Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar como a Folkcomunicação serve de estratégia de resistência dos grupos marginalizados, a partir de um estudo de caso da comunidade do Povoado Coqueiro, localizada na Região Metropolitana de Aracaju (RMA). Foram analisadas entrevistas semiestruturadas coletadas na comunidade, a fim de entender como os catadores enxergam o processo midiático na preservação de sua identidade. Constatamos que a comunicação massiva segue uma lógica que não condiz com a realidade cultural da comunidade e a população local segue indiferente, na construção de suas próprias expressões de resistência.
Palavras-chave:AracajuAracaju,CaranguejoCaranguejo,IdentidadeIdentidade,FolkcomunicaçãoFolkcomunicação,Grupos marginalizadosGrupos marginalizados.
Abstract: This article aims to analyze how Folkcommunication serves as a resistance strategy for marginalized groups, based on a case study of the community of Povoado Coqueiro, located in the Metropolitan Region of Aracaju (RMA). Semi-structured interviews collected in the community were analyzed in order to understand how waste pickers see the media process in the preservation of their identity. We found that mass communication follows a logic that does not match the cultural reality of the community and the local population remains indifferent in the construction of their own expressions of resistance.
Keywords: Aracaju, Crab, Folkcommunication, Identity, Marginalized groups.
Resumen: El presente artículo tiene como objetivo analizar como la folkcomunicación puede ser estrategia de resistencia de grupos marginados, a partir de un estudio de caso de la comunidad Povoado Coqueiro, ubicada en la Región Metropolitana de Aracaju (RMA). Con el objetivo de comprender cómo pescadores de cangrejo ven el proceso mediático en la preservación de sus identidades, se realizaron entrevistas semiestructuradas a miembros de la comunidad. Constatamos que la comunicación masiva sigue una lógica que no se corresponde con la realidad cultural de la comunidad y la población local continua indiferente en la construcción de sus propias expresiones de resistencia.
Palabras clave: Aracaju, Cangrejo, Identidad, Folkcomunicación, Grupos marginados.
Dossiê
A folkcomunicação como estratégia de resistência dos grupos marginalizados: um estudo de caso de uma comunidade de catadores de caranguejo em Aracaju1
Folkcommunication as a resistance strategy of marginalized groups: a case study of a community of crab scavengers in Aracaju
La folkcomunicación como estrategia de resistencia de grupos marginados: estudio de caso de una comunidad de pescadores de Cangrejo, en Aracaju

Recepção: 20/09/2020
Aprovação: 03 Novembro 2020
Aracajuanos e sergipanos testemunharam, desde as últimas décadas do século XX, tamanha visibilidade cultural que o caranguejo alcançou em Aracaju. Práticas midiáticas cotidianas, alicerçadas a conteúdos de turismo, propaganda e marketing, se tornaram essenciais na construção da identidade cultural da região, já que juntas revelam a importância do costume dos aracajuanos em quebrar caranguejo nos fins de semana. Através dessas estratégias foram construídos os mais variados espaços, onde se encontram a figura “gigante” do caranguejo. Na extensa passarela onde se concentram bares e restaurantes, a iguaria principal em hipótese nenhuma pode faltar no prato dos visitantes. “Por se tratar de uma área de ponto de encontro, onde já existiam alguns bares que ofereciam o caranguejo como prato principal, decidiram valorizar e potencializar o produto denominando-se essa área como “Passarela do Caranguejo”” (AZEVEDO, 2014, p. 253).
No espaço midiático, o caranguejo é visto como grande contribuinte do desenvolvimento econômico e cultural da cidade, já que estimula a cultura como atração turística, e motiva o interesse das pessoas em conhecerem Aracaju (SANTANA, 2020). No entanto, nada se fala a respeito dos sujeitos que perpetuam a cultural local nas comunidades ribeirinhas, onde o crustáceo é a principal fonte de subsistência. Enfatiza-se que um elemento nascido nos mangues se caracteriza como identidade cultural de um povo mas, ao mesmo tempo, um cenário marginalizado econômica, política e socialmente reforçado pelos meios de comunicação é dissimulado. Afinal, que desenvolvimento é esse?
