Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
“Os Segredos das Chuvas” e a produção do impresso O Candeeiro em Lagoa do Juá/CE1
Rosa da Conceição Nascimento; Catarina Tereza Farias de Oliveira
Rosa da Conceição Nascimento; Catarina Tereza Farias de Oliveira
“Os Segredos das Chuvas” e a produção do impresso O Candeeiro em Lagoa do Juá/CE1
The Secrets of the Rains”and the production of the printed O Candeeiro in Lagoa do Juá / CE
Los secretos de las lluvias y la producción del impreso El Candeeiro en Lagoa do Juá/CE
Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 18, núm. 41, pp. 204-219, 2020
Universidade Estadual de Ponta Grossa
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Este artigo é uma pesquisa etnográfica sobre o “CANDEEIRO”, impresso produzido pela ASA (Articulação Semiárido Brasileiro). A investigação reflete sobre a proposta de comunicação do Candeeiro como experiência comunicativa que não se volta para a informação, mas sim para uma dimensão de comunicação educativa na zona rural do Nordeste brasileiro. O Candeeiro é produzido a partir das culturas locais do sertanejo em sua convivência com a seca. Problematizamos o conceito de Sistematização de experiências que fundamenta a prática comunicativa para entender como a ASA e as pessoas da localidade pesquisada vivenciam a produção do jornal nessa relação entre comunicação e inclusão de hábitos culturais do sertão. A pesquisa de campo teve duração de oito meses e aconteceu em Lagoa do Juá, no Ceará, de dezembro de 2017 a agosto de 2018.

Palavras-chave:ComunicaçãoComunicação,CulturaCultura,Sistematização de ExperiênciasSistematização de Experiências.

Abstract: This article is an ethnographic research on “CANDEEIRO”, printed by ASA (Articulação Semiárido Brasileiro). The investigation reflects on Candeeiro's communication proposal as a communicative experience that does not focus on information, but on an educational communication dimension in the rural area of ​​the Northeast. The Candeeiro is produced from the local cultures of the sertão in its coexistence with drought. We problematize the concept of Systematization of experiences that underlies the communicative practice to understand how the ASA and the people of the researched locality experience the production of the newspaper in this relationship between communication and inclusion of cultural habits. The field survey lasted eight months and took place in Lagoa do Juá, Ceará.

Keywords: Communication, Culture, Systematization of Experience.

Resumen: Este artículo es una investigación etnográfica sobre el Candeeiro, impreso producido por ASA, Articulación para el Semiárido. La investigación refleja la propuesta de comunicación del Candeeiro como experiencia comunicativa que no se centra en la información sino en una dimensión de comunicación educación en el área rural del noreste del Brasil. El Candeeiro se produce a partir de las culturas locales del sertanejo en convivencia con la sequía. Problematizamos el concepto de sistematización de experiencias que subyace a la práctica para entender cómo ASA e las personas de la localidad encuestada experimentan la producción del periódico en esta relación entre la comunicación y la inclusión de hábitos culturales del sertão. La investigación del campo duró ocho meses y tuvo lugar en Lagoa do Juá, Ceará, de diciembre de 2017 a agosto de 2018.

Palabras clave: Comunicación, Cultura, Sistematización de Experiencias.

Carátula del artículo

Artigos e Ensaios

“Os Segredos das Chuvas” e a produção do impresso O Candeeiro em Lagoa do Juá/CE1

The Secrets of the Rains”and the production of the printed O Candeeiro in Lagoa do Juá / CE

Los secretos de las lluvias y la producción del impreso El Candeeiro en Lagoa do Juá/CE

Rosa da Conceição Nascimento
Universidade Federal do Ceará, Brasil
Catarina Tereza Farias de Oliveira
Universidade Federal do Ceará, Brasil
Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 18, núm. 41, pp. 204-219, 2020
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 10/05/2020

Aprovação: 27/05/2020

Introdução

Este artigo tem como ponto de partida compreender como o boletim “O Candeeiro”, produzido através do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), constrói uma relação com a cultura peculiar no semiárido do Nordeste brasileiro, trazendo os saberes dos povos do sertão para a produção desse impresso. A ASA é uma rede formada por cerca de três mil instituições, entre igrejas, Associações de Moradores, Movimentos, Organizações Não Governamentais (ONG), grupos, entre outros. Essa articulação nasceu em 1999 com o intuito de trabalhar estratégias de convivência com a região semiárida brasileira. O semiárido no Brasil compreende os estados do Nordeste e do Norte de Minas Gerais (BROCHARDT, 2013).

