Artigos
O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL DA CRIANÇA EM IDADE ESCOLAR NA PERSPECTIVA CRÍTICO-DIALÉTICA
O DESARROLLO EMOCIONAL DE NINÕS EM EDAD ESCOLAR DESDE LA PERSPECTIVA CRÍTICO- DIALÉTICA
THE EMOTIONAL DEVELOPMENT OF SCHOOL-AGE CHILDREN FROM THE CRITICAL-DIALECTIC PERSPECTIVE
O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL DA CRIANÇA EM IDADE ESCOLAR NA PERSPECTIVA CRÍTICO-DIALÉTICA
Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, vol. 16, núm. 4, pp. 2776-2790, 2021
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

Recepción: 01 Agosto 2021
Recibido del documento revisado: 25 Septiembre 2021
Aprobación: 01 Octubre 2021
Publicación: 21 Octubre 2021
Resumo: Considerando a relevância da perspectiva crítico-dialética nos estudos relacionados à formação e ao desenvolvimento emocional da criança, objetiva-se apresentar considerações e provocações sobre o desenvolvimento dos aspectos afetivo-emocional na criança nos seus primeiros anos de vida a fim de que haja um maior entendimento dessas funções para qualificação do trabalho educativo. Para tanto, procede-se à pesquisa bibliográfica e às discussões oriundas do grupo de pesquisa FOCO - (Formação, Práxis e emancipação na Educação Escolar: Implicações da Teoria Histórico-Cultural no Ensino, Aprendizagem e no Desenvolvimento Humano), vinculado ao CNPq e à Universidade Estadual de Londrina. Observa-se que a teoria que subsidia a discussão vai ao encontro dos pressupostos das teorias psicológicas tradicionais permitindo concluir que o desenvolvimento infantil proposto nesse estudo é compreendido na relação dialética, histórica e sistêmica entre a afetividade, a cognição, o biológico e o cultural.
Palavras-chave: Educação, Desenvolvimento Emocional, Afetividade, Teoria Histórico-Cultural.
Resumen: Considerando la relevancia de la perspectiva dialéctica crítica de los estudios relacionados con la formación y el desarrollo emocional del niño, el objetivo es presentar consideraciones y provocaciones sobre el desarrollo de los aspectos afectivo-emocionales en los niños, en los primeros años de vida para que exista Es una mejor comprensión de estas funciones para la calificación del trabajo educativo. Por tanto, la investigación bibliográfica y las actividades derivadas del grupo de investigación FOCUS - (Formación, praxis y emancipación en la educación escolar: implicaciones de la teoría cultural histórica en la enseñanza, el aprendizaje y el desarrollo humano) vinculado al CNPQ y la Universidad Estatal de Londrina. Se observa que la teoría que sustenta la discusión va en contra de los supuestos de las teorías psicológicas tradicionales, permitiendo concluir que el desarrollo infantil propuesto en este estudio se entiende en la relación dialéctica, histórica y sistémica entre afectividad, cognición, lo biológico y lo cultural.
Palabras clave: Educación, Desarrollo emocional, Afecto, Teoría histórico-cultural.
Abstract: Considering the relevance of the critical dialectical perspective of studies related to the formation and the emotional development of the child, the objective is to present considerations and provocations about the development of affective-emotional aspects in children, in the first years of life so that there is a better understanding of these functions for the qualification of educational work. Therefore, bibliographical research and activities arising from the FOCUS research group - (Formation, Praxis and Emancipation in School Education: Implications of Historical Cultural Theory in Teaching, Learning and Human Development) linked to Cnpq and the State University of Londrina. It is observed that the theory that supports the discussion goes against the assumptions of traditional psychological theories, allowing to conclude that the child development proposed in this study is understood in the dialectical, historical, and systemic relationship between affectivity, cognition, the biological and the cultural.
Keywords: Education, Emotional development, Affection, Historical-cultural theory.
Introdução
O presente estudo constitui-se sobre a premissa de que o homem se desenvolve a partir do contato com outros seres humanos mais experientes, o que implica em uma relação dialética entre a afetividade e a cognição, o biológico e o cultural. Enfatiza-se que desde o nascimento apresentamos emoções, reflexos e espasmos inatos ligados diretamente ao instinto de sobrevivência e, por esta razão, busca-se aqui tecer considerações e provocações sobre o desenvolvimento dos aspectos afetivo-emocional na criança nos seus primeiros anos de vida a fim de que haja um maior entendimento dessas funções para qualificação do trabalho educativo.
