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“Razão Antropofágica ou Repertório crítico?": Crítica à “Razão Antropofágica” como fundamento regulador e básico para legitimação de uma tradição crítica nacional
“Reason antropofagica or critical repertoire?": Review of "Razão Antropofágica" as the basis for regulatory and basic legitimacy of a national critical tradition
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 15, núm. 1, pp. 165-194, 2013
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Artigos Originais

Este documento é protegido por Copyright © 2023 pelos Autores.

Recepción: 29 Enero 2013

Aprobación: 06 Junio 2013

DOI: https://doi.org/10.5935/1809-2667.20130013

Resumo: Partindo de “leitura atenta” do ensaio “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira” de Haroldo de Campos, este artigo analisa e interpreta as posições de Haroldo de Campos face aos problemas próprios à cultura brasileira expostos em seu ensaio e a validade de sua tese de outra tradição crítica na cultura literária brasileira, oposta ao ponto de vista crítico esboçado na Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido.

Palavras-chave: Haroldo de Campos, Formação, Antropofagia, Barroco, Tradição antinormativa.

Abstract: Starting from the reading of the essay “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira” by Haroldo de Campos, this article analyses and interprets Haroldo de Campos positioning in view of the problems characteristic of the Brazilian culture exposed in his essay, and the validity of his thesis of another critic tradition in the Brazilian literary culture, in constrast to the critic point of view in “Formação da literatura brasileira” by Antonio Candido.

Keywords: Haroldo de Campos, Formation, Anthropophagy, Baroque, Anti-normative tradition.



Tudo digerido.
Única lei do mundo.

Fuente: Manifesto Antropófago

De início, uma pergunta que pode ser decisiva para o rumo da leitura e, a partir daí, para a análise e a crítica interpretativa do ensaio “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”. A interrogação diz respeito ao nome que figura no título do ensaio: “razão”. A pergunta é: do que o crítico está falando no corpo do ensaio, razão antropofágica ou repertório antropofágico? Se o crítico estiver justificando a hipótese de uma tese radical para se pensar a cultura literária brasileira a partir de outra tradição ou a partir de uma série de pressupostos fundamentais que fariam com que essa tradição existisse ou se realizasse e o seu por que, estaria falando em “razão”.

Se estivesse enumerando criticamente um conjunto de faculdades intelectuais próprias a outra tradição crítica bem fundamentada estaria falando em “razão”. Se, ao contrário, estiver descrevendo um índice alfabético dos autores contidos naquilo que denomina tradição fora da norma, uma enumeração de autores que representariam uma série literária própria e particular – um paideuma – para o crítico ou para a crítica a partir do ponto de vista adotado estaria falando em repertório. Se estivesse enumerando um conjunto de obras ou de peças que formariam o fundo de uma possível outra tradição estaria falando em repertório. Tanto “razão” quanto repertório, no ensaio de Haroldo de Campos, pressupõe algo preestabelecido e dependente de uma tradição constituída. “Razão” como algo dinâmico, com grande mobilidade; repertório como algo estático, que demarca um ponto de vista crítico literário particular. A resposta às perguntas depende da argumentação que possa ser encontrada no ensaio, fazendo com que aquilo que é central e determinante para a crítica de Haroldo, o Manifesto antropófago, tenha de fato a capacidade de determinar a postura crítica de poetas e escritores mencionados, neste caso, de maneira particular, porque avant la lettre.

Depois, outra pergunta, que se junta às demais, reclamando a mesma resposta, e diz respeito à ordem do qualificativo determinante que acompanha o nome e do sentido que daí resulta, formando o todo substantivo e único do título do ensaio. De outra forma, a pergunta é: o que guia e determina a reflexão de Haroldo? A “razão” ou a “antropofagia”? O “repertório” ou a “antropofagia”? Dada à ordem, o significado e seu entendimento mudam completamente. O que de fato determina a natureza do ensaio seria o dado antropofágico, as ideias contidas no Manifesto antropófago, o conceito subjacente e condutor da “razão” ou do repertório? Essa averiguação define uma mudança de significado, já aceito que o ponto alto da reflexão é a antropofagia, bem entendido, a partir de um ponto de vista crítico particular. Assim sendo, dá-se o enfraquecimento da formulação crítica de Haroldo no que diz respeito ao argumento maior, a tradição fora da norma, uma vez que o verdadeiro significado do ensaio viria do adjetivo, ou seja, da qualificação dada por Haroldo a um grande grupo de escritores, antropofágicos, e não do substantivo, do fundamento do porquê de uma possível outra tradição, a “razão” que daria lastro ao dado antropofágico. Outro ponto de grande importância que determinaria o contexto exato em que Haroldo se insere como crítico literário, teórico e pensador da cultura seria a constatação de como a “antropofagia” nacionaliza e tipifica a discussão.

Feitas as perguntas, que trazem em sua formulação um dos possíveis caminhos de reflexão, e que são importantes para se discutir o ensaio, passemos adiante. Para se falar de Haroldo, e “Da razão antropofágica”, é necessário abrir um parêntese e comentar o próprio status e o lugar particular que o autor ocupa na cultura brasileira como poeta de vanguarda, tradutor e teórico da tradução, crítico literário e pensador da cultura, uma vez que sua condição de artista criador, e a liberdade que essa condição lhe proporciona, irá interferir em sua forma de pensar a literatura e abordar os conceitos críticos teóricos em suas manifestações poéticas e em seus textos de análise literária. Essa condição múltipla de intelectual destacado, de acordo com Luiz Costa Lima em um ensaio que é, à sua maneira, um esboço biográfico e intelectual do autor de Galáxias, intitulado “Haroldo, o multiplicador”, mostra que das três frentes a que Haroldo se dedicou, a poesia, a crítica e a tradução foram todas elas frentes de busca intelectual “guiadas pelo mesmo princípio de experimentação” (LIMA, 2005, p. 120).

O “princípio de experimentação” não é o único responsável pela crítica de Haroldo ser a permanente e arriscada busca crítico-teórica por outra tradição diversa na literatura brasileira para nos referirmos ao essencial de seu ensaio. Experimento como risco no sentido de ousado, atrevido, intrépido. Também no sentido de aposta, jogo. Primeiramente, o que fica após a caracterização biográfica é que não se trata de um crítico literário à maneira tradicional, reduzido a uma única função, ou que tenha uma vida acadêmica dedicada somente à atividade de critica. Trata-se, sim, e segundo a denominação corrente e atual para este perfil de intelectual das letras, de um poetacrítico que tem atrás de si grande obra como poeta e tradutor e reconhecida militância cultural como teórico da literatura, crítico literário e crítico da cultura, cuja militância cultural mostra-se muito bem traduzida em um grande número de publicações. Há, ainda, no aspecto biográfico, outro detalhe particular, a sua condição de acadêmico, pesquisador, professor e doutor em letras.

Esses dados biográficos, que já são bastante significativos, ganham destaque especial e bastante peculiar, uma vez que essas atividades, como diz Costa Lima, foram sempre guiadas pelo mesmo princípio de experimentação. O risco, o excesso, o limite são as marcas de seu percurso intelectual e de sua atividade crítico-literária. Um dado importante: a leitura crítica de “Da razão antropofágica” deve ser pensada, em seus resultados, a partir desse princípio de experimentação que não responderia a uma lógica preestabelecida, consensual e, mesmo, um ponto de vista puramente histórico. Esse aspecto da leitura crítica se impõe como uma lei por ser um traço biográfico destacado. Todo princípio de experimentação coloca a lógica em risco, em suspensão. A lógica é a norma, ou o normatizado. As práticas intelectuais de Haroldo, todas muito específicas, superpostas, uma vez que Haroldo não se julgava mais isso e menos aquilo, ou seja, particularmente jamais se julgara mais poeta ou mais crítico literário uma vez que era poeta-crítico e negar essa condição seria negar um dos lugares mais expressivos do poeta na modernidade, ao contrário, afirmá-la é filiá-lo a uma tradição crítica internacional, bem europeia, bem século XIX, século XX. Essas múltiplas atividades, neste perfil complexo e único na cultura brasileira contemporânea e no meio acadêmico das letras, irão determinar a forma como Haroldo abordará o assunto nacionalismo literário e dependência cultural, base de sua reflexão crítica. Essa faceta múltipla parece particularmente importante porque a vanguarda literária será, de todos os problemas enfrentados pelos seus críticos e comentadores, o mais difícil de abordar.

O Modernismo Brasileiro e a Poesia Concreta estão postos no centro de “Da razão antropofágica”. Uma hipótese para a importância de como funcionaria, em uma de suas formas de manifestação, o conceito de vanguarda na obra críticoliterária e poética de Haroldo seria ver esse conceito operando como uma forma de Ajustamento Cultural e Intelectual, isto é, a vanguarda de poesia concreta figuraria como um componente e, também, um passo importante, de acordo com Haroldo, na legitimação da tradição fora da norma que seria direcionada para uma reavaliação da tradição literária brasileira. Essa mesma busca por um lugar significativo para a literatura brasileira com base em militância e ajustamento cultural ocorreria em Oswald de Andrade, com propósitos próprios e tem função semelhante a muito do que se aspirou no Modernismo. A vanguarda de poesia concreta se propõe a ajustar o lugar da poesia e da literatura brasileiras no contexto moderno como liderança em uma nova forma de conceber o valor poético. Novamente, a imagem do desajuste no relógio cultural se impõe. A partir de uma perspectiva de reelaboração e revisão críticas que vissem a obra literária de autores brasileiros como obras de vanguarda, o crítico, em sua leitura, ajustaria e remanejaria esses autores por ele estudados para outro lugar na tradição literária brasileira. Portanto, o reconhecimento do lugar vanguardista desses poetas alteraria o entendimento e a concepção da historiografia literária brasileira: daí a reavaliação da tradição a partir de Gregório de Mattos. Mais do que Mallarmé, Joyce, Apollinaire, Pound ou Cummings, os autores brasileiros nomeados no ensaio seriam, de fato, os representante da “constelação” antropofágica, essa nova poética proposta com o remanejamento de autores e obras da tradição, ao qualificá-los, todos, como realizadores de obras de vanguarda. Dessa forma, seria possível, em tese, ler a tradição literária brasileira de outra forma. A vanguarda literária encabeçada por Haroldo em sua tese de tradição fora da norma seria de máxima importância para reavaliar a dependência cultural a partir do nacionalismo literário.

Até certo ponto, como artista, a posição adotada por Haroldo é semelhante à forma de intervenção de outros artistas, como, por exemplo, Oswald. Trata-se de intervenções que se dão através de um texto crítico literário voltado para o debate intelectual e aberto a polêmicas sobre a tradição literária que foi, de fato, para a cultura do nacionalismo literário aquilo que sempre se colocou em discussão. Muito das ideias e da militância do Haroldo poeta ganham destaque e formulação teórica em seus textos críticos, em seus textos militantes de intervenção cultural. A distinção ainda é importante uma vez que, à maneira de Oswald, Haroldo foi, talvez, o último grande intelectual-artista-militante na cultura brasileira no campo da literatura em mais de meio século, o que, naturalmente, capitalizou, talvez de maneira excessiva e, por vezes, distorcida, toda a sua produção poética e intelectual.

