Dossiê

“Caminhada com Maria” virtual: uma festa popular em diálogo com o digital

Virtual “Walk with Mary”: a popular party in dialogue with digital

Social networks; Popular festival; Internet; Religiosity; Folkcommunication.

Ivig de Freitas Santos
Universidade Federal do Ceará, Brasil
Maria Érica de Oliveira Lima
Universidade Federal do Ceará, Brasil

“Caminhada com Maria” virtual: uma festa popular em diálogo com o digital

Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 18, núm. 41, pp. 54-69, 2020

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 04/10/2020

Aprovação: 12/11/2020

Resumo: A Igreja Católica sempre procurou estar conectada com a mídia e a pandemia de COVID-19 estreitou ainda mais os laços da instituição religiosa com as mídias sociais. Neste cenário, também as festas populares precisaram reconfigurar suas práticas para atender a necessidade do isolamento, o que incluiu a presença ainda mais forte destas celebrações no ambiente digital. Nesse contexto, o objeto da presente pesquisa é a “Caminhada com Maria”, tradicional procissão católica realizada em Fortaleza, ocorrida em formato virtual em 2020. A metodologia utilizada é a netnografia, por meio da análise dos comentários dos fiéis durante a transmissão ao vivo da festa religiosa. Foi possível observar como os participantes se apropriaram destes espaços para manifestar práticas devocionais e votivas, o que demonstra as oportunidades de comunicação que a religiosidade tem experimentado na Era digital.

Palavras-chave: Redes Sociais, Festa popular, Internet, Religiosidade, Folkcomunicação.

Abstract: The Catholic Church has always sought to be connected with the media and the COVID-19 pandemic has further strengthened the religious institution's ties to social media. In this scenario, popular festivals also needed to reconfigure their practices to meet the need for isolation, which included the even stronger presence of these celebrations in the digital environment. In this context, the object of this research is the “Walk with Mary”, a traditional Catholic procession held in Fortaleza, which took place in virtual format in 2020. The methodology used is netnography, through the analysis of the comments of the faithful during the live broadcast of the religious festival. It was possible to observe how the participants appropriated these spaces to manifest devotional and voting practices, which demonstrates the communication opportunities that religiosity has experienced in the digital age.

Keywords: Social networks, Popular festival, Internet, Religiosity, Folkcommunication.

Resumen: La Iglesia Católica siempre ha buscado estar conectada con los medios de comunicación y la pandemia de COVID-19 ha fortalecido aún más los lazos de la institución religiosa con las redes sociales. En este escenario, las fiestas populares también necesitaban reconfigurar sus prácticas para satisfacer la necesidad de aislamiento, que incluía la presencia aún más fuerte de estas celebraciones en el entorno digital. En este contexto, el objeto de esta investigación es el “Caminata con María”, tradicional procesión católica celebrada en Fortaleza, que tuvo lugar en formato virtual en 2020. La metodología utilizada es la netnografía, a través del análisis de los comentarios de los fieles durante la transmisión en vivo. de la fiesta religiosa. Se pudo observar cómo los participantes se apropiaron de estos espacios para manifestar prácticas devocionales y de voto, lo que demuestra las oportunidades comunicativas que ha experimentado la religiosidad en la era digital.

Palabras clave: Redes sociales, Fiesta popular, Internet, Religiosidad, Comunicación popular.

A religiosidade popular

A cultura popular é atravessada tanto pela linguagem do folclore quanto da representação das crenças seculares. Desde antigos tempos, folclore e crenças, através dos ritos, vêm preservando a memória das sociedades humanas (DIAS, 2012). Dessa maneira, a religiosidade se destaca como um aspecto fundamental para a compreensão da cultura e desenvolvimento da sociedade brasileira. Com o objetivo de se compreender elementos que fazem parte desta religiosidade — como as promessas, os ex-votos, as romarias e as procissões, dentre outras manifestações que materializam a fé — é fundamental compreender os aspectos formadores da religiosidade popular (ANDRADE; SILVA; REESINK, 2019).