Um dos nossos pressupostos é que as raízes identitárias remontam à formação e desenvolvimento das sociedades. Na contemporaneidade, a reorganização das identidades culturais ilustra os efeitos de um processo de globalização e levanta questionamentos a respeito de como tais ações são concebidas e estabelecidas. Canclini (2015) recomenda observar que o multiculturalismo se estabelece como espaço repleto de culturas, que hora se encontram, se fundem e distanciam e que esses conflitos, por vezes, impedem de entender e caracterizar as particularidades de cada cidade na contemporaneidade.
Essa realidade demonstra que os meios de comunicação convencionais seguem estreitamente vinculados à economia política e ao capitalismo, na apropriação da cultura tradicional e na generalização das novas tendências emergentes a uma cultura dominante. Partimos do princípio que a imagem comunitária do caranguejo se reconfigura, torna-se produto vendável e comprova que quanto mais a vida social é mediada pelo mercado midiático, maior a tendência das identidades se desassociarem do seu habitat natural.
Por estes aspectos, torna-se essencial desfrutar da proposta teórica da folkcomunicação, a qual observa a espaço marginal não somente como excluso, mas que, ao contrário do que muitos paradigmas apontavam a respeito do poder absoluto dos meios, recebe e interpreta as mensagens transmitidas pela mídia. Nesta pesquisa, especificamente, garante enxergar e compreender as reações do povo – muitas vezes distantes dos espaços comuns da sociedade e não diretamente engajados aos meios de comunicação – e propor estratégias que contribuam na supressão dos problemas da comunicação.
À vista disso, esta pesquisa tem como objetivo analisar como a Folkcomunicação serve de mecanismo de expressão e resistência dos grupos marginalizados3. Para isso, buscamos identificar como a comunidade do Povoado Coqueiro4, localizada na Região Metropolitana de Aracaju (RMA), enxerga o processo midiático na preservação de sua identidade. Para isso, utilizamos o Estudo de Caso (DUARTE, 2005), já que se trata de um método apresenta vantagens para entender os fenômenos sociais, com um levantamento detalhado e profundo do assunto proposto. Em consideração a necessidade de conhecer a diversos aspectos da vida social, entende-los e interpreta-los, optou-se por uma entrevista em profundidade semiestruturada com catadores e catadoras da comunidade citada.
A priori, constatamos que a teoria beltraniana busca entender a relação entre o espaço midiático e o espaço comum e esclarecer como se concebem e estabelecem as identidades. Assim, não apenas destaca a importância das manifestações e os agentes culturais, situados à margem, como também questiona uma lógica de mercado que abusivamente não se dedica a atuar em sociedade de forma saudável e perspicaz. Certamente esta discussão servirá de base para abrir caminhos para novas abordagens, olhares e contribuições, bem como ressaltar a importância das identidades culturais e colaborar no reconhecimento da teoria beltraniana, a partir da expansão do seu grau de observação.
Na folkcomunicação, o popular é entendido como o tradicional, aquele que advêm do povo, o qual Beltrão (1980, 2014) utilizou para destacar os “meios de informação e de expressão de ideias”, muitas vezes como estratégia de resistência e contestação à ordem social, dos grupos que estavam à margem da sociedade. Por assim dizer, abre-se a necessidade de pensar o popular mediante os efeitos da globalização na sociedade contemporânea.
Entender as expressões populares dos grupos marginalizados tem sido imprescindível às adaptações teóricas da folkcomunicação no limiar do século XXI. “Se a folkcomunicação é a comunicação em nível popular, o que é o popular na época da comunicação de massa?” (SILVA, 2014, p. 22). A interrogação se faz relevante para pensar a teoria beltraniana diante de uma sociedade marcada pela instantânea troca de informações em âmbito global, onde o espaço e o tempo foram alterados e reajustados pelo avanço dos meios de transporte e das novas tecnologias.
Sigrist (2013) considera um desafio compreender as relações no campo da cultura no tocante a continuidade das tradições diante da globalização. Este cenário de constante circulação de informações permite, por hora, que as manifestações se reinventem (BENJAMIN, 2017) e “’atualizem-se’ ou criem linguagens próprias para inserção na arena global” (SCHMIDT, 2008, p. 149). Por outro lado, a abertura horizontalidade da comunicação em rede provoca um choque cultural e a quebra da cultura a partir das tendências de nível global em um palco de conflitos (SABBATINI, 2012).
