Artigos e ensaios
Japão e Post Tenebras Lux, de Carlos Reygadas: suma estilística
Japan and Post Tenebras Lux, by Carlos Reygadas: Esttilistic Suma
Japón y Post Tenebras Lux, de Carlos Reygadas: suma estilística
Japão e Post Tenebras Lux, de Carlos Reygadas: suma estilística
Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 18, núm. 40, pp. 234-246, 2020
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 17/01/2020
Aprovação: 20/05/2020
Resumo: Este artigo visa dar conta de uma série de implicações de estilo contidas nos filmes do diretor mexicano Carlos Reygadas, em especial em Japón (2002) e em Post tenebras Lux (2012). Pontualmente, remarcamos as constantes estilísticas relativas às diegeses ocorridas em lugares rurais, a sinonímia entre violência e poder de parte dos personagens em situação de subalternidade, o alcoolismo, o elã trágico, a circularidade do enredo, entre outros. Como sustentação teórica lemos Fredric Jameson (1982), Fausto Colombo (1986), Friedrich Nietzsche (1992) e Pierre Bourdieu (2015).
Palavras-chave: Suma, Estilo, História, Inconsciente, Violência.
Abstract: This article aims at point out a range of style within the Mexican director Carlos Reygadas' films, namely Japón (2002) and Post tenebras lux (2012). We highlight the modes stylistic constants, such as the taste for inland stories, the equivalence between power and violence among subalterns characters, the alcoholism, the tragic expedient, circularities, and so on. As theoretical support we read Fredric Jameson (1982), Fausto Colombo (1986), Fiedrich Nietzsche (1992), and Pierre Bourdieu (2015).
Keywords: Suma, Style, History, Unconscious, Violency.
Resumen: Este artículo quiere dar cuenta de uma serie de implicaciones de estilo contenidas em los films del diretor mexicano Carlos Reygadas, es especial Japón (2002) y en Post tenebras Lux (2012). Remarcamos como constancias estilísticas de sus diegeses los lugares en el interior del páis, la sinonimia entre violencia y poder de parte de los personajes en situación de subalternidad, el alcoholismo, la marca trágica, la circularidades de sus enredos, entre otros. Como apoyo teórico leemos a Fredric Jameson (1982), Fausto Colombo (1986), Fiedrich Nietzsche (1992) y a Pierre Bourdieu (2015).
Palabras clave: Suma, Estilo, Historia, Inconsciente, Violencia.
Introdução
Carlos Reygadas ainda é um diretor jovem, 49 anos, e pertence à linhagem daqueles que desde seu primeiro longa metragem, Japão (Japón, 2002), dispõe de um elenco de manias maduras que constituirão o que se pode chamar de estilo em um autor de cinema, ou um idioleto, para adotar o termo da linguística e semiótica. Tal domínio da técnica e do repertório figural parece não se dever a que ele tenha frequentado uma escola de cinema, circunstância nem tão comum há 30 anos, por exemplo, a despeito de já no decênio de 1960 haver cineastas latino-americanos formados em escolas da Itália, França, Repúblicas Tcheca e Eslovaca, Grã-Bretanha, Estados Unidos ou Cuba. Como cursou Direito, têm-se a impressão de que o homem ganhou sua destreza dentro das salas de cinema como espectador solitário, como ocorreu com muitos dos grandes de um passado ainda mais remoto, e em seu roce com alguma indicação teórica e técnica ocasional apreendida em filmagens em que foi observador. O idioleto é o estilo, o código doméstico de um diretor catalogado por um examinador de seus filmes, sua tropologia natural ou de emergência, a reunião sopesada do que se consagrou denominar imagens. Como se sabe, as expensas de o cinema ser uma arte bastante controlada por um conjunto de vozes de comando, uma arte consciente da divisão do trabalho (do produtor até a montagem, do iluminador e o diretor de fotografia até os atores ou personagens em caso de documentários, todos tendem a opinar), há filmes em que a última palavra é vocalizada pela reserva de gosto (BOURDIEU, 2015), a suma de motivos do diretor, afinal de contas quem tem maior responsabilidade no set, o que amiúde aumenta quando o filme sai dali para as telas.
