Resumo: Neste artigo, discutimos como as práticas culturais artesanais de Mariana (MG) se constituem em diálogo com a midiatização. Refletimos sobre como as mesclas com o midiático afetam as práticas culturais artesanais a partir de Canclini (2010, 2015) e Certeau (2009). Metodologicamente, foram feitos o registro fotográfico das produções artesanais expostas em 13 lojas de artesanato de Mariana (MG) e entrevistas narrativas com 18 artesãs da cidade, entre 2016 e 2018. Realizou-se a análise interpretativa deste material. A partir disso, percebemos que as práticas culturais artesanais se veem afetadas pelo midiático, de modo que evidenciam um tensionamento e uma reconfiguração de suas formas tradicionais e suas possibilidades criativas no contexto atual.
Palavras-chave:Práticas culturais artesanaisPráticas culturais artesanais,MidiatizaçãoMidiatização,Processos interacionaisProcessos interacionais,ConsumoConsumo.
Abstract: In this article, we discuss how the craft cultural practices of Mariana (MG) are constituted in dialogue with mediatization. We reflect on how the mixtures with the media affect the cultural practices with the contributions of Canclini (2010,2015) and Certeau (2009). Methodologically, we have taken photos of craft productions exhibited in 13 craft stores in Mariana (MG) and interviewed 18 artisans from the city between 2016 and 2018. The interpretative analysis of this material was carried out. From this, we realize that the cultural craft cultural practices are affected by the media, so that they show a tension and a reconfiguration of their traditional forms and their creative possibilities in the current context.
Keywords: Craft cultural practices, Mediatization, Interactional processes, Consumption.
Resumen: En este artículo, discutimos cómo las prácticas culturales artesanales de Mariana (MG) constituyen un diálogo con la mediatización. Reflexionamos sobre cómo las mezclas con los medios afectan las prácticas culturales de la artesanía desde Canclini (2010, 2015) y Certeau (2009). Metodológicamente, fue realizado el registro fotográfico de las producciones artesanales exhibidas en 13 tiendas de artesanías en Mariana (MG) y entrevistas narrativas con 18 artesanas en la ciudad entre los años 2016 y 2018. Se realizó un análisis interpretativo de este material. A partir de esto, se percibe que las prácticas culturales artesanales se ven afectadas por los medios, por lo que muestran una tensión y una reconfiguración de sus formas tradicionales y sus posibilidades creativas en el contexto actual.
Palabras clave: Prácticas culturales artesanales, Mediatización, Procesos de interacción, Consumo.
Artigos e Ensaios
Midiatização, consumo e práticas culturais artesanais1
Mediatization, consumption and craft cultural practices
Mediatización, consumo y prácticas culturales artesanales

Recepção: 10/05/2020
Aprovação: 26/05/2020
Se houve um tempo em que o artesanato era resultado de uma aprendizagem geracional e familiar, dependente de relações comunitárias para sua sobrevivência, hoje sua forma de transmissão e criação vêm sendo remodelada. O contato midiático (que há décadas se fazia presente pelas revistas de artesanato e programas de televisão investidos da lógica do “passo a passo”) se aprofunda, dada a presença e a configuração de redes sociais digitais como espaços de aprendizagem e intercâmbio cultural: as artesãs aprendem novas formas artesanais no YouTube, postam fotos e se inspiram em imagens compartilhadas em plataformas digitais como Facebook, Instagram e Pinterest.
Isso resulta de uma transformação na circulação e na constituição do repertório cultural social. As interações midiáticas (seja com mídias convencionais, seja com as redes sociais digitais) fazem parte da vida cotidiana também das artesãs e, cada vez mais, essa experiência comunicacional afeta tanto a dimensão produtiva do seu fazer quanto às suas habilidades criativas: o imaginário da cultura midiática vem se mesclando ao repertório cultural delas e aparecendo (direta e transversalmente) nas suas produções artesanais.