Portanto, os novos entendimentos da Folkcomunicação se baseiam em processo de apropriação da cultura e das identidades com um olhar mercadológico (SCHMIDT, 2008), cenário o qual “é reflexo da luta das culturas periféricas no sentido de ocupar espaços apropriados no mosaico multicultural propiciado pelas novas tecnologias de difusão simbólica” (MARQUES DE MELO, 2008, p. 70). Apropriação cultural seria, então, uma forma de adotar elementos específicos da cultura popular em outro contexto que não seja propriamente o cultural, na transmissão de mensagens sejam elas positivas ou negativas (KREUTZ, 2007).
Canclini (2015) entende que há uma diminuição dos repertórios populares locais, visto que o mercado forma-se um mercado as culturas hegemônicas a partir de culturas eletrônicas transnacionais. Assim, “[....] a vida social urbana se faz cada vez menos nos centros históricos e mais nos centros comerciais modernos na periferia, quando os passeios se deslocam dos parques característicos de toda cidade para os shoppings que imitam uns aos outros em todo o mundo” (CANCLINI, 2015, p. 106).
Sobre esse ponto de vista, Trigueiro (2005) encara as manifestações populares (festas, danças, culinária, arte, artesanato, etc) na contemporaneidade como não pertencentes apenas aos seus protagonistas. No mundo globalizado, as culturas são também do interesse dos grupos midiáticos, de turismo, de entretenimento, das empresas de bebidas, de comidas e de tantas outras organizações socais, culturais e econômicas. A cultura e a identidade são apresentadas em modelos, normas, símbolos e valores que são construídos pelos integrantes da sociedade, determinadas por fatores externos ao grupo. Fica claro que a criação e a construção de significados são resultadas das inovações tecnológicas com parte do imaginário social (SIGRIST, 2013).
Os elementos culturais reprocessados pela prática midiática perdem muitas de suas raízes culturais e ganham características hegemônicas, voltadas à uma lógica de mercado e consumo. Em relação ao caranguejo, pode-se dizer que, a mídia aracajuana, aliada ao turismo, enfatiza e reconhece esse elemento como símbolo identitário, no entanto mascara e oculta os meios hábeis de manutenção da tradição e na preservação. Os sujeitos relacionados à prática da cata de caranguejo, por outro lado, seguem desvalorizados e em situação de marginalização comunicacional (SANTANA, 2020).
Por esta aspecto, a teoria da folkcomunicação se ocupa em questionar o processo comunicacional, seja para os grupos em situação de marginalidade resistirem à comunicação massiva ou se apropriarem dela, a fim de atingir seus objetivos de publicização (FERNANDES, 2011). Assim, o folclore e os símbolos de circulação popular exercem papel fundamental como meio de expressão e disseminação de informações, na garantia de uma comunicação redirecionada à realidade vivenciada pelos grupos marginalizados. Ou seja, mesmo que indiretamente, esses grupos produzem significados, a partir de suas experiências cotidianas, e elaboram maneiras de resistir na preservação de suas identidades.
O fenômeno da marginalização social está historicamente relacionado a prática midiática, no que se refere a uso dos meios de comunicação na difusão de modelos de desenvolvimento projetados, já que estes seguiram em acordo com o progresso tecnológico e os padrões econômicos vigentes (MARQUES DE MELO, 1976). Na realidade brasileira, este fator foi impulsionado quando as influências europeias anteriores à Segunda Guerra dão lugar às norte-americanas (SODRÉ, 2010).
Cabe ressaltar que a influência dos Estados Unidos da América (EUA) foi estabelecida a partir da expansão econômica, política e cultural, e deu-se através da implantação de modelos imperialistas em países como os da América Latina que, em situação de subdesenvolvimento, passaram a servir à sua dependência. Neste ínterim, a imprensa, o rádio, o cinema e a televisão, marcam a supremacia americana voltada à lógica ideológica e dominante sobre as sociedades “menores”. No Brasil os meios de comunicação serviam como mecanismos de dominação política, por impulsionar a passividade do Estado frente às corporações privadas, definir a participação social a partir do consumo, em detrimento do exercício da cidadania, e moldar um “modo de vida” voltado à ideologia capitalista (SODRÉ, 2010, CANCLINI, 2015).
