Dossiê

Entre registros e memórias: um olhar sobre as festas populares e tradicionais de Luanda

Between records and memories: a look at Luanda's popular and traditional festivals

Entre registros y recuerdos: una mirada a las fiestas populares y tradicionales de Luanda

Yuri Manuel Francisco Agostinho
, Angola

Entre registros e memórias: um olhar sobre as festas populares e tradicionais de Luanda

Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 18, núm. 40, pp. 96-111, 2020

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 23/04/20

Aprovação: 26/05/20

Resumo: O objetivo deste trabalho é olhar como a memória opera através do discurso de três intervenientes que recorrem à memória para relatar questões sobre as festas populares e tradicionais de Luanda. Para além da preocupação inicial, o nosso interesse recairá igualmente na importância de registrar as memórias de sujeitos, para que estes registros possam ser uteis para a divulgação da cultura Luandense e a possibilidade de ser uma ponte para futuras pesquisas que incidem sobre as festas populares e tradicionais de Luanda. Como metodologia: gravamos às narrativas com um gravador de som, por conseguinte, fizemos a transcrição do essencial e por fim analisaram-se os registros. Como resultado constatamos que existem diferenças no universo da memória, a sua operacionalização é bastante complexa. As festas populares e tradicionais de Luanda carregam histórias que estão submersas e associadas ao vivido e podem ser acessadas através do registro e da tradição oral.

Palavras-chave: Registro, Memória, Festas populares, Festas tradicionais, Luanda.

Abstract: The aim of this work is to look at how memory operates through the discourse of three speakers who use memory to report on issues of Luanda's popular and traditional festivals. In addition to the initial concern, our interest will also focus on the importance of recording the subjects' memories so that these records can be useful for the dissemination of Luandan culture and the possibility of being a bridge for future research on Luanda's popular and traditional festivals. As a methodology: we recorded the narratives with a sound recorder, therefore we transcribed the essential and finally analysed the records. As a result, we found that there are differences in the universe of memory, its operationalization is quite complex. Luanda's popular and traditional festivals carry stories that are submerged and associated with the lived and can be accessed through the record and oral tradition.

Keywords: Registration, Memory, Popular festivities, Traditional festivities, Luanda.

Resumen: El objetivo de este trabajo es examinar cómo opera la memoria a través del discurso de tres oradores que utilizan la memoria para informar sobre cuestiones de las fiestas populares y tradicionales de Luanda. Además de la preocupación inicial, nuestro interés también se centrará en la importancia de registrar las memorias de los sujetos para que estos registros puedan ser útiles para la difusión de la cultura luandesa y la posibilidad de ser un puente para futuras investigaciones sobre las fiestas populares y tradicionales de Luanda. Como metodología: grabamos las narraciones con una grabadora de sonido, por lo tanto transcribimos lo esencial y finalmente analizamos los registros. Como resultado, encontramos que hay diferencias en el universo de la memoria, su operacionalización es bastante compleja. Los festivales populares y tradicionales de Luanda llevan historias que están sumergidas y asociadas con lo vivido y a las que se puede acceder a través del registro y la tradición oral.

Palabras clave: Registro, Memoria, Fiestas populares, Fiestas tradicionales, Luanda.

Introdução

De acordo com Toutain (2012, p.17) a memoração do país, da família, das temporadas, das Instituições completam um conjunto a que designamos como memória social. Os registros sejam quais forem, possibilitam a expansão da cultura, guardam nossa memória coletiva, o que recai sobre o ensejo de transformações culturais. Memória é consequência dos entrecruzamentos das práticas de um tempo convivido e que “[...] comunicamos para o que vivemos, acreditamos e consideramos que não venha a acabar conosco” (apud DEBRAY, 2000, p. 16). A memória tem como finalidade conservar certas informações, diante deste pressuposto, ela tem um agregado de funções mentais, na qual o homem pode atualizar impressões ou informações passadas. O estudo no campo da memória abarca a psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia, perturbações mentais e a psiquiatria. Certos desdobramentos em prol do estudo da memória, no seio de qualquer das ciências supracitadas, podem evocar, numa forma figurada ou de uma forma concreta, traços e problemas da memória histórica e memória social. “O estudo da memória social é um dos meios basilares para abordar as dificuldades do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento” (LE GOFF, 1990, p. 426).