Diante disso, nesse artigo, problematizamos como a cultura midiática – emergente e fortalecida no cenário da midiatização – afeta as práticas culturais artesanais. Para esse estudo, debatemos como o contexto cultural contemporâneo, marcado pela midiatização, reconfigura uma relação tida como tradicional, a prática artesanal. Para tratá-las, selecionamos da produção artesanal realizada em Mariana (MG) – cidade histórica e turística da Região dos Inconfidentes – na qual observamos, durante os anos de 2016 e 2018, o aparecimento de produtos artesanais com apelo e vinculação à cultura midiática (seja pela incorporação de imagens e personagens para criar produtos artesanais, seja pela mobilização de saberes aprendidos pelas interações em redes sociais digitais). Neste estudo, mapeamos 13 lojas de artesanato na cidade, registramos e coletamos imagens de produtos artesanais relacionados ao tema e entrevistamos 18 artesãs responsáveis pelas peças.
Na produção artesanal observada, percebemos a utilização de referências midiáticas nos produtos artesanais, nos quais traços associados a personagens televisivos e cinematográficos (como os personagens infantis Minions, Peppa Pig e Galinha Pintadinha) são recriados sob a forma de toucas, almofadas e bonecos de pano. Além disso, notamos a incorporação de técnicas e saberes conquistados por meio de contatos midiáticos das artesãs via redes sociais digitais (seja por sites de compartilhamento de técnicas e moldes, seja por redes sociais digitais, no qual novas técnicas e produtos artesanais são divulgados). Além das referências às imagens e aos produtos da mídia, as artesãs relatam que sua experiência midiática afeta suas lógicas produtivas.
Em nossa abordagem, tratamos o artesanato como uma prática “limiar”, ou seja, um tipo de ação social que nos permite observar a mobilidade com que os saberes são articulados às práticas culturais, evidenciado sua porosidade e adaptabilidade (CANCLINI, 2010). As práticas artesanais são vistas como habituais, capazes de remeter ao tradicional e ao local, nascem das experiências cotidianas, são ajustáveis e fluidas; mas também incorporam traços de seu contexto de inscrição, enunciam em suas formas e no seu fazer uma maleabilidade constituída em sintonia com as transformações da vida social. Com esse entendimento, observamos como as práticas culturais artesanais de Mariana (MG) se constituem em diálogo e em tensão com o contexto contemporâneo marcado pela midiatização.
Assumir que os repertórios sociais e culturais se constituem tensionados e rearticulados pelas formas midiáticas não nos parece algo novo. O processo social de estruturação dos universos simbólicos é resultado de ações de continuidade e descontinuidade, numa articulação conflituosa e inovadora traçada entre o social e as relações intersubjetivas. A constituição dos repertórios culturais é afetada pelo imaginário simbólico emergente nessas relações e a forma de reprodução e compartilhamento desses repertórios se dá pela ação dos sujeitos, pela ação criativa e atualizadora dos sentidos do mundo e da vida social (BERGER; LUCKMANN, 2008). Tais ações reprodutivas envolvem continuidades e rupturas, criações e rearticulações, baseiam-se – enquanto inauguram e reafirmam – em tradições. As ações de continuidade e reprodução no campo da cultura estão investidas do entendimento da tradição como o âmbito onde se processam as seleções e as constituições de práticas institucionalizadas, capazes de permitir a identificação de um tempo, um espaço e um saber organizado de um grupo social (HOBSBAWN, 1984).
Seja pelo senso comum, seja pelas percepções puristas e essencialistas da cultura, as tradições são, em geral, associadas a saberes assentados e consolidados, que se insinuam como formas um tanto cristalizadas na vida social (CHARTIER, 1995). As tradições seriam um lugar seguro para um retorno ao passado: elas nos permitiriam identificar a historicidade de nossas práticas com o intuito de, nos processos de reprodução social, ao repetir-lhes, garantir-lhes a permanência. Isso seria razoável se não entendêssemos as tradições como fruto de um processo de fabricação social: em algum momento elas são instituídas e oferecê-las como dadas, naturais ou estabilizadas é antes um discurso de valor (baseado no conservadorismo) do que uma realidade advinda do social (HOBSBAWN, 1984; WILLIAMS, 2000).
A crítica a esse viés conservador da tradição é abundante nos estudos sobre a cultura popular e os processos de reprodução social: se desnaturalizamos os processos de reprodução e reconhecemos que são resultados de práticas e ações sociais, é preciso assumir sua dimensão social (portanto não natural) e a atualização como constitutiva dos processos reprodutivos (WILLIAMS, 2000; CHARTIER, 1995).