No viés da comunicação, a marginalidade é abordada através do entendimento dos meios de comunicação como mecanismos de articulação ideológica em função de sua influência no meio social e de garantia à classe dirigente do controle sobre as classes subalternas. Trata-se de enxergar os meios como instrumentos de dominação política da população e na tomada de consciência desta à interpenetração, seja para tomar suas consciências às contradições existentes, como também para estabelecer o firmamento do sistema capitalista.
Conforme Perlman (2002), a marginalização está estreitamente ligada a ideologias e o processo de modernização, com implicações no capitalismo e no imperialismo. As parcelas da população que não são detentoras de uma boa condição de vida são enquadradas como inferiores ao assumirem características sociais, culturais, econômicas e políticas concomitantes. O termo refere-se, mesmo que de maneira vaga, a vários grupos, a partir de cinco fatores de definição que são empregados ao termo: 1) localização; 2) situação inferior na escala econômico-ocupacional; 3) migrantes, recém-chegados ou membros de diferentes subculturas; 4) minorias raciais e étnicas; e 5) transviados.
Na América Latina, a marginalidade se configura como rótulo social de cunho político, a partir de interesses econômicos, surgidos, inicialmente, com as conotações dos pobres, diante de suas raízes históricas, uma vez que a cidade está ligada a limites de classe e poder, em paralelo ao migrante e ao desenvolvimento das favelas no cenário urbano, que foram tratados como pragas. Assim, a partir da incapacidade de uma economia assumir essa parcela na força de trabalho acabava a reforçar, ainda mais, a ameaça de colapso social e político, o que paradoxalmente influenciou no enfrentamento desse “temor”, ao integrá-las ao sistema que a produz, social e economicamente, marginal (PERLMAN, 2002).
À medida que se desenvolvem os centros urbanos, sobretudo os maiores em extensão, surgem problemas estruturais no que tange ao seu volume urbano, modelo rodoviário, carência na infraestrutura, especulação fundiária e imobiliária, deficiência no transporte e pauperização da população em seu modelo centro-periferia (SANTOS, 2008). As relações de força de trabalho e a distribuição da renda, por sua vez, justificam e enfatizam a pobreza de um grupo, ao diferenciá-lo dos demais que não compartilham das mesmas condições. Deste modo, esse indivíduo se constitui um agente “barrado nas fontes de trabalho estável e rentável, e, portanto, barrado do usufruto dos padrões de consumo desejáveis e efetivamente auferidos por outra gente” (PAOLI, 1974, p. 120).
Paoli (1974) associa a marginalização social à prática comunicacional no que tange ao fato desta estar firmemente articulada a uma estrutura social que molda e submete o indivíduo que vive nessa realidade à condição de “pobre”. Nesse segmento, a pobreza gera também o lugar e coisas próprias de gente pobre, por imposição de um reconhecimento mútuo que estrutura a situação da participação e da exclusão.
Além do mais, instituições responsáveis pelas políticas que atuam, seja pela solução ou pela instauração dos espaços marginais, como favelas, por exemplo, reforçaram e perpetuaram esses conceitos, ao caracterizar estes como irregulares e compostos por subproletários sem capacitação profissional, de baixos padrões de vida, analfabeto etc., e como espaço de refúgio para criminosos, marginais, parasitas e doenças contagiosas. “Esta contradição entre o temor das ‘crescentes massas bárbaras’ nas cidades e a consciência de sua inevitável existência é subjacente à ideologia da marginalidade e à sua manipulação política” (PERLMAN, 2002, p. 124).
Com o avanço do fenômeno da globalização, o processo de marginalização comunicacional é ainda mais agravado, visto que há uma reorganização nas práticas comunicacionais, ao torna-las propulsoras do desenvolvimento capitalista. Em outras palavras, estas práticas dentro do processo global reorganizam o que já estava construído hegemonicamente (BOLAÑO, 1999).
Assim, na folkcomunicação, Beltrão (1980) identifica o marginalizado como o indivíduo que em situação de exclusão cultural, econômica e política, privado das mensagens dos meios de comunicação, constrói seus próprios meios de expressão, direta ou indiretamente relacionadas ao folclore. A partir do entendimento do processo de marginalização social, a teoria beltraniana não só compreende o processo de exclusão comunicacional, como também visualiza a cultura enquanto espaço de dominância, ao ressaltar o indivíduo que, situado à margem, segue destinado a carregar efeitos simbólicos disseminados pelas práticas midiáticas.