Diferentes campos disciplinares, como a Antropologia e a Folclorologia, têm analisado as manifestações de religiosidade popular ao longo do tempo. Na concepção de Ferretti (2007), a cultura popular se exterioriza em grande parte através de festas religiosas populares, que são ocasião para o pagamento de promessas e momentos de lazer em que se desenvolvem laços de solidariedade na vida cotidiana. Durkheim (1989), em seu texto clássico sobre a vida religiosa, discute a importância do elemento recreativo e estético da religião, além de destacar a interrelação entre cerimônia religiosa e a ideia de festa pela aproximação entre os indivíduos, pelo estado de “efervescência” coletiva que propicia e pela possibilidade de transgressão às normas.

Além deste aspecto agregador e de interação mencionado por Durkheim, os festejos religiosos populares se caracterizam por serem manifestações de petição e de agradecimento por benefícios alcançados e de renovação dos pedidos feitos à imagem do santo protetor. A devoção aos santos, característica da religião católica, é marcada pela realização de celebrações coletivas em sua honra ao longo do ano e permite compreender as diversas nuances das práticas de piedade popular. Na visão de Geertz (1989) estes e outros símbolos e práticas ligadas ao sagrado funcionam para sintetizar o ethos de um povo: o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos e sua visão de mundo.

O estudo da religiosidade popular tem se revelado como um campo fecundo para as Ciências Sociais, mas também chama a atenção dos estudos em Folclorologia. Em seu clássico “Dicionário do Folclore Brasileiro”, o folclorista Câmara Cascudo apresenta o seguinte verbete para religião:

Folclore e religião caminham constantemente juntos. Um catolicismo tradicional, rural, impregnado de conteúdos e expressões populares existiu e existe no país. A unidade religiosa que se firmou aqui, desde o início da colonização, condicionou e favoreceu o estabelecimento de um catolicismo como expressão religiosa dominante, inteiramente acomodada e penetrando, com seus valores, todos os setores da vida social. É o catolicismo das festas cíclicas, das homenagens aos santos padroeiros, nas principais praças das cidades, dos folguedos, das rezas e das rezadoras, das novenas coletivas, do pieguismo da piedade familiar, das romarias, das devoções e de muitas outras práticas ou expressões religiosas que identificam o nosso calendário folclórico com a própria religião (CASCUDO, 2000, p. 581-582).

Em sua obra “Religião no Povo” (1974), Cascudo oferece um panorama da formação da religiosidade brasileira, tomando por base as diversas influências responsáveis pela nossa peculiar “brasilidade”. O autor também defende que não é o indivíduo que pertence à religião, mas a religião que faz parte do indivíduo.

Folkcomunicação e as práticas devocionais em rede

A pandemia de COVID-19 e o isolamento social deixou marcas na rotina das celebrações da Igreja Católica no mundo todo e, por isso, o cenário estreitou ainda mais os laços da instituição religiosa com as mídias sociais. Muitas igrejas precisaram recorrer às plataformas de transmissão das celebrações na Internet e outros meios, como televisão e rádio, para as celebrações. Algumas festas populares tradicionais deixaram de acontecer, enquanto outras tiveram sua logística completamente alterada, o que inclui a presença ainda mais forte destas festas nas redes sociais. Diante desse novo cenário, é possível questionar: como esses grupos têm mantido a continuidade das manifestações populares em rede no contexto da pandemia e como ocorre a Folkcomunicação nesse processo?

Roberto Benjamin (2006) destaca que sempre houve a apropriação das tecnologias da comunicação de massa e o uso de canais massivos por parte dos portadores da cultura folk. A mais antiga das tecnologias de comunicação que os grupos folk se apropriaram foi a imprensa, o que se observa no exemplo dos folhetos de cordel. “Essas apropriações se revertem em produções para articular internamente o grupo e, outras vezes, para colocá-lo no mundo massivo. E é com a internet que os grupos populares marcam presença – seja apropriado ou se apropriando” (SCHMIDT, 2005, p. 60-61).

Diversas manifestações populares, sejam elas recentes ou mais antigas, se reestruturam para se adequar às novas linguagens de comunicação. Nesse contexto, a Folkcomunicação também se apresenta com novos parâmetros, com o propósito de alcançar as demandas exigidas por cada momento. Por isso, para Schmidt (2015), o mundo digital pressupõe uma reprodutibilidade técnica da Folkcomunicação. Afinal, "os processos culturais marginalizados coexistem com a internet, incorporam suas técnicas, linguagens e formatos” (SCHMIDT, 2005, p. 63).