Estabeleceremos como norte das próximas linhas a determinação de algumas constantes figurais, atos fílmicos (figurativos, representativos, ou mesmo as apresentações, abstrações temáticas ou líricas) em dois filmes de Carlos Reygadas, Japão (Japón, 2002, 2h23m) e Post Tenebras Lux (2012, 2h), mas não se pretende descurar os outros dois longas de vulto realizados até 2017, (em 2018 lançou um novo, Nuestro tiempo), Batalha no céu (Batalla en el cielo, 2005, 2h6m) e Luz silenciosa (2007, 2h25m). Deixarei para definir atos fílmicos em outro texto. Convém esclarecer ainda que os dados a respeito da duração das fitas foram colhidos no Google e não correspondem nem aos que estão na ficha técnica dos filmes em DVD e tampouco à informação tomada das películas quando assistidas em DVD pirata. Não sabemos se divergem também da duração existente nos serviços ofertados pela internet em canais on demand ou streaming ou YouTube e correlatos. Nem no cinema. Conste que todos os filmes ultrapassam a barreira das duas horas, uma espécie de portal entre o conforto e o fim da boa vontade da audiência. Tampouco aludiremos aqui àquele inconsciente político que, na formulação de um Fredric Jameson ainda imberbe, traz “para a superfície do texto a realidade reprimida e oculta dessa história fundamental [...]" em que "a doutrina de um inconsciente político encontra sua função e sua necessidade” (Jameson, 1992, p. 18). Não cremos nesse ocultamento ideológico, mas sim em algo próximo ao general intelect ou uma naturalização de atividades segundo um esquema de soluções de problemas restrito, o que, com efeito, ocorre nos filmes de Carlos Reygadas, em que sub-repticiamente incidem temas acerca das diferenças de raça, classe e gênero. Portanto, descreveremos mais que interpretaremos, e não nos importaremos se ambas as atividades forem mesmo dissímiles ou, ao contrário, símiles. Não as vemos nem como uma coisa nem outra. Cumpre, não obstante, compartilhar com aquele Jameson de O inconsciente político uma sugestão que não se aplica, ou o faz tangencialmente aos filmes de Reygadas, mas que encerra muito da circunstância contemporânea atribuída à boa parte do world cinema:
É como se, em um mundo de mensagem reificada, mesmo a própria linguagem pessoal do autor não conseguisse ser mais genuína e se apresentasse diante de nós como um arremedo virtualmente flaubertiano de lugares-comuns, desenraizados e sem peso (p. 207).