Com a aceleração do tempo, surge um espaço de ruptura seguramente entre o presente e o passado, Hartog (2006) fala de um sentimento vivido da aceleração sendo uma forma de fazer a experiência: “a mudança brusca de um regime de memória para um outro” (HARTOG, 2006, p. 12). O espaço de ruptura entre presente e o passado seguramente cria um efeito aos diversos grupos identitários que constituem uma determinada sociedade, os efeitos estão correlacionados com as lembranças, esquecimentos, lugares de memórias, memórias não significativas ou a preocupação de preservar uma determinada memória.

Pegando neste mote, surge o nosso interesse de olhar as festas populares e tradicionais de Luanda, através da experiência de pessoas que presenciaram e conviveram com estas manifestações culturais que ao longo tempo foram desaparecendo com base os novos contextos. Servimo-nos dos discursos no acto de rememorar de Roldão Ferreira², Dionísio Rocha³ e Carlos Lamartine4, partindo do pressuposto que a memória são marcas em representação do passado vivo na mente de um grupo5. A sua operacionalização é bastante complexa porque ela é carregada do social e do individual. Halbwachs (1990) na sua obra: “Memória Coletiva”, olha a questão da “lembrança individual como limite das interferências coletivas”, o autor esclarece que as lembranças pessoais tais como nós sozinhos às confirmamos e somos competentes em reencontrá-las, evidenciam-se das outras pela maior complexidade das circunstâncias fundamentais para que sejam lembradas, mas isto é apenas uma diferença de grau. Em “imagem de Proust”, Benjamin (1994) sustenta no facto de que o passado nunca volta enquanto tal: ou seja, existe uma distância entre a vida vivida e vida lembrada que Proust não cansa de sublinhar (Benjamin, 1994).

Podemos afirmar que a memória coletiva é uma ponte de ligação do passado para o presente, neste sentido, a cada período, o mundo criou seus hábitos sociais e preservou suas experiências para transmiti-las a gerações seguintes de diversas maneiras, de forma que se pode dizer de “uma trajetória da memória como história das formas de significá-la, conservá-la e recuperá-la. Mesmo em circunstâncias de modificações, as memórias permaneceram a se referir a um agregado de experiências prescritas por sujeitos, no mundo” (TOUTAIN, 2012, p.17).

Nessa linha de ideia registramos as memórias dos narradores supracitados, para perceber até que ponto a memória opera sobre a compreensão do passado e do presente. Por outro lado, por sabermos que o tempo histórico não é o tempo vivido, logo a história registrada, comprovada, distingue-se do ocorrido; que é um quadro. E neste intervalo entre o vivido e o relato circunscreve o fazer inerente do ofício do historiador. A história que se redige do jeito informado e involuntário está marcada pelo período em que se vive. Fotografar, registrar alguns ângulos das distintas dimensões do real é uma forma de constituir, associar acontecimentos e factos (MONTENEGRO, 2013, p. 10).

O nosso interesse recairá também na importância de registrar as memórias dos sujeitos, para que estes registros possam ser úteis para a divulgação da cultura Luandense e a possibilidade de ser uma ponte para futuras pesquisas que incidem sobre as festas populares e tradicionais de Luanda. O texto que pretendemos apresentar neste turno segue uma estrutura consubstanciada primeiramente num olhar sobre memórias das festas populares e tradicionais de Luanda, onde priorizamos transcrever o essencial das narrativas dos narradores supracitados e seguidamente fez-se uma análise entrecruzada6. sobre as narrativas, com base a operacionalização da memória.

Memórias sobre as festas populares e tradicionais de Luanda

[Pergunta] O que se pode falar das festas populares e tradicionais de Luanda?