Para essa investigação, analisamos a produção do Candeeiro em Lagoa do Juá. Essa localidade está situada na zona rural, faz parte do município de Itapipoca, na região Vales do Curu e Aracatiaçu, no Ceará, distante 35 quilômetros de Itapipoca e, aproximadamente, 170 km de Fortaleza. Conforme manual (2006), elaborado pelas famílias de Lagoa do Juá, a localidade foi fundada em 1976. Na época, pertencia ao município de Amontada, também na região. No entanto, pelos depoimentos de pessoas com mais de 80 anos, a localidade é bem mais antiga: “No meu nascimento, talvez tivesse umas cinco ou seis casas”2.

Para a realização da pesquisa de campo, optamos pela etnografia. Desse modo, a pesquisa etnográfica teve duração de 18 meses entre visitas, conversas, acompanhamento de festas da comunidade, realização de entrevistas e vivências no cotidiano. O encontro com Malinowski (1984), Oliveira (2014), Winkin (1998) e Guber (2005) – que discutem a etnografia como um método apropriado para estudar os sujeitos distintos, considerando os contextos em que estes estão inseridos, por meio de uma imersão em campo – também foi importante para percebermos mais claramente que a escolha em pesquisar a produção dessa prática comunicativa em Lagoa do Juá exigia de nós empenho e disponibilidade para mergulhar e nos deixar tocar pelos sentimentos e emoções para poder construir esta pesquisa. Para a escrita do artigo, vamos, em primeiro lugar, situar a produção do Informativo Candeeiro no contexto da ASA e na comunidade de Lagoa do Juá. Em seguida, problematizamos o conceito de Sistematização de Experiências e, finalmente, apresentamos a descrição dessa prática comunicacional vivenciada no cotidiano de Lagoa do Juá.

A Produção do Candeeiro e o conceito de Sistematização de Experiência.

É fundamental entendermos o Candeeiro dentro da experiência comunicacional da ASA, que estará situada a partir do conceito de sistematização de experiências adotado por essa entidade. A ASA discute a comunicação como um direito, “trazendo outros sujeitos/atores” (Verônica Violeta Pragana, assessora de comunicação da ASA, informação oral, 2016)3. Na mesma direção, Brochardt (2013, p. 79) traz, em seus estudos, uma discussão da comunicação na ASA como estratégia de mobilização para “compartilhar sentidos, convocar pessoas […]”, como um meio aberto e de empoderamento.

Para o desempenho do trabalho da comunicação institucional da ASA existe uma equipe de profissionais de comunicação que formam a ASACom (Assessoria de Comunicação da ASA). Ela fica na sede da Associação Programa 1 Milhão de Cisternas (AP1MC)4, em Recife. Esses profissionais são todos formados em comunicação5. É importante compreender que o Candeeiro é um dos meios de comunicação da ASA que se estabelecem como boletim de sistematização de experiências, do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). O Candeeiro é produzido em dois formatos: boletim e banner impressos, conforme a ASA apresenta (Manual de Comunicação para mobilização social: uma estratégia de fortalecimento da ASA, 2012). O boletim pode ser de uma ou duas páginas A4, frente e verso. Já o banner deve medir 80 x 120 metros, conforme as orientações do programa. A escrita do candeeiro é feita, geralmente, pelo profissional que trabalha para a ASA. O layout do Candeeiro é padrão em todos os estados, sendo que o que o diferencia de um para outro é a cor e o nome do estado. Para citar alguns exemplos, no Ceará, é laranja; na Paraíba, avermelhado; no Piauí, é amarelo-esverdeado; e, em Pernambuco, é verde.

Pelas discussões de Holiday (2012), historicamente, a sistematização de experiências tem origem na América Latina. Ela surge do esforço local para “construir referenciais próprios de interpretação teórica a partir das condições particulares de nossa realidade” (HOLLIDAY, 2012, p. 35). Pelo que o pesquisador apresenta em seus estudos, essa forma de comunicar foi pensada a partir da necessidade de se ter bancos de dados e de se tornar visível o que era construído pelo povo, na tentativa de fortalecer suas lutas e perpetuar seus saberes. É importante enfatizar que, no contexto social da América Latina dos anos 1950, a população vivia grandes desafios em âmbito econômico, político e religioso-ideológico, como ressalta Holiday (2012). Para o autor, a vivência dessas dificuldades resultou em muitas histórias de lutas, entre elas na Revolução Cubana, conduzida pelo líder revolucionário da época, Fidel Castro. Como consequência desse contexto que antecedeu esse momento de luta, o povo vivia um sistema opressor, em que tudo era pensado e imposto de fora para dentro, como acontece de modo geral na sociedade desigual e capitalista. Esse fazer de sistematizar experiências surgiu das vivências e ações, configurando-se como estratégia para romper com o sistema opressor da época. Essa terminologia, conforme esclarece o autor (HOLLIDAY, 2007), é ampliada na medida em que é utilizada em âmbitos dos processos sociais e de educação popular. “Utilizamos o termo num sentido mais amplo. Referimo-nos não só a compilar e ordenar dados e informações, mas também a obter aprendizagens críticas a partir das nossas experiências” (HOLLIDAY, 2007, p. 16).