Dito isso, toca-se na ideia de suma, que é tanto um resumo como um modelo de arquivamento e o que talvez salve Reygadas da fossa comum dos milhares de diretores que já codificaram o world cinema como uma fórmula de festival e avançam nos editais e suas verbas com projetos cujo miserabilismo ou o realismo (mágico, às vezes) talvez sejam os termos mais apropriados. Já dominam e exercem a "mensagem reificada" referida por Jameson. Essa função de arquivamento está coligada à necessidade de reter determinados fragmentos de atividades a fim de constituir uma razão. Neste caso convém recordar Pierre Bourdieu e sua codificação do gosto (2015), em que sugere que o estudioso de uma obra deveria confrontar texto e contexto de produção. Afora a tradição das ideias e das tensões entre elas ao longo do tempo. Portanto, agora sim tomar-se-á suma e arquivamento como sinônimos e, ademais, se manetrá o procedimento padrão que singra nossos textos analíticos de filmes para cinema, a saber, manter-se-á a posição de pontuar determinados aspectos figurais dos filmes que repercutem ou são eles mesmos repercussões em ou de outras formações discursivas e se reiteram no cinema. À sombra de Derrida, autoridade no tema do arquivamento, neste texto se tentará transitar junto com os comentaristas ou intelectuais afins a ele no que concerne à noção de arquivo. Já encostamos-nos aos temas da suma do gosto, do arquivo do gosto, na distinção. Por exemplo, se considerará arquivo àquela reunião de dados cujos “[...] próprios objetos procurados perdem cada vez mais sua objetividade para transformarem-se em signos, indícios de coisas mais distantes [...]” (Colombo, 1986, p. 24). Portanto, são arquivos que levam a outros repertórios de arquivos, um entrar e sair do texto, a conformar o gosto: à suma desse processo de aquisição de dados arquiváveis também chamamos gosto, estilo, idioleto. Todavia também se interpretará esse fragmento de Fausto Colombo a partir do motivo que o desencadeou, a saber, o arquivo e a memória como uma viagem, uma vez que nos encaminhamos na direção do arquivo, do banco de dados do gosto histórico, e os habitaremos por um período, a selecionar de forma nada arbitrária. Viajaremos, portanto entre algumas figuras dos filmes de Reygadas, mormente Japón e Post Tenebras Lux, e as recolheremos para construir uma possível versão, uma suma, do estilo, ou o idioleto (um conjunto de figuras recorrentes), que o autor mexicano plasmou até 2017, como referido, ano de estreia de uma nova produção dele.
As recorrências: primeira parte
Três dos quatro longas de Reygadas estreados até 2017 se desenvolvem em uma ambiência natural, fora da cidade; são eles Japón, Luz silenciosa e Post Tenebras Lux. Tão somente Batalla en el cielo tem sua história apresentada no entorno urbano do que parece ser a Cidade do México. Nem por isso a natureza deixa de jogar um papel preponderante, uma vez que a dimensão mítica dedicada a ela nos três filmes aludidos pode facilmente ser correlata e transferida à questão religiosa, ao guadalupanismo do casal de criminosos de Batalla... Eles ostentam uma religiosidade atávica, confusa e asfixiante, como se adorassem uma selva tropical mal-assombrada. Afora essa analogia, há um fragmento do filme em que Marcos (Marcos Hernández) está no campo, mas esse cenário tem uma relevância relativa nas interpretações possíveis da película, mas não da obra de Reygadas, que reserva às externas e às locações rurais e até bucólicas as tintas mais obscuras e belas, mas não utópicas. Em Japón, Post tenebras lux e Luz silenciosa às primeiras sequências ocorrem já em ambiente natural, como a prever o desamparo do drama humano a porvir, com um desenho de cenas e narrativa que de relance lindam com o suspense ou mesmo o terror, mas logo se assumem como trágicas. Uma espécie de tragédia de desbravadores e seus descendentes.
A pequenina Rut (Rut Reygadas) andando com dificuldade em meio a uma matilha de cães e vários cavalos e vacas correndo ou pastando em uma clareira encharcada enquanto a noite cai sobre eles, noite de tempestade. Os homens na planície caçando em Japón com crianças em redor. Ou o menino caçador (Pablo Luís Sánchez Mejorado) buscando as aves abatidas em meio a vários homens com espingardas. O cosmos e a aurora em Luz silenciosa. Todas essas overtures tomam boa parte das fitas, com durações que às vezes ultrapassam os dez minutos e se repetem ao final do filme. Em Reygadas, essa região circular que remonta a uma origem telúrica ou astral, como em Luz silenciosa, se estabelece como um mote, um leitmotif dos filmes; ali está o ponto de fuga para o fato de a simetria natural das coisas sempre começar a se romper em suas narrativas menos por força da natureza que pela desídia humana, em que pese fique a sensação de que uma sofreu ascendência da outra, como se houvesse uma cumplicidade. Assim, se justifica que os dados do primeiro modo de arquivo de estilo desmantelaram-se em outra figura que deverá compor uma nova série, como o faz em todos eles; ao final dos filmes essa asseveração fica atestada; não é diverso em Post... Uma dessas transformações corresponde mesmo ao caráter de enxerto com o qual os criollos (mexicanos brancos, ou os menonitas) habitam uma terra que em princípio não era sua. Sabe-se que em verdade a terra, dessa perspectiva histórica, não teria dono, mas as discursividades e textualidades etnocêntricas, elas mesmas, nos ensinaram que os europeus descobriram, invadiram, usufruíram de uma terra rica já habitada mediante o uso de seus propósitos astutos e das armas. Há uma espécie de proliferação de signos coloniais e pós-coloniais que caracterizam um arquivo vivo, uma memória, o gosto.