“Da razão antropofágica” traz inscrito em seu título sua especificidade. Primeiro, no que diz respeito ao assunto, está claro a importância, imensa, dada ao pensamento de Oswald e à sua “Antropofagia”. Esses dois são a “fonte do raciocínio”, a base estrutural e o motor das ideias para se discutir tradição literária brasileira e tradição de reflexão crítica em torno da dependência cultural, enfatizando o seu aspecto diferencial, uma vez que o diálogo estabelecido por Haroldo visa a destacar, na literatura brasileira, primeiramente, e, por extensão, na literatura latino-americana outra tradição crítica. Como o ensaio cita um paideuma de autores de nacionalidades diversas, Oswald, enquanto figura central, é o elo, indiscutível e necessário para firmar o contexto da tradição fora da norma, internacional, que o ligaria, e, de acordo com Haroldo, o faria precursor, avant la lettre, através do conceito de antropofagia de poetas brasileiros como Sousândrade e Gregório. Talvez, a maior dificuldade do argumento, se aceita a ideia de tradição fora da norma, seja equacioná-la como internacional, porque quanto mais se firma na poesia brasileira, distancia-se do internacional ao responder aos permanentes dilemas nacionalistas.

A ideia de uma “tradição antinormativa” que se constituiria negando a “derivação direta” (CAMPOS, 1992, p. 244) da tradição consagrada, defendida por Antonio Candido como a responsável pelo processo de formação da literatura brasileira, não é mais que uma afirmação crítica de um nacionalismo diverso que resultaria, em hipótese, na “tradição ‘malandra” (CAMPOS, 1992, p. 244), segundo as ideias de Haroldo. Trata-se, ainda segundo Haroldo, de uma tradição que se afirmaria e encontraria sentido no “reconhecimento de certos desenhos ou percursos marginais, ao longo do roteiro preferencial da historiografia normativa” (CAMPOS, 1992, p. 243), formando-se e se configurando nas disrupções, nas infrações, nas margens, no monstruoso, rompendo com o “retrato médio, agudo e convencional, onde nada é característico e o patriocentrismo reconciliador tem que recorrer a hipóstases para se sustentar” (CAMPOS, 1992, p. 236). “Tradição antinormativa” que seria a grande contribuição, de valor inestimável, desde que pudesse se definir e se configurar como tradição, ou mesmo como uma “antitradição” com a pujança que Haroldo quer fazer acreditar ser possível e que pudesse alterar o muito que já se tem em termos de crítica literária e teoria da literatura brasileiras sobre o assunto tradição literária nacional. Com base nas afirmações enumeradas acima, pode-se perguntar se a tradição antinormativa seria o agrupamento dos percursos marginais e comuns nas diferentes literaturas, incluindo aí a brasileira? A despeito de todo o esforço do crítico, seria possível uma normatização do fora da norma? O fora da norma se prestaria a uma horizontalizacão? É possível dizer que esse paideuma, resultante da enumeração dos autores citados, não se configura como uma tradição, ou mesmo como uma “antitradição” na literatura brasileira porque não há por parte do crítico um trabalho sistemático de argumentação e estruturação que poderia dar conta de configurá-lo em termos crítico, teórico e histórico bem determinado. Ainda caberia se perguntar: essa “antitradição” poderia ser vista como uma “serie literária” à maneira proposta pelos formalistas russos?

Uma das maneiras de se entender os pressupostos críticos-teóricos e a formaconteúdo do ensaio de Haroldo seria analisar e interpretar uma de suas muitas frases impactantes, provocativas e polêmicas que estão dispersas ao longo do texto. Firmada já em seu final, a frase que se encontra no término de seu ensaio, propositalmente, como uma espécie de síntese de suas ideias que poderia servir como epígrafe não somente introdutória ao ensaio, mas a todas as suas ideias sobre a existência de uma tradição fora da norma, declara que “tudo pode coexistir com tudo” (CAMPOS, 1992, p. 251). A frase é importante porque tem valor de síntese das ideias do crítico e expressa, ipsis litteris, o que fora realizado no ensaio: a junção de tudo com tudo. Revela muito mais da fragilidade de suas ideias e de seus argumentos do que qualquer análise poderia revelar, uma vez que a afirmação coloca limites à discussão, ao desenvolvimento de uma crítica ao ensaio e gera muitas perguntas que parecem colocar o ponto de vista adotado por Haroldo em suspensão. O crítico-leitor se perguntará: onde “tudo pode coexistir com tudo” há princípio crítico válido e preponderante? Há norma e/ou fora de norma? Há fonte e influência? Há continuidade e transmissão? Há tradição e/ou “antitradição” crítica? Há ruptura? Ou seja, haveria os princípios básicos que justificam e sustentam uma tradição? Na possibilidade dessa coexistência, “tudo com tudo”, dentro da discussão que Haroldo se propõe a fazer, haveria a possibilidade de existência de uma tradição fora da norma na literatura brasileira? Seria possível fazer avaliações, pensar em circunstâncias locais, múltiplas literaturas, tradição, “tradição da ruptura”, literatura marginal, cânone etc.? Se a ideia de tradição pede uma especificidade, delimita um traçado, um processo de formação, esse “tudo com tudo” nega toda forma de especificidade e qualquer traçado que venha a determinar uma tradição literária, um processo de formação. Parece não haver outra forma de ler e interpretar a frase do crítico uma vez que a afirmação nega a tradição, o específico e o particular, base para as diversas formas de generalização.

Há muitas observações esparsas que podem ser feitas sobre uma vertente marginal, ou mesmo outras vertentes à margem de uma tradição crítica e/ou historiográfica que canoniza um traçado específico à tradição oficial em qualquer literatura. Canonizar é distinguir, é particularizar, é dar lugar à parte junto ao todo particularizado. A crítica literária, expressa por críticos ou por escritores, quando diz “tradição” opera por distinções, por derivação direta, por lances, relances como destaca o próprio Haroldo.

Uma vertente marginal sem conotação negativa, destituída de valor inferior, de qualificação menor, ou mesmo que indique uma região obscura que se revele nas diferentes formas de representação de autores e obras estejam elas nas literaturas francesa, alemã, inglesa, italiana, espanhola para ficarmos no universo da cultura ocidental que está em discussão, sem que nenhuma delas tenha força substancial – autores, obras, pressupostos, valores críticos, teóricos e historiográficos, lideranças, traços robustos e significativos – para determinar um “traçado retilíneo”, ainda que não seja majoritário, ou mesmo um traçado feito pelo que Haroldo chama de as disrupções, as infrações, as margens, o monstruoso é possível e identificável em qualquer literatura nacional que tenha um cânone constituído.

Autores e obras que fujam à norma são tão comuns que parecem ser regra específica da literatura e das artes. São identificáveis, inclusive, para que se possa vir a legitimar uma tradição oficial, como querem críticos literários como Haroldo que veem erros e abusos inaceitáveis, postos de maneira escandalosa e ideologicamente conduzida nas formas e métodos estabelecidos pela tradição oficializada que prescinde de um conjunto de autoria crítica individual. Vale notar que não há conotação segura, bem fundamentada por argumentos e feita de maneira precisa para a expressão “à margem” no ensaio “Da razão antropofágica”. A grande dificuldade, com relação aos autores ou mesmo a tradição que se encontra à margem, está em alçá-los, ou melhor, em constituí-los como uma tradição, quer seja tradição marginal, fora da norma tradicional discutida por críticos como Candido, Alfredo Bosi, Roberto Schwarz, Haroldo, Oswald e Octavio Paz. Para que se possa constituir uma tradição não basta enumerar autores e obras notáveis. É preciso que se reconheça o estabelecimento de métodos, princípios críticos, valores estéticos e literários, elementos próprios à continuidade e à transmissão, instrumentos adequados e particulares de análise.

O conceito de tradição literária deve ser entendido tal qual se encontra pensado, definido e configurado nos ensaios dos críticos. Não cabe aqui pensá-lo de outra forma. A própria adjetivação que se dá a um autor indica uma vertente forte e recorrente em uma literatura, como, por exemplo, “poeta maldito”, dada e reconhecida na França a Villon, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Genet ou, no Brasil, poetas concretos, poesia marginal. Ainda que a adjetivação só encontre sentido e validade, e sentido significativo dentro de uma tradição já firmada e estabelecida – justamente o que ocorre com a poesia concreta e a poesia marginal no Brasil – e mesmo atenção séria por parte de intelectuais, críticos e historiadores a partir de uma constituição bem definida de seus princípios formais e estéticos, ou mesmo circunstanciais, para que se possa justificar a classificação sem que isso jamais venha a significar outra tradição literária.

Seria necessário, após a definição da natureza específica do ensaio de Haroldo, investigar o significado exato que a palavra tradição tem para os críticos brasileiros. Primeiramente, é preciso destacar que o termo é pensado como um conceito próprio à literatura e à tradição literária, e, no caso, próprio à tradição brasileira, estando, assim, preso ao “assunto brasileiro” (SCHWARZ, 2004, p. 14) e, em seu princípio, ao nacionalismo literário que daí se depreende. Dessa forma se põe de lado qualquer restrição que queira afastar o crítico do debate sobre o nacionalismo literário devido à sua grande força intelectual e presença constante para se falar de qualquer assunto em literatura brasileira. Em segundo lugar, porque não é o termo tradição, mas sim o conceito tradição literária que parece ser para Haroldo, talvez, senão o principal, ao menos um dos principais problemas para a crítica e historiografia brasileiras, a julgar pelo seu livro mais polêmico, O sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira, e pelo ensaio “Da razão antropofágica”.

***

O conceito de tradição literária é a base estrutural do ensaio, sendo, também, a base dos livros dos demais críticos brasileiros de sua geração, nos quais o que de fato importa é a constituição de uma tradição crítica local. A tradição literária é de máxima importância e os conceitos de “antitradição” e de “tradição antinormativa” – que são praticamente o mesmo, já que se referem à mesma coisa – são formulados e expostos com base em uma releitura radical do conceito de tradição literária. Resta perguntar, como se deu e como se configurou a formulação dos conceitos empregados cuja base estrutural é a revisão ou o reconhecimento de outro traço, subversivo, marginal, do conceito clássico de tradição. Como o crítico entende o conceito de tradição funcionando duplamente como argumento de base estrutural e pressuposto crítico-teórico? Onde buscou inspiração ou encontrou ideias e definições para formular o seu conceito? O conceito “antitradição normativa” nasceu pura e simplesmente como crítica à Formação da literatura brasileira? Há alguma distinção significativa do conceito de tradição literária em Haroldo e nos demais críticos brasileiros? Como em literatura tudo depende do ponto de vista e estamos, sempre, pensando em hipótese, cabe aqui, na resposta às perguntas sobre a origem da ideia de tradição adotada por Haroldo uma pequena possibilidade de acerto, de engano ou de exagero uma vez que toda forma de leitura e análise de seus pressupostos críticos apontam em um único sentido: Octavio Paz e seu polêmico ensaio “A tradição da ruptura”.