Nos anos 1960, no cenário em que Beltrão desenvolveu seus estudos, era uma preocupação dos tradicionais folcloristas que, com o avanço dos meios de comunicação de massa, houvesse o desaparecimento da cultura popular tradicional. Contudo, “o que vemos atualmente é que, mesmo com o avanço das mídias, as culturas populares vêm sobrevivendo e, mais ainda, em muitos casos vêm se utilizando delas para se promoverem” (COSTA; TRIGUEIRO; BEZERRA, 2009, p. 2). A cultura popular passou a fazer parte do agendamento midiático e, em consequência disso, a mídia também passou a interferir nestas mesmas produções populares.

No contexto da globalização, a investigação em Folkcomunicação tem acompanhado as profundas e aceleradas transformações pelas quais tem passado as manifestações culturais tradicionais. Um dos principais objetivos é justamente “entender melhor como os seus produtores apropriam-se, incorporam e usam os formatos e conteúdos midiáticos para conversão de novos significados objetivando as demandas de consumo das sociedades globalizadas” (TRIGUEIRO, 2008, p. 12).

Com a multiplicação de formatos e conteúdos de comunicação digital, é fundamental questionar como o ciberespaço “influenciou o pensamento da Folkcomunicação mostrando objetos folk em diferentes e novos suportes” (CORNIANI, 2010, p. 2). De acordo com Justino (2013) muito ao contrário daquilo que se poderia pensar e até mesmo temer acerca do desaparecimento de manifestações de cultura popular frente ao digital,

assiste-se a processos de renovação, reinvenção e expansão dessas manifestações, com recurso a múltiplos processos comunicacionais e a um extenso uso de imagens e suportes mediáticos, tanto tradicionais como modernos — ex-votos, folhetos, cartazes, canções, rádios locais, imprensa local, redes sociais, blogues, YouTube, Internet. (JUSTINO, 2013, p. 25)

Marques de Melo defende que, "além de garantir a sobrevivência de vários gêneros e formatos de expressão popular, a web permite multiplicar os seus interlocutores, bem como ensejar o intercâmbio entre grupos e pessoas que possuem identidades comuns, mesmo distanciados pela geografia” (2008, p. 97). Desse modo, alcançamos o objeto de investigação desta pesquisa, a Caminhada com Maria, tradicional manifestação popular religiosa de Fortaleza — desde a sua ligação com a história e a cultura local e a sua recente apropriação da Internet, no cenário de isolamento social causado pelo cenário pandêmico.

A Caminhada com Maria: um patrimônio cultural imaterial do Brasil

Conforme Osvaldo Trigueiro (2007, p. 107), as festas populares “são acontecimentos identificadores dos fatos locais, são celebrações simbólicas das diversas relações sociais vivenciadas por uma comunidade nos territórios sagrados e profanos”. José Marques de Melo (2002), por sua vez, considera as festas populares como fenômenos de natureza sociocultural, de modo que a festa permeia toda a sociedade, significando uma trégua no cotidiano rotineiro e na atividade produtiva. Sua natureza é intrinsecamente diversional, comemorativa, pautando-se pela alegria e pela celebração.

A “Caminhada com Maria”, uma das festas religiosas populares mais tradicionais da cidade de Fortaleza, no Ceará, está intimamente ligada com a história da capital, que se desenvolveu ao redor do Forte Nossa Senhora da Assunção, até hoje considerado o berço do surgimento da cidade. No ano de 1649, os holandeses retornaram à capitania do Ceará liderados pelo militar holandês Matias Beck. Às margens do riacho Pajeú, ele ergueu um baluarte defensivo projetado com forma pentagonal. O pequeno forte recebeu a denominação de Schoonemborch e possuía um total de onze canhões.

Em 1654, com a derrota dos holandeses em Pernambuco, o forte foi entregue ao Capitão-Mor português Álvaro de Azevedo Barreto que, ao tomar posse do forte, mudou-lhe o nome para Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Em seguida realizou reparos na edificação e no mesmo local deu início a construção de uma capela. Ao mesmo tempo, ao redor da fortaleza erguiam-se algumas choupanas e palhoças que davam sinais do primeiro povoamento ao redor do local, conhecido como o marco zero da cidade de Fortaleza.