Em razão disso, compreende-se que o folclore passou a exercer papel fundamental em meio a cultura popular que, além de se comprometer a preservar práticas tradicionais, se configurou como forma de representação e expressão comunicativa do povo e para o povo, encarados por suas condições sociais e possibilidades de criar, reproduzir e contestar estereótipos e hierarquias transmitidos pela comunicação de massa. Assim, seu discurso está relacionado ao desenvolvimento social do indivíduo para além da questão biológica e caracteriza-se pelo olhar contra-hegemônico da cultura popular à cultura erudita, concretizado pela luta em fazer ouvir sua voz e suas reinvindicações (AMPHILO, 2013).
O povoado5 Coqueiro fica localizado no oeste do Município de São Cristóvão, aproximadamente sete km do centro urbano. Atualmente a comunidade conta com 433 habitantes, distribuídos em 192 unidades habitacionais. Conforme os dados levantados, 59,59% da população possui apenas o nível fundamental como nível máximo de instrução (SANTANA, 2020).
Banhado pelo Rio Vaza Barris, detém de uma ampla área de manguezais e um solo fértil para o desenvolvimento da agricultura familiar. As atividades laborais da população se baseiam na economia de subsistência, onde os trabalhadores usufruem o meio ambiente para seu próprio desenvolvimento. Deste modo, os únicos mecanismos de desenvolvimento dessa comunidade ribeirinha é a atividade pesqueira artesanal6 e a agricultura familiar7. A principal delas é a cata, seja de caranguejos, mariscos ou moluscos, além da pesca de peixes.
Esta estreita relação com o ambiente se manifesta numa intensa interação que se revela em aspectos do cotidiano e que caracterizam sua condição sociocultural. A identidade se relaciona com o sentimento de pertencimento que se estabelece a partir de características, sejam elas culturais, econômicas, trabalhistas, sociais e se interpenetram com própria identificação como catador de caranguejo, pescador ou marisqueiro. A comunicação, neste aspecto, é a ferramenta essencial para efetivar tais laços e compromissos e alternativa de resistência da comunidade na preservação de sua identidade.
Nesta perspectiva, resistir pressupõe a capacidade que a população local em defender sua cultura, que é própria e comum da comunidade. Isso implica na articulação de estratégias a fim de manter sua história e seu modo peculiar de existir. Ou seja, são rações de defesa da preservação da memória coletiva contra condições impostas pelo próprio sistema social, pelas transformações globais ou pelos veículos de comunicação ortodoxos. Entendemos que não são articulações propriamente pensadas, já que muitas delas surgem naturalmente, mas não desconsideramos que as raízes identitárias são suas principais definidoras.
A herança de seus antepassados para a perpetuação da prática da coleta de caranguejos é determinante para a iniciação na atividade. “Ah isso aí já vem de... de pai pra filho, de avô, já vem... que você fica ali, você já nasce bem próximo a maré, aí você decora o horário que ela vai vazando, tá secando e ta enchendo e em casa horário ela muda meia hora, aí você vai decorando” (E03, Informação verbal, 2020).
Dentro da comunidade, a atividade exercida é definidora dos espaços limitantes e espaços de prestígio que cada indivíduo ocupa. Alguns indivíduos são classificados como os catadores de caranguejo mais conhecidos na comunidade, em detrimento dos outros que trabalham com outras atividades para além da cata. Esse reconhecimento confirma que a própria população possui seus próprios mecanismos para identificar e dar importância aqueles que estão diretamente envolvidos nesta atividade.
Embora na comunidade já se perceba o crescente acesso aos meios tecnológicos, principalmente celulares e smartphones inseridos em suas realidades – seja em suas casas, ou no trabalho, a intercomunicação ainda é um fator de forte evidência nas atividades, definidor dos meios de organização próprios da localidade. É neste tipo de comunicação que se estabelecem decisões, maneiras “corretas” de trabalhar no mangue, transmitir o conhecimento para os mais jovens e, inclusive, na hora de vender a mercadoria.