Em Batalla..., que não inicia no campo, vê-se desde o princípio, cuja sequência corresponde a uma felação, que a tensão lúbrica entre Marcos (Marcos Hernández) e Inês (Estela Tamariz) apresenta-se como o dínamo da ação posterior, propulsada por emoções ocasionadas pela ostensiva disparidade de classes existentes nos estados nacionais das margens do capitalismo, o que imprime uma aura de poder aos chefes incontestes para os empregados. Por certo, essa modalidade de pathos será outra das constantes referidas, em razão de que em todos os filmes a questão de classe e de etnia estão latentes. De volta à natureza, em Japón esse duplo jogo entre natureza e classes sociais (civilização capitalista) opera integrado à diégese, dando à textualidade um sentido que evoca românticos e expressionistas e nos leva a pensar em escritores como Jack London ou mesmo no Malcom Lowry de Under the Volcano (Bajo el volcán, 1947), sem menoscabar os romances da selva latino-americanos (novelas de la selva) e seus corolários fílmicos. Todos os moradores de Acacintla, o povoado que está no fundo de um vale, ou ainda Juan Luís (Martín Serrano), o sobrinho de dona Ascen (corruptela de Ascención, interpretada por Magdalena Flores) que mora em San Bartolo, uma pequena cidade próxima, entrosam-se com a vida proposta pelas intempéries do clima e da geografia ou da atividade camponesa; no caso de Juan Luís, ele é uma espécie de açougueiro em San Bartolo. Cabe a referência muito explícita a Pedro Páramo quando ao início o senhor caçador (Carlos Reygadas Barquín) pergunta ao homem (Alejandro Ferretis) o que vai fazer em Acacintla e este lhe responde que vai ali para morrer. Igualmente, a situação geográfica de Acacintla nos remete a Comala. Entre o escassíssimo comércio da região, encontra-se a casa/venda da comadre Sabina (Yolanda Villa). Próximo dali os homens se reúne para se embebedar e trocar ideias. Acacintla até parece um povoado fora do tempo, mas sua história está escrita em algum lugar. Nota-se pelos semblantes de seus habitantes, por suas atividades para sobreviver, seu gestual etc.