Ademais, ressalta-se que este trabalho se fundamenta no método crítico-dialético e nos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, eleitos em função da compreensão de homem e de sua humanidade como produto das relações sociais estabelecidas, enfatizando que os valores, os hábitos, a linguagem, tudo aquilo que o constitui, é social e historicamente consolidado sobre a base biológica com a qual se nasce.
Assim, para refletir sobre a criança em seus primeiros anos de vida e o papel mediador do professor que atua diretamente com elas estimulando o desenvolvimento de elaborações sociais a respeito de si e do mundo à sua volta, almeja-se apresentar alguns dos conceitos pertinentes ao estudo do desenvolvimento afetivo-emocional na primeira infância, como o desenvolvimento das funções psicológicas superiores e a emoção como função psíquica basilar.
Outrossim, compreende-se que os estudos que envolvem o desenvolvimento infantil são fundamentais, visto que os estímulos físicos, cognitivos e psicológicos realizados durante a infância influenciam direta e indiretamente na vida adulta. Portanto, espera-se que este trabalho possa contribuir de alguma maneira para o ensino infantil, bem como para que professores possam repensar seu modo de perceber e atuar no trabalho pedagógico com as crianças.
Para isso, inicialmente far-se-á uma análise sobre a base que estrutura o homem (física, social e psíquica), bem como, no segundo momento se buscará evidenciar a relação existente entre a tríade social, emocional e afetiva, aspectos essenciais ao desenvolvimento integral da criança. E, por fim, serão tecidas considerações sobre as análises e os diálogos realizados para alcançar o objetivo da pesquisa.
O biológico, o social e o desenvolvimento infantil
Discordando das principais correntes psicológicas de sua época, Vygotsky preocupou-se com a superação das mesmas, buscando uma psicologia científica capaz de compreender, descrever e explicar os processos psicológicos tipicamente humanos e, a partir dos pressupostos do Materialismo Histórico-Dialético, “[...] sobre a sociedade, o trabalho humano, o uso dos instrumentos, e a interação dialética entre o homem e a natureza” (REGO, 2000, p. 32), firmou sua tese do desenvolvimento humano atrelado às relações sociais e à cultura. Desta maneira, pode-se afirmar que Vygotsky e seus colaboradores buscaram uma psicologia mais abrangente que superaria a dualidade corpo-mente, defendendo a integralidade do homem enquanto espécie e ser social imerso na cultura.
Como supracitado, a Psicologia Histórico-Cultural constitui-se sob a base no método crítico-dialético, sendo este caracterizado “[...] pelo movimento do pensamento através da materialidade histórica da vida dos homens em sociedade, isto é, trata-se de descobrir (pelo movimento do pensamento) as leis fundamentais que definem a forma organizativa dos homens em sociedade por meio da história” (PIRES, 1997, p. 83). Em outras palavras,
[...] como diz Althusser, "no materialismo dialético pode-se considerar, esquematicamente, que é o materialismo o que representa o aspecto da teoria, enquanto que a dialética representa o aspecto do método" (1969, p. 46). Um remete ao outro. É o materialismo que confere à dialética seu caráter histórico, pois expressa os princípios das condições concretas da produção do conhecimento, ou seja: (a) a distinção entre o real e o conhecimento desse real e (b) a primazia do real sobre o conhecimento. O primeiro desses princípios, além de permitir escapar das concepções racionalistas e empiricistas, implica no fato de que entre o real e o conhecimento desse real existe um distanciamento em que opera a atividade produtiva do sujeito. O segundo faz do real o ponto de partida do conhecimento [...] que não se perde no processo de produção do conhecimento. O objeto de conhecimento não é o real em si, tampouco um mero objeto de razão. Ele é o real transformado pela atividade produtiva do homem, o que lhe confere um modo humano de existência (SIRGADO, 2000, p. 47).
Entende-se que as abordagens acima referidas definem novos conceitos analíticos no que diz respeito às funções humanas, bem como a compreensão de que todo ser humano vive em processo de transformações constantes considerando seu desenvolvimento histórico-cultural. Sobremaneira, podem-se identificar alguns pressupostos preponderantes à teoria vygotskyana: As funções psicológicas têm um suporte biológico; As relações sociais desenvolvidas num processo histórico em que o indivíduo estabelece com o meio interferem no funcionamento psicológico; A relação homem/mundo é mediada por sistemas simbólicos.
A partir destes fundamentos Vygotsky (2010, p. 698) demonstra que “[...] o homem é um ser social, que fora da interação com a sociedade ele nunca desenvolverá em si aquelas qualidades, aquelas propriedades que desenvolveria como resultado do desenvolvimento sistemático de toda a humanidade”.
