Resumo: O trabalho tem como objetivo apresentar os rappers vinculados ao movimento hip hop como líderes-comunicadores essenciais para a transformação dos territórios urbanos marginalizados. Para tanto, utiliza como principais pilares as teorias da Folkcomunicação e Estudos Culturais, tendo a pesquisa exploratória como metodologia. As reflexões apresentadas possibilitam pensar o papel dos rappers como agentes da comunicação popular que produzem identidades culturais, e que também promovem discursos que objetivam contra-argumentar textos midiáticos que promovem identidades proscritas. Com este artigo, pretendemos apresentar como as teorias de Luiz Beltrão são fundamentais para as pesquisas acerca das culturas populares contemporâneas.
Palavras-chave:FolkcomunicaçãoFolkcomunicação,Identidade culturalIdentidade cultural,RapRap.
Abstract: The aim of this paper is to present hip hop rappers as leaders-communicators that are esencial for the transformation of marginalized urban territories. To do so, it uses as main pillars the theories of Folkcommunication and Cultural Studies, with the exploratory research as methodology. The reflections presented allows to think about the role of rappers as agents of popular communication that produce cultural identities, and also promote discourses that aims to argue against media texts that promote proscribed identities. Through this paper, we purpose to present how the theories of Luiz Beltrão are fundamental for the researches about contemporary popular cultures.
Keywords: Folkcommunication, Cultural identity, Rap.
Resumen: El trabajo tiene como meta presentar a los raperos vinculados al movimiento hip hop, como líderes-comunicadores esenciales para la transformación de los territorios urbanos marginados. Para ello, utiliza como principales pilares de las teorías de la Folkcomunicación y Estudios Culturales, teniendo la investigación exploratoria como metodologia. Las reflexiones presentadas posibilitan pensar el papel de los raperos como agentes de la comunicación popular que producen identidades culturales, y que también promueven discursos que objetivan contra-argumentar textos mediáticos que promueven identidades proscritas. Con este artículo, pretendemos presentar cómo las teorías de Luiz Beltrão son fundamentales para las investigaciones acerca de las culturas populares contemporáneas.
Palabras clave: Folkcomunicación, Identidad cultural, Rap.
Artigos e Ensaios
Música e identidade cultural: O rap como a ferramenta de comunicação dos territórios urbanos marginalizados
Music and cultural identity: Rap as the communication tool for marginalized urban territories
Música y identidad cultural: El rap como la herramienta de comunicación de los territorios urbanos marginados

Recepção: 19/09/2018
Aprovação: 25/06/2019
O rap é um gênero musical que tem se apresentado como ferramenta de comunicação e identidade cultural política em diversos locais do mundo. Surgida nos Estados Unidos, a musicalidade, em poucos anos, se espalhou para os grandes centros urbanos, concentrando sua produção nos “territórios urbanos marginalizados” (BELTRÃO, 1980). Isso porque, como veremos neste trabalho, ela tem como objetivo ressaltar o cotidiano dos territórios marginalizados, bem como apresentar contranarrativas aos discursos dominantes que buscam apresentar esses locais, e seu povo, de maneira, muitas vezes, generalizada.
Posto assim, este trabalho tem como objetivo refletir sobre a produção do rap brasileiro como elemento cultural que propicia a construção e propagação de identidades culturais, as quais têm como intenção a resistência social, sobretudo dos negros, em sociedades pós-coloniais. Para tanto, tem como metodologia a pesquisa exploratória e análise de letras que revelam a identidade cultural do negro brasileiro.
Para as reflexões, utilizamos os conceitos da folkcomunicação, que nos propicia entender como os grupos marginalizados se comunicam, além dos estudos culturais, para entender a construção das identidades culturais, sobretudo, políticas.
Pretendemos, com este trabalho, apresentar como a musicalidade, oriunda dos territórios urbanos marginalizados, é elemento significativo para o diálogo social e para a construção ou reconstrução da identidade cultural do negro brasileiro. Neste sentido, a música se torna canal de mobilização e transformação social, quando realizada por um líder-comunicador que intenciona mudanças frente às desigualdades existentes nas sociedades pós-coloniais.