Em Post tenebras lux a casa de Juan (Adolfo Jiménez Castro) e Nathalia (Natalia Acevedo) também está em região selvática (o diretor parece ter obsessão por camuflagem, roupas camufladas, soldados, casas entre as selvas). A natureza e os mitos se enredam com alguns entraves civilizadores que racionalizam ou desencantam as relações. El Siete (Willebaldo Torres), empregado da família, quando atira em Juan pelas costas no momento em que este o vê roubando sua casa (o poder subalterno de ordinário se representa como crime), e o posterior suicídio de el Siete cortando e retirando a cabeça do corpo, remontam à tragédia clássica, ao Antigo Testamento e à mitologia oriental, bem como em Japón, e também aos mitos e costumes pré-hispânicos. Se em Japón o homem desce aos infernos de Acacincla (onde grassa o alcoolismo, a ausência do estado nacional ocidental, também relações parentais pouco cristãs vigem por lá), ele mora nas montanhas, fazendo-nos recordar daquele mito japonês que reza que aos 70 anos as pessoas devem subir um monte para esperar a morte. Ainda que ao final seja a senhoria dele quem é morta, dona Ascen (Magdalena Flores), assassinada por alguém que não queria vê-la mais ali e que tampouco queria que seu sobrinho Juan Luís (Martín Serrano) levasse as pedras de sua casa, mesmas que sustentavam a construção contra os fortes ventos que arremetem a região em determinadas temporadas. Em Post... o fabrico da casa de Juan em meio a uma floresta é motivo de preocupação à metade do filme quando uma parente dele diz desconfiar dessa “arquitetura new age” com a que o casal projetou e erigiu o sobrado estiloso mas rústico em que moram. Tal qual em Japón, que desde o início se nos apresenta como uma tragédia, a casa da família de Juan e Nathalia na floresta em Post... sinaliza já uma espécie de isolamento trágico, que tenta abstrair-se da racionalidade desencantada que a urbanidade demanda (Nietzsche: 1992), e suscita um exemplar para o que o alemão denominou "a consideração trágica e a consideração teórica do mundo" (p. 104), uma ordem a substituir a outra no mundo helênico e possivelmente a perdurar em algumas séries das narrativas da contemporaneidade. Nietzsche referia de modo explícito, aos modos de se viver no campo (trágico) e na cidade (teórico).
Outra ocorrência pontual nos filmes nos remete às relações sexuais pouco ortodoxas e também um pouco instrumentalizadas (sexo grupal, voyeurismo). Em Japón ademais de uma masturbação do homem cuja imaginação erótica elaborava uma bela mulher caucasiana (Claudia Rodríguez) saindo do mar e dando um beijo em dona Ascen, o próprio homem depois diz querer fazer sexo com a idosa, quem consente. Pode não haver sinais para essa interpretação, mas talvez fosse a senhora a quem ele estivesse desejando no momento da masturbação e não à loira de olhos claros que encara a câmera com mirada desafiante. Esta é a única manifestação sexual humana do filme, malgrado o homem de vez em quando olhar para dona Ascen de maneira sugestiva e, logo de cortejá-la um pouco, levar adiante um coito malogrado. Há, no entanto, um momento em que vários meninos riem ao observarem o cruze entre um cavalo e uma égua. Quando se passa a Post...o próprio Juan comenta a Siete que ele atravessou um momento em que não conseguia fazer sexo com Nathalia se não assistisse a filmes pornográficos na internet antes. Outro dado crucial ocorre quando o casal viaja à França e vai a uma sauna com vários ambientes. Em um deles há sexo grupal, lugar em que Juan não apenas permite, mas incita Nathalia a se deitar com um desconhecido. Em Batalla... e em Luz Silenciosa há mais espaço diegético dedicado ao sexo, em especial se lembrarmos das inúmeras sequências entre Marcos (Marcos Hernández) e Ana (Anapola Mushkadiz) e também entre ele e sua esposa (Bertha Ruiz). Tampouco escamoteamos os momentos de sofrimento e crise mística encarada por Johan (Cornelio Wall Fehr), Marianne (Maria Pankratz) e Esther (Miriam Toews), devido a êxtases carnais.