A partir dessa abordagem – que compreende os processos de reprodução social como processos de atualização – refletimos sobre as transformações e tensionamentos emergentes nas práticas culturais artesanais contemporâneas que, embora sejam comumente tidas como tradicionais e localizadas, vêm sendo afetadas e remodeladas no contexto da midiatização. Para isso, discutimos os entrecruzamentos das práticas culturais artesanais com a cultura midiática pela articulação de uma leitura contextual, que perceba a inscrição dessas práticas no contexto e nas lógicas da midiatização (BRAGA, 2006; HJARVARD, 2014), bem como analisamos os consumos midiáticos como atuações associadas a processos produtivos no âmbito cultural (CERTEAU, 2009; CANCLINI, 2010; 2015). Assim, analisamos as práticas culturais artesanais como ações articuladoras dos repertórios culturais, tensionados por referências, saberes e experiências sociais. Para avançarmos nessa discussão, comecemos problematizando a midiatização.
Há um contexto intensificado de trocas materiais e simbólicas, de fluxos de imagens, textos, sons, que têm promovido mudanças nas relações entre pessoas e instituições sociais. Essas transformações nas lógicas interacionais contemporâneas têm obrigado a Comunicação – bem como outras áreas de estudo – a reconfigurar a leitura do quadro social e das relações comunicativas (THOMPSON, 2018). Muitos autores têm se debruçado sobre este tema e proposto a ideia de midiatização como forma de abordar e estruturar um mapa conceitual capaz de auxiliar na compreensão do cenário atual. Nessa perspectiva, estamos vivendo uma profunda mutação no quadro social que não se remete somente ao uso ou incorporação de novas tecnologias, mas a uma alteração das processualidades sociais.
Martín-Barbero (2003) entende que estamos vivendo uma mudança epocal, na qual novas sensibilidades e formas de articular saberes têm emergido, de modo que não se trata apenas da incorporação de materiais e técnicas, mas uma transformação das habilidades e das maneiras de ser e estar no mundo. Tal perspectiva dialoga com a compreensão de Braga (2006), para quem vivemos um momento de reconfiguração das formas interacionais, no qual a midiatização vem se desenhando como o processo interacional de referência.
Essa consideração nos leva a perceber não somente a centralidade dos meios de comunicação e das novas tecnologias nas sociedades modernas, como também a problematização do seu papel na construção social da realidade. Mais do que tecnologias capazes de potencializar as interações comunicativas, há uma remodelação nas maneiras de se interagir (BRAGA, 2006). Braga ressalta que a midiatização não se refere apenas a mudanças nos modos de trocar mensagens ou produzir significados, mas, sobretudo, nos modos como a sociedade se organiza, gere suas relações e articula modos de fazer. Assim, a midiatização é um conceito que problematiza a inauguração de uma nova ambiência e outro padrão de condutas e comportamentos, no qual emergem novas formas perceptivas e organizadoras da realidade e, caso de especial interesse aqui neste artigo, remodela as práticas dos sujeitos na vida social.
Stig Hjarvard (2014) propõe a reflexão da midiatização como um processo social em vias de se institucionalizar, reconfigurando os demais campos sociais e instituições pela sua presença e tensionamento. Para ele, a midiatização é um fenômeno observável no cotidiano das sociedades contemporâneas, pois
[...] a condição midiatizada implica que os meios de comunicação tanto conectam as partes individuais da sociedade mais ampla, ao constituírem espaços públicos comuns para a reflexão sobre assuntos coletivos, quanto estão situados dentro das unidades menores da sociedade, por exemplo, o universo familiar (HJARVARD, 2014, p. 32).
Com isso, o conceito de midiatização surge sem uma pretensão totalizadora, mas com o intuito de iluminar o contexto contemporâneo de transformações nas relações sociais, nos quais a mídia emerge como instituição capaz de afetar e reorganizar as dinâmicas interacionais entre outras instituições e imiscui-se em práticas ordinárias da vida cotidiana.