A musicalidade está entre as expressões culturais mais significativas da humanidade. Isso porque a música, além do ritmo e demais elementos que compõem a sonoridade, pode também apresentar a oralidade, elemento capaz de oferecer um sentido para além do entretenimento, ou seja, em muitos casos, torna-se um suporte para a comunicação humana. Como ressalta McLuhan (2001), a música possui um tipo de comunicação que é imediata, pois utiliza diversas formas de mídia em uma mesma comunicação. O autor cita como exemplo um disk-jockei que, ao se apresentar, utiliza códigos complementares como palavras cantadas, grunhido, gemidos, expressões corporais, dança etc.
Deste modo, entendemos a comunicação como um fenômeno no qual seres humanos interagem para efetivar a vida em sociedade. De acordo com Beltrão, a comunicação é “o conjunto específico de procedimentos, modalidades e meios de intercâmbio de informações, experiências, ideias e sentimentos essenciais à convivência e aperfeiçoamento das pessoas e instituições que compõem a sociedade” (1977, p. 57). Logo, a música, com todo o seu potencial informativo, torna-se um veículo fundamental para a comunicação social, sobretudo aquela oriunda do povo, dos grupos marginalizados, cujo acesso aos grandes veículos de comunicação é quase nulo, quando pensado a partir da possibilidade de expressarem suas culturas e/ou ideias sobre as coisas do mundo.
Portanto, a musicalidade que nos interessa neste trabalho é a originada nos territórios urbanos marginalizados, ou seja, os espaços existentes nos grandes centros urbanos e ocupados pelos “indivíduos marginais” (Park, 1937, apud Coulon, 1995). Cabe ressaltar que o indivíduo marginal, segundo os Estudos da Escola de Chicago e da Folkcomunicação, são aqueles imigrantes ou excluídos socialmente que, por não estarem totalmente inseridos na cultura dominante e por terem a sua cultura, a popular, tratada como inferior, acabam manipulando diferentes códigos e produzindo culturas híbridas (Canclini, 2008), capazes de oferecer identidades culturais.
Importa esclarecer que estamos tratando, especificamente, dos territórios urbanos marginalizados brasileiros e que o país, em sua longa história de colonização, imigrações e regime escravagista – sendo o último a abolir o sistema –, recebeu forte influência da cultura africana. Portanto, muitos desses territórios são ocupados, em sua maioria, por descendentes de africanos, o que faz da cultura popular brasileira um misto de elementos culturais. Sobre esse aspecto, Silva (2000, p. 87) esclarece que os processos de hibridização “nascem de relações conflituosas entre diferentes grupos nacionais, raciais ou étnicos. Eles estão ligados a histórias de ocupação, colonização e destruição. Trata-se, na maioria dos casos, de uma hibridização forçada”. Portanto, a cultura popular brasileira carrega características que buscam firmar identidades, apresentando elementos que, ao longo da história, foram perseguidos na tentativa dos grupos dominantes dizimarem o que não era oriundo da Europa. Deste modo, a cultura popular brasileira está recheada de conteúdos que se apresentam como comunicação popular, ou seja, que têm como objetivo comunicar situações vivenciadas pelos grupos marginais.
De acordo com Hall (2009, p. 246), “a cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada; [...]. É a arena do consentimento e da resistência”. Segundo o autor, a cultura popular deve ser entendida como as práticas do povo que provocam, em muitos casos, certa tensão com as culturas dominantes. Já Peruzzo (1995) destaca que o popular não deve ser visto como “sinônimo de revolucionário, tampouco democracia” (p. 34). Para tanto, ressalta que existem, pelo menos, três correntes de estudos sobre o popular, sendo: (1) o “nacional-popular”, que se refere às manifestações tradicionais de um povo; (2) “o popular”, que investiga a penetração e aceitação dos veículos de comunicação de massa junto aos grupos populares; e (3) a “comunicação popular”, que tem como objetivo a comunicação de resistência, como a apresentada por Hall (2009).