Assim, Nossa Senhora da Assunção tornou-se símbolo da história da fundação da capital cearense, além de ser considerada como padroeira da cidade. Para homenageá-la, o dia 15 de agosto foi declarado feriado municipal. A data marca a realização da “Caminhada com Maria”,4 evento religioso que reúne anualmente uma multidão de fiéis que saem em procissão do Santuário de Nossa Senhora da Assunção, no bairro Vila Velha, em direção à Catedral Metropolitana de Fortaleza, onde a imagem da padroeira é coroada. Promovido desde 2002 pela Arquidiocese de Fortaleza, o trajeto percorrido tem aproximadamente 12,5 quilômetros de extensão e cerca de 5 horas de duração.

Todo o cortejo é marcado por diversas manifestações de devoção à santa. Além das preces, canções e orações de agradecimento e súplicas entre os católicos que acompanham o trajeto até a Catedral Metropolitana, centenas de fiéis costumam aguardar a passagem da imagem pelas ruas com enfeites nas fachadas de suas casas e com pequenos altares decorados e montados nas calçadas especialmente para o evento. A festa religiosa foi decretada em 5 de junho de 2015 como patrimônio cultural imaterial do Brasil, sob a Lei Nº 13.330. Em 2019, participaram do evento cerca de 2 milhões de pessoas.

Tradicional Caminhada com Maria em 2019
Figura 1
Tradicional Caminhada com Maria em 2019
Julio Caesar/ Jornal O POVO

A programação do evento se repete todos os anos. Ao meio dia, o Arcebispo de Fortaleza celebra a missa no Santuário de Nossa Senhora da Assunção e logo depois, às 14h, tem início caminhada devocional. Com a chegada na Catedral, por volta das 19h, é realizada a coroação da imagem de Nossa Senhora da Assunção. Logo depois o Arcebispo dá a bênção aos fiéis, o que marca o final do evento. Para os cristãos católicos, a mãe de Jesus Cristo é símbolo da pureza da divindade e do amor maternal e por isso é venerada como santa. A festa à Nossa Senhora da Assunção expressa uma das formas de devoção à Maria, que costuma também estar ligada a tradicionais festas religiosas em todo o mundo — muitas delas relacionadas a aparições milagrosas como em Fátima (Portugal), e Aparecida do Norte (Brasil).

A Caminhada com Maria “Virtual”

Em 24 de julho de 2020, o arcebispo da Arquidiocese de Fortaleza, Dom José Antonio Aparecido Tosi Marques, publicou o editorial “E neste tempo extraordinário de Pandemia será possível realizar uma Caminhada com Maria?”. No texto, o líder religioso explicava que o cenário pandêmico impôs sobre a tradicional celebração religiosa uma realidade diferente e inédita: “Nosso caminhar será diferente: mais recolhido, em isolamento social, mas não menos verdadeiro e profundo” (ARQUIDIOCESE DE FORTALEZA, 2020).

A publicação do primeiro decreto de estado de emergência pelo Governo do Ceará, em 17 de março de 2020, estabeleceu o fechamento dos templos e o cancelamento de eventos religiosos em todo o Estado. Nesse contexto, a Caminhada com Maria precisou se adaptar à necessidade do isolamento social imposta pela pandemia. Com o tema "Maria caminha conosco no cuidado pela vida", toda a celebração foi transmitida pelo Canal de Youtube da Arquidiocese de Fortaleza, sem a caminhada presencial pelas ruas da capital cearense.

A décima oitava edição da caminhada, substituída pelo formato online de uma “live coletiva” transmitida no Youtube, contou com a participação simultânea de representantes de diversas paróquias da Arquidiocese, que contribuíram com a realização da cerimônia religiosa. A ideia partiu do próprio Arcebispo de Fortaleza, motivado pelo interesse de a necessidade de se manter a mesma unidade das paróquias da Arquidiocese para a realização do evento, ainda que no formato virtual nesta edição.