[Reposta] Roldão Ferreira: Importa dizer que dentro destes 444 anos é dever e é importante que a passagem de testemunho deve ser bem-feita. Mas porque me pediram apenas para falar sobre as nossas festas populares, é por aí que eu vou começar. Mas outros quinhentos podem vir [risos]. Vamos começar por estas festas populares que pouco a pouco estamos a perder, mas porque nós somos persistentes vou começar por dizer as festas importantes de Luanda que eram apenas cinco entre outras. A primeira começava no dia 1 de Maio, neste 1 de Maio era a festa dedicada a São José Operário, porquê São Operário? Porque ele era carpinteiro, o pai adotivo de Jesus Cristo, aliás, eu devo dizer que antes dos padrões da envangelização, porque dos cinco países colonizados em África pelos portugueses, Angola se a memória não me falha foi a que mais se apegou na envangelização, não quer dizer que os outros países são ateus [riso contido]. Mas dentro desta envangelização, Angola apegou-se muito com estas cinco festas populares, a começar mesmo com o 1 de Maio que é o dia de São José Operário. Daí esta data associa-se também ao 1 de Maio que é o dia do trabalhador, coincidência. A seguir a esta festa do 1 de Maio, seguindo os preceitos da envangelização; surge o dia 1 de Junho, significando: a colonização dos portugueses é um dia que se celebra o Santo António de Lisboa, daí a efeméride ser entregue a comuna de Kifangondo, propriamente no município de Cacuaco. A seguir vamos celebrar São João Baptista, primo de Jesus Cristo em 24 de Junho, esta festa coincide com a festa no município de Cacuaco que é datada em 23 de junho. A quarta festa é a festa da nossa mama Muxima, ela é celebrada nos fins de Agosto e princípios de Setembro. Aí é muito importante, porque temos a festa do Caculo, que começa precisamente em Calumbo, há uma procissão fluvial que sai precisamente de Calumbo; naquele rio Kwanza em direção à barra do rio Kwanza, depois iam por via marítima até chegar à ilha do Cabo para completar a última e quinta festa popular na senhora do Cabo, na nossa Ilha do Cabo. O itinerário dos participantes - (Peregrinos), desta última festa era feito da seguinte maneira: Calumbo, Santo António, Kifangondo, São Baptista em Cacuaco, depois é que fazem a festa de Caculo. É de realçar um aspecto muito importante nesta festa fluvial é a passagem do Calumbo até a barra do Kwanza e depois iam para Ilha do Cabo por via marítima.

[Pergunta] Todas Estas festas ainda são celebradas?

[Reposta] Roldão Ferreira: Que eu saiba é que a festa de São João Baptista ainda é celebrada no município de Cacuaco de 13 a 24 de Junho e a festa de 1 de Maio também é celebrada.

[Reposta] Dionísio Rocha: A minha visão é que Luanda tem muito mais festas, mais que 5 e diríamos que seria mais prático ter trazido um calendário para discutir e analisar. Mas eu vou falar sobre aquela que está mais enraizada em mim pelo seguinte: para além de eu ter familiares que nasceram na ilha, eu levei toda a minha vida, quase toda entre a Ilha, bairro Operário e Marçal. Qualquer destes três sítios; morei algum tempo durante a minha criação. Aprendi muito com os mais velhos naquela época e só assim que eu me sinto com propriedade de falar da festa da Ilha, da festa do bairro operário, e quase nada do Marçal. O Marçal tirando aquela parte cultural que se fazia naquele tempo, as nossas participações no carnaval desde o Maiado, por outro lado assistíamos alguns grupos, como por exemplo: uma boa interpretação Ngana Mbunbi que era uma participação do carnaval que nós víamos, tirando estes pormenores muito fundamentais [emociona-se]. Ao contrário do meu correligionário Roldão Ferreira, falar das festas de Santo António, São Pedro e São Paulo, isto tem certa facilidade, mas vamos interferir nas festas que não são nossas, embora tiverem sido populares durante muito tempo, não nos pertencem, estas de Caculo etc., até podemos falar dela […]. Eu gostaria de citar aqui dois aspectos principais: a festa da Ilha e a festa da nossa senhora do Cabo que é confundida em maior parte de nós, eu durante muito tempo, pensei que fosse a mesma festa, mas não é. A festa da Ilha é uma festa organizada pelos padres já há muito tempo, desde a época do padre Felipe que mobilizava toda população para envolver-se na festa da Ilha. E nesta festa da Ilha, havia carnaval, havia corridas dos barcos (regatas), havia concursos de natação e uma serie de coisas… Ao passo que a festa da nossa senhora do Cabo, à festa da Kianda, é uma forma de nós agradecermos à sereia ou às sereias para quem acredita nisso, eu acredito sinceramente. Acontece que, quem vai a festa da Kianda é aquele que quer pagar a sua divida, porque a pesca estava a correr mal, os barcos não estão a trazer tanto peixe e quando trazem peixe o peixe desaparece da rede. Ou quando o peixe é posto na embarcação desaparece quase tudo, chegando as vendedeiras já não tem peixe nem para elas e nem para os pescadores. Isto foram histórias contadas pelos meus avós e também pelos meus sogros. O quê que acontece, a festa da Kianda tem uma forma, ou seja, ela tem um ritual muito bonito, eu mesmo já apanhei muitas moedas na areia da praia [risos].