As interações sociais são, portanto, eixo fundamental da constituição humana. Seus estudos abordam prioritariamente as interações sociais dos indivíduos em que o conhecimento é desenvolvido pelas relações destes com o meio em que vivem, produzindo e se apropriando de uma cultura de forma interligada. Dessa forma, se torna imprescindível compreender de que cultura se trata, uma vez que este estudo é fundamentado por uma abordagem histórica e dialética e, de acordo com Malanchen (2019), existem vários conceitos acerca de tal palavra, com diferentes significados e sob vários pontos de vista.
Assim sendo, Malanchen (2019) assevera a relevância de se compreender o conceito de cultura dentro da perspectiva crítica, relacionando com a história dos seres humanos e com a formação do ser social. Portanto, para compreender o que é cultura, dentro da perspectiva proposta, faz-se necessário entender como o homem se humaniza no curso da história.
Sintetizando o que é cultura, Malanchen (2019) destaca alguns pontos que influenciam sua apropriação: resulta da ação do trabalho, da atividade do homem na natureza, desse modo, a cultura é material. Nesse movimento, surgem os elementos não materiais ou simbólicos, como a linguagem, as ideias e o conhecimento. E, por fim, a apropriação da cultura, que é um processo que se dá de forma coletiva, junto a outros homens, por meio das interações sociais, ocorre em prol do processo de humanização.
Ressalta-se que a Teoria Histórico-Cultural apresenta o ser humano de forma interiorizada com as relações sociais. Diante disso, pode-se entender que as ações mentais do ser humano são condizentes ao contexto cultural, social e histórico, visto que a consciência é entendida como prática de convivência na sociedade, direcionada pela própria vida social, por meio de suas transformações e experiências vividas.
Vygotsky e seus colaboradores buscaram explicar como se formam as características tipicamente humanas, o comportamento e o desenvolvimento dos indivíduos, sendo estes questionamentos a base da teoria Histórico-Cultural que enfatiza a importância da vida em sociedade na constituição dos modos de agir, perceber, representar, pensar e se desenvolver. Neste prisma, o desenvolvimento psíquico se constitui a partir das relações sociais, fazendo com que cada indivíduo aprenda a ser homem de acordo com os estímulos que recebe, de modo que as mudanças históricas que ocorrem na sociedade e na vida material produzem mudanças na natureza humana (FONTANA; CRUZ, 1997).
De acordo com a Psicologia Histórico-Cultural, o homem é um ser eminentemente social e, portanto, as características humanas se desenvolvem em função do contato que o sujeito estabelece com o meio por intermédio da interação social, daí a importância da relação adulto-criança, uma vez que o adulto é o mediador da criança com o mundo, sendo ele o responsável pela transmissão do saber histórico e social acumulado, pois a “[...] mediação, em termos genéricos, é o processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação; a relação deixa, então, de ser direta e passa a ser mediada por esse elemento” (OLIVEIRA, 2016, p. 26).
Para Vygotsky as crianças utilizam-se das interações sociais que são carregadas de instrumentos mediadores para acessar informações e defende que, segundo destaca, afirma, aponta, sublinha, menciona, reflete, discute ou enuncia Oliveira (2016, p. 27) “[...] a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas fundamentalmente, uma relação mediada”, em que o processo de desenvolvimento ocorre de forma espiral e engloba indissociavelmente as características biológicas e os estímulos recebidos do ambiente, embasando a ideia de que existem funções psicológicas elementares e que com a apropriação dos elementos da vida em sociedade pelo sujeito, essas funções acabam se modificando e se transformando em funções psicológicas superiores.
Entendendo a formação do sujeito como um processo, parte-se da ideia de que as bases para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores estabelecem-se desde os primeiros meses de vida da criança que perpassa três grandes fases, sendo: a vida intrauterina; o período pós-natal; e o “período de relativa estabilidade na formação cultural do bebê” (CHEROGLU; MAGALHÃES, 2016, p. 94) marcados pela comunicação emocional direta.
Ressalta-se que no período uterino tem-se o crescimento fisiológico que fornecerá posteriormente as condições para a formação psíquica, tanto que os sistemas nervoso e circulatório são os primeiros a serem formados, possibilitando que o feto passe a reagir aos sons e ao toque de forma involuntária, ou seja, sem compreender o que é sentido ou ouvido, gerando respostas emocionais de vínculo que fazem com que as mudanças de humor da mãe e os fatores bioquímicos que o sustentam afetem o desenvolvimento do feto (CHEROGLU; MAGALHÃES, 2016).