Nessa perspectiva, Holliday (2012) discute a sistematização de experiências de uma forma poética, como uma arte que, cuidadosamente, reescreve a história. Na mesma linha de entendimento de Holliday (2012), Milani (2005) aprofunda a sistematização de experiências como uma construção da história para torná-la conhecida e contribuir com outros processos. Ainda segundo Milani (2005), além de transmitir conhecimentos, a sistematização é uma estratégia para comunicar as ações e confrontar os conceitos para uma construção horizontal dos sentidos e o empoderamento das práticas para a transformação. É uma forma inclusive de “retro-alimentar a consciência dos atores da experiência [...]” (Milani, 2005, p. 11). Sistematizar, de acordo com as ideias de Milani (2005), é também uma forma de dialogar com os conceitos. “A sistematização permite relacionar teorias e práticas tanto da ação individual quanto da ação coletiva” (MILANI, 2005, p. 12). Desse modo, sistematizar experiências inclui provocar nos sujeitos envolvidos na experiência seu compromisso junto ao seu coletivo. “Ela pode ajudar a dar sentido aos inúmeros atos individualizados em um âmbito mais amplo e complexo da ação do grupo” (MILANI, 2005, p. 12). Souza (2000) diz que sistematizar é uma forma de fortalecer as experiências cotidianas. “A sistematização garante a apropriação da experiência pelos seus sujeitos, ao lhes possibilitar a formulação do sentido de sua ação”. (SOUZA, 2000, p. 35).

Partimos então da ideia de que a ASA produz o Candeeiro como uma estratégia de sistematizar experiências dos agricultores. A prática comunicacional de produção está relacionada mais com uma dimensão de divulgar a cultura do que com a busca da informação em si.

Em um contexto mais próximo da atualidade, Balem (2015) afirma que a sistematização de experiências “possibilita conhecer para além do que ela nos mostra. Também nos fornece algumas categorias de análise que servem de aprendizagem para serem aplicadas no desenvolvimento de experiências similares” (BALEM, 2015, p. 18). Balem (2015) cita características da sistematização de experiências que a qualifica como uma prática comunicacional, que, muito além do simples fato de ordenar, organizar e escrever sobre determinada ação, é importante material na construção do conhecimento, que passa necessariamente pelas reflexões do vivido, planejamento do que se quer viver e ampliação dos modos de vida, compondo, assim, um compêndio para a perpetuação da história. Dessas reflexões, é possível pensar a sistematização para além da divulgação de uma prática, podendo, assim, ser estabelecida como um processo político que, pelo fato de existir, deve cumprir um papel de transformação na vida das pessoas e na sociedade de modo geral.

A ideia da Articulação Semiárido Brasileiro – ASA, sobre a sistematização de experiências converge com as ideias desses autores. A ASA acredita que a sistematização é uma forma de transmitir os saberes, de tornar conhecidas histórias de vida, de desafios, de lutas, de conquistas e de convivência, inclusive. E as sistematizações “[...] potencializam a divulgação das iniciativas bem-sucedidas no campo da agricultura familiar”6. Dessa forma, na execução do P1+2, pelo que discute a Rede de Articulação Semiárido Brasileiro (2012), a sistematização de experiências se configura como um meio de fortalecer a ideia de que o Semiárido brasileiro é permeado por outras perspectivas, e não apenas por uma terra seca. Pelas discussões da rede, propagar essas questões se tornou importante para uma região considerada por outras do país como uma região desprovida de recursos necessários para se viver dignamente.