O alcoolismo entre quem se pode denominar mexicanos (porque assim ocorre em Post tenebras...), no caso pessoas com traços indígenas marcados (como afirma um personagem), a utilização de não atores a causar um efeito expressivo sui generis de distanciamento, o futebol ou outro esporte (caça, rugby), o sentimento trágico sem a recuperação da ordem, salvo em Luz silenciosa (em que a antagonista, Esther, teve de morrer), o poder e a violência gráficas, os diálogos parcos, os grandes planos sequência, as tomadas externas, a sonoplastia sugestiva, são etiquetas recorrentes do diretor. Outra: em Post...o filme inicia e finaliza de maneira muito semelhante. Tanto com o monstro taurino e onírico iluminado de vermelho entrando por uma casa (Tzvetan Todorov, pode elucidar essa relação em um livro traduzido para o português em 1975) como com o jogo de rugby (há um filme de Lindsay Johnson, The Sporting life, 1968, que inicia e finaliza assim também) estão ao princípio e ao final. Ademais, a lente com a qual se filmou (fish eye) prioriza as ações cêntricas e circulares. Em Luz silenciosa também. Igualmente com o uso de signos pátrios em Batalla... (a bandeira nacional, o culto à virgem de Guadalupe). Em Japón, há um abate de aves por caçadores ao princípio, um abate de bovinos no açougue em San Bartolo e um abate de seres humanos ao final.
Por certo, no que tange ao som diegético ou extradiegético há em Reygadas uma valorização que vai além do costume do world cinema, que, em se tratando de música, de ordinário não prescinde das tradições do pop universal ou vernáculo (caso do México e do Brasil, por exemplo) e reabilitam pérolas, sem dúvida, ou se valem de música erudita com algum acanhamento. Reygadas, entretanto, em Japón espetacularmente vai de Bach (A paixão segundo São Mateus) a Shostakovich (Sinfonia n. 13 op. 141). O som da noite caindo em Post tenebras lux ou no amanhecer e o entardecer em Luz silenciosa concorre, sublime, com as imagens. As crianças nadando em Luz silenciosa, som de água, gritinhos, passarinhos, folhas tocando folhas. A respiração de Nathalia e Juan subindo a colina para chegar à casa de el Jarro é outro acerto, minutos antes de Juan ser ferido a bala justamente no pulmão.
Segunda parte: sinonímia entre relações de poder e violência (subalterna)
Aqui a acepção de poder está distantemente associada a duas modalidades que Eric Wolf arrola, em um total de quatro, no livro em que vincula ideias e poder.
[…] Un segundo tipo de poder se manifiesta en las interaciones y las transaciones entre la gente y se refiere a la capacidad que tiene un ego para imponerle a un alter su voluntad en la acción social [...] no se especifica la naturaleza de la arena en la que se desarrollan essas interacciones. En la tercera modalidade, el poder controla los contextos en los que las personas exhiben sus propias capacidades e interactúan con los demás. Este sentido centra la atención en los medios por los cuales los indivíduos o los grupos dirigen o circunscriben las acciones de los demás en determinados escenarios. Llamo a este modo el poder táctico o de organización (WOLF, 2001, p. 20).
Observa-se como nos dois âmbitos de ocorrência de uma situação de poder o tema e a prática da violência podem ser contrabandeados a fim de tornarem-se o substrato dessa expressão, o significado desse significante, o poder. Há ainda duas marcas figurais quanto ao poder e a violência nos filmes do autor. Quando os personagens em condição menos favorável etnicamente ou de classe usufruem de uma situação em que têm o poder este se manifesta mediante a violência, a despeito de haver exceções. Daí a sinonímia. Por exemplo, em Post Tenebras Lux há um momento em que Juan maltrata com violência desproporcional uma cadelinha, Martita, segundo ele a sua preferida. O animal, ainda filhote, tornou-se um objeto de catarse em que Juan pôde, por um instante, projetar algum recalque ao surrá-la na parte de trás de seu corpo (costelas e pulmões), em uma interpretação nada sofisticada. Por certo, ele é o personagem mais complexo no que concerne às ações e suas falas, juntamente com o Siete. Mais à frente, saber-se-á que ele maltrata com frequência os animais, que teve uma espécie de vício por pornografia pela internet e que gosta de ver sua esposa mantendo sexo com outros, conforme referido. No caso da pulsão por maltratar a cadela que ele mais gostava – Martita – Juan chega a pedir ajuda a Nathalia, mas antes que ela possa fazer alguma coisa seu esposo é atingido à bala nas costas e quem lhe dispara é precisamente el Siete, o que inviabiliza seu planejamento. De outro lado, por exemplo, o Siete quando está bêbado bate em sua esposa e filhos. Outros sinais de poder vinculados à violência aparecem nos momentos em que el Siete está cortando árvores da floresta nativa sem permissão e, ademais, quando Juan pede a sua esposa para fazer sexo com outro homem na sauna, ou as crianças dando tapinhas nos cachorros, ou alguém atropelando um animal sem remorsos e etc. São situações dotadas de uma aparente normalidade, mas que levantam questões fora e principalmente no interior da diégese, todas elas marcando o regime de representação que o autor insiste em tensionar, relativizando o politicamente correto com a beleza das imagens.