Usando os meios de comunicação, realizaremos uma “live” coletiva, a partir de cada casa, de cada comunidade, a comunhão de toda a Família de Deus presente na cidade e em toda a arquidiocese e aberta ao mundo em seu testemunho de fé. Assim rezaremos o rosário em coligação pelas mídias sociais. Seremos orientados como realizar esta grande comunhão, não pela presença física na caminhada, mas pelo caminho comum da fé. (ARQUIDIOCESE DE FORTALEZA, 2020)

Em acordo com a ideia do Arcebispo e como forma de manter a unidade das paróquias da Arquidiocese mesmo na realidade do isolamento, o evento contou com apoio de vinte paróquias para recitação coletiva do Rosário, oração de devoção mariana. O rosário “rezado em coligação” contemplou igrejas de todas as quatro Regiões Episcopais Metropolitanas (REM) de Fortaleza. Cerca de cinco representantes de cada paróquia entravam ao vivo, a partir do interior de cada igreja, logo que o nome da paróquia era anunciado por um apresentador. Nos anos anteriores, a oração e a caminhada ocorriam de forma simultânea, conduzindo os fiéis por meio de cantos e preces até a Catedral Metropolitana.

A oração do Rosário foi intercalada com momentos de leitura de trechos da Bíblia e entoamento de cânticos devocionais. Também foi pedido aos fiéis para que, em casa, acendessem uma vela em lembrança por todas as famílias que perderam seus entes por conta do novo Coronavírus. Depois da exibição dos vídeos, um militar do exército tocou na corneta o “toque do silêncio” em homenagem às vítimas da enfermidade.

Durante a transmissão da celebração religiosa, que foi realizada no interior da Catedral Metropolitana de Fortaleza, os participantes puderam assistir um vídeo com declarações do Papa Francisco e alguns depoimentos de familiares de vítimas da COVID-19. Após quase seis horas de transmissão, a coroação da imagem da padroeira foi realizada pelo próprio arcebispo na cripta da Catedral, Dom José Antônio. Cerca de 54 mil pessoas assistiam simultaneamente ao canal da Arquidiocese de Fortaleza no Youtube.

Os fiéis que participaram da “Caminhada Virtual” também tiveram acesso gratuito a um livreto em formato digital com orações, reflexões e cânticos celebração religiosa, preparado pelo Arcebispo para a vivência da festa religiosa em um contexto de isolamento social. Para atender a necessidade do isolamento, a logística do evento mudou completamente. Ainda que a Catedral Metropolitana tenha continuado como base de apoio, as equipes de voluntários, músicos, animadores e leitores foram reduzidas ao máximo e tudo ocorreu na parte mais interna do templo, isto é, na cripta da Catedral. Assim como nos anos anteriores, a Caminhada com Maria se encerrou às 19h30 com a tradicional bênção do arcebispo ao povo fortalezense.

Além da própria Caminhada com Maria, foi realizada também uma live intitulada “Conectado na caminhada", transmitida no dia anterior ao evento com o intuito de atrair e maior participação dos fiéis para o formato virtual e inédito da prática devocional. Na ocasião, foram entoados cantos religiosos e participaram padres, seminaristas, fiéis, artistas e comunicadores católicos que entraram ao vivo na transmissão para manifestar seus depoimentos de devoção à Nossa Senhora da Assunção e sua expectativa para a realização do evento em formato virtual. Durante a live “Conectado na caminhada", os fiéis também puderam interagir com os apresentadores e enviar seus comentários pelo chat ao vivo.

Na semana que antecedeu a celebração religiosa, os canais de comunicação da Arquidiocese de Fortaleza fizeram circular uma publicação com recomendações para que os fiéis católicos participassem da Caminhada com Maria Virtual em casa — entre elas, a montagem de um pequeno oratório (ou pequeno altar) dedicado à Nossa Senhora em algum espaço da casa e também a decoração das janelas com toalhas brancas. A publicação trazia o título “Caminhada com Maria Virtual – 2020: Como participar na sua casa?” e trazia as algumas outras sugestões:

Orientações para participação da Caminhada Virtual
Figura 2
Orientações para participação da Caminhada Virtual
Reprodução/Instagram

Orientações para participação da Caminhada Virtual
Figura 3
Orientações para participação da Caminhada Virtual
Reprodução/Instagram

No texto da mesma publicação, a Arquidiocese procurou incentivar a participação dos devotos a partir do envio de fotos das famílias participando do evento em casa, bem como de fotos dos oratórios e pequenos altares preparados e decorado por cada um dos devotos em sua casa. Os fiéis também puderam enviar seus testemunhos de pedidos alcançados pela intercessão da santa. Parte destes relatos e fotos foram compartilhados no perfil do Instagram da Arquidiocese, no mesmo momento em que acontecia a “caminhada virtual” no Youtube.