Ainda de acordo com Cheroglu e Magalhães (2016) pouco tempo depois do nascimento, o bebê começa a agir de acordo com o ambiente social que o circunda, ou seja, passa a responder aos estímulos dos adultos a sua volta, uma vez que desde a barriga e após o nascimento o bebê não sobrevive sem a presença de um adulto, devendo ser considerada a mudança radical da vida uterina para o período pós-natal que corresponde em média aos primeiros 45 dias após o nascimento, denominado por Vygotsky, como período de passividade devido à dependência que a criança apresenta neste momento em que inicia sua atividade psíquica.
De acordo com Vygotsky (2002, p. 40), “[...] desde os primeiros dias do desenvolvimento da criança, suas atividades adquirem um significado próprio num sistema de comportamento social” e, após os primeiros 45 dias, o córtex e a atividade nervosa tem um significativo desenvolvimento de acordo com a vida psíquica e social, que marca o fim do período pós-natal e a partir do 2° e 3º meses, a passividade se transforma em interesse e o bebê passa a manifestar suas primeiras reações sociais e a perceber as expressões afetivas entre ele e o adulto (CHEROGLU; MAGALHÃES, 2016). Deste modo,
[...] cada uma dessas transformações cria as condições para o próximo estágio e é, em si mesma, condicionada pelo estágio precedente; dessa forma, as transformações estão ligadas como estágios de um mesmo processo e são, quanto a sua natureza, históricas. Com relação a isso, as funções psicológicas superiores não constituem exceção à regra geral aplicada aos processos elementares; elas também estão sujeitas à lei fundamental do desenvolvimento, que não conhece exceções, e surgem ao longo do curso geral do desenvolvimento psicológico da criança como resultado do mesmo processo dialético, e não como algo que é introduzido de fora ou de dentro (VYGOTSKY, 2002, p. 34).
A partir da compreensão dialética do desenvolvimento, entende-se que as funções psicológicas superiores compreendem funções mentais que manifestam características de comportamento do homem como a memória, a abstração, o planejamento, o pensamento, a atenção voluntária, a intencionalidade, a percepção e divergem das funções psicológicas elementares que se constituem a partir dos determinantes biológicos, semelhante às funções presentes nos animais, pois as funções psicológicas elementares compõem atitudes e comportamentos involuntários e imediatos referentes aos estímulos do ambiente externo (VYGOTSKY, 2002).
Por este motivo, as funções psicológicas elementares aliadas às aprendizagens sociais possibilitadas desde os primeiros dias de vida, permitem o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, na medida em que estas se desenvolvem apenas em humanos devido à característica eminentemente social e a atividade e plasticidade cerebral, caracterizando-se pela intencionalidade das ações e a interação entre fatores biológicos e sociais. Vygotsky (2002) ainda ressalta que o desenvolvimento psíquico advém da interiorização das funções psicológicas e que estas não eliminam as funções psicológicas elementares.
O desenvolvimento social, emocional e afetivo
Enquanto seres sociais, as emoções e a afetividade encontram-se presentes em todas as relações estabelecidas, sendo funções psicológicas superiores que estão em constante desenvolvimento desde o início da vida, estimuladas e intimamente relacionadas com a relação que se tem com os adultos à sua volta (MUKHINA, 1996).
A emoção constitui-se como um processo superior humano que tem em si a característica da mutabilidade, o que justifica o estudo do desenvolvimento emocional da criança. Deste modo, objetivando o estreitamento da relação entre emoção e desenvolvimento, convém partirmos da compreensão de “[...] emoção [como um] estado afetivo, comportando sensações de bem-estar ou mal-estar que têm um começo preciso, é ligado a um objeto específico e de duração relativamente breve e inclui ativação orgânica” (ALMEIDA; MAHONEY, 2005, p. 19).
A paulatina inserção da criança no mundo da cultura implica na relação com sujeitos mais experientes que cuidam e a educam visando à humanização a partir da constante relação com o sistema de significação já estabelecido, assim “[...] existe um sistema semântico dinâmico que representa a unidade dos processos afetivos e intelectuais, [...] em toda ideia existe uma relação afetiva do homem com a realidade representada nessa ideia” (BARBOSA, 2011, p. 19).
Neste sentido, entende-se que o desenvolvimento emocional “envolve o aumento da capacidade de sentir, entender e diferenciar emoções cada vez mais complexas, bem como a capacidade de autorregulá-las, para que o indivíduo possa se adaptar ao ambiente social ou atingir metas presentes ou futuras” (RUEDA; PAZ-ALONSO, 2013, p. 1).