[Pergunta] Mas dizem que estas moedas não podem ser apanhadas… O mais Velho Roldão tem algum comentário, tem alguma coisa para dizer assim muito rápido sobre o assunto?

[Reposta] Roldão Ferreira: Tenho sim, o que acontece é que nos anos 50, eu tinha uma serie de amigos na Ilha de Luanda, eramos cerca de sete ou oito, então queríamos de facto provar se a dádiva que davam a Kianda fazia mal para aquelas pessoas que mexessem, porque estas coisas de mexer não são de agora é de há muito tempo. Mas nós limpávamos tudo, ou seja, comíamos a comida e a bebida que era posta para a Kianda, mas nunca nos aconteceu nada [risos].

[Dionísio Rocha]: Estendia-se uma toalha, os homenageadores traziam das suas casas toalhas de luxo na baixa maré, geralmente no fim da tarde, nesta toalha colocavam as guloseimas mais raras e os vinhos finos e fazia-se o pedido a senhora Kianda. A montagem de cenário fazia-se na maré baixa, ou seja, na segunda maré, no final da tarde. Nós víamos os mais velhos que tinham dificuldades na pesca a estenderem estas toalhas e a colocarem as bebidas espirituais mais caras e também os doces mais caros, uns até iam fazer compras a cidade. Hoje esta festa não está a ser tão popular como nós pretendemos incluir na serie de festas populares, mas só se fala em festa da Kianda, mas quando alguém fala da festa Kianda quer misturar com à festa da Ilha, não tem nada haver uma coisa com outra. Ao passo que a festa da Ilha é uma festa religiosa e a festa da Kianda é uma festa da nossa raiz, da nossa tradição, da nossa cultura. Neste sentido, algumas velhas dançavam em volta das oferendas e faziam os seus pedidos, a meia-noite todo mundo retirava-se e de manhãzinha não se encontrava nenhuma garrafa de vinho do Porto e de Whisky, era tudo varrido [risos]. Havia quem dissesse que alguns mais velhos se apoderavam das garrafas e nós miúdos íamos atrás das moedas que ficavam na toalha. E tirávamos também os bolos antes de apanharem a água salgada. De manhã quem fosse para ver as coisas, concluía ou se fazia crer que à Kianda foi à busca das ofertas, quando no final as ofertas eram para nós. Este período antecedia geralmente a festa da Kianda, que ocorre num mês antes de Novembro, neste contexto a festa da Ilha ocorre no segundo final de semana de Novembro. Hoje esta festa está a perder aderência pelo seguinte: geralmente no segundo final semana de Novembro é a data da nossa independência, e como tal, as pessoas que antigamente estavam mais mobilizadas na montagem da festa da Ilha, foram sendo desmobilizadas, quiseram convencer a população que podíamos trocar as datas, fazer antes, mas antes ninguém se sentia mobilizada, fazer depois do 11 de Novembro também ninguém se sentia mobilizada, a mobilização era exatamente na segunda semana de Novembro que é sempre 11 de Novembro. Estou a me recordar do falecido Domingos Fortunato que foi dinamizador da festa da Ilha, mobilizava os foliões, os homens dos negócios e ele também se metia nos negócios. Há um pormenor que é fundamental na festa da Ilha, a grande verdade é que depois de se fazer as ofertas, as calemas que habitualmente ocorrem no fim de Outubro e durante o mês o Novembro, depois de ser tratada à Kianda nós já não tínhamos mais calemas. Cumpria-se um ritual, vinha um curandeiro e fazia umas rezas e xinguilava a tarde toda. Hoje ainda podemos encontrar uma casa que está na contra costa, uma casa amarela que até há pouco tempo, era uma casa que se faziam os tratamentos da Kianda. Estes tratamentos eram para proteger as pessoas de enfermidades, por outro lado era para proteger, por exemplo, quando fosses pescar e quando se houve as tais ditas calemas.

[Reposta] Roldão Ferreira: Os tratamentos continuam a serem feitos, eu conheço duas mães de Santo, no Brasil chama-se mãe de Santo, aqui nós chamamos de mãe de Umbanda e eu conheço elas e são muito minhas amigas, elas dançam no União Mundo da Ilha.