Naquele que é o principal ensaio crítico de Paz se encontraria a fonte onde Haroldo buscou inspiração. Há, certamente, justificativa de natureza crítica e teórica para que essa inspiração tenha se dado com base na obra de um poeta-crítico latino-americano. Apesar de o ensaio de Paz com a tese sobre a permanência e retorno constante de uma ruptura ser, publicamente, pouco questionado, e, mais do que isso, constantemente celebrado, “A tradição da ruptura” é um texto marcado pelo signo da provocação, do risco, justamente pelo pequeno e polêmico Ajustamento Crítico que acrescenta à noção de tradição. No limite, portanto, podemos dizer que foi em Os filhos do barro e, mais especificamente, em “A tradição da ruptura” que Haroldo teria buscado inspiração para fundamentar seus conceitos.

O conceito “tradição da ruptura”, no ensaio de Haroldo, está relacionado às ideias radicais do Manifesto antropófago, às restrições e à contestação à ideia de tradição literária presente na Formação e, conjuntamente, à plêiade de autores da literatura brasileira que se colocaram por si ou que foram postos pela tradição à margem da tradição oficial por estarem em desacordo como o momento histórico dos princípios literários vigentes. Neste parágrafo, está a origem das ideias nas quais se baseiam os argumentos para a outra tradição crítica na literatura brasileira.

A formulação crítica é mais complexa do que se imagina: princípios postos à margem pelos demais escritores, pela crítica literária, poderiam constituir outra linha crítico-literária dentro da tradição canônica e oficial que se julga tenha sido estabelecida, ao menos em parte, e com base no que reza a crítica brasileira e, também estrangeira, pela Formação. O conceito é pensado, exclusivamente, em termos de literatura e tradição crítico-literária brasileira. Está relacionado aos dilemas maiores do nacionalismo literário. Os dois pontos fortes e mais significativos a darem base para que se possa estruturar suas ideias são os conceitos de “tradição da ruptura”e “antropofagia”, encontrados em Octavio Paz e Oswald de Andrade. É preciso deixar claro que Haroldo cita, abertamente, Paz em seu ensaio. Mas não neste sentido em que estamos abordando, no sentido de dizer a origem de sua ideia maior como base para seu ensaio e sua crítica a uma pretensa tradição crítico-literária e canônica na cultura brasileira. Pode-se afirmar que o crítico brasileiro cita o poeta mexicano para melhor formular, conceituar e redefinir, com base em suas ideias acerca da “tradição da ruptura” o conceito de “tradição antinormativa” e para melhor armar a relação desse conceito com a tradição literária brasileira.

Poderiam ser cogitadas outras possibilidades de formulações conceituais acerca da tradição literária como origem da inspiração para a formulação de seu conceito. Seria possível desde que houvesse alguma indicação do crítico neste sentido ou alguma pista que se pudesse rastrear em outros autores e obras mencionados. Não aparece e nem está explícito outra possibilidade de inspiração autoral.

É de se perguntar por que fundar e discutir outra tradição literária na cultura brasileira, rival, paralela, ou contrária àquela que está explícita na Formação, porque o crítico se fixa nas ideias de Paz. Dentro das possibilidades, pergunta-se porque não no ensaio “Tradição e talento individual” de T. S. Eliot? Ou no grande número de “escritos” de Jorge Luiz Borges que pensou, de maneira radical e muito particular, a ideia de tradição literária com textos da natureza de “Pierre Menard, autor do Quixote”, “O jardim de veredas que se bifurcam”, “Funes, o memorioso” e “Kafka e seus precursores”? Por que não nesse poeta e ensaísta que construiu com sua obra ficcional uma teoria da literatura de forte crítica aos conceitos e princípios literários vigentes? Apesar de citar Borges, Haroldo ignora completamente este aspecto da formulação de outro entendimento e concepção para o conceito de tradição literária como forma de reavaliar a tradição crítica brasileira. Uma hipótese de resposta possível para a inspiração em Octavio Paz seria o fato de ser ele, justamente, dos três autores citados, aquele que irá pensar de maneira permanente e sistemática a relação entre a vanguarda e o subdesenvolvimento em literatura, analisando, a partir daí, a relação entre a vanguarda poética e a dependência cultural como um dos mais importantes problemas envolvendo os estudos literários nos países latino-americanos, e, assim, tocando, justamente, em uma questão cara a Haroldo, a vanguarda literária em meio ao subdesenvolvimento.

Outra hipótese possível, mas que deixa a questão em aberto, é entender que diante do proposto por Eliot e daquilo proposto por Borges a visão de crítica literária e teoria da literatura próprias a Haroldo que se encontram presas ao contexto brasileiro, o que de fato e de direito interessa ao crítico, não encontrariam sentido e seriam postas de lado. Haroldo não poderia deixar de lado a tradição literária e a formação do cânone nacional e termina por rejeitar as posições radicais dos dois poetas. A visão tradicional, da presença forte da relação entre literatura e dependência cultural, juntamente com o conceito de subdesenvolvimento tão comum à tradição brasileira falou mais alto, sem revelar que o ponto de vista de Haroldo, diante do que é proposto pelos dois autores, não aceita deixar os subprodutos da cultura do nacionalismo literário e muito menos noções caras ao crítico como a de vanguarda literária fora da proposta de uma “tradição antinormativa”. É, de fato, neste quadro, bem “assunto brasileiro” o lugar onde Haroldo se encontra e se define como pensador da cultura. Já vimos que o nacionalismo literário, a partir de seus subprodutos, a dependência cultural e sua relação com os estudos de literatura, é significativo para a crítica brasileira acadêmica – referência maior de contestação para Haroldo – e não significativo para Eliot e Borges. Tanto o nacionalismo literário quanto a vanguarda literária tem pouca importância para os conceitos de tradição literária de Eliot e Borges, ao contrário daquilo que significam para Paz.

O conceito de tradição tem uma definição única e bem demarcada, é, em sua base e em sua estrutura, sempre o mesmo para o ponto de partida de se pensar qualquer literatura, não tendo particularidades ou especificidades porque somente as ganhará em sua definição quando pensado localmente, dentro das circunstâncias próprias e específicas das literaturas nacionais. O conceito é sempre posto, pensado, estruturado e definido em relação à especificidade local, e, ainda assim, não desfruta de uma única particularidade. É preciso que sua especificidade local esteja preestabelecida. O conceito de tradição é o mesmo para Candido, Bosi, Schwarz, Haroldo e para todos os demais críticos literários e estudiosos de literatura. Termina por ganhar particularidade e especificidade, também, com base nas circunstâncias e de acordo com o ponto de vista crítico-literário adotado. Octavio Paz o define repetindo a opinião corrente, dizendo que tradição é “a transmissão de uma geração à outra de notícias, lendas, histórias, crenças, costumes, formas literárias e artísticas, ideias, estilos” (PAZ, 1999, p. 333). Trata-se, glosando qualquer dicionário, da via pela qual fatos ou dogmas são transmitidos de geração em geração sem mais prova autêntica de sua veracidade que essa transmissão. Completando a sua definição com “qualquer interrupção na transmissão equivale a quebrar a tradição”. Usa tradição, nesse caso, como sinônimo de “continuidade do passado no presente” (PAZ, 1999, p. 333)1. É, portanto, sob a forma de estrutura conceitual, que o conceito de tradição é adotado e discutido por Paz. Como não poderia ser diferente, destaca as noções de transmissão e continuidade dos traços e das marcas do passado no presente, da permanência de valores capitais, cujo conceito é usado por Machado de Assis em “Instinto de nacionalidade”. Da mesma forma, é adotado e discutido na Formação por Candido com a ideia de transmissão que pressupõe continuidade, tal como definida e presente no ensaio de Paz. É, também, dessa forma, sumária, que o conceito é entendido e adotado por Bosi, Schwarz e Haroldo.

A partir do entendimento do conceito em sua forma estrutural conhecida, consagrada e tradicional, Paz o reformulará e ao nome “tradição” acrescentará a locução adjetiva, como forma de qualificação e particularização, “da ruptura”. O poeta-crítico estabelecerá sua visão da permanência de certo valor, o valor do novo, que lega à tradição literária ocidental continuidade de princípios nas mais diferentes estéticas literárias. A conceituação inicial de Paz é tradicional, conservadora, e está de acordo com as noções de transmissão e continuidade que justificam o conceito de tradição em sua base sustentável e encontram validade concreta quando aplicada ao “novo” enquanto “valor” inalienável para a arte moderna. É por está de acordo com as noções de transmissão e continuidade que o conceito de “tradição da ruptura” pode ser, por muitos, aceito e, mesmo, se sustentar, mas desde que visto como uma tradição dentro da tradição ou como uma tradição à margem, sem que se veja aqui alguma conotação negativa ou pejorativa para a expressão. O importante para Paz é a permanente ruptura, a renovação e a reavaliação que ela opera.

O grande desafio está em reformular a noção de tradição literária conservando aquilo que o conceito traz de mais importante e significativo, alterando-o sem mexer em sua estrutura conceitual básica. O que poderia, vamos dizer, dar um nó na questão ou engendrar a sua fragilidade seria a noção de ruptura atrelada ao conceito de tradição como algo mais que complementar, uma vez que a própria definição de “tradição da ruptura” é um paradoxo. É justamente com base no paradoxo, isto é, na ruptura que se opera na tradição que se encontra a importância para Paz da tradição, uma vez que a importância está na ruptura, e, ainda, é o que importa para a afirmação da tese principal: definir aquilo que se tornou valor recorrente para a literatura moderna. O próprio crítico, ciente disso, já anuncia o caráter paradoxal de sua tese, consciente de que ela desarma todos os pressupostos de uma tradição ao afirmar que o novo, como o grande atributo da cultura moderna que será a base de sua “tradição da ruptura” faz com que o “moderno não se caracterize unicamente por sua novidade, senão por sua heterogeneidade. Tradição heterogênea ou do heterogêneo, a modernidade está condenada à pluralidade: a antiga tradição era sempre a mesma, a moderna é sempre distinta” (PAZ, 1999, p. 333).

Pode-se dizer, para finalizar os comentários sobre a base em que Haroldo buscou inspiração e argumentos para fundamentar seu conceito de “tradição antinormativa”, o ensaio de Paz, que o interesse de Paz seria dar sentido e organicidade operacionais dentro da tradição literária a conceitos como ruptura, novidade, heterogeneidade, distinção, mudança, descontinuidade, pluralidade, autossuficiência para o campo do literário e possibilitar que esses conceitos pudessem definir e constituir uma tradição, uma passagem à margem da tradição, ou uma passagem para a tradição. O crítico, justamente, deu maior destaque e organicidade a conceitos que não encontravam sentido operacional dentro da definição de tradição.