A nosso ver, a midiatização está ancorada no entendimento de que o contexto atual é afetado por uma alteração nas formas interativas, bem como nas modalidades de ordenamento da vida social. Vivemos um momento social marcado por uma transformação epocal na forma como assimilamos, produzimos e processamos as maneiras de ser e estar no mundo (MARTÍN-BARBERO, 2006). Essas transformações afetam não só a maneira como lidamos com os desafios cotidianos, mas também como organizamos nossos conhecimentos, saberes, tradições e ordenamos nosso fazer. Nesse cenário, cabe pensar sobre as reconfigurações e reinvenções das práticas culturais artesanais, uma vez que elas são tecidas em uma nova ambiência, na qual vivenciamos novas formas interacionais.
Em nossa abordagem, compreendemos as práticas culturais como ações articuladas, envolvidas em complexas relações de consumo e produção. Nesse viés, o consumo cultural se torna residual e ativo em processos subsequentes, dada a sua incorporação, assimilação e transformação na composição das referências culturais dos sujeitos. Tal perspectiva, além de entender o consumo cultural como uma ação, compreende-o como capaz de reverberar em momentos produtivos mais difusos da constituição das práticas culturais, afetando as lógicas de criação e circulação do artesanato.
Isso se deve, principalmente, por compreendermos as produções artesanais como dotadas de um caráter modular: mais do que formas em si (observáveis através do estudo do artesanato e seus substratos), as práticas culturais artesanais dizem de maneiras de fazer – de “fazer com”– e maneiras de usar, constituindo-se como expressões de práticas culturais contemporâneas (CERTEAU, 2009). Optamos por pensá-las nesses termos porque assim sublinha-se a dimensão da ação, gesto produtivo dos sujeitos que vão, no seu cotidiano, recolhendo, assimilando, aprendendo, reproduzindo e criando maneiras de dizer do mundo em que vivem, do mundo que habitam.
Uma abordagem promissora para avançar nesse entendimento do consumo é a perspectiva de Certeau (2009), para quem os usos são capazes de articular saberes e, em ações combinatórias, fazer emergir o criativo, o plural. Para ele, as ações dos sujeitos desenham operações que permitem distinguir “maneiras de fazer” por possuírem estilos que resultam de atuações combinatórias singulares.
Se trouxermos essa discussão para a reflexão das práticas culturais artesanais, percebemos que as ações combinatórias das artesãs no processo de elaboração das formas culturais estão investidas de uma maneira de utilizar. Esses usos, pelo estilo das combinações que engendram e pela mobilização dos repertórios que entrecruzam, inauguram maneiras de fazer capazes de subverter os funcionamentos das atuações culturais já estabelecidos no próprio contexto. Tais fabricações tensionam a vinculação com um dito próprio. Na medida em que assumem uma dimensão de reinvenção, abrem a possibilidade de pensar os usos na sua potência de inventividade e criação: “[...] nesses usos, trata-se precisamente de reconhecer ‘ações’ (no sentido militar da palavra) que são a sua formalidade e sua inventividade próprias e que organizam em surdina o trabalho de formigas do consumo” (CERTEAU, 2009, p. 93).
Junto dessa dimensão de reinvenção e das tensões que viabilizam a ação combinatória das práticas culturais, conjugamos a provocação de Canclini (2010), para quem não é possível pensar num “nosso” original, puro ou essencial. Para ele, a ideia de pensar o consumo como ação localizada (um consumo do nosso, daquilo que nos pertence) foi sustentada por uma racionalidade econômica ou, acrescentaríamos aqui, uma posição política e estratégica de valorização; mas, no atual cenário, o nosso perde o sentido. Canclini acredita que em uma sociedade na qual as produções materiais e imateriais aparecem marcadas pela desterritorialização (tanto na sua constituição quanto nos repertórios que faz apelo), operar na lógica da dualidade (o nosso e o deles ou mesmo do passado e do presente, instituindo uma falsa separação entre o tradicional e o moderno) pode ser empobrecedor e pouco preciso dada a perda da fidelidade territorial das práticas culturais.
Para Canclini, a forma como consumimos – formas, discursos, imagens – está para além da assimilação, revelando um campo de produção e ação humana. O consumo serve essencialmente para pensar as nossas interlocuções, nossos repertórios e dizer da nossa experiência social. Por conta disso, as lógicas de consumo estruturadas na vida cotidiana atravessam a constituição dos repertórios culturais e revelam como as pessoas experimentam e vivenciam a cultura contemporânea. Isso nos leva a afirmar que os consumos travados nos contatos midiáticos não podem ser restritos à constituição de referências, pois se tornam participantes e estruturadores das formas de compreensão e ação na vida social.