O momento em que Juan á alvejado e seus epifenômenos são cruciais. Antes Juan e sua esposa sairiam de férias, mas se dirigem à casa de Jarro (José Alberto Sánchez), que está no caminho, para que Nathalia e as crianças fiquem ali enquanto Juan retorna rapidamente à casa. Como veem o Jarro lá, se surpreendem e lhe perguntam por que não está na casa de Juan vigiando, como haviam combinado. O homem diz que depois iria. Juan, que já havia sido advertido que Nathalia esquecera um carrinho de bebê em casa, tem de voltar e ao fazê-lo é acertado por el Siete e outro homem, que roubavam alguns aparelhos. O poder do Siete sobre Juan se textualiza com o roubo e o uso da arma, o poder de Juan sobre el Jarro, é representado por uma falta ao trabalho e uma admoestação. Por seu turno, o poder em Japón se nos apresenta como horizontal, uma vez que mesmo o prefeito da cidade é um trabalhador do campo e não há imposição de nenhuma natureza ali, salvo talvez alguma atitude do homem com dona Ascen, ou de Juan Luís, e isto não é visto, quando ameaça dona Ascen em retirar-lhes as pedras que sustentam sua casa. Há um momento de verticalização, de conscientização, quando Juan Luís está descendo a colina onde dona Ascen mora e cruza com o homem, que sobe, e lhe diz “pinche metiche” (intrometido). Ao final, depois deles retirarem as pedras e as carregarem, quando a câmera filma o massacre do grupo que levou as pedras e finalmente para em dona Ascen, ensanguentada e morta, nota-se que algum conluio foi realizado, talvez entre Sabina e o homem, enfim, é uma demonstração de poder evidente, violenta, horizontal, porém anônima. De novo, em Japón, o menino ruivo ao início pega o pássaro abatido por seus parentes e ao invés de uma atitude infantil de carinho com o animal, mesmo semimorto, ele o estrangula a fim de tirar a cabeça do bicho e empalhar o restante.
Em Post tenebras... a várias sequências em que o poder de Juan sobre seus empregados ou sobre os nativos daquela região a que foi habitar com seus familiares, em que ele construiu sua casa, talvez pensando em um projeto utópico (new age), mas bastante malogrado (inclusive pela relação com a esposa), se infiltra pelas periferias dos sentidos principais e não se configura uma violência física, como nos exemplos anteriores. Ocorre que esse poder aponta para uma história de violência que permitiu que este estado de coisas permanecesse, isto é, que ele tivesse autoridade para fazer o que fazia. A relação com o Jarro é de total submissão para com este último, bem como com a empregada que ajuda Nathalia com as crianças e nos afazeres de casa. Na festa do povoado o confundem com estrangeiro (naquele momento uma nomenclatura de diferença e distanciamento, isto é, de poder) e mesmo com el Siete ou até com sua esposa Juan deixa marcas de um standard de criollismo que se supunha as leis da Revolução exterminariam, mas o cotidiano consagra (inconsciente político?). Nos filmes de Reygadas, a constituição de poder se dá, nas circunstâncias aludidas, em momentos de violência física e naqueles que replicam ou estendem a temporalidade da situação colonial ao mundo (México?) contemporâneo, mesmo à revelia dos poderosos (Juan e sua família), dando à película um fugaz estatuto de documento, muito próximo ao de outros gêneros (documentários, reportagens), mesmo à revelia.