[Reposta] Carlos Lamartine: As festas populares de Angola de forma geral têm duas características, uma é aquela que foi introduzida pela administração colonial, a outra é aquela que por emanação própria as populações faziam nas suas diferentes regiões. Luanda não saiu ao acaso, para além da festa da Ilha ou das outras festas referenciadas por Roldão Ferreira e ligadas a igreja também havia as festas populares nos diferentes bairros e freguesias da cidade de Luanda. Estou a falar concretamente da festa da Terra Nova, que era realizada pelos portugueses (colonos) de forma geral, mas com a participação popular. A festa da Terra Nova era uma festa muito importante, todos nós já nos esquecemos dela. Havia a festa da Kinanga, a festa da praia do Bispo, também ligada a freguesia da praia do Bispo, até havia lá um clube: os Belenenses, não sei se o Dionísio se lembra, que dava com as mesmas características que no Maxinde ou no Marçal e Sambizanga […]. Havia a festa do Cazenga que também era organizada pela freguesia, havia a festa no bairro da Cuca, havia a procissão do corpo de Deus, que também era outra festa que se fazia no dia 1 de Junho ou 10 de Junho mais ou menos por aí, não estou bem recordado. Para além das festas gerenciadas pela missão de São Paulo que contornava a maior parte da periferia dos musseques de Luanda incluindo o Bairro operário, Marçal, Sambizanga e Rangel, até que chegou também naquela altura o bairro Popular antes de ser Neves Bendinha, que dependia também da circunscrição da missão do São Paulo, antes de ser São Domingos.

Mas estas festas como dizia, eram realizadas sobre a administração das freguesias da administração portuguesa, as festas de caráter tradicionais deixaram de ter lugar porque os colonos nem se quer admitiam que as manifestações culturais angolanas fossem promovidas, por essa razão, é que, os rituais sincréticos, muitos deles deixaram de ser realizados com o conhecimento da população. Passaram a sincréticos, e então, deixaram de ter visibilidade, conforme foi crescendo a nova geração, fomos esquecendo também os donos destas realidades. Curiosos como o Roldão Ferreira, Dionísio Rocha e o Aladelon, com características de “feiticeiros” [risos]… porque trabalham com os grupos do carnaval, eles vão a cada momento tomando conhecimento destas realidades, e de facto, não fazem mais do que o seu dever transmitir de forma verbal aqui em palestras como estas. Mas acontece que de facto o assunto que os dois palestrantes estão abordar, com certa profundidade de pesquisa é assunto dos etnólogos, é assunto dos antropólogos, é assunto dos cientistas que o Director Provincial da Cultura deve procurar criar condições para que eles apareçam a fazer estudos sobre essa realidade cultural do nosso povo, e não só, porque de facto vai fazer falta daqui a pouco tempo quando estivermos a querer identificar de facto como angolanos. Mas se dissidirmos que o Centro Cultural Njinga A Mbande tem uma grande responsabilidade para a redimização dessas nossas festas populares. Nós precisamos reaver a dança da Cabetula, nós precisamos demonstrar a nova geração como é que se dança a Cazucuta, como é que se dança a Dizanda, a Gimba, porque os mais velhos estão de facto a ir embora, nós não vamos ter tempo de os ver deitar sangue no nariz [risos] … Porque esse espírito a nova geração não tem coragem para assistir. Por outro lado, como homem de cultura, também acompanhei os grupos de carnaval, logo os rituais da Kianda são feitos no mar, de forma diferente é o ritual dos Kitutes que é feito na lagoa, no carnaval é igual, o ritual é feito uns quilômetros distante dos Musseques de convivência e fazem a mesma prestação, é igual, vocês não se lembram?

[…] Vocês não sabem que entre o clube naval, a Restinga e a Chicala o comboio passava por ali, e ia, até a Sorafane no meio da ilha, este comboio chama-se Bebé7, saia da alfândega, passava contornando a marginal e entrava na ilha e ia a Sorafame depois da igreja do padre Felipe, que tinha muitos afilhados que eram seus filhos e batizados como afilhados [risos]… Por isso, por esse percurso, havia uma ponte que estava ligada a Restinga na ilha de Luanda, ou seja, na própria Restinga, havia uma ponte que era um porto de atracagem de barcos, e neste ponto de atracagem também se fazia a ligação com o Musssulo através de embarcações. Nos anos de 1939 ou mesmo em 1940 houve uma daquelas Calemas muito fortes que partiu esta ponte e deixou nas mesmas condições a Restinga da praia Morena em Benguela, foi o mesmo que aconteceu na nossa ponte aqui na Restinga de Luanda e acabou-se com a ponte.