Nota-se a intrínseca relação entre o desenvolvimento social e o emocional, na medida em que a partir das relações sociais, o indivíduo passa a compreender e a nomear as emoções básicas como a alegria e a desenvolver, compreender e nomear as emoções morais tais como a vergonha e o orgulho fruto das normas sociais vigentes interiorizadas (RUEDA; PAZ-ALONSO, 2013). Vygotsky não denomina “desenvolvimento emocional”, mas apresenta em seu discurso a ideia inovadora do desenvolvimento de emoções tidas como a transposição de afetos inferiores em e com afetos superiores. Deste modo,
Não há sentimentos que por direito de nascimento pertençam à categoria superior, enquanto os outros seriam ligados, por natureza, à categoria inferior. A única diferença reside na sua riqueza e complexidade, e todas as nossas emoções são capazes de adquirir todos os graus de evolução dos sentimentos. Cada emoção só pode ser qualificada do ponto de vista do seu grau de evolução, porque a única teoria das emoções que pode ser descrita como satisfatória é aquela que pode ser aplicada a todos os graus de desenvolvimento do sentimento (VIGOTSKI, 2004, p. 213 apud CÓRDOVA, 2006, p. 183, tradução nossa).
Posto de outro modo, Vygotsky entende que os sentimentos e as emoções de qualquer ser humano estão em permanente modificação, o que significa dizer que mesmo as emoções mais elementares também se complexificam. Estabelecendo assim, uma regra: Todas as emoções sofrem graus de mudanças ao longo do desenvolvimento do sujeito e se inter-relacionam com os outros tipos de transformações. De acordo com a Teoria Histórico-Cultural, as emoções estão eminentemente presentes no processo de desenvolvimento da linguagem – sistema de signos de maior relevância para o homem - uma vez que a emoção orienta o pensamento e ela também é influenciada pelos nossos pensamentos, de modo que:
[...] o pensamento apresenta-se como um conjunto dinâmico e complexo gerado por necessidade, interesses, impulsos e emoções que configuram sentidos particulares. Sentido que em um primeiro plano não tem função comunicativa, mas de mediação do comportamento, “fala para si mesmo”, linguagem interna (CAMARGO, 2004, p. 165, grifos da autora).
Neste sentido, a criança, ser ativo em seu próprio desenvolvimento, por meio das relações estabelecidas, desenvolve-se psiquicamente reelaborando a sua forma de ver e compreender a si e ao mundo em que vive. Deste modo, cabe aos adultos em seu entorno, o papel de estimular integralmente a criança, compreendendo as características cognitivas e emocionais para que a mesma reelabore e reconstrua seus conhecimentos objetivando o desenvolvimento de sua estrutura psíquica para suporte de bases emocionais cada vez mais complexas.
Nessa assertiva, na escola, o professor é quem mediará o contato da criança com o mundo que a cerca de maneira intencional. Em vista disso, é o professor quem pode proporcionar condições para o desenvolvimento integral da criança no ambiente escolar por meio do diálogo, da interação entre adulto/criança, criança/criança e da organização do espaço, viabilizando por intermédio de práticas educativas vivências significativas em prol de sua humanização, haja vista que o contato da criança com a cultura elaborada amplia as relações da mesma com o mundo, complexificando seu psiquismo.
Entretanto, ressalta-se que para que isso ocorra este profissional deve compreender acerca do desenvolvimento infantil e ter se apropriado dos conhecimentos a serem transmitidos, de modo que possa direcionar assertivamente a criança no percurso de aprendizagem dos conteúdos pretendidos, logo, torna-se iminente que o professor desenvolva-se integralmente, qualificando os aspectos emocionais e afetivos para que viabilize situações de ensino desenvolvente pautado na integralidade do sujeito. Verifica-se, desta maneira, a relevância da qualificação das funções psíquicas correlatas aos aspectos afetivos por parte dos professores, tanto que embora grande parte da produção conhecida de Vygotsky seja relacionada à dimensão cognitiva, este não deixou de se preocupar com os aspectos afetivos, de modo que buscou analisar a formação humana de modo dialético e integral. De acordo com Rego (2000), as produções de Vygotsky relacionadas diretamente com a afetividade, como: “A base biológica do afeto”, “Estudo das emoções”, “O problema do desenvolvimento dos interesses”, entre tantas outras obras, ainda não foram traduzidas, dificultando a circulação dos pressupostos do autor acerca da temática. Entretanto, vale ressaltar que suas obras deixam em evidência a relação indissociável entre os aspectos afetivos e cognitivos, superando a visão dualista do homem.