Com essas colocações, podemos entender que é através da comunicação popular que os indivíduos marginais encontram possibilidades para a construção de identidades. De acordo com Hall (2009), é, sobretudo, por meio da oralidade que indivíduos marginais se expressam. Assim, se fizermos um breve levantamento sobre os territórios brasileiros, perceberemos que a musicalidade sempre foi utilizada como ferramenta de comunicação sobre os problemas locais. De acordo com Villaça (2011), os conflitos ocorridos no início do século XX, entre os indivíduos marginais e as autoridades que pretendiam acabar com as favelas cariocas, fizeram emergir a produção de sambas que narravam os problemas enfrentados pelas populações socialmente desfavorecidas. Logo em seguida, letras de funk também trataram da mesma temática. Herschmann (1997) afirma que é a música o elemento mais presente nos momentos de lazer dos jovens marginalizados e que, muitas vezes, é por meio da musicalidade que esses jovens intervêm criticamente sobre as questões sociais que enfrentam. Essas afirmações vão ao encontro da história do gênero musical que vamos trabalhar a seguir, o hip hop, pois é um elemento cultural que objetiva a comunicação dos indivíduos marginais com as diversas camadas sociais.
O hip hop tem suas origens na Jamaica, onde, por volta dos anos 1960, quando o país passava por problemas econômicos, grupos se reuniam em espaços públicos para discursar sobre os problemas locais. Na Jamaica, líderes-comunicadores, localmente chamados de toastes – indivíduo que discursa – se dirigiam a praças, munidos de grandes caixas de som – sound systems – e microfones. Ao ritmo de uma batida constante, cantavam sobre os problemas locais, chamando a atenção do governo para tais questões em tom de protesto, ação que mais tarde passou a ser chamada de rap, ou seja, rythm and poetry.
Com os problemas jamaicanos, muitos indivíduos imigraram para os EUA. Foi no Bronx, gueto nova-iorquino, que o rap se estabeleceu e, pouco depois, em 1974, passou a fazer parte de um novo movimento cunhado por Áfrika Bambaataa, o hip hop (Postali, 2011). Essa manifestação tem como principal característica o uso de práticas culturais no lugar da violência e criminalidade. Assim, é por meio de elementos como o rap, o grafite, o DJ, o break, entre outros, que o hip hop busca passar uma mensagem de paz e união entre os jovens marginalizados. Cabe ressaltar que Áfrika Bambaataa criou o que chamou de quinto elemento, o conhecimento, pois o hip hop passou a também ser utilizado por grupos que intencionavam promover a criminalidade. Deste modo, o conhecimento se refere à postura que um participante do movimento tem que assumir, ou seja, de acordo com a Universal Zulu Nation, organização que deu origem ao hip hop, a manifestação deve servir como forma de reflexão, conhecimento, igualdade, paz, amor, respeito e responsabilidade, tendo a união dos jovens como principal foco.
Com a disseminação da cultura estadunidense, o hip hop passou a ser praticado em diferentes países, no entanto, apesar da semelhança entre o uso de técnicas corporais, vestimentas e aparelhos tecnológicos, as narrativas se adequam aos problemas enfrentados pelos indivíduos marginais de acordo com suas especificidades (Postali, 2011). No Brasil, Herschmann (1997, p. 82) destaca que “o funk e o hip hop vêm se apresentando como uma possibilidade de encenação da dura realidade desses jovens e estabelecendo territórios que têm como referência os registros de cor e de classe”. Concordamos quanto à colocação do autor, mas devemos ressaltar que, nos últimos anos, o funk que discursa sobre problemas sociais passou a ser pouco valorizado, de modo que jovens brancos, de classe média, se apropriaram para produzir narrativas que discursam sobre sexo, amor e consumo.