Ainda com as contribuições de Canclini (2010), há um cenário de mudanças socioculturais que reverbera na maneira como entendemos as práticas de consumo. Para ele, é preciso pensar nos processos de reelaboração do próprio, no qual se discute a maneira como os cruzamentos com práticas e formas globalizadas afetam os bens, as mensagens e, poderíamos acrescentar, as práticas culturais artesanais.
Aquilo que consumimos toma parte em outras intervenções, diluindo-se e imiscuindo-se em práticas culturais de outra ordem mesmo que sejam vistas, tal como ocorre às práticas culturais artesanais, como distantes do mundo do consumo e das experiências midiáticas. Os consumos midiáticos atravessam as experiências dos sujeitos no mundo e afetam seus posicionamentos, suas criações e ações cotidianas.
Desta forma, ao tomarmos a midiatização como traço constitutivo do contemporâneo, os consumos culturais emergentes envolvem potências criativas e combinatórias, altera as dinâmicas interacionais – de modo que as práticas culturais, dada a sua constituição comunicacional, reverbera e atualiza essas transformações interacionais e os consumos culturais aí envolvidos.
Nesse quadro, quando recortamos as práticas culturais artesanais afetadas pela midiatização, temos a oportunidade de observar esse processo de ajustamento de nossas práticas cotidianas ao contexto contemporâneo e ao modo como organizamos os saberes. Como tais práticas são limiares, capazes de articular referências cruzadas e dar origem a ações imprevistas, elas seriam típicas da contemporaneidade, momento no qual “assim como não funciona a oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não estão onde estamos habituados a encontrá-los” (CANCLINI, 2015, p. 19).
O artesanal emerge então enquanto uma prática porosa e articuladora dos processos sociais e reforça a dimensão ativa e dinâmica de suas possibilidades de intervenção. Somente assim podemos observar sua vivacidade e dinamicidade: para além de seus substratos, olhá-la pelas atividades e trajetórias que engendra e acolhe na sua conformação é revelador dos processos culturais de atualização e reprodução cultural.
Ao assumirmos as práticas culturais artesanais como lugar privilegiado para observarmos as potências criativas, também passamos a nos dar conta das tensões envolvidas no âmbito cultural. Isto nos permite refletir sobre como se cruzam o contexto contemporâneo, a ambiência em vias de constituição no cenário da midiatização, os consumos culturais e as potências criativas emergentes dessas atuações.
Avancemos então rumo a compreensão das práticas culturais artesanais em Mariana (MG), buscando observá-las a partir do reconhecimento de que vivemos uma transformação epocal marcada pela midiatização ao mesmo tempo em que tomamos o consumo como chave para desvelarmos o processo de constituição e articulação das práticas culturais artesanais.
Este artigo se insere num quadro investigativo mais amplo, desenvolvido na pesquisa “Artesanato e cultura midiática: o atravessamento do midiático no artesanato marianense”. O objetivo dessa pesquisa foi observar os entrecruzamentos entre o moderno, o tradicional e o midiático nas práticas artesanais e analisar como tais mesclas afetam as dinâmicas criativas envolvidas nesse processo. Foram feitos o registro e a coleta de material fotográfico das produções artesanais expostas (518 imagens de peças e das lojas) em 13 lojas de artesanato de Mariana (MG) e entrevistas narrativas com 18 artesãs, entre 2016 e 2018. O material coletado, no qual observamos diferentes modalidades de afetação entre o midiático e o artesanal, foi organizado em cinco categorias: (1) peças de reprodução das formas midiáticas; (2) peças de incorporação de formas midiáticas retraduzidas em produtos artesanais; (3) peças que conjugam e mesclam traços de formas midiáticas, mas sem vinculação imediata; (4) peças geradas para atender a necessidades contemporâneas vinculadas à tecnologias midiáticas; e, (5) peças criadas a partir de aprendizagens midiatizadas.