Dentre os fenômenos psicológicos, a afetividade encontra-se em um patamar de difícil acesso, na medida em que é complexa a sua conceituação e definição de metodologias para estudo e análise do desenvolvimento emocional e afetivo dos sujeitos, portanto, para delimitação da pesquisa, entenderemos neste momento como afetividade, de acordo com Marinho (2010), o modo como as vivências humanas são percebidas e expressas por meio de variadas emoções, sentimentos e sensações que vão se tornando cada vez mais elaboradas, identificadas e controladas, sendo parte fundamental da vida psíquica de todos os sujeitos que são culturalmente estimulados a apreciarem determinadas reações afetivas em detrimento de outras. Em outras palavras, afetividade compreende:
[...] o conhecimento construído através da vivência, não se restringindo ao contato físico, mas à interação que se estabelece entre as partes envolvidas, na qual todos os atos comunicativos, por demonstrarem comportamentos, intenções, crenças, valores, sentimentos e desejos, afetam as relações e, consequentemente, o processo de aprendizagem (MARINHO, 2010, p. 16).
Vygotsky nos seus estudos mostra a afetividade como processo e produto das interações humanas condicionadas pelo ambiente cultural e social, por este motivo empenhou-se em desconstruir e/ou reelaborar teorias fragmentadas entre corpo-mente, razão-emoção vigentes. Esta fragmentação questionada por Vygotsky se deve também ao fato da Psicologia ser uma ciência recém constituída, de modo que as discussões características dessa ciência foram anteriormente delegadas ao campo da Filosofia, cujas teorias não foram suficientemente capazes de compreender o homem em sua integralidade (CAMARGO, 2004).
Para reiterar o avanço expresso na Teoria Histórico-Cultural acerca das emoções e da afetividade convém rememorar parte dos estudos relacionados ao tema que foram desenvolvidos ao longo do tempo. De acordo com Camargo (2004), na Grécia Antiga, Aristóteles já questionava sobre a temática e postulou a relação destas com a ética, na medida em que para ele as emoções têm relação com a crença moral da comunidade. Aristóteles também enfatizava a influência dos sentimentos nas atitudes dos indivíduos. Percebe-se assim, grande relação entre os postulados de Aristóteles e Vygotsky.
Camargo (2004) ressalta que das proposições de Aristóteles ao Renascimento, poucos estudos debruçaram-se sobre a afetividade o que pode vir a ter relação com a moral e a filosofia cristã que subjugavam as emoções – paixões –à carne. Em meados do século XVI, sob influência Renascentista, Descartes inaugura uma visão conhecida como cartesiana, pautada na dualidade em que a emoção e a razão eram consideradas independentes. Tomando partido desta ideia, Spinoza, em meados do século XVII, postula que a razão submete a emoção e, posteriormente, David Hume, relaciona crenças morais às paixões.
Perseguem-se as ideias apresentadas ao longo do século XVI e XVII sobre as emoções e afetividade por muitos anos, suprimindo-as ou as complementando, mas sem muitas mudanças estruturais expressivas. Por este motivo, Camargo (2004, p. 137) realiza um salto histórico grande para o século XIX, quando enfatiza que “[...] a vida emocional começa a ser denominada cientificamente e os sentimentos são colocados no âmbito da inteligência e da vontade” por Darwin, que a relaciona com os instintos animais, e por James-Lange que passa a interpretar as emoções como resultado de uma situação, ou seja, como uma percepção da situação.
Ainda de acordo com o apanhado histórico sobre emoção e afetividade desenvolvido por Camargo (2004) no início do século XX, cientistas como Walter Cannon, passam a se dedicar mais extensivamente sobre a origem fisiológica das emoções, o que já representa um avanço significativo, uma vez que a Psicologia havia negado os estudos afetivos por décadas. Assim, pesquisadores como John Dewey passam a relacionar as emoções até com crenças avaliativas.
Seguindo esta corrente, estudiosos behavioristas relacionam o comportamento à conduta emocional; Sartre passa a considerar necessário o estudo do significado literal dado às emoções; Klaus Scherer relaciona a emoção e os processos de aprendizagem; Zajonc, no início do século XX, indica a independência da experiência e da expressão emocional. Enfim, numerosos estudiosos dedicaram suas pesquisas ao campo afetivo-emocional, mas foram questionados por Vygotsky na medida em que segregavam tipos de emoção e de afeto, biológico e social, culminando em leis gerais divergentes (CAMARGO, 2004). Deste modo, Vygotsky (2004 apud CÓRDOVA, 2006, p. 185, tradução nossa), considera que,
O conjunto de fatos empíricos que questionaram a teoria orgânica não foi suficiente para Vygotsky. Isso exigia não apenas o acúmulo indefinido de dados, mas especialmente a generalização de uma nova teoria das emoções. Seu texto representa seus primeiros passos para a nova reformulação teórica que permitiria deixar o atoleiro biologicista que se mantinha prisioneiro à teoria psicológica. Sua abordagem não negou o papel da biologia nas emoções; Vygotsky afirma que a base material da neurofisiologia é a premissa de uma explicação materialista das emoções, mas argumenta que, por si só, ela é insuficiente teoricamente e psicologicamente. Em segundo lugar, revaloriza o papel que a filosofia tem a repensar teórico da psicologia psicológica e quem sabe localizar problemas filosóficos em seu trabalho científico, assim como os psicólogos Piaget, Wertheimer e Kohler, Vygotsky propõe como uma tarefa fundamental no seu texto: [...] criar as primeiras bases de uma teoria psicológica dos afetos que está plenamente consciente da sua natureza filosófica, não sujeito a generalizações mais elevados adequados à natureza psicológica das paixões.