Apesar de a comunicação ser um direito, os meios de comunicação encontram-se limitados a grupos específicos, conforme destacamos anteriormente. Segundo os entrevistados, não há interesse dos veículos em chegar até o povoado para mostrar a realidade da comunidade. “Esse negócio assim quando vem, eles vão direto logo é pro mercado central de Aracaju... Só vão pra lá... Rapaz, eu acho que, no meu ver, porque lá... Tem caranguejo direto, num falta... Num vem pra cá divulgar mermo dentro do mangue” (E03, Informação Verbal, 2020).
O grupo utiliza dos seus próprios meios e comprovam que a “outra” comunicação, própria de outros grupos, não lhe pertence. E ainda que exista a consciência de que o mangue e a comunidade não são pautados pelos meios de comunicação, alguns se apresentam indiferentes. “Eu acho que porque nunca fez o trabalho, né? Com alguém, né? Assim no mangue, mostrando como é que pega, como é que num pega... Acho que eles nunca fizeram o trabalho” (E09, Informação Verbal, 2020).
Por outro lado, a comunidade se apropria dos meios para alcançar seus objetivos, seja na publicização ou nos aspectos de atenção a figura do caranguejo. Demonstram que não há importância de a mídia não reconhecer o trabalho no mangue, desde que haja um bom retorno financeiro nas vendas da mercadoria. “Não, eu fico feliz, né? Porque é aquela... O marisco que eu vendo” (E10, Informação Verbal, 2020). “É bom que já influi as pessoas, né? Ir pra feira comprar...” (E09, Informação Verbal, 2020).
Além da publicização, os meios de comunicação possibilitam que a população enxergue um mundo no qual ele não pertente, mas que possibilita acesso a um estilo de vida simbólico que dilui as fronteiras da exclusão (PAOLI, 1974). Questionados sobre a participação nos espaços midiáticos, os entrevistados entendem que nesse outro mundo o caranguejo é bonito e limpo, por isso ganha atenção nas vendas e na alteração dos preços nos bares e restaurantes da capital. “Porque uma presença daquela... O que eles fazem, uma presença daquela e aquela apresentação... Tudo limpinho, bonito... Então, aquele... É uma coisa linda, né?” (E01, Informação Verbal, 2020).
Por outro lado, citar que o caranguejo na TV e nos restaurantes de Aracaju é mais bonito, demonstra indiretamente que sua atividade é inferior e que não vale tanto quanto o que se está lá fora. “É porque os de lá são maior que os daqui, né? É bonito, cada caranguejo, as vez você ver quando o Ibama passa aí na televisão, é cada um caranguejão, eu acho bonito, né? Mas só que aqueles caranguejo ele num, eles vem de longe” (E04, Informação verbal, 2020).
Outra perspectiva é o alcance da comunidade nas práticas midiáticas. Confirmamos que o caranguejo ganha outros aspectos que, por vezes, o distingue daquele que serve de subsistência para a comunidade estudada. O entrevistado E03 demonstra admiração e, ao mesmo tempo, indiferença. “Pra falar a verdade a gente fica, até assim sem... Tem nada a ver, num liga... Só acha bonito...” (E03, Informação Verbal, 2020). Assim como o entrevistado E04 diz: “Eu acho bonito” (E04, Informação Verbal, 2020). Essas visões demonstram também que trata-se de uma prática comum, não estruturada no óbvio e nem propriamente uma inovação. Reforça, ainda, que o elemento é apresentado com bom aspecto estético, assim como sempre foi mostrado, e na mídia não poderia ser diferente. “Eles mostra assim, no prato, cozinhado, vermelhinho... Ele mostra, fica mostrando...” (E09, Informação Verbal, 2020).
Com o alcance do crustáceo em outros espaços da capital, a comunidade se estrutura a partir da constante apropriação do caranguejo no ambiente midiático, o que consequentemente provoca transformações nas atividades do mangue e nas vendas de caranguejo. Esse fator ocorre principalmente através do aspecto turístico, onde o crustáceo ganha notoriedade pelas empresas de marketing e turismo.
Na percepção de toda a população entrevistada, a prática turística tem gerado possibilidades aos catadores de caranguejo, justamente por servir de visibilidade ao crustáceo. O turismo, segundo suas visões, agrega pelo fator gastronômico, quando se diz que “Ajudou porque o turista é quem come o caranguejo, né?” (E04, Informação verbal, 2020); no viés publicitário, quando junto às empresas de comunicação deu visibilidade ao elemento, “Rapaz, ajudou, porque tá falando do caranguejo, entendeu? Ajudou!” (E08, Informação verbal, 2020); ou no viés econômico, facilitador das vendas de caranguejo no estado de Sergipe: “Como é conhecido, qualquer pessoa, quando vai pra feira o povo compra, né?” (E09, Informação verbal, 2020).