Posto assim, no Brasil, o hip hop é um elemento cultural que se encaixa na ideia de comunicação popular, pois tem como principal função trabalhar as questões sociais enfrentadas pelos grupos urbanos marginalizados. Rose (1997, p. 192) esclarece que o hip hop brasileiro é uma “expressão cultural da diáspora africana”, que busca negociar a experiência enfrentada pelos negros na marginalização, os quais tiveram suas oportunidades sociais brutalmente excluídas e que enfrentaram/enfrentam a opressão decorrente da cultura dominante. De fato, ao realizarmos um levantamento dos nomes mais expressivos do rap nacional e de diferentes localidades, tais como Afro-X, Carol Conka, Criolo, Dexter, Edi Rock, Emicida, Gog, Helião, Mano Brown, MV Bill, Negra Li, Rappin Hood, Sabotage, entre outros, percebemos que todos possuem discursos voltados para os problemas enfrentados pelos grupos marginalizados, sobretudo, as questões que envolvem o negro. Os territórios urbanos marginalizados em que os rappers vivem ou viveram parte da vida são frequentemente citados nas letras, que incluem mensagens de paz, união e conhecimento, obedecendo à filosofia do movimento hip hop. Criolo, especialmente, cita com frequência situações do bairro paulistano Grajaú, tendo a canção Grajauex, do álbum Nó na Orelha, dedicada exclusivamente às questões locais.
A partir dessas considerações, passaremos a abordar o hip hop como elemento que comunica identidades culturais, construídas pelos líderes-comunicadores.
De acordo com os Estudos Culturais, as construções identitárias podem se desenvolver tanto simbolicamente como conceitualmente e esse processo ocorre, especialmente, quando identidades estão em conflito. Por meio de apelos simbólicos, as identidades buscam estabelecer reivindicações através de apelo a precedentes históricos com a finalidade de reafirmar características que podem, por sua vez, produzir novas identidades. Como ressalta Woodward (2009, p. 12), revisar o passado e redescobri-lo é “parte do processo de construção da identidade que está ocorrendo neste exato momento e que, ao que parece, é caracterizado por conflito, contestação e uma possível crise”. Na perspectiva da autora, as novas identidades podem ser desestabilizadas e também desestabilizadoras e devem ser compreendidas a partir do conceito de diáspora, ou seja, por meio da ideia de que elas não possuem uma “pátria” e que, portanto, devem ser assimiladas a partir de várias fontes, o que resulta em culturas híbridas.
Por esse motivo, Hall (2009) nos chama a atenção para o fato de que as identidades não devem ser entendidas a partir de uma visão essencialista, mas sim estratégica, pois têm como intenção não afirmar o que “nós somos”, mas o que “nos tornamos”. Por esse motivo, segundo o autor, a construção identitária requer o uso de recursos da história, da cultura, da linguagem etc.
A partir dessas colocações, é possível pensar o hip hop como um elemento cultural que oferece a identidade do negro em diáspora. O uso de roupas por membros do movimento, tais como calças largas, bonés, correntes e tênis de modelos específicos; e a forma como discursam, gesticulam e se referem às questões sociais, convergindo na menção a sujeitos ancestrais que marcaram a luta dos negros pela liberdade e justiça social, bem como na referência a eventos históricos, territórios marginalizados, entre outros, apontam o hip hop como uma forma de identidade construída a partir das experiências e intenções, sobretudo, do povo negro.
Se pensarmos essas afirmações a partir de rappers brasileiros, mas de diferentes localidades, perceberemos proximidades entre as narrativas que abordam questões comuns aos negros. Nas letras, é constante a menção a elementos da religiosidade e mitologia africana, como a força dos orixás, bem como nomes importantes da luta dos negros em diáspora em diversos países, tais como Muhammad Ali, Martin Luther King Jr., Malcolm X, Fela, Zumbi dos Palmares, entre outros. O orgulho de pertencer ao grupo negro, bem como às suas raízes, são temas frequentes.