Uma análise da “Caminhada com Maria Virtual”

A presente pesquisa utiliza como metodologia a netnografia, uma adaptação da metodologia de pesquisa etnográfica transportada para os ambientes digitais. Por meio dessa técnica de pesquisa quantitativa e interpretativa (KOZINETS, 2014), é possível compreender aspectos culturais das comunidades no ciberespaço — suas características, suas práticas e seus comportamentos (PEREIRA; MONTEIRO, 2019). O uso da técnica foi útil para que se pudessem detectar os detalhes acerca do modo como os fiéis se comportaram e interagiram durante a realização da primeira Caminhada com Maria Virtual.

O recurso utilizado para a abordagem netnográfica foi a análise dos comentários feitos pelos usuários do YouTube, isto é, os participantes da live da “caminhada virtual”. A coleta de dados para a pesquisa ocorreu no dia 15 de agosto de 2020, das 14h às 18h, no período em que ocorreu a transmissão ao vivo da Caminhada com Maria Virtual 2020 pelo canal do YouTube da Arquidiocese de Fortaleza. Com base na verificação dos termos mais frequentes, foram feitas algumas inferências acerca de como se deu a reconfiguração das práticas votivas e devocionais por parte dos fiéis participantes.

A coroação da imagem da padroeira ao vivo
Figura 4
A coroação da imagem da padroeira ao vivo
Reprodução/YouTube

O vídeo que foi transmitido no canal principal da Arquidiocese contabilizou mais de 51 mil visualizações. Além disso, pelo menos outros quatro canais ligados às paróquias ou comunidades religiosas da cidade também retransmitiram o evento, de modo que o público total de fiéis se distribuiu entre essas plataformas e pode ter sido ainda maior e difícil de ser contabilizado com precisão.

Houve uma grande quantidade de comentários enviados por meio da ferramenta “chat ao vivo” e, por conta disso, a construção de uma “nuvem de palavras” foi tomada como uma alternativa viável para a a realização da análise. Trata-se de um recurso usado para se demonstrar, de forma visual, a frequência das palavras dentro de um texto (quanto maior for o número de vezes em que a palavra aparece, maior seu destaque na “nuvem”. Foram analisados, ao todo, 506 comentários e 3130 verbetes (palavras).

Nuvem de Palavras
Figura 5
Nuvem de Palavras
Elaboração da autora.

A análise feita a partir dos comentários com o auxílio da visualização em nuvem de palavras mostrou que, durante a transmissão, o chat ao vivo se tornou um espaço para que os fiéis se conectassem com a celebração religiosa e se sentissem mais integrados com o evento religioso. Muitos dos comentários dos fiéis apresentavam manifestações de agradecimentos por graças alcançadas pela intercessão de Maria, o que está evidente na recorrência de palavras como "proteja”, “rogai” e “(pela) cura”. Além disso, o espaço foi usado pelos fiéis para fazer pedidos de milagres e graças a serem alcançadas. Muitos participantes, inclusive, escreveram nomes de familiares e amigos com o objetivo de rezar por eles.

A visualização permite observar que as palavras “pandemia” e “Covid” também ganharam destaque. A partir dessa interação (ainda que limitada ao formato textual) é possível ver como os fiéis católicos se apropriaram da ferramenta disponível para demonstrar a sua fé e, em muitos casos, até mesmo para agradecer um favor alcançado. Por outro lado, não constatamos um tipo de resposta por parte da organização do evento religioso em relação a estes comentários dos fiéis.

É interessante também notar a peculiaridade das transmissões ao vivo no âmbito dos cultos religiosos no sentido de que constroem uma experiência de comunicação mais próxima e interativa com os fiéis. É principalmente durante o tempo "ao vivo” que a sensação de pertencimento e participação coletiva é dilatada. A experiência religiosa é bastante atravessada pela noção de coletividade, da interação, embora este aspecto tenha sido bastante modificado no contexto da pandemia.