Haroldo retira o essencial do conceito do ensaísta mexicano. O que seria esse essencial? A ruptura que possa ser mensurada em uma tradição, que possa vir a abalar os andaimes da tradição, que faça com que se constitua uma outra tradição literária e que essa outra tradição literária possa rever a tradição que existe como norma normalizadora. Neste sentido, Gregório, Sousândrade e Oswald operam uma “ruptura” na tradição crítico-literária brasileira. Isso somente seria possível com base em conceitos como ruptura, novidade, heterogeneidade, distinção, mudança, descontinuidade, pluralidade, autossuficiência. Por quê? A noção de ruptura, atrelada à noção de tradição legitima na tradição literária esses conceitos que serão rebatizados como as disrupções, as infrações, as margens, o monstruoso. A “tradição antinormativa” seria a forma de organizar e dar sentido a um conjunto de autores ditos fora da norma e aquilo que esses autores representariam para a literatura brasileira em conjunto. Portanto, na definição dos dois poetas, a “tradição”, seja da “ruptura” ou “antinormativa”, funcionaria como uma forma de organização, de normatização.

Passando adiante, desde o início de seu ensaio, devido à grande importância dada às ideias de Oswald, o grande nome de relevo a dar sustentação a suas ideias, possivelmente, o principal é perguntar de qual “Antropofagia” o crítico está falando? A antropofagia que serviria aos propósitos do Modernismo Brasileiro do final dos anos 20, e responderia aos apelos daquelas circunstâncias históricas com a militância nacionalista e seu Ajustamento Cultural, o que determinaria uma “Antropofagia” historicamente datada e bem constituída ou a revisão crítica e interpretativa da “Antropofagia” que serviria, na altura dos anos 60 e 70, à fundação de uma “tradição antinormativa” como crítica da historiografia vigente e da cultura literária brasileira? A pergunta faz sentido, em primeiro lugar, porque não se discute a “Antropofagia”, a não ser que a presença bem nomeada de algumas ideias de Oswald em meia página do ensaio, em parte de um parágrafo, pudesse ser vista como discussão. Não há análise e contextualização, e sim uma interpretação ideologicamente conduzida. Essa discussão se dá em proporções tão exíguas que a “discussão” de fato não aparece. Negando à discussão, nega-se também à crítica e à historicidade da “Antropofagia”. Tomam-se as normas antropofágicas como prontas e acabadas para serem usadas da forma como foram formuladas, com o objetivo de fundamentar suas ideias acerca da tradição. Não se discute a Revista de Antropofagia, o Manifesto antropófago, . Poesia Pau-Brasil e Oswald poeta modernista, portanto nacionalista radical, e de maneira particular, crítico da cultura capitalista. E não há discussão dessas singularidades no contexto do Modernismo e no contexto do debate em torno da tese de uma “tradição antinormativa” na literatura brasileira no alto das décadas de 60 e 70 do século XX.

É maior no ensaio a presença da “Antropofagia” a partir da enumeração de um repertório de autores e de obras ditos “antropofágicos” do que a discussão de pressupostos críticos, teóricos e historiográficos. Não existe uma discussão sobre as formulações antropofágicas dentro do contexto do Modernismo com relação à vanguarda literária europeia e à tradição literária brasileira, sobretudo com relação a seu vincado caráter nacionalista. Não existe, ainda, discussão da Antropofagia em uma de suas bases, a sua proposta de Ajustamento Cultural e Intelectual que está claramente exposta nos aforismos do Manifesto Antropófago. Entenda-se Ajustamento Cultural e Intelectual como uma possível reavaliação da tradição crítica brasileira e Antropofagia como tradição crítica irmanada às vanguardas europeias, uma vez que Haroldo a reconhece como fundamental. Ao que parece, o crítico julga essa discussão crítica desnecessária, sem dizer sequer porque seria supérflua ou inútil.

Em “Da razão antropofágica” seria de máxima importância essa discussão como ponto de partida para a reflexão. Far-se-ia necessária porque o Manifesto Antropófago não tinha em seu início, quando de sua publicação, o final dos anos 20 do século passado, o alcance crítico-teórico que as gerações posteriores de poetas e críticos literários lhe vêm atribuindo incessantemente. Capitalizadas, a significância das ideias de Oswald são múltiplas. Para que não haja confusão entre as várias formas de ler e entender o termo “antropofagia”, que mostramos sofrer certa modulação crítica em sua funcionalidade, a pergunta formulada deve ser sustentada por dois sentidos diversos, o primeiro definido em seu contexto original de publicação – para muitos, como Schwarz, o único contexto criticamente aceitável – e o segundo indefinido em seu contexto posterior de leituras interessadas em direcioná-lo a pontos de vista preestabelecidos ou em desclassificálo, em invalidá-lo, ideologicamente, como manifestação de valor significativo, ativo e operacional para o presente.

Haroldo não vê necessidade de discutir as ideias antropofágicas de Oswald, pari passu, e mesmo rejeita a necessidade de se discutir a relação da “Antropofagia” com o nacionalismo literário, a despeito do crítico mencionar o nacionalismo literário no segundo subtítulo de seu ensaio, como revisão e crítica da concepção do nacionalismo literário presente na Formação, que entende ser a própria concepção do nacionalismo literário na literatura e na cultura brasileiras. Discutir a crítica literária de Antônio Candido negando o seu ponto de vista diante do nacionalismo literário seria algo impossível. A expressão Pari passu é usada, aqui, não somente no sentido de simultaneamente, mas, também, no sentido de imparcialidade. Há, ainda, outro dado de grande importância: a “Antropofagia” é concebida como um manifesto precursor, avant la lettre, de poetas tidos como “antropofágicos”, e, em tese, poetas à margem da tradição oficial como Gregório e Sousândrade. Reconhecido o passo mais fácil de definir os elementos estruturais e determinantes em uma tradição, a base de seu legado, é preciso definir seus “precursores”. Daí a necessidade de uma guinada avant la lettre.

Diante desse ponto de vista, fica uma interrogação, uma vez que no Manifesto Antropófagonão está exposto um conjunto de ideias teóricas robustas que poderiam servir para se estabelecer e legitimar outra tradição crítica na literatura brasileira. O Manifesto Antropófago traz uma enumeração de propostas e atitudes críticas e estéticas, em forma de aforismos, com uma sentença moral breve e conceituada que opera uma revisão crítica em tom mesclado de jocoso e sério da cultura brasileira no momento alto do Modernismo, uma revisão crítica de reavaliação e reelaboração da cultura brasileira em tom de deboche e descrença de fatos e episódios da História do Brasil que não se apresenta como revisão do processo canônico de formação da literatura brasileira ou revisão da história da literatura brasileiradesde o descobrimento do país ou desde Gregório de Matos.

O próprio Manifesto Antropófago pode ser lido como obra artística, poética, processo poético de criação crítica e irreverente. Sendo manifesto, é programa, portanto, é possibilidade, risco, e, no caso de Oswald, programa político, religioso, civilizador, estético, e, aqui, programa de grande importância voltado para o contexto do Modernismo e concebido por um intelectual de família burguesa e cristã, “cheio de bons sentimentos portugueses e leitor da obra de Alencar” (GUMBRECHT apud FILHO, 2011, p. 6), que tem sua formação intelectual forjada na passagem do final do século XIX para o início do século XX e que está preso à ideia do Ajustamento Cultural e Intelectual dentro do universo de valorização exacerbado da cultura europeia. Seria, também, necessário que Haroldo discutisse a validade das ideias políticas e estéticas expressas no manifesto para que se pudesse formular melhor a ideia de uma “antitradição normativa”, ainda que essa se configurasse como um segundo pensamento crítico e historiográfico.

A antropofagia como um processo fundador, ou ao menos deflagrador, de uma “antitradição” é algo que Haroldo pressupõe já estar pronto e tem força intelectual imensa, e, por ser assim, não necessitar de comentário, análise e crítica, fato que causa certa insuficiência em sua argumentação. É de se perguntar se a hipótese que funde o ensaio crítico de Paz, “A tradição da ruptura” e o “ensaio manifesto” de Oswald, o Manifesto Antropófago, e as ideias crítico-literárias de Haroldo somente teria sentido válido com base no ensaio de análise crítica das vanguardas modernas feita por Paz como algo que poderia ser visto de maneira recorrente em demais culturas, às quais se juntaria à brasileira? Esse contexto sugere o entendimento da “tradição antinormativa” como uma “espécie” particular de “tradição da ruptura” na literatura brasileira.

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Com relação ao formato do texto, “Da razão antropofágica” é um ensaio, redigido à maneira já consagrada pela academia, e, portanto, genuinamente acadêmico. Como diz o próprio autor, é um de seus textos militantes, de intervenção cultural que tem o objetivo de colocar a tese de uma “tradição antinormativa” em discussão, dentro e fora da universidade, junto à crítica brasileira. Haroldo polemiza com os acadêmicos, principalmente Schwarz e, notadamente, Candido e suas ideias expostas na Formação, sendo essas o objeto principal de seus questionamentos e críticas, visto que o nacionalismo literário se coloca como o grande assunto em debate. O nacionalismo literário, mascarado na dependência cultural, e tudo o que em termos de crítica e teoria literária essa problemática carrega consigo para a discussão, é o tema chave, sendo tratado diretamente através de suas questões principais para o intelectual brasileiro. Haroldo retoma e reavalia o nacional versus universal, a relação entre literatura e subdesenvolvimento, a dependência cultural e estudos literários, os conceitos de originalidade e cópia, de fonte e influência etc., e o faz com o objetivo de dialogar com a tradição consagrada pela crítica e mostrar a diferença de seus pontos de vista em relação à tradição literária e canônica brasileira.

O ensaio é estruturado em seis subtítulos, ou seis pequenas partes, pretensamente complementares, que, no entanto, podem ser lidas de maneira independente. O leitor perceberá que apesar de dividir o ensaio em seis subtítulos, não há separação rigorosa entre as partes. Há, de fato, repetição de ideias e argumentos, autores e obras, pressupostos teóricos e postulados críticos que o ensaísta deixa dispersos em todas as partes, criando, em alguns momentos, a sensação de repetição desnecessária. De acordo com os seus argumentos, uma vez que se discutem problemas interligados e complementares, pressupõe-se que os seis subtítulos fazem parte de um longo processo progressivo de desenvolvimento literário e cultural daquilo que engloba a literatura brasileira. Seria coerente na condição de formador de uma tradição fora da norma, diversa, diferenciada, que teria seu lugar de origem no Barroco brasileiro – outro objeto de polêmica em relação à tradição literária e ao processo de formação – espanhol e latino-americano e chegaria até uma plêiade de autores internacionais, brasileiros, latinoamericanos e europeus, encontrando na “Antropofagia” seus fundamentos políticos, religiosos, teóricos e estético-literários que colocariam em discussão, e em suspensão, a validade da tese do processo ideológico-formativo exposto na Formação.