Os sujeitos classificantes que classificam as propriedades e práticas dos outros, ou as deles próprios, são também objetos classificáveis que se classificam (perante os outros), apropriando-se das práticas e propriedades já classificadas (tais como vulgares ou distintas, elevadas ou baixas, pesadas ou leves, etc., ou seja, em última análise populares ou burguesas), segundo sua repartição provável entre grupos, eles próprios classificados; as mais classificantes e as mais bem classificadas dessas propriedades são, evidentemente, aquelas que são expressamente designadas para funcionar como sinais de distinção [...] (Bourdieu, 2015, p.446).
Juan, em Post... tem ascendência sobre tudo, ou quase. De fato, tal distinção de classe e gostos nos filmes aludidos é dínamo do poder e da violência, mas tanto Juan como el hombre em Japón tentam mesmo reproduzir ou criar uma verdade útil para o filme, uma verdade que, afinal de contas, também é percebida pela audiência em cifra de exemplo, de representação, de reflexão, de empatia e catarse; há algo de didático ou pedagógico nisso tudo, também à revelia do autor e talvez também dos personagens. As energias desse tipo de poder rondam todos os seus filmes e até poderia ser que se reformularmos a definição de inconsciente político que replicamos ao início do texto este dê conta de abarcar essa suma temática e de expressão conformada pelos filmes de Carlos Reygadas.
Considerações finais
Nos quatro filmes que Reygadas estreou até o início de 2017 aparecem muitas daquelas marcas que se apresentam também ao chamado world cinema, inclusive a busca pelo financiamento dos grandes festivais ou das instituições de apoio a filmes para festivais (Albano, 2015). Mas quando se fala das constâncias estilísticas desses filmes essas afiguram-se fundacionais, como se ele as tivesse inventado. Agora reiteramos essa observação inspirados pela segunda citação de Jameson, que estabelece como reificada boa parte da linguagem das artes atualmente. Nele não. A ideia de suma e arquivamento não funciona como um armazém de facilidades, isto é, não há modelos de representação que trivialmente reúnem-se no escaninho junto com outros filmes. Em cada película de Reygadas, essas figuras são reinventadas, mesmo as relativas ao poder e à violência subalternos. Esse esquema narrativo trágico, melhor, esse arco trágico de suas narrativas levam a associações que podem até parecer exóticas, mas nunca forçadas. Por exemplo, não é uma excentricidade dizer que as beiras dos quadros borrosos, o monstro taurino, as circularidades que começam com a lente com a que se filma (fish eye), o brinco redondo de el Siete, sua cabeça rolando pela chão, o eterno retorno etc. são uma espécie de coro, discreto ou inconsciente. Assim como a natureza, uma ordem alheia e próxima à do homem se impõe como um cenário vivo, como o bosque de Birman do Macbeth. Há sobrepujança da consideração trágica nos mundos criados por Reygadas. Destarte, apresentamos uma suma estilística, uma reserva do gosto, um ideário e um arquivo de figuras de Carlos Reygadas até o momento.
Referências
ALBANO, Sebastião. G. Designações do universalismo (o caso do world cinema). Imagofagia. Revista de la Asociación Argentina de Cine y Audiovisual. Vol. 12, p. 1-15. 2015. Acesso em 15 de agosto de 2018.
BOURDIEU, Pierre. A distinção. Crítica social do julgamento. Trad. de Daniela Kern; Guilherme Teixeira. Porto Alegre: Zouk, 2015.
COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos. São Paulo: Perspectiva, 1986.
JAMESON, Fredric. O inconsciente político. A narrativa como ato socialmente simbólico. Trad. de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Ática, 1982.
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