As peças de reprodução das formas midiáticas são aquelas que capturam imagens midiáticas e as reconfiguram dentro das técnicas artesanais preservando-lhes as formas. Tais peças aproximam-se dos produtos licenciados e portadores de royalties ao mesmo tempo em que incorporam técnicas de produção artesanal. Além do sucesso em vendas, uma das entrevistadas, Tulipa2, explica que essas peças ajudam a atrair novos clientes pelo seu apelo visual: “As pessoas chegam para ver a Galinha Pintadinha, aí acham a galinha carijó, a galinha da Angola... acham bonito. É uma maneira de divulgar mais, né?”. Entre as peças desta categoria temos bonecos de Galinhas Pintadinhas, Peppas Pig, Chaves etc.

Já nas peças de incorporação de formas midiáticas retraduzidas em produtos artesanais, as imagens da cultura midiática são articuladas como ilustração a fim de agregar algum tipo de valor à peça. Há uma adaptabilidade maior das peças às práticas tradicionais, de modo que são incorporadas cores, símbolos e traços remissivos a personagens midiáticos com o intuito de estabelecer novas figurações e usos para essas imagens. Algumas entrevistadas explicam que se inspiram nos personagens favoritos de filhos e netos e se mantêm atentas aos personagens que têm mais sucesso na TV e no cinema. Quanto a isso, Angélica conta: “uma colega vendeu muito as touquinhas dos Minions, muitas mesmo! As crianças gostaram muito. Eu fiz touca das Tartarugas Ninja e da Minnie e vendi tudo. Agora, [a moda] é Pokémon. As meninas estão fazendo Pokebola e estão vendendo tudo”. Entre essas peças temos caixinhas de madeira do Homem Aranha, toucas de personagens infantis, entre outros.

As peças que conjugam e mesclam traços midiáticos, mas sem vinculação imediata são aquelas nas quais há a incorporação de traços aprendidos via contatos midiáticos. Nelas, as artesãs mesclam traços facilmente identificáveis de alguns personagens em outras aplicações não correlatas, incorporando esses repertórios no seu fazer. Violeta explica que procura inspiração e conhecimento para adornar suas peças: “Muitas vezes eu pego um detalhe, às vezes eu pego o biquinho, a crista, às vezes uma galinha, uma coruja... esses detalhes eu tiro da internet, das revistas”. Um dos exemplos mais marcante disso são os olhos arredondados da Galinha Pintadinha que vêm sendo reproduzidos em diversos tipos de galinhas e corujas, sem qualquer menção mais explícita à origem do traço.

Entre as peças geradas para atender a necessidades contemporâneas, notamos que há muitas peças que não faziam parte do repertório da produção artesanal, como capas protetoras de tablets e celulares, porta controle remoto, suportes para carregar celulares na rede elétrica, entre outros, que passam a ser produzidos em tecido, crochê, feltro, madeira, com material reciclável etc. Esse tipo de peça ajuda a manter o diálogo e estabelecer uma proximidade com as necessidades cotidianas advindas do uso das tecnologias.

E, por fim, as peças criadas a partir de aprendizagens midiatizadas são aquelas que foram elaboradas por meio de aprendizagens conquistadas pelo contato com outras artesãs por meio de redes sociais digitais como Pinterest, Facebook, Instagram e YouTube. Tais peças são incorporadas ao repertório da artesã e adaptadas ao seu estilo e saberes locais, sem configurarem-se como “cópias” ou mera apropriação de moldes. Amarilis recorda que sempre gostou muito de bonecas, mas não sabia fazê-las. Ela relata que aprendeu a costurá-las pelo contato com uma artesã de Pernambuco, pelo Facebook. Ao ser perguntada sobre como estabeleceu esse contato, ela respondeu: “Fuxicando no celular até encontrar”. As peças dessa categoria são dificilmente localizáveis sem um diálogo estreito com as artesãs. Tais peças são variadas, compreendendo produtos e técnicas, como bonecas de pano e pontos de crochê. No caso trazido na imagem abaixo (figura 5) temos um chinelo com miçangas, aprendido por uma artesã em um tutorial no YouTube.