No final da canção Sucrilhos², com o acompanhamento do atabaque, típico instrumento africano utilizado em eventos religiosos de Candomblé e Umbanda, o rapper Criolo canta “Eu, tenho orgulho da minha cor / do meu cabelo e do meu nariz / sou assim / sou feliz / índio, caboclo, cafuso, criolo / sou brasileiro”, fazendo referência às suas raízes e à miscigenação comum do brasileiro. Do mesmo modo, ao apresentar-se com o músico Lenine, Gog pede ao compositor pernambucano que cante a sua descendência nagô, na canção A Ponte³, que discursa sobre os problemas da corrupção em Brasília, local onde vive. E em Carta a Mãe África⁴, discorre sobre os problemas enfrentados pelos negros no Brasil.
O rapper Emicida inclui na canção Baiana⁵, com participação de Caetano Veloso, referências à “cor nagô”, fazendo alusão à origem de muitos negros brasileiros. Sobre a cultura africana, cita elementos da mitologia iorubá, tais como os orixás, o axé, o banho de pipoca e os colares de conchinhas. Com relação às personalidades brasileiras, menciona a cantora Clementina de Jesus e o pintor baiano Raimundo de Oliveira.
Assim, como ressalta Woodward (2009), o intento está em afirmar a identidade cultural de indivíduos que pertencem a um grupo social oprimido ou marginalizado. Ou seja, a construção identitária torna-se um instrumento de mobilização política. Como coloca Herschmann (1997, p. 27), o funk e o hip hop são musicalidades nada tradicionais e, por meio delas, “os jovens procuram estabelecer novas formas de identidades sem diversidades conflitantes. Ao contrário, a música é sobre a desarticulação da identidade nacional e do cidadão local”. Com essas colocações, torna-se possível pensar que as identidades são produzidas por líderes-comunicadores.
De acordo com Beltrão (1980), os líderes-comunicadores são agentes formadores de opinião que, a partir das mensagens disponíveis nos meios de comunicação de massa, se apropriam desses conteúdos transformando-os em novas mensagens, adequadas ao público para o qual se destinam. Partindo desses conceitos, entendemos o rapper como um dos principais líderes-comunicadores dos territórios urbanos marginalizados, pois é ele quem, através da musicalidade, consegue se comunicar de forma efetiva com o seu público, considerando a comunicação, como apresentamos anteriormente a partir de Beltrão (1977), um processo que reflete a ideia de comunhão, de comunidade. Nesse sentido, os rappers, líderes-comunicadores, transformam as mensagens veiculadas pelos meios de comunicação dominantes, de modo que o seu público possa entender, e mais, carregam mensagens de conteúdos que refletem os anseios do próprio grupo, muitas vezes produzindo narrativas que discordam das mensagens dominantes. Como bem coloca Hall (2003), é na oralidade, na contranarrativa, em especial, no vocabulário musical, que o povo da diáspora negra tem encontrado sua vida cultural.
É importante destacar que, no Brasil, muitos dos conteúdos midiáticos que abordam o hip hop ou, especificamente, o rap, o expõem de maneira generalista, produzindo uma ideia contrária à proposta do movimento. Herschmann (2000) nos lembra de que, na década de 1990, quando o movimento chegou com força no país, apresentando seu viés discursivo, os conteúdos midiáticos o apresentavam relacionando-o à violência.
Para o autor, um evento decisivo para essa assimilação foi o episódio dos arrastões ocorridos no ano de 1992, na cidade do Rio de Janeiro. Herschmann (2000) esclarece que a mídia tratou os arrastões em tom de histeria, estigmatizando a imagem dos jovens marginalizados, sobretudo, os ligados ao movimento hip hop. A partir desse período, criou-se uma imagem distorcida sobre o movimento, o distanciando de sua essência que é justamente a transformação social, a conscientização no lugar da violência. Por esse motivo, e de modo geral, o hip hop ainda é incompreendido em diversas esferas da sociedade brasileira.