Discutimos neste trabalho, que o Candeeiro é um boletim produzido a partir da concepção teórica de sistematização de experiências adotadas pelo Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da Articulação Semiárido Brasileiro. Em Lagoa do Juá, foram produzidos dois boletins, em 2014. Um boletim sistematiza a experiência de Maria Irismar Vieira Linhares, conhecida como Mazinha, com o armazenamento de água em garrafas de plástico, e o outro sistematiza a experiência de previsões de chuva a partir dos sinais da natureza, contadas no impresso através das experiências de Maria Dalva do Nascimento, conhecida como Dalvinha, da localidade Lagoa do Juá, e de Seu Zé Júlio e Seu Mamede, de Vieira dos Carlos, do Assentamento Várzea do Mundaú, também no município de Itapipoca. Mas a questão é: por que em Lagoa do Juá os temas dos impressos foram a água, citada de forma direta nos dois Candeeiros sistematizados e produzidos? Nem todas as produções de Candeeiro falam de água, apesar de estarmos nos referindo ao semiárido nordestino, onde a água é escassa. Uma prova disso é um Candeeiro de 2016, produzido a partir da sistematização de uma experiência sobre a Casa de Sementes José Faustino de Sousa em Lagoinha, município de Itapipoca, distante cerca de 50 quilômetros de Lagoa do Juá. Outra Experiência sistematizada no Ceará foi a experiência da família de Moacir e Vera, da comunidade Purão, no município de Trairi. Uma experiência do quintal produtivo, que traz o título: “Tecnologia Social transformando vida: quintal de Seu Moacir. Na localidade do Sítio Veiga, no município de Quixadá/CE, foi sistematizado um Candeeiro com o título: “Comunidade Quilombola Veiga, conquistando direitos”. As publicações nos fazem perceber que a ASA parte de pontos climáticos, culturais, históricos e de plantio para conduzir a sistematização de experiências dos boletins. No entanto, fica a pergunta, por que em lagoa do Juá o tema dos dois boletins sistematizados foi a água?

Histórias e Estórias de Lagoa do Juá

Lagoa do Juá é habitada atualmente por cerca de 180 famílias7 que vivem da agricultura, com a produção de feijão, milho, mandioca, entre outras culturas, como a carnaúba. Prioriza uma alimentação saudável para as famílias, conforme estabelece o documento da comunidade (Manual, 2006). Nessa perspectiva, as famílias trabalham com hortaliças, criação de galinhas e outros pequenos animais. A população também produz remédios, sabão e xampus caseiros. Além de viverem da agricultura, muitos moradores são professores, outros pedreiros e outros vivem de trabalhos manuais, como o beneficiamento da palha da carnaúba8. Esta cultura, segundo Maria Irismar Vieira Linhares, 60 anos (entrevista, 2017), possibilita que as pessoas trabalhem durante quase todo o período do ano, pois, quando passa o inverno, geralmente no mês de julho, começa a colheita da palha da carnaúba, que, entre outros objetos, permite confeccionar vassouras, bolsas, chapéus, esteiras e urus (um tipo de bolsa grande comprida, para apanhar feijão) e se estende por todo o segundo semestre. As pessoas que não trabalham com a carnaúba, nem como pedreiro ou professor, fazem carvão, de forma que quase todos da comunidade desenvolvem atividades.

Quanto à origem do nome, tudo indica que surgiu do próprio contexto. Próximo à Lagoa do Juá existe outra localidade que se chama Juá. Já Lagoa do Juá dispõe de muitos juazeiros e uma grande lagoa, que, conforme as informações dos moradores, pode ter influenciado na escolha do nome. Seu Edmundo Nascimento (entrevista, 2017), ressalta que essa lagoa é a influência do nome: “Aqui acolá tem um pezinho de juazeiro, mas não é porque é cercado de madeira só de juá não’... Tem a lagoa que é bem aí, aí o velho que se situou aqui disse: ‘Aqui é bom’, aí botou o nome de Lagoa do Juá, porque tinha a lagoa, uns poucos de juá ao redor, aí botaram lagoa do juá e morre por Lagoa do Juá”9.

Durante as visitas às famílias, bem como nos momentos festivos e de reuniões na localidade, percebemos que há muito que se contar sobre a comunidade e que, certamente, precisaríamos de um livro inteiro para isso. Contudo, fizemos escolhas e trazemos alguns pontos, como: “a mística da água”; e “os encantos do cotidiano”, bem como alguns detalhes sobre as formas de trabalhos que predominam nessa localidade. Esses pontos são fundamentais para compreendermos o trabalho da ASA na produção dos boletins e a escolha do tema da água para as duas experiências sistematizadas.