Para o entrevistado E01, a criação de espaços como a Orla de Atalaia reforçou ainda mais a importância do caranguejo enquanto símbolo identitário do sergipano, e criou possibilidades para o avanço nas vendas desde o catador até bares e restaurantes. “Só tá melhorzinho porque hoje tem a Atalaia, a coisa da Atalaia que puxa muito caranguejo, que tem muito caranguejo grande de fora... Aí quer dizer, pegou comércio, porque, quer dizer, todo mundo rico quer tomar cervejinha, vem de fora, o povo, né?” (E01, Informação verbal, 2020).
Os discursos dos catadores e catadoras demonstram que o turismo se configura como mecanismo comercial. Essa visão, de maneira indireta, contribui para pensar a prática turística como ferramenta de espetacularização e comercialização de modelos de identidades. Deste modo, entende-se que a população considera que a visibilidade comercial torna o caranguejo um símbolo de poder, que consequentemente alavanca o propósito comercial e contribui para suas realidades. “Hoje tem mais valor por causa dos turistas, né? Que tá em Aracaju sempre, né? Que conheceu o caranguejo em Aracaju, aí ficou famoso” (E10, Informação verbal, 2020).
Define-se, pois, a natureza de um turismo que recorrentemente se apropria dos elementos do povo, alia-se à um grupo que está fora do âmbito comunitário, atribui a percepção de identidade ao caranguejo, mas desconsidera-se o cheiro e o gosto do povo. Questionado a esse respeito, o cambista8 E02 entende que, em espaços turísticos, o catador e o vendedor de caranguejo atuam apenas com o comércio. “A nossa parte é o vender” (E02, Informação verbal, 2020).
Por assim dizer, o trabalho no mangue e o enfrentamento às dissonâncias sociais exigem que o grupo se articule na construção de expressões de oposição a ordem social vigente, seja verbalmente, através da negação da representatividade caranguejo veiculada pela mídia; na socialização dentro da própria comunidade; nas alternativas construídas para driblar as dificuldades da cata e venda de caranguejo; e na transmissão da prática às novas gerações. Expressões estas que se configuraram como símbolos de resistência à preservação de sua identidade.
Retomamos, deste modo, que a noção de marginalidade contribui para identificar a comunidade em situação de exclusão. Essas características compõem a formação de um padrão por suas formas de vida definidas como precárias, inclusive, pela própria população local. Reconheciam os ocupantes que a comunidade diferencia-se pela economia familiar, que condiciona a um nível cultural e identitário próprio. Além do mais, as políticas de atenção às atividades pesqueiras e afins têm definido como se organizam as formas de trabalhos no povoado, tanto a delimitação da atividade quanto o acesso aos serviços que o seu povo necessita. “Aqui é esquecido” (E11, Informação verbal, 2020).
Inferimos que a identidade, através do caranguejo, desses catadores e catadoras é realmente de sofredores, mas de sofredores que não fogem à luta. O caranguejo, neste aspecto, torna-se um símbolo de vitória em suas vidas. “É um grande valor. Eu acho assim, um grande valor, caranguejo, que também combate muitas fomes, de muitas pessoas...” (E08, Informação verbal, 2020). Tanto objetiva quanto subjetivamente, esse grupo se sente possuidor da coleta de caranguejo por sua própria experiência de vida, já que sua força de trabalho permite o acesso aos meios necessários à sua subsistência.
A realidade social da comunicação segue um padrão de uma sociedade marcada pelo alcance aos estilos de vida e identidades recorrentemente promovidos pelos meios de comunicação, que definem participação e exclusão social, conforme discutido anteriormente. Tais fatores, juntamente com a ausência de políticas de atenção a atividade no mangue, estão historicamente atrelados a região e grande parte da população não enxerga a necessidade de auxílio nas atividades para o desenvolvimento local, senão como uma ajuda financeira do governo.