A organização do material da pesquisa nessas categorias temáticas permitiu algumas inferências importantes para compreendermos as dinâmicas que atravessam o processo de produção artesanal. O repertório cultural das artesãs é tensionado pela cultura midiática, especialmente no que se refere às formas culturais que circulam e afetam o referencial imagético das artesãs. Todavia, não se trata somente de um contato pelas imagens e incorporação imagética desses elementos na elaboração do artesanato: as práticas culturais artesanais se veem atravessadas estruturalmente pela midiatização, tanto em suas dimensões criativas quanto produtivas. Notamos essa reconfiguração dos repertórios culturais ao perceber que as práticas de consumo midiático marcaram as trajetórias das artesãs e sinalizaram formas inusitadas de circulação e composição dos seus conhecimentos culturais, dando nova (e inesperada) vida às formas midiáticas.
Esses entrecruzamentos não devem ser vistos como uma perda dos referenciais culturais locais ou tradicionais: ao contrário disso, permitem perceber a porosidade do artesanato como prática cultural afinada com seu tempo e vinculada com as ações contextualizadas dos sujeitos que vivenciam essa prática. Coloca-se assim um tensionamento com relação a qualquer visão purista ou tradicionalista do artesanato: sendo uma prática “limiar”, ela se produz no jogo discursivo entre contexto e ação, trazendo as marcas das experiências das artesãs para seu interior.
Podemos afirmar ainda que não é possível observar a constituição do repertório cultural midiático somente pela lógica de um consumo como aquisição: os usos estendem-se para além daqueles dados pelas formas midiáticas, tornando-se potência criativa e inventiva pela ação combinatória dos sujeitos. As possibilidades do “fazer com” se tornam imprevistas diante dos usos ilimitados inaugurados pelas artesãs. Aliás, é salutar que essas incorporações nem sempre sejam notadas imediatamente: muitos dos cruzamentos vivenciados pela midiatização são incorporados estruturalmente na produção artesanal, o que impede uma identificação de pistas centradas em uma expectativa imagética e não processual.
Em nossa problematização, notamos que a prática cultural artesanal se realiza numa ação combinatória, na qual a cultura popular é mesclada e retrabalhada junto das referências midiáticas e do repertório cultural mais amplo, incorporando, em suas lógicas, traços de um contexto midiatizado. As práticas culturais encontram, assim, novos lugares para habitar a cultura, revelando que o midiático e o popular se encontram num jogo de conflito e reconfiguração de suas formas e suas possibilidades.
Entendemos que as nossas experiências midiáticas não podem ser restritas a um papel de aquisição de formas ou de reconhecimento de lógicas da mídia: elas passam a ser constituintes da maneira social de agir e elaborar significados. A lógica de circulação das formas midiáticas associada à prática artesanal nos instiga a pensar para além dos objetos, buscando apreender suas trajetórias, nos permitindo ver uma modalidade de afetação entre esses dois âmbitos. Partindo disso, compreendemos as práticas culturais como ações sintetizadoras das tensões de produção, reprodução, consumo.
Nesse cenário, as práticas culturais artesanais se veem reconfiguradas tanto no que se refere às suas possibilidades formais e discursivas quanto estruturais. Com relação às possibilidades formais e discursivas, observamos que elas se vinculam as formas e traços de personagens da cultura da mídia, estendendo aí seus tempos e suas possibilidades de diálogo com o contexto cultural. Já quanto às possibilidades estruturais, consideramos que isso se deve à afetação das aprendizagens e do processo de elaboração do artesanato ao incorporar traços e saberes advindos do contato midiático e pela abertura para uma aprendizagem construída via modalidades interacionais tecidas em redes sociais digitais.
Além disso, é importante destacar que as artesãs acessam e constituem, a partir das suas práticas culturais, novas e inesperadas formas de se relacionar com o midiático, subvertendo as lógicas corporativas e industriais ao perfazerem, pelas suas mesclas, trajetórias imprevistas pela cultura hegemônica, evidenciando as performatividades criativas e inventivas da cultura popular.
Envolvidas no contexto da midiatização, as artesãs, consumidoras/produtoras de formas midiáticas, articulam no artesanal esse par inseparável: produção e consumo se constituem num movimento criativo daquilo que emerge de suas feituras. O consumo e a produção estão o tempo todo implicados como um espaço de atuação cultural dos sujeitos no mundo, materializados em formas culturais que ocupam um lugar singular na cultura contemporânea: o fazer popular. As práticas culturais artesanais revelam então uma característica de nossa época: mostram-se constituídas pelas lógicas de consumo e produção, conduzidas e vividas em uma sociedade em midiatização.