[Reposta] Roldão Ferreira: Foi em 1936.

[Reposta] Carlos Lamartine: Como esta ponte foi partida, perdeu-se de facto as características daquela região e como nós fizemos um desaforamento nos tempos da modernidade de construção angolana, retiramos as características porque havia ainda naquela altura: pedras, pedregulhos, arames e ferro fundido que dava características nesta ponte. Acho que a Câmara Municipal tem desenhos e fotografias para nós de facto fazermos esta pesquisa. O que eu quero dizer com isso, que por causa deste malefício desta Calema tornou-se cada vez mais agudizada a necessidade dos Kimbandeiros, Curandeiros e Feiticeiros realizarem rituais. Por outro lado, os pescadores também fazem rituais a cada momento para evitar que sejam assolados por novas Calemas e novas condições de prejuízos para as suas economias. Por isso as festas populares são várias, que nós poderíamos reabilita-las dentro de outro contexto, tendo em conta que as populações que participavam naquele tempo, independemente daqueles que já se foram, deixaram os seus herdeiros. Neste contexto os seus herdeiros podem continuar a fazerem a festa […]. Naquele tempo só havia um posto, que era o posto do Puera da administração colonial, e ele tinha um inspetor, ali onde hoje ficou administração do Rangel era o posto administrativo do Puera, depois ficou o posto do Estândar. Neste posto funcionou um aspirante do Puera que era um secretário administrativo, chamado Sá, que é o pai desses Sás que todos nós conhecemos aqui […]. Hoje já existem vários postos em Luanda, que podem fazer levantamento nas suas zonas.

Análise das narrativas sobre as festas populares e tradicionais de Luanda: um olhar entrecruzado sobre a operacionalização da memória

Um dado assente é que os três narradores tiveram como base: narrar as festas populares e tradicionais de Luanda, neste contexto é possível encontrar pontos convergentes e distâncias entre as narrativas, ou seja, Roldão Ferreira no seu diálogo apresenta 5 festas, mas admite a existência de mais festas populares ou tradicionais, já Dionísio Rocha apresenta duas festas principais, mas também minimiza algumas festas que o Roldão Ferreira fez referência. Por outro lado, Carlos Lamartine consegue caracterizar as festas numa perspectiva endógena e exógena e explica que existiram mais festas. Mas o que chamou a nossa atenção no início do pronunciamento de Dionísio Rocha foi quando ele articulou sobre a questão de trazer um calendário para poder posicionar-se e discutir melhor a questão do número de festas populares que Luanda tem.

A posição de Dionísio Rocha leva-nos a olhar sobre a existência de um tempo exterior e um interior na memória, ou seja, poderíamos fazer a seguinte pergunta: porquê que as memórias não gravam as datas? A data tem uma medida exterior cronológica (que é o antes e o depois), logo a hora e o calendário são invenções do tempo exterior. Como interiorizamos o tempo interior, consequentemente ele traz marcas, experiências vividas que são os significados que constituem a experiência. Neste contexto o entrevistado ou o narrador para lembrar uma data tem que fazer uma associação. O tempo da memória não é um tempo cronológico, por isso é que o Dionísio Rocha precisava de um calendário para associar a sua experiência vivida para narrar o facto. Se olharmos para a narrativa de Carlos Lamartine em nota de rodapé8, sobre a festa da procissão do corpo de Deus, ele teve que fazer uma associação do evento com duas datas, daí podemos ver de facto que as memórias não gravam as datas ou podem até certo ponto gravar, mas não taxativamente, ou podemos lembrar de uma data, quando ela seja muito significativa nas nossas vidas, como por exemplo: o dia do nosso aniversário, dia da independência do nosso país, o nascimento de um filho, etc.