No caso da Caminhada com Maria, esse sentimento de participação coletiva também foi ampliado pelo fato de que os momentos oracionais foram feitos de forma colaborativa e coligada por vinte paróquias de diferentes locais da cidade, conforme foi anteriormente mencionado. Assim, os fiéis se sentiam “representados” a cada vez que os membros de sua paróquia protagonizavam o momento de oração e manifestavam esse sentimento nos comentários. A apropriação da internet para a realização da festa incluiu também a tradução simultânea em libras, permitindo, por exemplo, a inclusão de pessoas que provavelmente nunca tiveram a oportunidade de participar da caminhada presencialmente.

Ao longo da realização da “Caminhada com Maria Virtual”, muitos participantes também aproveitaram para fotografar o altar montado em suas casas e publicar fotos do momento nas redes sociais ao mesmo tempo em que participavam do evento religioso. Ainda que o novo formato tenha alterado completamente a lógica já conhecida da festa popular religiosa, as possibilidades apresentadas pela ferramenta online (embora tenham sido exploradas de forma bastante simples e rudimentar), mostra que o mundo digital tem dado às manifestações populares condições de vislumbrar novos espaços para sua realização e sobrevivência.

Considerações finais

O presente artigo procurou investigar como as manifestações populares religiosas tiveram sua dinâmica modificada no contexto da pandemia, a partir da análise da “Caminhada com Maria Virtual”. Com este breve estudo, foi possível concluir que as tecnologias de comunicação abrem espaços para uma série de possibilidades para os fenômenos folkcomunicacionais. A coexistência dessas manifestações populares com as mídias, outrossim, não pressupõe a total perda da identidade cultural, mas colabora com “a universalização de certos elementos e a substituição de outros, para atender novas necessidades individuais e ou coletivas, no contexto presente” (SCHMIDT, 2007, p. 58).

A partir do objeto explorado nesta pesquisa e da metodologia aplicada, foi possível constatar que a religiosidade tem experienciado diversas oportunidades de comunicação no momento presente — uma delas é a ferramenta da transmissão ao vivo, explorada pela Caminhada com Maria. Foi possível perceber que, no contexto das festas populares religiosas, a experiência interativa proposta pelas redes sociais não reúne o esforço de se garantir a sobrevivência das manifestações populares, como também permite que estas festas estabelecem novas conexões com grupos e locais.

Os estudos em Folkcomunicação procuram compreender como os grupos populares estabelecem comunicação em diferentes contextos. O perfil “eminentemente comunicacional” (MARQUES DE MELO, 2008) assumido hoje pelas festas populares como a “Caminhada com Maria” e outros eventos religiosos pelo País mostram como as antigas tradições tem se relacionado com as novas tecnologias e como esse processo foi acelerado pelo contexto pandêmico. Com a análise dos comentários presentes na live da “caminhada virtual” foi possível perceber que, mesmo diante do isolamento, os fiéis procuraram interagir com a festa e manifestar seus pedidos, afetos e agradecimentos à santa.

A substituição da procissão religiosa por um evento online pode até mesmo pressupor que as redes promovem uma vivência individualizada da fé, uma vez que foi suprimida, desta vez, a experiência da coletividade da procissão, importante para a construção do sentido popular da festa. Por outro lado, também é possível observar que há um esforço por parte dos grupos religiosos para que sejam criadas alternativas que busquem fomentar “esse sentimento de participação dos fiéis, formando, assim, uma espécie de comunidade e redes de conhecimento, mostrando que a midiatização altera os processos tradicionais de celebrações e interações ritualizadas de comunidades de pertencimento religioso” (SANCHOTENE, 2011, p. 162).

A Folkcomunicação vem ganhando novos objetos de estudo na arena digital. Conforme foi observado, diante da convivência das práticas religiosas com a Internet, a linguagem e o formato das mensagens folkcomunicacionais também precisaram se adaptar ao novo cenário. As adaptações percebidas na Caminhada com Maria Virtual no contexto pandêmico ainda se mostram ainda muito sutis e pouco exploradas, mas desde já pressupõem que o uso da Internet e as mudanças culturais em curso na sociedade podem ainda promover novas alterações e reconfigurações ao longo do tempo nestas festas religiosas, de modo que há ainda muito que se entender e descobrir neste campo de estudo.

Referências

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