A imersão em Lagoa do Juá nos deu a oportunidade de escutar e acompanhar vários acontecimentos da comunidade. Histórias e vivências locais constantemente ganhavam formas e sentidos ao serem narradas, pelos moradores e moradoras. No entanto, duas delas, que, de certa forma, envolvem mitos e “verdades”, podem ser classificadas como as que mais repercutiram em toda a trajetória. Uma se refere a um tanque de pedra ou caldeirão, a outra diz respeito a uma pedra, que a população local define como encantada.

É importante mencionar que, de acordo com a ASA, o tanque de pedra ou caldeirão “é uma tecnologia comum em áreas de serra ou onde existem lajedos, que funciona como área de captação da água de chuva. São fendas largas, barrocas ou buracos naturais, normalmente de granito”10. O tanque de pedra de Lagoa do Juá carrega as mesmas características apresentadas pela ASA, muito embora os sentidos para o povo da localidade sejam outros.

Das partilhas das experiências vivenciadas, foi possível constatarmos que Lagoa do Juá, assim como tantas outras comunidades, passou por grandes desafios relacionados à falta de água e que estes poderiam ser os motivos de tanta relevância dada ao tanque e, então, ao percebermos que se tratava de uma tecnologia de acúmulo de água, que beneficiou a comunidade em outros momentos de falta de recursos hídricos no local, nossa hipótese foi sendo confirmada, na mesma medida em que outras tantas foram surgindo, e então nós quisemos saber mais sobre aquele encanto, de modo que, nas visitas seguintes, em algumas casas onde entrávamos perguntávamos sobre a obra da natureza. Para nossa surpresa, todas as pessoas falaram do tanque, senão da mesma forma, pelo menos com o mesmo entusiasmo. Posteriormente, tivemos a oportunidade de conhecer o local, quando, em uma manhã de novembro de 2017, Maria Irismar Vieira Linhares nos acompanhou até a casa de Dona Maria Meire Severiano de Andrade, 55 anos, onde fica o tanque. De longe avistamos uma área ampla. Uma casa, uma cisterna, uma plantação de frutíferas e uma pedra enorme compunham o cenário. No topo da pedra, uma árvore de aspecto seco, de caule esbranquiçado e de frutos vermelhos enfeitava o local. Maria Meire Severiano de Andrade (entrevista, 2017) nos falou que chegara ao local havia uns trinta anos. Tudo era cercado de mato. Disse também que o tanque era mais raso e que aos poucos foi sendo aprofundado, à medida que a necessidade de água aumentava. “Quando a gente não tinha cisterna, bebia água daí... Era o jeito... A gente não tinha outra água... Tinha tempo aí que nós cavávamos a cacimba e a água era bem azulzinha”11. De acordo com a agricultora, o tanque tornou-se um objeto de especulação e pesquisa. Maria Meire Severiano de Andrade (entrevista, 2017) comenta que o interesse pelo tanque aumentou quando descobriram que as suas entranhas eram constituídas de ossos. Segundo ela, isso foi sendo descoberto, na medida em que escavavam cacimbas para acumular mais a produção de água. Ou seja, o tanque de pedra, que era visto, inicialmente, apenas como um reservatório de água passou a ser um objeto de pesquisa, de caráter arqueológico.

A pedra escrita é outro encanto de Lagoa do Juá. Aparentemente, trata-se de uma pedra comum, como qualquer outra. Um agregado sólido, calçado por rochas menores, em meio à vegetação caatinga. Se nós tivéssemos encontrado essa pedra em uma circunstância diferente, era assim que a definiria. Mas não estávamos diante de qualquer pedra. Aquela era a pedra que tinha sido intensamente descrita pela maior parte das pessoas com as quais tínhamos tido contato em Lagoa do Juá, como uma pedra encantada. Na segunda visita que fizemos à comunidade, em uma conversa com o Seu Edmundo Nascimento (entrevista, 2017), a segunda pessoa mais idosa da comunidade, a pedra ganhou destaque em meio a outros tantos assuntos. Era a segunda vez que escutávamos alguém falar da pedra porque, na primeira visita, ela também havia sido mencionada, mas não com a mesma intensidade, o que talvez tenha inibido a nossa sensibilidade para percebermos nas entrelinhas o que aquilo representaria. A pedra do letreiro, como Seu Edmundo a descreve, é cheia de mistérios. Barulho de moedas, cantigas e presença de animais. Os moradores a caracterizam como encantada. Pelo que Seu Edmundo Nascimento a apresenta, tem o letreiro como sinal do encantamento. Segundo seu Edmundo as letras aparecem apenas em períodos chuvosos. Ele afirma que não há compreensão do que está escrito, “mas é encantado” (Edmundo Nascimento, entrevista, 2017). Como não choveu tanto no período da pesquisa, não chegamos a ver o letreiro.