Outros elementos que podemos dar realce e trazer aqui para podermos entender como a memória opera, se resume na questão da transmissão oral e tradição Oral, por exemplo, quando Dionísio Rocha faz referência do ritual da Kianda que foi-lhe transmitido pelos seus avós e os seus sogros, logo estamos em presença da transmissão oral e tradição oral, mas a nossa preocupação ficará centrada na tradição oral. Nildo Viana (2019) no seu artigo “Obstáculos para a Reconstituição da Tradição Oral”; assegura que a tradição oral vive na realidade condensada e cotidiana das coletividades. A sua duração real e comparência no cotidiano de uma coletividade, bem como seu processo social de produção e reprodução, não lhe impede de ser recuperada e ressignificada por outros. A tradição oral é um formato de transmissão, via oralidade, que ocorre de geração em geração, das lembranças de uma determinada população ou parte dela. Por outro lado a tradição oral é uma manifestação da memória coletiva de uma população, e coopera para a sua conservação. Esta memória coletiva, atestada por ela, é repassada de geração em geração por meio da oralidade, da fala. Tradição oral, por ser uma manifestação da oralidade, partilha com ela, esta característica. Para Além disso, ela é um sinal da tradição, contendo, logo, uma acepção de lembrança da memória coletiva, que cumpre comummente uma imagem do mundo presente (VIANA, 2019, p. 28-31).

Diante do exposto, podemos considerar a tradição oral como uma tradição viva, Dioniso Rocha ao ir buscar o que lhe foi transmitido pelos seus avós e sogros, valida uma herança que reside no conhecimento das festas tradicionais que lhe foi transmitido de boca a ouvido. Por outro lado, esta transmissão é estruturada por uma cadeia valores, questão de Hampaté Bâ (2010) enfatiza dizendo que o valor da cadeia de transmissão da qual um homem faz parte, está estruturada com o crédito das memórias individual e coletiva e o valor outorgado à verdade em uma determinada sociedade. Em síntese: “o elo entre o homem e a palavra” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 168 -169).

Olhando para as narrativas dos três narradores deu para perceber que a memória é selectiva, a sua selectividade reside no acto de registrar, consequentemente ao narrarmos em função do presente, teremos em presença o discurso e a memória que é a força da marca do evento externo9 que se torna significativa. Daí pode nascer a seguinte questão: o que faz determinados aspectos se tornarem memória? Geralmente são as marcas e os eventos que resultam em memória, logo temos um ponto de selectividade onde as pessoas não contam tudo. Sobre está questão de selectividade, Halbwachs (1990), esclarece dizendo o seguinte: quando algumas vezes limitamo-nos na verificação do nosso passado, este exercício gera duas espécies de elementos: os primeiros são, quando é possível recordar aquilo que nós queremos, os segundos, ao contrário, não compreendem a nossa chamada, ou seja: ao irmos a busca do passado parece que o nosso querer choca num obstáculo (HALBWACHS, 1990, p. 48-49). Por isso é que encontramos pontos convergentes e divergentes nos narradores, o exemplo que podemos mostrar, foi quando Carlos Lamartime colocou a seguinte questão:

Como homem de cultura, também acompanhei os grupos de carnaval, logo os rituais da Kianda são feitos no mar, de forma diferente é o ritual dos Kitutes que é feito na lagoa, no carnaval é igual, o ritual é feito uns quilómetros distante dos Musseques de convivência e fazem a mesma prestação, é igual, vocês não se lembram? (Carlos Lamartime)

Carlos Lamartine sabendo que Dionisio Rocha e Roldão Ferreira frequentaram e participaram nestas festas, para o seu interesse, eles deveriam pronunciar-se também sobre o ritual que era feito a alguns quilômetros distantes dos musseques. Para esta questão, podemos olhar, por exemplo, para aquelas pessoas que estiveram no mesmo evento, mais tiveram experiências diferentes, conjuntas, ou histórias distintas que estão relacionadas com o evento, por isso é que podemos falar de pontos de conexão.

Olhando para as narrativas particularmente de Dionísio Rocha, obriga-nos a falar sobre a questão da reminiscência: que é um percurso entre lembranças10 e memórias11, neste contexto o narrador quando narra, pega num conjunto das marcas e congela a memória, e o facto ganha significado na memória. Por outra, o conjunto de marcas vão se transformando na medida em que o tempo vai passando, consequentemente se ganha outros significados e outras leituras dos factos. O exemplo que podemos apresentar para justificar a nossa posição concernente a questão da reminiscência, consubstancia-se quando Dionísio Rocha proferiu que durante muito tempo pensou que a festa da Ilha e a festa da nossa senhora do Cabo fossem a mesma festa. Se olharmos pela exposição supradita sobre a questão da reminiscência e os seus processos, leva-nos a admitir que a forma como Dionísio Rocha confundiu a festa da Ilha com a festa da nossa senhora do Cabo pode estar derivada no acto de rememoração, que se da com a questão do esquecimento. Esquecer e lembrar são fundamentais para rememoração. O facto de não existir uma memória pura, naturalmente às novas experiências podem influir a memória, possibilitando desta forma, uma leitura diferente do passado.