Quer dizer, até o que tem tiram, que agora tem gente que num tem esse benefício, num trabalha nem com isso, mas tá fixado, então pega, às vezes tem gente que num tem esse benefício, mas o que tem tira numa bolsa escola, grampeia por uns quatro meses, cinco meses, a pessoa fica sem nada (E06, Informação verbal, 2020).
Ao considerar que o trabalho no mangue faz parte de suas próprias identidades, os fatores de exclusão, por outro lado, contribuem significativamente para a autonegação. A relação com o mangue, por vezes, é muito mais econômica que cultural, tanto que a percepção de participação na mídia, através da imagem do caranguejo, é de valoração do trabalho, sem maiores questionamentos se, de fato, o que é disseminado midiaticamente é algo que os representem.
Acreditamos que os saberes das comunidades estudadas, seus mecanismos de subsistência e a formação da identidade local revelam um modo de resistência às políticas inviáveis e às mensagens disseminadas pelos meios de comunicação. Por esse aspecto, essa resistência serve de base para demonstrar que os indivíduos da localidade assumem uma realidade peculiar, movida pelos seus próprios modos de vida, costumes, crenças e, principalmente, maneiras distintas comunicação e apropriação das mensagens vinculadas pela mídia. A folkcomunicação, por este aspecto, evidencia o desafio de visualizar o valor identitário dos ocupantes e a importância conhecimento da localidade. Reforça, ainda, a necessidade de valorização e incentivo as práticas culturais desenvolvidas na garantia da preservação de uma atividade tão importante em Aracaju, onde o caranguejo tem extrema relevância como grande representante cultural.
Ao longo da discussão proposta, procuramos analisar como a Folkcomunicação serve de mecanismo de expressão e resistência dos grupos marginalizados, a partir de um estudo de caso da comunidade de catadores de caranguejo do Povoado Coqueiro, a fim de entender como seus ocupantes enxergam o processo midiático e utiliza de suas próprias expressões na preservação de sua identidade. A priori, constatamos que a comunidade não se sente representada pelas práticas midiáticas, onde o caranguejo tem ganhado protagonismo. Ou seja, o caranguejo midiático se distingue do caranguejo enquanto elemento de subsistência da comunidade trabalhada.
Por assim dizer, os processos de articulação popular se constituem como estratégias de resistência na preservação da identidade e na manutenção do legado dos catadores e, ao mesmo tempo, são identificados como métodos de significação da cultura local. Para disso, inconscientemente, a população reclama e exige destaque a sua produção cultural, bem como o reconhecimento do caranguejo em sua totalidade – não só como elemento cultural e turístico, mas como meio de subsistência.
Enxergamos o elemento como um crustáceo que nasce da lama impregnada nas raízes do ecossistema manguezal, cuja figura por si só é suficiente para evidenciar uma comunidade do mangue no interior sergipano como espaço que, por um ângulo, representa o grande contingente de grupos desprovidos de atenção do Estado, e por outro demonstra uma dicotomia ético-cultural entre a elite de acordo com o acesso ao produto social. Uma conjuntura que apresenta não só a exclusão dos anseios de uma parcela representada por suas identidades marginalizadas, como também enfatiza a comunicação como mecanismo de disseminação de padrões culturais determinados por um jogo de interesses puramente comerciais e mercadológicos.
A folkcomunicação, por este aspecto, contribuiu para evidenciar como os processos midiáticos seguem uma lógica que não condiz com a realidade cultural de todos os grupos. Evidentemente os profissionais da mídia continuam distantes dos grupos que estão à margem, sem um conhecimento necessário dos modos, saberes e costumes que configuram a identidade desse público. O âmbito comunitário, por sua vez, segue indiferente à mídia, ciente que as imagens dos caranguejos projetadas pela mídia não fazem parte de suas realidades e que outros espaços fazem parte de um “mundo externo”. Assim, se ocupa da comunicação massiva como mecanismo de resistência, na apropriação desta, como meios de publicação do caranguejo.
O caso estudado demonstra que se faz necessário visualizar a cultura enquanto meio de dominância, para esclarecimento de situações de exploração e marginalização. Analisar tais avanços sem maiores questionamentos talvez contribua para continuar legitimando ideias que por vezes tem servido de venda às observações profundas do processo de potencialização do poder e da dominância, interpenetrados historicamente na nossa sociedade.