Como visto, os postulados anteriores foram amplamente questionados devido ao fato de Vygotsky requerer da Psicologia uma teoria que se aplicasse ao desenvolvimento geral das emoções e a importância da mesma na formação da trama afetiva-volitiva do pensamento, do social, do cultural, do cognitivo, não deixando de lado o orgânico, mas reelaborando os pressupostos da relação entre o orgânico e o social. Reconhece-se, portanto, o significativo trabalho desenvolvido por Vygotsky acerca da afetividade, contudo, este não tivera tempo suficiente para concluir seus estudos, restando lacunas que passaram a ser pesquisadas por outros expoentes. Sendo Vygotsky um teórico multidisciplinar, interessado por tudo aquilo que se refere ao humano, disposto a trabalhar sobre uma metodologia inovadora, realiza o que até a atualidade continua a ser corroborado por inúmeros pesquisadores.
As concepções de Vygotsky sobre o funcionamento do cérebro humano fundamentam-se em sua ideia de que as funções psicológicas superiores são construídas ao longo da história social do homem. Na sua relação com o mundo, mediada pelos instrumentos e símbolos desenvolvidos culturalmente, o ser humano cria as formas de ação que o distinguem de outros animais. [...] Vygotsky rejeitou, portanto, a ideia de funções mentais fixas e imutáveis, trabalhando com a noção do cérebro como um sistema aberto, de grande plasticidade, cuja estrutura e modos de funcionamento são moldados ao longo da história da espécie e do desenvolvimento individual. Dadas as imensas possibilidades de realização humana, essa plasticidade é essencial: o cérebro pode servir a novas funções, criadas na história do homem, sem que sejam necessárias transformações morfológicas no órgão físico (OLIVEIRA, 2016, p. 24).
Neste sentido, a busca pelo conhecimento sobre o homem na sua integralidade -objetivo maior de Vygotsky - constitui-se como problemática contemporânea, principalmente no cerne da educação e aliada a problemáticas como a emoção e a afetividade. Pode afirmar, portanto, que para a Teoria Histórico-Cultural, a compreensão do desenvolvimento infantil perpassa a relação dialética, histórica e sistêmica entre a afetividade, a cognição, o biológico, cultural, enfim, tudo aquilo que constitui o indivíduo. Isto vai ao encontro dos pressupostos das teorias psicológicas tradicionais que tinham a forte tendência de fragmentar os aspectos evolutivos e afetivos.
Considerações finais
A escolha da fundamentação teórica utilizada ao longo do trabalho teve como principal objetivo enfatizar os aspectos sócio-históricos como constituintes do desenvolvimento integral humano, em que a emoção e a afetividade são desenvolvidas a partir da socialização e dos vínculos a ela relacionados. Do mesmo modo, pautou-se na relação dialética entre a afetividade, os sentimentos e as emoções relacionando-a com a efetivação da síntese de conhecimentos envolvendo as crianças em idade escolar, tendo como objetivo levantar considerações acerca do desenvolvimento dos aspectos afetivo-emocional desses sujeitos, dentro do aporte teórico-metodológico da perspectiva crítico-dialética, para que haja um maior entendimento dessas funções para a qualificação do trabalho educativo. Evidencia-se que foram abordadas questões relacionadas às interações sociais que refletem na consciência, entendida como prática de convivência na sociedade, direcionada pela própria vida social, por meio das transformações e experiências vivenciadas. Neste sentido, como seres sociais, as emoções e a afetividade encontram-se presentes em todas as relações estabelecidas, sendo objeto de constantes transformações, cabendo ao adulto, o papel de estimular física, cognitiva e emocionalmente a criança para que ela reelabore e reconstrua seus conhecimentos objetivando o desenvolvimento de sua estrutura psíquica cada vez mais complexa.
Ademais, reconhece-se o avanço da compreensão da emoção como determinante para o processo de ensino e aprendizagem subsidiando a compreensão do professor, do aluno e da interação entre eles, contribuindo sobremaneira para os estudos voltados para o processo de ensino-aprendizagem, superando a visão fragmentada da criança e avançando na compreensão da função da escola na vida das crianças durante o seu desenvolvimento.
