de dizer a nota para o estudante por conta da expressão de violência estampada no rosto dele. O efeito humorístico da charge estaria na figura da professora, uma autoridade da sala de aula, com medo de dizer a nota ao estudante. Discutiu-se, então, a atual realidade social, representada na charge.

Assim, questionou-se que fatores provocam essa situação e o que poderia ser feito para mudar essa realidade. As contribuições dos estudantes surpreenderam a professora pelo nível de maturidade apresentada nas discussões. Percebeu-se que muitos estudantes apresentaram um bom entendimento da situação apresentada na charge, ao tecerem comentários pertinentes de reportagens assistidas na televisão, ou conversas que tiveram com os pais e familiares sobre a violência nas escolas, em que os pais destacaram que, em sua época de estudante, professor era autoridade e tinha-se muito respeito para com os professores. Os estudantes também destacaram que a violência escolar não faz parte do cotidiano da escola em que estudam.

Charge 2
Figura 2
Charge 2
Fonte: Acervo O Globo s/d

Ainda neste módulo foi trabalhada a charge 2. Para apresentá-la utilizou-se o mesmo recurso e a estratégia de projetá-la no quadro, de deixá-la exposta para a visualização e discussão das questões propostas. Ao questionar em que contexto se passaria esta charge, alguns responderam contexto escolar, por causa da visualização da professora, do quadro e do aluno. Com isso, discutiu-se que não se deve levar em conta, ao definir o contexto, apenas o aspecto visual, reforçou-se que também é recomendado analisar o texto verbal.

Após esta discussão e intervenção da pesquisadora, alguns estudantes concluíram que seria um contexto político. A dificuldade dos estudantes em identificar ou reconhecer o contexto de produção fez pensar que a escolha do gênero charge fora inadequada para se trabalhar com o 5º ano. Contudo, a defesa é de que esse tipo de gênero seja trabalhado nos anos iniciais, pois os estudantes têm o direito de reconhecer suas características, função social e aprender a interpretá-lo.

Mesmo com as dificuldades dos estudantes, prosseguiu-se com o trabalho planejado para esta segunda charge. Então, após concluir que o contexto de produção da charge era o político, explorou-se as linguagens contidas na charge, primeiramente lembrou-se que este é um gênero multimodal porque possui linguagem verbal e não verbal, e que ambas são importantes para a compreensão da leitura. Ao se trabalhar os elementos extratextuais contidos na charge, observou-se que as dificuldades de compreensão dos estudantes acentuaram-se. Diante da observação, insistiu-se na explicação vocabular utilizada, pois uma das dificuldades apresentadas pelos estudantes nas avaliações externas se refere à incompreensão do que está escrito.

Neste sentido, Kleiman (2007) destaca que as práticas sociais passam a ser o objeto estruturante da aprendizagem da língua materna. Isso implica assumir aspectos sociais de escrita, leitura, oralidade e escuta sobre o conteúdo a ser ensinado. Nessa perspectiva, devem-se apresentar textos significativos aos estudantes, considerar o estudante como sujeito do discurso, portador do texto, que participa de eventos de letramentos, realiza práticas que dependem da língua, mesmo antes de entrar na escola. Destaca, ainda, que na escola onde predomina a concepção de leitura e de escrita como competências, concebe-se a atividade de ler e escrever como habilidades que devem ser desenvolvidas progressivamente, até se atingir a competência leitora e escritora ideal. Assim, a partir do momento em que o letramento do estudante é o objetivo da ação pedagógica, o movimento será da prática social para o conteúdo, nunca o contrário.

Os elementos extratextuais contidos na charge trabalhada referiram-se à implicitude dos fatos, o que não foi dito, mas faz parte do texto e complementa a compreensão. Não foi fácil exemplificar aos estudantes esses elementos. Ao questionar por que o estudante respondeu desta forma, permitiu melhor explicar a presença dos elementos implícitos em um texto. Para esse elemento ser inserido em um gênero textual, demanda conhecimento do contexto político explicitado na charge por parte do produtor.

As intervenções da professora permitiram que as discussões fluíssem em torno da pergunta: qual a intenção da professora ao perguntar “Quem é o sujeito da oração”? Os estudantes do 5º ano ainda não estudaram sujeito e predicado, esses conteúdos são trabalhados a partir do sexto ano, por isso a dificuldade de compreender e discutir a charge. Por fim, perguntou-se aos estudantes o sentido da charge na atualidade, o momento político atual com o descrédito dos eleitores na melhoria das conjunturas sociopolítica e econômica. Esses aspectos foram discutidos junto aos estudantes, mas com pouca participação deles. Alguns arriscaram contribuir com as impressões e comentários que escutaram em casa, o que pensam sobre honestidade, o que se discute em suas casas e o que poderia ser feito para melhorar a condição atual.