Nas seis partes do ensaio, estariam a enumeração e o desenvolvimento de um conjunto de postulados teórico-críticos que dariam “razão” “antropofágica” ao sentido e à forma de uma “tradição antinormativa” expressa e definida no tripé Barroco, Antropofagia, Poesia Concreta. Tripé que substituiria o par, segundo Haroldo, equivocado, e tido como majoritário e absoluto no aspecto do desenvolvimento da formação da literatura brasileira, Arcadismo e Romantismo, ou seja, o ponto de vista adotado na Formação, as tendências universalistas e particularistas. Como não poderia ser diferente a uma tradição que se quer “tradição” e “crítica”, o debate com seus contemporâneos, e que está explícito nos seis subtítulos do seu ensaio, traz, em primeiro plano, as clássicas questões que obsedam o intelectual brasileiro.

Haroldo estabelecerá um diálogo de questionamento e recusa da tradição crítico-literária brasileira com base na recusa das ideias críticas e teóricas de Candido e, mesmo, apropria-se de ideias do próprio Candido como uma forma de desacreditá-lo. Essa tradição crítico-literária no meio acadêmico foi determinada não somente pela Formação, mas, também, por Literatura e sociedade, O discurso e a cidade e A educação pela noite. Segundo Haroldo, que adota, de maneira particular, as ideias crítico-teóricas expressas no ensaio “Dialética da Malandragem”, esse ensaio seria fundamental para reavaliar aspectos essenciais do processo de formação expostos na Formação. O crítico lê a chamada “vertente malandra” de maneira diversa do que faz o seu autor, Candido, afirmando que o ensaio seria “um segundo pensamento” crítico, “projetado com argúcia sobre o seu primeiro traçado retilíneo” (CAMPOS, 1992, p. 239), a Formação. Descaracterizando-o, colocando-o além da fundamentação crítica dada por Candido que buscou definir, com base na leitura de Memórias de um sargento de milícias, a presença de uma vertente malandra no romance brasileiro. A partir daí, apropriando-se da ideia de vertente do romance malandro, Haroldo quer mostrar a sua diferença em oposição às ideias de Candido sobre a tradição que, questionada e relegada a segundo plano por Haroldo, é marcada pelo crítico por uma leitura, análise e interpretação dos valores da tradição. Haroldo interpreta o ensaio como veículo que responsabiliza a historiografia literária brasileira contemporânea, na rubrica de Sílvio Romero, José Veríssimo e Candido pelo estabelecimento de uma tradição canônica, normativa e excludente.

Não é possível que haja exclusão de autores da literatura brasileira porque cânone não é algo fechado. A Formação não exclui, não deixa de fora do cânone. Revela-se um ponto de vista adotado para o entendimento e a justificativa de um processo, como muito bem traduzido pelo autor. Aceitando-se os argumentos por Candido sobre o processo formativo, alguns autores, por razões definidas por critérios bem formulados, não teriam participado, ou não teriam contribuído para o seu processo de formação. A afirmação pode ser tida como argumentação válida uma vez que os pressupostos e argumentos para definir o processo de formação, que não deixa de ser um ponto de vista, uma hipótese, já foram explicados pelo crítico, respondendo, anteriormente, à questão semelhante. É de se perguntar se tradição literária, normativa ou antinormativa à tradição oficial, só poderia ser estabelecida pelos críticos, juntamente com os escritores, pelos escritores, para os escritores e não como algo deliberado por um ou outro crítico literário. Pode-se dizer, ainda, que uma tradição literária não é algo que possa caber, ou se resumir, de maneira minimamente satisfatória, em sínteses historiográficas, por melhor elaboradas que sejam.

O questionamento aos argumentos e pressupostos críticos e teóricos de Candido para definir aquilo que ficou conhecido como processo de formação da literatura brasileira e a partir daí o questionamento a definição de uma tradição crítico-literária é um ponto de partida crítico-teórico adotado por Haroldo. A crítica, embora não surja em seu todo bem formulada, não se resume somente aos argumentos e pressupostos, mas à própria ideia de um processo de formação, ao pressuposto cânone que resultaria desse processo, ao ponto de vista diacrônico, aos conceitos que justificariam o processo de formação, à visão e ao aparato nacionalistas, às presenças ou ausências de autores e obras do processo de formação na Formação. Para questionar aquilo que fora definido por Candido como o processo de formação, Haroldo denúncia o fato de a definição do processo de formação ser simplesmente uma construção ideológica, forçada, ancorada no nacionalismo próprio ao idealismo romântico.

O processo de formação, tal como definido por Candido, é o resumo de um feito nacionalista de escritores e intelectuais comprometidos com o “assunto brasileiro”. Para legitimar a presença de uma “tradição antinormativa”, Haroldo procede de maneira inversa e mostra a “tradição antinormativa” como uma construção natural de escritores e artistas, despida de fundamentação ideológica. Ao por todas as restrições e responsabilidades na construção do cânone literário tradicional, normativo, em um ou mais críticos literários e historiadores, e não reconhecer nenhuma atuação de restrição e responsabilidade em escritores, em situações e momentos históricos específicos que vieram a determinar a formação desse cânone, termina por reduzir o ponto de partida à atuação ideológica, e ter uma visão puramente literária de um conjunto histórico mais vasto.

Uma vez que Haroldo não reconhece por parte de escritores atuação ideológica que estabeleça uma tradição crítico-literária que, posteriormente, em perspectiva histórica, será vista como oficial, naturalmente que seu discurso de dissenso se volta para a crítica literária e suas sínteses historiográficas. É inegável a responsabilidade, mostrada pela historiografia, dos escritores na construção da norma crítica e historiográfica canônica. Deixar isso de lado, e voltar-se, parcialmente, para a crítica literária de fundo historiográfico é ignorar o caráter de atividade literária desenvolvida por intelectuais e escritores como traço distintivo da produção cultural brasileira. A crítica literária, em muitos casos, limitou-se a reproduzir, documentalmente, aquilo que os escritores firmaram em romances, poemas, prefácios, posfácios, cartas e manifestos. Ao contrário, quando se fala de possível tradição antinormativa, é preciso fazer crer que se trata de algo próprio de críticos e escritores e não somente um ponto de vista isolado nas opiniões de um crítico. O ponto de vista adotado por Haroldo não é consenso entre críticos acadêmicos como Costa Lima ou Silviano Santiago, mais próximos ao questionamento de sínteses historiográficas tidas como tradicionais.

É preciso, antes de prosseguir nesses comentários, retomar o resumo, a análise e a interpretação das posições e pressupostos críticos e teóricos de Haroldo. Tal como os demais críticos mencionados, Haroldo enfatiza que os constrangimentos envolvendo o nacionalismo literário não se resumem à cultura brasileira, especificamente, uma vez que se estendem à cultura latino-americana. Por mais que a afirmação expressa seja consenso entre intelectuais, a referência é geral, não trazendo nada de específico e particular, mostrando que o ponto de vista é aceito sem restrições, como se não fosse necessário discutir o assunto, como se não coubesse nenhum comentário, aceita-se simplesmente o fato mencionado. Feita a menção ao problema em nível cultural latino-americano, o crítico passa adiante.

O crítico propõe trazer algo novo à discussão ao deixar de lado o tradicional “literatura e subdesenvolvimento” e colocar o problema nos seguintes termos: “vanguarda e/ou subdesenvolvimento”. É um ponto de partida novo, para a literatura brasileira, uma vez já presente em Octavio Paz. Em princípio, recusa-se à forma como a crítica brasileira desde sempre tratou a questão. Substitui-se de literatura, pura e simplesmente, por vanguarda, e o postulado crítico passa a ser a relação da vanguarda literária e artística com o subdesenvolvimento. Postulado ambíguo, uma vez que aponta para duas possibilidades, a de aceitação, a vanguarda em meio ao subdesenvolvimento, e a de sua negação, ou superação, vanguarda ou subdesenvolvimento, mas deixando explícito que o florescimento de uma literatura de vanguarda em país subdesenvolvido altera o andamento de seu desenvolvimento cultural e a ordem de termos importantes para o entendimento de conceitos próprios à literatura, como tradição literária, origem e influência, originalidade e cópia e seus correlatos, retornando, assim, à questão da dependência cultural. São conceitos pelos quais se pautam a literatura e a crítica, afirmando-os ou os negando. A importância e coerência são grandes, porque, por excelência, a vanguarda está em desacordo com a norma, e não deixa de ser uma forma de reler, rever e dialogar com a tradição, negando-a para melhor se afirmar.

Haroldo traz para a discussão o nacional e o universal, a dependência cultural e os estudos literários, ao contrário do que comumente se faz, a partir de um ponto de vista de avaliação afirmativo. Por incrível que possa parecer, e uma vez que o termo subdesenvolvimento pede uma reflexão de fundo cultural, econômico e material, no sentido marxista, Haroldo firma seus propósitos e suas ideias a partir da citação nominal e do uso, como argumentos de autores considerados radicais como pensadores de esquerda, filósofos e críticos da cultura materialista, Marx e Engels, citando seus textos clássicos, além das ideias dos filósofos e críticos da cultura contemporâneos, Benjamin e Adorno. O crítico retoma problemas clássicos da filosofia, discutindo a equação entre questões econômicas adversas e produção cultural a fim de mostrar que esta relação, em tese, não impediria a manifestação de uma produção artística de ponta, notadamente de vanguarda artística em país subdesenvolvido, afirmando que “em matéria de trabalho literário, também ocorria essa lei complexificadora da transmissão do legado cultural, à qual não se podia furtar a produção poética e que permitia identificar o surgimento do novo ainda nas condições de uma economia subdesenvolvida” (CAMPOS, 1992, p. 232).

Na citação, não se nega a influência cultural, mas sim o seu poder determinante sobre a criação, uma vez que em meio ao subdesenvolvimento é possível a superação das condições adversas e a realização de obra significativa. Por si só o problema é amplo e complexo para se estabelecer um ponto de partida majoritário. De certa forma, pontual, também posto em discussão por Schwarz. Pode-se dizer que a citação lembra outra citação, do crítico marxista Lukacs quando diz, se referindo à Rússia do século XIX e seu “atraso cultural”, que não é extraordinário que um país atrasado produza grandes obras intelectuais. As mesmas questões, na perspectiva de país subdesenvolvido, ou na perspectiva de países economicamente retardatários discutidas pelos estudiosos da relação entre dependência cultural e estudos literários são retomadas, ainda que Haroldo, não abandonando essa tradicional forma de análise com base nas condições econômicas e materiais, peça outra perspectiva. A aposta é feita em torno da invenção, e do que essa traz de originalidade.

A “submissão” da cultura e dos intelectuais brasileiros com o surgimento da “antropofagia” sofre uma virada radical com a imagem “desabusada” do “mau selvagem”, do antropófago que, dentro desse tradicional contexto, lastimável, de “submissão”, faz figura fácil de herói bendito e libertador. A “transculturação” ou, melhor dizendo, a “transvaloração” é posta em cena e temos o “pensamento da devoração crítica do legado cultural universal” (CAMPOS, 1992, p. 234) não mais “elaborado a partir da perspectiva submissa” (CAMPOS, 1992, p. 234) e reconciliadora, mas da perspectiva da devoração da cultura europeia e universal. A cultura do Ajustamento Cultural e Intelectualquer pôr de lado, justamente, a “perspectiva submissa” que seria fruto do subdesenvolvimento. Com a adoção da atitude antropofágica há uma nova visão crítica da história cultural vista como função negativa que é capaz tanto de “apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução” (CAMPOS, 1992, p. 234), que se dão a partir da negação de “todo passado que nos é ‘outro” (CAMPOS, 1992, p. 235). Esse passado é o “inimigo bravo” que deve ser devorado. Essa é a forma, em resumo, da leitura que Haroldo faz da “antropofagia” no contexto do subdesenvolvimento. No entanto, e mais uma vez, reconhece-se, em destaque, dependência e hierarquia cultural.