A memória colectiva, também se resume na noção de tempo, fazendo apenas grandes diferenciações entre a actualidade (“o hoje”) e o transcorrido (“o ontem”), por exemplo: no início da narrativa de Roldão Ferreira é possível notar a sua preocupação com o desaparecimento das festas nos dias de hoje, esta preocupação esta ligada naquilo que foi vivido e vivenciado por ele no passado e o que representa hoje aquilo que ele viveu no passado. Além da dimensão da memória colectiva que esta atrelada em datas, a memória coletiva também se baseia em imagens e paisagens. O próprio acto de esquecer é também um aspecto proeminente para o entendimento da memória de grupos e comunidades, “pois muitas vezes é espontâneo, aludindo o querer do grupo de ocultar determinados factos. Assim, a memória coletiva refaz constantemente os factos” (SILVA; SILVA, 2009, p. 276).

O facto dos narradores se deslocarem para o passado e seguidamente trazerem para o presente suas memórias, nos da possibilidade de olhar estas memórias na Longa duração. Bergson (2006) ao analisar o sentido da duração e a memória, ajuda-nos a olhar pelas dimensões da memória, ou seja, podemos olhar a memória através da duração onde ela transforma-se. A duração é uma evolução contínua do passado que devora o porvir e avoluma à dimensão que avança. Uma vez que o passado aumenta incansavelmente, também se preserva interminavelmente. A memória não é uma propriedade de catalogar rememorações numa prisão ou de inscrevê-las num registro. (BERGSON, 2006, p.47-48)

Neste contexto, os narradores ao trazerem as memórias sobre as festas populares e tradicionais de Luanda na superfície, encetam uma operação que fica demarcada pela passagem das marcas nas estruturas de continuidade e descontinuidade que se correlacionam na duração ao longo do tempo, onde a condição da memória pessoal é carregada do social, e é menos demarcada em relação a memória coletiva que são marcas em representação do passado vivo na mente de um grupo. Logo o vivido é passado porque foi passado. A sobrevivência do passado é tudo aquilo que aprendemos para lidar e agregar o futuro que se coloca.

Considerações finais

Através deste breve exercício, foi possível registrar narrativas provenientes de memórias que permitiram olhar como à memória pode operar. Por outro lado, o exercício de trazer os depoimentos no próprio texto, estabeleceu campos expositivos possibilitando esta forma olhar a memória não como uma totalidade, partindo do pressuposto que há diferenças no universo da memória. As narrativas produzidas e registradas neste turno embora direcionadas para as festas populares e tradicionais de Luanda, podem propiciar um novo campo documental que, muitas vezes, atém-se num quadro de risco aonde os verdadeiros narradores vão nos deixando naturalmente com o falecimento físico.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e Técnica. Arte e Política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo. Editora Brasiliense, 1994.

BERGSON, Henri. Memória e vida. Textos escolhidos. Trad. Claudia Berliner. São Paulo. Martins Fontes, 2006.

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Notas

2 Roldão Ferreira: é investigador cultural e membro da Associação Provincial do Carnaval (Aprocal)
3 Dionísio Rocha: é músico, investigador, promotor e agente cultural
4 Carlos Lamartine: é músico e compositor angolano
5 Para o tema tratado neste turno, Roldão Ferreira, Dionísio Rocha e Carlos Lamartine, representam uma amostra de um grupo amplo ou restrito que permitiram trazer marcas do passado concernente as festas populares e tradicionais de Luanda
6 Análise entrecruzada sobre as narrativas com base a operacionalização da memória, pode ser entendida na perspectiva que não podemos pensar à memória como uma totalidade, ela pode trazer varias dimensões
7 Quando Carlos Lamartine fez referência deste comboio, tanto o Roldão Ferreira como o Dionísio Rocha lembraram-se do comboio Bebé
8 “Havia a festa do Cazenga que também era organizada pela freguesia, havia festa no bairro da Cuca, havia a procissão do corpo de Deus, que também era outra festa que se fazia no 1 dia de Junho ou 10 de Junho mais ou menos por aí, não estou bem recordado” Extrato retirado da narrativa de Carlos Lamartine”
9 Evento externo um acontecimento que aconteceu no cotidiano, posteriormente é processado para ser armazenado na memória
10 Lembranças: que vão ao encontro das memórias
11 Memórias: que são conjunto de marcas
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