Observam-se que os PCNs mencionam que para formar leitores e escritores competentes em sala de aula, o professor deve incentivar os estudantes a se defrontarem com as reais questões que a escrita coloca, conforme as circunstâncias nas quais os textos foram produzidos, incentivá-los a arriscarem e procurarem escritores e leitores mais experientes, isso fará com que possam melhorar o seu desenvolvimento (BRASIL, 1998).

Ressalta-se, contudo, que o professor tem importante responsabilidade nas interações verbais e sociais estabelecidas em sala de aula, que foi o que aconteceu neste módulo, para que os estudantes pudessem compreender a situação retratada na charge, compreender o contexto, a ironia e assim discutir com os seus pares.

Produções dos estudantes do 5º ano de uma Escola Municipal situada em Lucas do Rio Verde-MT

Este item reuniu as produções dos estudantes do 5º ano de uma escola municipal situada na cidade de Lucas do rio Verde-MT. Após alguns meses de trabalho e todos os módulos planejados concluídos, todos os estudantes puderam colocar em prática os conhecimentos aprendidos durante a intervenção. Esta produção final serviu de estímulo aos estudantes e à professora, com avaliação importante em relação ao objetivo inicial proposto, de um gênero que nunca fora trabalhado nesta turma e resultou em boas charges como produto final.

O texto multimodal consiste em uma construção textual e na união de outros elementos de diferentes registros de linguagem. Os textos multimodais mais conhecidos são os que estão pautados na junção de elementos alfabéticos, linguagem verbal, e imagéticos, linguagem não-verbal/visual. A consolidação proficiente da leitura e interpretação de informações implícitas em textos multimodais, com vistas a valorizar a alfabetização e o letramento nos anos iniciais da Educação Fundamental, pode ser observada por meio das atividades realizadas.

Assim, ao se considerar os diferentes níveis de conhecimentos prévios dos estudantes, foram trabalhados conhecimentos formais, em consonância às Orientações Curriculares (BRASIL, 1998), com vistas a promover a construção progressiva dos conhecimentos historicamente construídos, direito de todos os estudantes, durante os nove anos do Ensino Fundamental. Cada estudante respondeu às produções elaboradas de acordo com seus conhecimentos, bem como produziu novos.

A seguir estão algumas produções dos estudantes, estas também estão disponíveis na página do Facebook da “Escola Municipal situada em Lucas do Rio Verde-MT”.

Produção Final: Charges produzidas pelos estudantes do 5º ano
Figura 3
Produção Final: Charges produzidas pelos estudantes do 5º ano
Fonte: Acervo das autoras

De acordo com a concepção de Vygotsky (1984), práticas e formas culturais desenvolvidas, identificáveis como gêneros distintivos, discursivos, e a diferenciação dos mundos sociais e culturais, são lugares específicos de atividades que utilizam ferramentas cognitivas exclusivas e sustentam diferentes linhas de desenvolvimento psicológico. Indivíduos, ao aprender e interiorizar as formas culturais, as usam para regular sua percepção, pensamento e participação com os outros.

Marcuschi (2008, p. 19), define os gêneros textuais como “entidades sócio- discursivas e formas de ação social incontornáveis de qualquer situação comunicativa”. Assim, os gêneros surgem como formas de comunicação, para atender a necessidade de expressão do ser humano, afeiçoados sob a influência do contexto histórico e social das diversas esferas da comunicação humana.

Considerações finais

Visto que o letramento pretende, com a prática pedagógica, ensinar a escrita e as novas tecnologias da sociedade letrada, como uma das maneiras de possibilitar ao cidadão conviver nas diferentes esferas sociais, as atividades realizadas com charges em sala de aula permitiram suscitar debates e compreensões que propiciaram aos estudantes reflexões críticas, decorrentes da apropriação de diferentes níveis de letramentos consolidados por meio do trabalho com o gênero charge.

Desta forma, ao término da intervenção docente foi possível reeditar a necessidade de se trabalhar com a diversidade de gêneros textuais que circulam nas diferentes esferas sociais e suas respectivas funções. Isso porque, ao passo que os estudantes compreenderam a função social de cada gênero, tiveram mais facilidade para interpretá-los, e, consequentemente, para compreender o atual contexto sociopolítico e econômico. Mesmo porque é direito dos estudantes aprender a ler as diferentes linguagens utilizadas na composição dos infinitos gêneros textuais, como a linguagem verbal e não verbal, o movimento, as imagens, os sinais, e os diferentes signos do mundo moderno, que combinaram textos multimodais com movimentos e imagens que complementaram e ampliaram a compreensão da leitura dos estudantes e do contexto de produção destas.

AGRADECIMENTOS

Coordenadoria de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

REFERÊNCIAS

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KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.

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