O problema não é propriamente literário, no sentido de formal, de estético, de debate específico envolvendo autor, obra, originalidade: o que é posto em discussão são formas e estratégias de superação das condições adversas da produção cultural, da perspectiva submissa, no caso específico brasileiro, país economicamente retardatário, onde autoria, obra e originalidade são conceitos de máxima importância que devem passar pelo processo já mencionado de expropriação, desierarquização, desconstrução. São problemas crítico-literários nacionais próprios à reflexão crítico-literária brasileira que envolvem dependência cultural e estudos literários. Trata-se de um problema que conjuga dependência econômica e estudos de literatura, condições e circunstâncias específicas e particulares de produção cultural e, a partir daí, originalidade e cópia, fonte e influência, tradição e “antitradição”, autoria e obra, vanguarda e liderança cultural. Portanto, a discussão de originalidade e cópia é precedida e mesmo ditada por um debate sobre dependência econômica e cultural. O destaque é dado ao que de fato está sendo posto em discussão: o surgimento de manifestações literárias que possam dar conta de superação das condições adversas da produção cultural em país de economia subdesenvolvida. O novo, aqui, seria a vanguarda de poesia concreta no Brasil, ou a capacidade de criação e liderança de uma tradição crítica fora da norma. As circunstâncias históricas são as responsáveis por fazerem com que a perspectiva submissa de Haroldo seja não a mesma coisa, mas, como problema capital de reflexão crítico-teórica, o similar da inadequação de Schwarz.

Ao contrário de Schwarz que enumera grandes restrições à validade das propostas de Oswald em sua “Antropofagia” e em seus manifestos, em virtude da fragilidade de suas posições críticas e estéticas na superação de entraves impostos pela dependência cultural em seu programa nacionalista como se lê em “Nacional por subtração”, ensaio no qual o crítico afirma que as investidas intelectuais de Oswald não foram mais que “uma interpretação triunfalista de nosso atraso” (SCHWARZ, 1987, p. 37), Haroldo transforma o autor modernista em teórico de uma escola filosófica de caráter universal, o antropofagismo, mas que, veja-se bem, apesar de deslocar o foco do Manifesto Antropófago e da “Antropofagia” do nacional para o universal, e esse deslocamento é um ponto importante para a tese e argumentação do crítico, o faz sem que se coloque de lado como o principal de seus objetivos a superação de entraves nacionalistas.

Essa relação fará com que Haroldo se interrogue sobre “Vanguarda e/ou Subdesenvolvimento”, retornando aos dilemas da dependência cultural e retomandoos, em sucessivos pressupostos de resistência a uma visão historiográfica dominante. Há a junção entre o Haroldo poeta-crítico e o crítico-teórico, uma vez que o debate se realiza com seus pares do universo acadêmico, das faculdades de letras, dos críticos literários e no âmbito da poesia de vanguarda brasileira. Somente a liberdade de criação artística do poeta permitiria ao teórico da literatura e crítico da cultura estabelecer este tipo de leitura e relação, ambas particularíssimas, que desloca o antropofagismo do nacional para o universal e do universal para o nacional de acordo com o passo seguinte na argumentação. Haroldo e a vanguarda de poesia concreta seriam os representantes máximos da etapa atual do desenvolvimento da tradição literária “antinormativa” que encontraria seus precursores nos poetas Gregório e Oswald, unindo Barroco, Antropofagia e Concretismo, ou, mesmo, unindo Gregório, Oswald e Haroldo, formando assim uma “antitradição” crítica na literatura brasileira.

“Antitradição” crítica que não estaria tão à margem da tradição oficial e consagrada porque englobaria, inclusive, o autor do Quincas Borba, Machado de Assis, marco maior e excessivo para se estabelecer e se definir qualquer aspecto ou forma de tradição na literatura brasileira. No ensaio de Haroldo, Machado é transformado em antropófago, travestido no “grande e inclassificável [...] deglutidor de Laurence Sterne” (CAMPOS, 1992, p. 236). O leitor, perplexo, perguntar-se-á, Machado antropófago? Certamente se a “antropofagia” fosse, de fato, a “única lei do mundo” (ANDRADE, 1978, p. 13). Ou seria melhor Machado relacionado a Sterne na condição de pertencente a uma linhagem ou traço específico do romance moderno? Não sendo um caso de devoração, seria justo que fosse um caso de “filiação”, mas ressaltada a forte independência intelectual do autor brasileiro.

Há uma grande mescla nas rubricas que legitimam a autoria em Haroldo, crítico radical, poeta de vanguarda, tradutor-criador que só trazem dificuldade de compreensão de “Da razão antropofágica”. Mescla entre poeta-crítico, crítico literário e teórico da literatura, além de outra maior e, no caso deste ensaio, talvez até difícil de entender, entre o Haroldo teórico e crítico de si mesmo, crítico de uma tradição da qual o autor de “Da razão antropofágica” e o Haroldo poeta de vanguarda e teórico da vanguarda poética, peça chave e determinante para a formação de uma tradição crítica. Trata-se de uma postura autocrítica favorecedora que pode ser vista ao longo de todo o ensaio. Especificamente, traduz-se em afirmações que preencheriam todo o abecedário: a) “a poesia concreta pode reclamar essa tradição antinormativa” (CAMPOS, 1992, p. 245), b) “a diferença (o nacional) passou a ser com ela (a poesia concreta) o lugar operatório da nova síntese do código universal” (CAMPOS, 1992, p. 246) e c) “a poesia concreta, brasileiramente, pensou uma nova poética, nacional e universal” (CAMPOS, 1992, p. 247). São exemplos tradutores de afirmações que colocam a Poesia Concreta no centro da “tradição antinormativa” e da cultura brasileira. Tem-se a impressão de que a atitude do crítico, com relação à justificativa de uma “tradição antinormativa” passa pelo centro da análise de sua obra como poeta, crítico radical e teórico literário, uma vez que a poesia concreta é posta em destaque e associada ao que a literatura nacional e universal tem de mais significativo, ou seja, a chamada nova síntese do código universal.

No início do segundo subtítulo do ensaio, Haroldo se refere ao nacionalismo literário, trazendo à tona aquilo que seria, em suas palavras, a diferenciação e a oposição entre dois tipos de nacionalismo na crítica brasileira, o “nacionalismo modal” (CAMPOS, 1992, p. 235), chamado de divergência lógica, versus o “nacionalismo ontológico” (CAMPOS, 1992, p. 235). O próprio crítico formula e põe, abertamente, a dualidade crítica em termos de disputa: nacionalismo contra nacionalismo, tradição contra tradição, cânone contra cânone. De fato, trata-se de uma distinção que jamais havia sido feita. Mais do que uma distinção, uma restrição, não ao “nacionalismo”, mas sim a sua determinada qualificação específica. De seu ponto de vista nacionalista não rejeita o nacionalismo, mas sim a sua qualificação própria à Formação. A restrição tem um alvo certo, sendo um só, a tese do processo de formação da literatura brasileira defendida por Candido em mais de um livro e em mais de uma ocasião. A Formação passou a ser o alvo crítico literário mais visado da crítica literária brasileira desde o momento de sua publicação, justamente por apresentar uma tese sobre o processo de formação da literatura brasileira que até àquele momento, o final dos anos 50, tal como apresentada por Candido em sua articulada elaboração crítica com base em vários conceitos, era inédita e, mesmo, “bastante original” (CANDIDO, 2002, p. 114), segundo o próprio autor.

Dessa forma, pode-se dizer que a Formação, sem deixar de fato de ter sua importância no campo da historiografia literária passa a ter importância maior no campo da crítica e da teoria da literatura, e talvez seja essa uma das razões da grande influência intelectual de seu autor. Como registro de um dado significativo e particular, a Formação não conheceu o desprestígio próprio ao formato historiografia literária nacional. As críticas comuns ao processo de formação da literatura brasileira descrito por Candido destacam, em bloco, a) a ausência do estilo Barroco e do poeta Gregório, b) a visão tida como conservadora, c) a base vista como sociológica, d) o ponto de partida nacionalista etc. A tradição literária e seu processo de formação no século XIX brasileiro parece ser o ponto mais fraco e delicado da obra de Candido para muitos dos críticos que opõem permanentes senões ao livro: Afrânio Coutinho, Haroldo, Abel Barros Baptista etc. Além disso, Haroldo é aquele que propõe uma atitude, pode-se dizer, semelhante à da crítica brasileira, deliberadamente nacionalista, como motivo de superação dos dilemas da dependência cultural marcados pelo que chamou de “movimento dialógico da diferença” (CAMPOS, 1992, p. 237) e que seria a base para a sua outra tradição crítica.

O “nacionalismo ontológico” apresentaria uma visão historiográfica empenhada na individuação de um classicismo nacional que buscaria a “origem e o itinerário de parousía de um logos nacional pontual” (CAMPOS, 1992, p. 236). Não seria mais que “um episódio da metafísica ocidental da presença, transferido para as nossas latitudes tropicais, e que não se dá bem conta do sentido último desta transformação” (CAMPOS, 1992, p. 236). Seja qual for o sentido que causar no leitor essas afirmações, mesmo aqui, nesta visão que ainda não havia sido posta, nestes termos técnicos e filosóficos para se compreender, a partir de uma crítica e contestação, o fenômeno da manifestação do nacionalismo em uma de suas faces da dependência cultural – uma vez que é disso que o crítico está tratando e suas afirmações não deixam dúvidas – Haroldo reconhece a situação dependente no episódio da “transferência” e na incapacidade aqui nos trópicos, segundo o crítico, de se dar conta do sentido último desta transformação. O objetivo seria analisar o que isso poderia dizer, de fato, para o contexto dos estudos do nacionalismo na literatura brasileira. A última observação do crítico é extensiva à intelectualidade brasileira e não somente ao autor da Formação. Ao conjunto das restrições enumeradas, se oporia o “nacionalismo modal” com a sua diferença substantiva. Claro está que em nenhum momento o processo de formação e a escrita de história da literatura brasileira foram pensados por qualquer um de seus maiores críticos e historiadores nesses termos. Portanto, as restrições são uma possibilidade de manifestação da dependência cultural que o crítico deixa claro ser uma presença comum a toda a literatura brasileira. É de se perguntar se uma revisão do processo de formação revendo seus pressupostos críticos adotados por Candido, ou pressupostos consagrados pela crítica brasileira desde a primeira metade do século XIX, faria com que a literatura brasileira se reduzisse a esse “episódio da metafísica ocidental da presença”. De qualquer maneira, como Haroldo não parte do zero, e isso significa que acata pressupostos já estabelecidos, ele reconhece, como Machado, sendo disso que se tratam de fato suas afirmações, que “o influxo externo é que determina a direção do movimento” (ASSIS, 1959, p. 826). Com isso quer dizer, mais uma vez, como a crítica brasileira desde seu início, que a literatura brasileira é, em um de seus aspectos, a representação dos dilemas maiores desse processo. É de se perguntar, novamente, se com esse episódio da metafísica ocidental da presença o autor de A máquina do mundo repensada está retomando e, simplesmente, rebatizando, de maneira radical, a formulação já clássica de Machado para a presença da cultura europeia nos trópicos, o seu famigerado “influxo externo”, uma vez que a citação de Derrida ganha especificidade própria no contexto brasileiro, independente do postulado adotado pelo filósofo francês e pelo crítico brasileiro, e especificidade própria independente de o postulado ser uma reflexão filosófica sobre a cultura europeia, tomada como ocidental. Trata-se de um engano não ver aqui, no postulado do filósofo francês, a “perspectiva submissa”. Mais do que Machado e outros, Haroldo reconhece a transferência e a transformação, e, em suas afirmações, reconhece o processo determinante do “influxo externo” para a literatura e a reflexão crítico-literária brasileiras quando fala em “transferência” e em “transformação”, quando é o “influxo externo”, gerado a partir das ideias do pensamento dos filósofos, críticos e psicanalistas franceses contemporâneas aos críticos literários brasileiros acadêmicos, que lhe dá uma das bases de reflexão para a sua crítica revisora.