Esse tratamento midiático resulta no que Arce (1997, p. 162) chama de identidades proscritas, “aquelas formas de identificação rejeitadas pelos setores dominantes, nas quais os membros dos grupos ou das redes simbólicas prescritas são objeto de caracterizações pejorativas, muitas vezes, persecutórias”. Ou seja, há também a construção de identidades que buscam minar identidades culturais, sobretudo, com viés político. Essa construção ocorre através de representações sociais que têm como finalidade apresentar o Outro como inferior, de forma estereotipada. Trata-se, portanto, de um mecanismo de poder presente nas sociedades.
Por esse motivo, um dos objetivos do hip hop é justamente combater essas identidades forjadas, apresentando uma contranarrativa aos discursos dominantes que têm como intenção produzir identidades proscritas. O ano de 1988 marcou o início do discurso crítico do hip hop no Brasil, com o lançamento da coletânea Homens da Lei, com músicas de nomes como Thaíde & Dj Hum, MC/Dj Jack, Código 13, entre outros que se tornaram fundamentais para a disseminação da manifestação em terras brasileiras. A coletânea incluiu diversas canções que abordam a ação da polícia paulistana nos espaços marginalizados, bem como a injustiça social enfrentada pelos indivíduos marginais, como apresenta a canção Homens da Lei (Postali, 2011).
Posto assim, os líderes-comunicadores ocupam o papel também de agentes da comunicação comunitária, considerando a comunidade como o local onde as relações sociais entre indivíduos de um mesmo grupo social se originam, sendo um ambiente de união entre os sujeitos, o que resulta no espírito de fraternidade e convivência (Paiva, 1998). Aqui, podemos entender que muitos territórios urbanos marginalizados se caracterizam como ambientes que refletem a ideia de comunidade, sobretudo, os locais onde o hip hop é praticado em sua essência.
Cabe ressaltar que, em muitos locais, o hip hop atua além das práticas artísticas, através dos chamados núcleos de cultura⁶ ou “posses”, que oferecem atividades para a comunidade, como: oficinas para a produção de artigos para comercialização, palestras sobre conscientização social, eventos beneficentes e outros de socialização, campeonatos esportivos etc.
Portanto, os indivíduos marginais envolvidos com o movimento hip hop, sobretudo os rappers que ocupam o papel de porta-vozes do movimento e da comunidade, caracterizam-se como líderes-comunicadores, a partir do conceito cunhado por Beltrão (1980). Diante dessas colocações, parece acertado compreender que os líderes-comunicadores são indivíduos essenciais para a vida nos espaços urbanos marginalizados contemporâneos, e que o hip hop é uma ferramenta de comunicação que auxilia a ação desses agentes na luta pela transformação do local.
A partir das discussões apontadas neste trabalho, que teve a Folkcomunicação e os Estudos Culturais como pilares para as reflexões, entendemos os líderes-comunicadores dos territórios urbanos marginalizados como agentes fundamentais para a vida em comunidade. Sabemos que as chamadas favelas e periferias urbanas são marcadas por misérias, violências e diversas outras fraturas decorrentes da ineficiência do poder público brasileiro e também das narrativas midiáticas que insistem em representar esses espaços como os vilões da vida em sociedade, apresentando, de modo geral, apenas os problemas existentes nesses locais.
Cabe, portanto, à própria comunidade, se unir para resolver aquilo que é possível. Assim, muitos núcleos de cultura acabam por ocupar o que seria o papel do Estado, dando diversas assistências à população, da educação à segurança e saúde. Formados por líderes-comunicadores, em muitos territórios, os núcleos são sedes do movimento hip hop que, através dessas organizações, dissemina a sua ideologia.
Os rappers, que a nosso ver são os principais agentes do movimento, promovem a comunicação popular entre a sua comunidade; criam identidades que fortalecem o grupo negro e produzem contranarrativas para minar os discursos dominantes que, de algum modo, acabam por criar identidades proscritas sobre o seu grupo. Ou seja, concluímos que os rappers comprovam, na contemporaneidade, as teorias de Luiz Beltrão, tão caras aos estudos sobre a cultura popular.