Assim como outras localidades da região, Lagoa do Juá tem todas as características semiáridas e poderia passar pelas mesmas necessidades quanto aos recursos hídricos. No entanto, as famílias têm driblado essa realidade. Pelo que é apresentado pelas pessoas, nada aconteceu por acaso, mas a partir de uma trajetória de lutas, desafios e conquistas. De acordo com o compartilhamento de suas experiências, a comunidade, que, no início de sua consolidação, dispunha de rios e lagos, também vivenciou momentos críticos com a falta de água, tendo que buscar bem distante. “Primeiro, a gente pegava água com o jumento, depois ia de bicicleta”12. Atualmente a localidade conta com a tecnologia de cisternas. Todas as famílias da localidade dispõem de uma cisterna de 16 mil litros de água para beber e realizar as atividades domésticas. Parte das famílias dispõe da cisterna de 52 mil litros de água para outras atividades, como o cultivo de hortaliças, frutíferas e dá de beber aos pequenos animais. Outras também guardam água em garrafas (costume da localidade que foi sistematizado no Candeeiro de Lagoa do Juá). A maioria das que foram entrevistadas busca água na lagoa durante o período de inverno, de modo que elas economizam a água que guardam nos reservatórios. O tanque de pedra também tem sido uma fonte de água para as labutas de casa e para dar de beber aos animais.

No período em que estivemos em Lagoa do Juá pudemos acompanhar várias atividades locais que representam o cotidiano de lazer da comunidade. Entre as atividades se destacaram: o futebol, a seresta de música ao vivo, festas religiosas católicas e almoços entre as famílias.

O Candeeiro e as experiências sistematizadas em Lagoa do Juá

Um dos Candeeiros produzidos em Lagoa do Juá traz a sistematização da experiência que apresenta o título: “Mazinha engarrafa tempo”.


Figuras 1 e 2
A experiência de Maria Irismar - frente e verso, respectivamente
Arquivos da comunidade.

Neste boletim, logo no início da primeira página, tem uma imagem que apresenta Mazinha com uma garrafa com água na mão e outras empilhadas ao redor da parede. O primeiro parágrafo faz um resumo da experiência de Maria Irismar Vieira Linhares (Mazinha). O texto conta que a prática foi adquirida a partir dos aprendizados em oficinas de capacitação e da necessidade do recurso. Entre aspas, ela conta: “Eu ouvi na capacitação que era preciso ter consciência do uso de água, então, pensei em armazenar mais e continuei juntando e enchendo garrafinhas”. Ainda no primeiro parágrafo consta que a comunidade enfrentou desafios com a escassez de água, tendo que buscar o recurso em uma localidade distante 30 minutos da comunidade. O segundo parágrafo apresenta a história da família de Maria Irismar, Mazinha e, por fim, ainda na frente do boletim, aprofunda sua trajetória, trazendo o que acontece no seu cotidiano, como o trabalho como agente comunitária de saúde e a paixão pela agricultura. No verso, três imagens mostram Maria Irismar e suas cisternas, uma com capacidade para armazenar 16 mil litros de água e a outra com capacidade para armazenar até 52 mil litros, bem como uma produção de ervas medicinais. O texto segue contando a experiência de Mazinha e os desafios da falta de terra para produzir. Apresenta ainda os benefícios de projetos sociais, como o de implementação de tecnologias para captação e armazenamento de água, o Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC) e o P1+2, além de outros projetos ambientais, e faz uma crítica à falta de políticas públicas que garantam acesso aos recursos necessários para se viver na localidade, como uma “política de reforma agrária”. A água nas garrafas apresentadas neste Candeeiro demonstra o valor desse líquido na comunidade. Mesmo tendo as cisternas, as experiências de Maria Irismar em guardar água nas garrafas, evidenciam o valor do recurso para os moradores e moradoras de Lagoa do Juá e do Nordeste.