Entende-se também que as emoções e a afetividade são partes fundamentais da integralidade humana e que são intrinsecamente relacionadas aos aspectos cognitivos e motores, por esta razão, devem ser consideradas durante a ação pedagógica, o que leva a destacar o papel mediador do professor e a necessidade de formação suficiente para cumprir tal tarefa, sendo condizente com as determinações legais que estabelecem o foco no desenvolvimento integral da criança.
Encerrando este trabalho, cumpre apontar que este texto de carácter inicial e provocativo também almeja produzir questionamentos sobre a importância dos aspectos emocionais e afetivos para crianças e professores no ambiente escolar, proporcionando novos debates educacionais, pois entende-se que somos seres em constante transformação e que cumpre ao professor o constante aperfeiçoamento, tendo em vista também o dinamismo e a complexidade de nossa sociedade que influencia diretamente nas instituições de ensino e na prática educativa efetivamente humanizadora.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, L. R. MAHONEY, A. A. Afetividade e processo de ensino-aprendizagem: contribuições de Henri Wallon. Psic. da Ed., São Paulo, v. 20, p.11-30, 2005.
BARBOSA, M. V. Sujeito, linguagem e emoção a partir do diálogo entre e com Bakhtin e Vigotski. In: SMOLKA, A. L. B.; NOGUEIRA, A. L. H. (org.). Emoção, memória e imaginação: a constituição do desenvolvimento humano na história e na cultura. Campinas: Mercado das Letras, 2011. p. 11-33.
CAMARGO, D. As emoções e a escola. Curitiba: Travessa dos Editores, 2004.
CHEROGLU, S.; MAGALHÃES, G. M. O primeiro ano de vida: vida uterina, transição pós-natal e atividade de comunicação emocional direta com o adulto. In: MARTINS, L. M.; ABRANTES, A. A.; FACCI, M. G. D. (Orgs). Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico do nascimento à velhice. Campinas: Autores Associados, 2016.
CÓRDOVA, A. E. Resenã: Lev Vigotsky, Teoría de las emociones. Estudio histórico–psicológico, trad. Judith Viaplana, Madrid: Akal, 2004. Signos Lingüísticos, p. 179-193, 2006.
FONTANA, R.; CRUZ, M. N. Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo: Editora Atual, 1997.
MALANCHEN, J. Cultura, processo de humanização e emancipação humana: definição e compreensão a partir da teoria marxista. In: Formação, ensino e emancipação humana: desafios da contemporaneidade para a educação escolar. Curitiba, PR: CRV, 2019. p. 43-54.
MARINHO, D. P. A importância da afetividade no processo ensino-aprendizagem. 2010. Monografia (Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Psicopedagogia) – Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: http://www.avm.edu.br/docpdf/monografias_publicadas/c204536.pdf. Acesso em: 30 maio 2018.
MUKHINA, V. Psicologia da idade pré-escolar. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
OLIVEIRA, M. K. Vygotsky e o processo de formação de conceitos, 1992. In: DE LA TAILLE, Y.; OLIVEIRA, M. K.; DANTAS, H. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 27. ed. São Paulo: Summus, 2016.
PIRES, M. F. C. O materialismo histórico-dialético e a educação. Interface Comunicação, Saúde e Educação, v. 1, n. 1, 1997.
REGO, T. C. Vygotsky: Uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
RUEDA, M.R.; PAZ-ALONSO, P.M. Função executiva e Desenvolvimento emocional. Enciclopédia para o desenvolvimento na primeira infância. 2013. Disponível em: http://www.enciclopedia-crianca.com/funcoes-executivas/segundo-especialistas/funcao-executiva-e-desenvolvimento-emocional. Acesso em: 14 jun. 2018.
SIRGADO, A. P. O social e o cultural na obra de Vigotski. Educ. Soc., v. 21, n. 71, p. 45-78, 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302000000200003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt#autor. Acesso em: 15 jun. 2018.
VYGOTSKY, L. S. A formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
VYGOTSKY, L. S. Quarta aula: a questão do meio na pedologia. Tradução de Márcia Pileggi Vinha. Psicologia USP, São Paulo, v. 31, n. 4, p. 681-700, out./dez. 2010.
Notas de autor
Información adicional
Como referenciar este artigo: BARROS, M. S. F.; GARCIA, N. N.; LEITE, S. R. M.; ARRUDA, V. A. B. O desenvolvimento emocional da criança em idade escolar na perspectiva crítico-dialética. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, n. 4, p. 2776-2790, out./dez. 2021. e-ISSN: 1982-5587. DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16i4.15682