Haroldo estabelece como ponto de partida a revisão de uma tradição, justamente pelo fato de essa tradição ser uma das bases de reflexão do nacionalismo literário que para os meios acadêmicos seria encabeçada, inicialmente, pelas ideias defendidas por Machado na década de 70 do século XIX e desenvolvida, posteriormente, por Candido na Formação. Visaria ao estabelecimento de uma “antitradição” normativa a partir da “recusa da metáfora substancialista da evolução natural, gradualista, harmoniosa. Uma nova ideia de tradição (antitradição), a operar como contravolução, como contracorrente oposta ao cânon prestigiado e glorioso” (CAMPOS, 1992, p. 237). Fica a pergunta: se a “metáfora substancialista da evolução” (CAMPOS, 1992, p. 237) é “natural, gradualista, harmoniosa” (CAMPOS, 1992, p. 237) porque gera tanto discurso reiterado de afirmação? Desta forma, no dizer de Haroldo, ele não faz mais que lançar a primeira pedra de um novo edifício conceitual, nova tradição que seria não substancialista, não gradualista e não harmoniosa, mas diferente, “antinormativa”, “uma antitradição que passa pelos vãos da historiografia tradicional, que filtra por suas brechas, que enviesa por suas fissuras” (CAMPOS, 1992, p. 243).

Haroldo traz um problema difícil de equacionar para aquele que se coloca a tarefa de leitor e comentador de seu texto. Dificuldade que advém de seu grande número de referências, tanto teóricas quanto autorais, tanto conceituais quanto metodológicas, em princípio, inconciliáveis, no que diz respeito à partilha de valores comuns e à assimilação e transmissão de valores estéticos e crítico literários. É, justamente, neste sentido, o da assimilação e transmissão, uma vez que o crítico coloca em discussão outra possibilidade de tradição crítica, que se encontra a maior dificuldade de entendimento crítico e teórico, como se não fosse suficiente, a sua leitura, por vezes reducionista, ao menos ao modelo de tradição crítica prefigurado da obra de determinados autores que ao ganhar valor estético e literário em algum ponto de suas leituras e análises são reduzidos a qualidades que remontam a seus autores prediletos, a seu cânone particular, a seu paideuma, e, sempre, são lidos a partir de uma perspectiva antropofágica e na condição de autores excluídos, ou, à margem, em se tratando dos autores brasileiros, do processo de formação da literatura brasileira. Para dizer de outra forma, esses autores são lidos a partir de um ponto de vista “antinormativo” com relação ao processo de formação e com base em suas qualificações para o termo “antitradição” crítica. Não deixa de ser interessante para o crítico pensar a literatura brasileira e seus problemas mais prementes a partir da “antropofagia” de Oswald. Seria, de fato, tomar a via oposta à via tradicional que a crítica comumente tomou. As dúvidas vão surgindo a cada passo, e é justo perguntar como poderia ser classificada a leitura que Haroldo faz para compor uma “tradição antinormativa” na literatura brasileira? A outra pergunta que carece de resposta é como e porque isolar Oswald da tradição “oficial” e colocá-lo como marco divisor de outro processo de formação crítica e teórica?

Sem responder a pergunta acima, o ensaio se configura como leitura empenhada, compromissada, ideologicamente conduzida que a tudo reduz a uma interpretação antropofágica; como modelo característico e ilustrativo de seu método, é exemplar a análise que Haroldo propõe para um livro clássico da literatura brasileira, Macunaíma. Macunaíma é lido à sombra das ideias antropofágicas de Oswald e reduzido, para uso próprio e particular do crítico em sua busca de nomes que se filiariam a sua “tradição antinormativa”, a seu cânone pessoal, à condição de mito antropofágico; Haroldo afirma que “Mário de Andrade, criando Macunaíma, [...], denunciou, [...], a falácia logocêntrica que ronda todo nacionalismo ontológico; a busca macunaímica, vista dessa perspectiva radical, di.fere (no duplo sentido derridiano de divergir e retardar)” (CAMPOS, 1992, p. 237). Até então, as leituras conhecidas filiavam Macunaíma, de maneira unânime, ao projeto do Modernismo de 22 e a sua ideologia. O livro é visto a partir de uma forma diversa de Ajustamento Cultural, a que ele atribui à “antropofagia” oswaldiana. O celebrado “herói de nossa gente”, apesar de sua preguiça, individualismo mesquinho, covardia e “esperteza” tupiniquins seria um antropófago e um dos muitos heróis da “tradição antinormativa” da literatura brasileira. Macunaíma traz, por si só, particularidades que levariam a uma discussão de seu lugar no cânone literário nacional, como de resto discussão que caberiam a outros livros importantes da literatura brasileira. Candido, em “Dialética da malandragem”, antes de Haroldo, já destacara a sua categoria de símbolo que o faria pertencente a uma vertente específica da novelística brasileira, o romance malandro. Candido não retira Macunaíma da “tradição” moderna que se constrói, de maneira particular, com o modernismo brasileiro, mas, antes, vem novamente a destacar uma de suas muitas virtudes, o seu caráter polêmico e questionar das formas tradicionais do discurso literário. Se aceita a afirmação de Haroldo para Macunaíma, tornando-o “diferente”, o mesmo poderia ser dito para o Grande sertão: veredas, cujas formas de “apropriação”, de deglutição dos mais diversos e diferentes formatos discursivos e literários, tão particulares e postos de maneira tão mesclada fariam com que ele representasse um passo adiante, radical, no romance brasileiro, ainda que esteja tão preso à tradição nacional.

Em “O Barroco: A Não infância”, a querela da origem da literatura brasileira, envolvendo a obra de críticos como Candido – embora esse não tenha entrado na discussão de sua origem, mas sim do seu processo de formação – Coutinho, Haroldo etc. é posta em discussão. A diferença está, inegavelmente, marcada com relação às historiografias conhecidas no momento em que Haroldo estabelece o Barroco, na figura de Gregório, como peça importante para se estabelecer um princípio ou uma origem para a literatura brasileira. Não é mais o século XVI e a carta de Pero Vaz de Caminha, sendo agora o século XVII e Gregório. Para Haroldo, a questão da origem da literatura brasileira se inicia, ou mesmo o seu “nascer” se dá sob as ordens de um poeta provocador e polêmico, perfil pouco comum na poesia brasileira. “Boca do inferno”, “poeta maldito”, Gregório passa a ser, aqui, o pai fundador de uma tradição. Ainda que a literatura desse “maldito” não nasça maldita, não cresça maldita, por ser o Barroco um código universal extremamente elaborado e normativo, sendo, assim, norma, segundo Haroldo, a literatura de Gregório passa a ser marginalizada ao longo do tempo pelos críticos que, no mínimo, não lhe deram a importância devida, o seu lugar de destaque no cânone. O código barroco local parece ser alterado pela figura do poeta maldito e, mais importante, pela finalidade a que se prestaria, e que o ensaísta faz questão de destacar. A condição marginal de Gregório, no dizer de Haroldo e, bem entendido, na historiografia brasileira, faz com que o Barroco se apresente como um dizer alternativo que tem o objetivo e a finalidade de “extrair a diferença da morfose do mesmo” (CAMPOS, 1992, p. 240).

Haroldo insiste em uma tradição antropofágica, em que Gregório seria, em suas palavras, o nosso primeiro antropófago, precursor, poeta inaugurador da vertente literária, avant la lettre, de Oswald e sua “Antropofagia” e, também, precursor da “tradição antinormativa” uma vez que, em páginas adiante, o crítico arrasta a poesia concreta para o caminho “antinormativo” e já sedimentado por Gregório, Sousândrade e Oswald. Essa relação se estabelece sem sequer uma única justificativa, que seja de fato convincente em sua argumentação, ou mesmo análise segura, e sob a afirmação de que essa tradição prefigurada por esses poetas representaria para a literatura brasileira outro passo, vertente ou constelação. A esses nomes representativos dessa tradição, acrescentam-se os nomes dos autores mais significativos da poesia brasileira contemporânea, cuja expressão poética, de todos eles, é tida como norma reguladora pela crítica, Drummond, Murilo e João Cabral. Como colocar os nomes dos poetas mais significativos, complexos e consagrados da literatura brasileira em uma tradição à margem da crítica e da historiografia oficiais, ou seja, como colocá-los à margem da tradição da moderna poesia brasileira?

É difícil para a crítica e historiografia literárias aceitar e discutir uma possível ligação, à margem, ainda que seja construída por “lances, relances”, indicadores de “outra constelação” na literatura brasileira que pudesse englobar a trinca acima mencionada, parâmetros na cultura brasileira, marcos reguladores de expressão poética normativa da moderna literatura brasileira, e, pode-se dizer, seguramente, os três mais importantes poetas brasileiros contemporâneos. Difícil aceitar que a obra dos três poderia validar ou justificar uma tradição marginalizada pela cultura oficial, ou melhor, proveniente do “reconhecimento de certos desenhos ou percursos marginais, ao longo do roteiro preferencial da historiografia normativa” (CAMPOS, 1992, p. 243) que pudesse unir uma tradição que viria, inicialmente, a partir de Gregório de Matos e encontraria formulação bem acabada em Oswald. Principalmente se aquilo que parece uni-los seria, para usar a terminologia própria a Haroldo, o “sequestro” de uma grande família de determinados autores, sobretudos poetas, pela tradição canônica exposta no processo de formação. Difícil aceitar que essa tradição pressupõe um processo de continuidade de princípios estético-literários que surgiria, difundir-se-ia e se consolidaria na relação entre os autores mencionados desde o século XVII. É preciso dizer que colocar os poetas Drummond, Murilo e João Cabral em uma “tradição antinormativa”, ou, mesmo, em uma tradição que pudesse figurar ao lado da poesia concreta, mesmo que essa aproximação com a poesia concreta se desse da parte única e exclusiva de alguns princípios e valores críticos literários comuns a João Cabral, o que ainda não gerou apostas que deram resultados, seria objeto de grande dissenso para os críticos. Neste sentido, seria inútil prosseguir uma vez que as perguntas se multiplicam sem gerar respostas minimamente possíveis. Mesmo que fosse uma aproximação com momentos complementares de uma “antitradição” crítica, é algo que os críticos, até o momento, à exceção de Haroldo, não somente negligenciam como também não acreditam ser algo válido ou possível de sequer ser discutido. Veja-se, verdadeiramente, o que está sendo negligenciado, no caso dos três poetas, e como o discurso de Haroldo se dirige a seus contemporâneos universitários, denunciando a negligência exclusiva da crítica acadêmica à busca de uma possível tradição envolvendo três dos maiores poetas brasileiros. Três poetas que foram, sem sombra de dúvida, os responsáveis pela construção da identidade poética brasileira contemporânea, “normativa”, se for essa a palavra correta, identidade contemporânea e moderna.

É preciso insistir na leitura que Haroldo faz dos manifestos oswaldianos e da obra de Oswald. As afirmações sobre o caráter da constituição dos fundamentos da antropofagia na definição de uma tradição antinormativa deveriam ser mais significativas dessa que é obra radical, crítica e de combate. Trata-se, em primeiro lugar, de uma interpretação geral, exígua do Manifesto Antropófago, feita em poucas palavras; é isso que nós temos: o uso programático de uma interpretação da obra de Oswald, e, mesmo, pode-se dizer, interpretação deslocada, que está muito distante daquilo que Oswald propõe em sua “antropofagia” uma vez que no Manifesto Antropófago não há nada que se defina como traços de busca e de afirmação de “tradição antinormativa” na literatura brasileira. Não há nada que se defina como “razão antropofágica”.

Tudo aquilo que Haroldo julga fora da norma, da rota estabelecida pela “historiografia tradicional”, todas as atitudes e gestos antinormativos estariam associados à subversão própria ao “logocentrismo” ocidental do qual derivaria o processo de formação da literatura brasileira; não se trata apenas da construção de uma “antitradição” normativa pura e simples. Haroldo faz com que toda a tradição críticoliterária brasileira seja comprometida e empenhada, pretensamente consciente do debate crítico literário que está em jogo em termos de “antitradição” crítica. O crítico pretende reafirmar o caráter de combate virtuoso que está presente, de maneira indissociável, e como base estrutural, na ideia central da “tradição da ruptura” de Paz. Querendo destacar a diferença de posições críticas e teóricas, que é, de fato, da crítica brasileira como um todo, Haroldo, ainda polemizando com as posições críticas e teóricas de Candido refuta a ideia central da Formação que diz respeito ao processo de formação, dizendo que “toda questão logocêntrica da origem, na literatura brasileira [...] esbarra num obstáculo historiográfico: o Barroco” (CAMPOS, 1992, p. 239). Sendo assim, somente a “tradição antinormativa” superaria esse “obstáculo”. Neste ponto, Haroldo defende que a literatura brasileira teria sua origem com o código retórico barroco. Cabe se perguntar até onde se pode fazer uma distinção entre a origem da literatura brasileira e seu processo de formação, uma vez que origem e formação não são a mesma coisa, ainda que sejam, no ensaio de Haroldo, dois conceitos ou duas noções literárias tomadas como se fossem a mesma. É lamentável que obras de história da literatura brasileira como A literatura no Brasil, sob a organização de Coutinho, História concisa, de Bosi e De Anchieta a Euclides, de José Guilherme Merquior guardem silêncio e não estabeleçam uma discussão sobre “origem” e processo de “formação”.

Haroldo traz um grande número de referências autorais, e conceituais, muito diversas e que, ao menos em princípio, não teriam uma relação de complementaridade para dar sustentação à hipótese de sua tradição fora da norma; somado o uso feito pelo crítico de determinados autores e obras, reduzindo-os à condição de “antropófagos”, como exemplificamos com Macunaíma, e, ainda, as objeções feitas para Drummond, Murilo e João Cabral quando os cita a partir de uma leitura reducionista, ideologicamente marcada, que termina por descaracterizá-los dentro daquilo que se pode chamar de tradição da poesia moderna e contemporânea no Brasil. Um desses exemplos está na interpretação de “Dialética da malandragem”. Ao contrário do que parece fazer crer, a sua “antitradição” normativa não teria relação com o que fora proposto em “Dialética da Malandragem”, por serem os ensaios fruto de pontos de vista críticos distintos e por chegarem a resultados diversos. A ideia de uma linhagem, ou de um desvio na literatura brasileira, em prosa, que originaria o romance malandro não se liga a uma “tradição antinormativa”, até porque o reconhecimento de certos desenhos ou percursos marginais, ao longo do roteiro preferencial da historiografia normativa não é suficiente para se estabelecer uma “antitradição” crítica, o que é muito diferente de uma tradição malandra e muito diferente daquilo que seria, nas palavras do crítico, outro nome para carnavalização. Basta pensarmos na base da tese central em que Haroldo fora buscar inspiração para a sua “tradição antinormativa”, a “tradição da ruptura”. Não haveria relação possível dos pontos de vista críticos, literários e teóricos da “tradição da ruptura” com a “Dialética da malandragem”, sendo mesmo excludentes.

Em “A Poesia Concreta: [...] Outra Constelação” a profusão de referências e citações com muitos nomes de poetas e escritores, nacionais e estrangeiros, é imensa, onde se pode ler desde Oswald, Drummond, Murilo, João Cabral, O Padre Vieira, Mallarmé, Joyce, Apollinaire, Pound, Cummings até Sousândrade; a rigor, os mesmos nomes dos poetas e escritores citados ao longo de todo o ensaio, agora são lidos, novamente, em um espaço tão curto. A citação passa a sobrepor-se, derradeiramente, à análise, à argumentação, e mesmo à enunciação, fragilizando a interpretação, terminando por ocupar, nessa parte do ensaio, um espaço dedicado maior que o espaço usado para o desenvolvimento das ideias críticas. Esse privilégio dado à citação em detrimento da análise e argumentação se dá, sobretudo, pela ausência de argumentação nova e convincente. Torna-se difícil encontrar algo que não seja repetição do que já fora dito, além da afirmação de que “a poesia concreta, brasileiramente, pensou uma nova poética” (CAMPOS, 1992, p. 247) que seria o último lance, e o coroamento das ideias de uma “antitradição” crítica na literatura brasileira, sendo a responsável por dar sentido, no Brasil, ao conjunto das ideias da vanguarda poética europeia e internacional. Fundamentar a argumentação do processo de construção textual em muitas citações autorais, como já visto nas outras partes do ensaio, traz mais prejuízo do que contribuição. Criam-se junções inusitadas: sob a rubrica de “enxadristas da linguagem”, por exemplo, coloca-se em um mesmo lugar a obra retórico religiosa do padre Antônio Vieira comprometida com a colonização portuguesa e a obra poética, radical, inovadora e construída de maneira complexa e atormentada de Mallarmé, cuja fortuna crítica em língua francesa é imensa. A esses dois nomes, além dos já mencionados, juntam-se poetas e escritores da vanguarda europeia do início do século XX, chegando até as expressões mais significativas da arquitetura, do urbanismo, da música erudita e da música popular de vanguarda brasileira. Aqui, a “tradição antinormativa”, com o aval da poesia concreta, mais uma vez, passa a ser vista pelo crítico como “o momento de sincronia absoluta da literatura brasileira” (CAMPOS, 1992, p. 246), responsável pelo caráter de universalização de sua “tradição antinormativa”, já que se mostra, a um só tempo, nacional e universal. A observação é interessante: pensar que, tal como se daria a partir de um ponto de visto historiográfico, concebido através do conceito de diacronia, o momento absoluto, o ponto mais alto no processo de formação de uma tradição literária, dar-se-ia com o conceito de sincronia.

O último subtítulo do ensaio, redigido à maneira dos demais, em uma profusão de citações e referências das mais diversas, intitulado “Os Bárbaros Alexandrinos: Redevoração Planetária” traz, logo em seu início, na primeira de suas três epígrafes, uma pequena citação de Octavio Paz que merece comentário pelo alcance que tem da condição do escritor latino-americano e do problema que o aflige: “desenraizada e cosmopolita, a literatura hispano-americana é regresso e procura de uma tradição. Ao procurá-la, a inventa” (CAMPOS, 1992, p. 250). A constatação de que a literatura brasileira, como parte da hispano-americana, realiza-se como procura de uma tradição põe em destaque, mais uma vez, o seu propagado caráter militante e, nesse, “ao procurála, a inventa” é que ela se faz. A qualificação “desenraizada” é produto da força do cosmopolitismo, que a tudo distingue, compara e segrega. A literatura brasileira se faz, realiza-se e se constitui como invenção empenhada. A epígrafe, que poderia ser recuada para o início do ensaio, sem prejuízo de sua compreensão, revela o senso crítico comum à crítica literária e cultural brasileira e à crítica latino-americana. Mais do que procura, essa busca tornou-se um incômodo, um motivo de crítica e, também, como mostrado, motivo de dissenso crítico e teórico na cultura brasileira. Na busca por uma tradição, raiz comum que a una e a justifique, qualquer das literaturas latino-americanas passa inevitavelmente pelo cosmopolitismo que está na base de sua constituição e formação cultural. A citação, posta no final do ensaio e na condição de epígrafe, ganha um significado a mais: por mais que o intelectual brasileiro, latino-americano, busque uma forma de superação do dilema irresolvido da dependência cultural, ele termina, sempre, por operar um retorno à origem de sua partida.

Em se tratando de artista, poeta de vanguarda, criador militante tantas vezes radical, no que esta palavra tem de mais significativo e com todo o reconhecimento possível da prática da adoção da atitude artista radical, é de se perguntar se as ideias contidas em “Da razão antropofágica”, utopia extraordinária, não seriam mais bem expostas se o ensaio fosse visto, além de uma incursão crítico-literária, de intervenção cultural, como o quer o seu autor, também como um radical manifesto crítico-poético de sua tese de uma tradição crítica baseada em uma poética sincrônica, tamanhas as suas particularidades, e, ainda, por ser tão partidário da “razão antropofágica”, se não seria correto lê-lo como um provocativo segundo manifesto antropofágico, o que não somente justificaria o seu Ajustamento Cultural e Intelectual, mas também seu ponto conflitante de adesão à cultura do nacionalismo literário.

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Notas

1 As citações foram retiradas do texto original, conforme indicação bibliográfica. Realizamos a tradução.

Notas de autor

1 Doutor em Letras/Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista . UNESP - São Paulo - Brasil.


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