O outro Candeeiro produzido em Lagoa do Juá traz a experiência de Maria Dalva do Nascimento, conhecida como Dalvinha, Zé Júlio e Mamede, com a previsão de chuva, cujo título é “Os segredos das chuvas: agricultores contam suas experiências de previsão de chuvas, a partir dos sinais da natureza”. Tanto a frente como o verso trazem imagens dos agricultores em meio ao cultivo do plantio agrícola. A primeira fotografia na frente, apresenta Dalvinha colhendo pimentão e a segunda, já no verso, mostra Zé Júlio segurando o cabo de uma enxada no meio da plantação, conforme as figuras 3 e 4


Figuras 3 e 4
“O Candeeiro”- os segredos da chuva - frente e verso
Arquivos da comunidade Lagoa do Juá.

Em relação ao texto, tanto na parte da frente quanto no verso, ele se refere à experiência anunciada no título, bem como às suas características, trajetória de vida e um resgate da cultura popular adquirida dos mais velhos. O primeiro parágrafo apresenta características comuns aos três agricultores como sendo importantes para decifrar os segredos da natureza: curiosidade, paciência e observação. O tópico revela ainda que essa experiência de reconhecimento dos sinais da natureza foi adquirida dos mais velhos e das experiências do cotidiano. Os dois parágrafos seguintes seguem contextualizando a experiência e a trajetória da agricultora e dos agricultores. Um trecho conta um pouco dessa história com as previsões, por meio da fala de Dalva: “Ontem, antes de nós se deitar, a Maria estava aqui assistindo televisão, e eu ali dentro. Aí, a Maria chegou e disse: ‘Eu nem te digo uma coisa... Era tanto dos besourinhos na luz, como no inverno’. Eu disse assim: ‘Maria, me diz uma coisa: e os besourinhos eram inhazados (tinham asas) ou eram peladinhos?’. Ela disse: ‘Inhazados’. Eu perguntei: ‘Eles tinha as asas pequenas?’. ‘Não, era formado já’. ‘Maria, eu disse, é sinal de chuva’”. O verso do boletim segue contando a história de previsão de chuva dos três. O penúltimo parágrafo traz a esperança dos agricultores e da agricultora de que o ano seguinte (2015) seria de chuva. Ao final da página, há uma exaltação da cultura local e da resistência do povo do Semiárido, como apresenta o trecho seguinte: “Todas essas experiências e muitas outras fazem parte da cultura dos agricultores e agricultoras do Semiárido e, assim como as tecnologias sociais, foram criadas por eles, a partir da observação da natureza, para que possam resistir no clima Semiárido, saber a hora certa de plantar”. Em quase todo o texto se fala de previsões de chuva, no entanto, sempre se ressaltando que a experiência é uma continuação dos saberes populares que são repassados de pais para filhos e dos conhecimentos adquiridos cotidianamente. Também se fala da tecnologia de armazenamento de água como uma prática pensada pelos agricultores e agricultoras e que são estrategicamente voltadas para facilitar a vida na região.

Considerações finais

Há uma discussão na ASA e nos estudos de Holliday (2012) de que a sistematização de experiências serve também para organizar e documentar aquilo que é construído. As pessoas de Lagoa do Juá que têm suas experiências sistematizadas guardam o boletim como um documento ali, no lugar mais sagrado. Tanto Dalvinha quanto Mazinha, para apresentar o Candeeiro, buscaram o boletim de dentro dos quartos. Os informativos estavam guardados em uma pasta dentro de uma sacola. O fato de estarem bem guardados significa que são valorizados e cuidados. Elas também apresentam a experiência como uma referência de sua história. “Aqui está minha experiência. Tá tudo escrito ai”13.

Evidente que a história e o cotidiano de Lagoa do Juá são mais amplos do que a relação com a água, mas como a ASA produziu apenas dois impressos nessa localidade, os temas publicados focaram na questão da água que permeia a origem da comunidade. Seria fundamental uma continuidade de produções de Candeeiros nessa localidade para sistematizar outras experiências de Lagoa Juá. Concluímos que a elaboração do Candeeiro é importante, mas o fato de não ter continuidade em Lagoa do Juá, não possibilita a ASA dá a concepção de sistematização de experiências um resultado mais efetivo, conforme problematizado pelos autores (MILANI, 2005; HOLLIDAY, 2012; BALEM, 2015).

Material suplementar
Referências
ASA. Manual de Comunicação para mobilização social: uma estratégia de fortalecimento da ASA. Recife-PE. 2012.
ASA. Relatório da Oficina de Comunicação: Recife PE, 25 e 26 de agosto de 2016.
BALEM, Tatiana Aparecida. Sistematização de experiências em fruticultura. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, Colégio Politécnico, Rede e-Tec Brasil, 2015. 62 p. : il.
Baudrillard, Jean. A sociedade de consumo. Portugal: Edições 70, 2008.
BROCHARDT, Viviane Santos. Comunicação popular na construção de políticas de acesso à água no Semiárido: a experiência da ASA. 2013. 231 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação)–Universidade de Brasília, Brasília, 2013.
Comunidade Lagoa do Juá. Manual, 2006.
GUBER, Rosana. El salvaje metropolitano: Reconstrucción del conocimiento social en el trabajo de campo. Buenos Aires: Paidós, 2004.
HOLLIDAY, Oscar Jara. A sistematização de Experiências: prática e teoria para outros mundos possíveis. Tradução de Luciana Gafrée e Sílvia Pivero; colaboração Elza Maria Fonseca Falkembach. – 1 Ed. Brasília, DF: CONTAG, 2012. 332 p.
HOLLIDAY, Oscar Jara. Sistematização de Experiências: aprender a dialogar com os processos. Grafilinha Edição: CIDAC. Rio de Janeiro, 2007.
MALINOWSKI, Bronislaw Kasper. Argonautas do pacífico ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. 3. ed. São Paulo: Abril, 1984.
MILANI, Carlos Sanchez et al. Roteiro de sistematização de práticas de desenvolvimento local. Salvador: CIAGS, 2005.
OLIVEIRA, Catarina Tereza Frias de. Comunicação, recepção e memória no Movimento Sem Terra: etnografia do assentamento Itapuí/RS. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC). 2014.
OLIVEIRA, Catarina Tereza Frias de. Direito a palavra: comunicação, cultura e mediações políticas - a experiência das rádios comunitárias. 1994. 234 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 1994.
SANCHEZ MILANI, C. et al. (Coords.). Roteiro de sistematização de práticas de desenvolvimento local. Salvador: CIAGS, 2005.
SOUZA, João Francisco de (2000). Sistematização. En Souza, F. de.; p. 33-35. FUMAGALLI, Dirceu; SANTOS, João Marcelo Pereira dos; BASUALDO, Maria Esther (Orgs). O que é sistematização? Uma pergunta. Diversas respostas. São Paulo, dez. 2000.
Notas
Notas
1 Este artigo é um recorte da dissertação de mestrado em comunicação e linguagens, do Programa de Pós Graduação em Comunicação, da Universidade Federal do Ceará (UFC), que tem como título “O CANDEEIRO COMO SISTEMATIZAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS: UMA ETNOGRAFIA DA CIRCULAÇÃO, DOS USOS E APROPRIAÇÕES EM LAGOA DO JUÁ”. Foi defendida em 14 de agosto de 2018. O trabalho completo está disponível em: http://repositorio.ufc.br/handle/riufc/36408. Acesso em: 08 de maio de 2020.
2 Edmundo Nascimento. Comunidade Lagoa do Juá. [Entrevista concedida a] Rosa da Conceição Nascimento. Lagoa do Juá, 2017.
3 Oficina de comunicação da ASA. Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. 25 e 26 de agosto de 2016.
4 A AP1MC é uma Associação criada legalmente em 2002 para apoiar e facilitar as ações da ASA. Informações disponíveis em: <http://www.asabrasil.org.br/sobre-nos/ap1mc> . Acesso em: 02 de agosto de 2017.
5 Fernanda Cruz Falcão. A comunicação como estratégia de mobilização social. [Entrevista concedida a] Rosa da Conceição Nascimento. Autora, Fortaleza, 2018.
6 Informações disponíveis em: < http://www.asabrasil.org.br/acoes/p1-2 >. Acesso em: 19 de abril de 2017.
7 LINHARES, Maria Irismar Vieira. Comunidade Lagoa do Juá. [Entrevista concedida a] Rosa da Conceição Nascimento. Autora, 2017
8 Idem
9 Idem
10 Informações disponíveis em <http://www.asabrasil.org.br/sobre-nos/ap1mc>. Acesso em: 05 de maio de 2018.
11 ANDRADE, Maria Meire Severiano de. Comunidade Lagoa do Juá [Entrevista concedida a] Rosa da Conceição Nascimento. Autora, 2017
12 Ibidem
13 Ibidem

Figuras 1 e 2
A experiência de Maria Irismar - frente e verso, respectivamente
Arquivos da comunidade.

Figuras 3 e 4
“O Candeeiro”- os segredos da chuva - frente e verso
Arquivos da comunidade Lagoa do Juá.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc