Artigos e Ensaios

Recepção: 07/11/2018
Aprovação: 05/06/2019
DOI: https://doi.org/10.5212/RIF.v.17.i38.0009
Resumo: O presente trabalho visou analisar como o projeto Cordel Animado! contribui para a educação infantil, a partir de uma mídia popular nordestina, o cordel, vinculada a uma mídia global, a internet, gerando um produto folkmidiático. O projeto estudado, de autoria das irmãs pernambucanas Mariane Bigio e Milla Bigio, é veiculado, desde 2014, através de blog pessoal e de canal no youtube. Neles são colocadas narrativas de cordéis infantis e de cunho educativo construídas com música, sonoplastia e interpretação teatral. Para a feitura da pesquisa, utilizamos como bases teóricas principais a Teoria da Folkcomunicação, da Educomunicação e da Educação Popular. A metodologia de cunho qualitativo se configurou nas etapas de pesquisa bibliográfica, bem como nas de análise e observação das práticas educativas e comunicacionais dos conteúdos disponíveis na internet. A partir deste aporte teórico- metodológico, concluímos que o projeto político-pedagógico de Cordel Animado! apoia-se em princípios democráticos, inclusivos e populares, fomentando a formação cidadã das crianças.
Palavras-chave: Cordel, Educação, Folkomunicação, Cultura, Cidadania.
Abstract: The present work aimed to analyze how the Cordel Animado! contributes to the education of children, from a popular northeastern media, the cordel, linked to a global media, the internet, generating a folkmidiático product. The project studied, written by Mariane Bigio and Milla Bigio from Pernambuco, has been published since 2014 through a personal blog and a YouTube channel. In them are written narratives of children's cords and educational stuff built with music, sound and theatrical interpretation. To make the research, we use as main theoretical bases the Theory of Folkcommunication, Educommunication and Popular Education. The qualitative methodology was configured in the stages of bibliographic research, as well as in the analysis and observation of the educational and communicational practices of the contents available on the internet. From this theoretical-methodological contribution, we conclude that the political-pedagogical project of Cordel Animado! is based on democratic, inclusive and popular principles, fostering children's citizenship education.
Keywords: Cordel, Education, Folkommunication, Culture, Citizenship.
Resumen: El presente trabajo pretendió analizar cómo el proyecto Cordel Animado! contribuye a la educación infantil, a partir de uma media popular nordestina, el cordel, vinculada a uma media global, la internet, generando un produto folkmidiático. El proyeto estudiado, de autoría de las hermanas pernambucanas Mariane Bigio y Milla Bigio, es vehiculado, desde 2014, a través de blog personal y de canal en Youtube. En ellos se colocan narrativas de cordeles infantiles y de cuño educativo construídos com música, sueñoplastia e interpretación teatral. Para la elaboración de la investigación, utilizamos como bases teóricas principales la Teoría de la Folkcomunicación, la Educomunicación y la Educación Popular. La metodologia de cuño cualitativo se configuró en las etapas de investigación bibliográfica, así como em las de análisis y observación de las prácticas educativas y comunicacionales de los contenidos disponibles em Internet. A partir de este aporte teórico-metodológico, concluímos que el proyecto político-pedagógico de Cordel Animado! se apoya em princípios democráticos, inclusivos y populares, fomentando la formación ciudadana de los niños.
Palabras clave: Cordel, Educación, Folkcomunicación, Cultura, Ciudadanía.
Introdução
O uso das tecnologias da informação e comunicação, ligadas à rede mundial de computadores, interfere nas formas de se relacionar em sociedade e nas percepções de ser e estar no mundo das pessoas. Isso porque, o espaço virtual assume, juntamente com outras instituições, como escola e família, lugar de circulação e produção de bens simbólicos, bem como de discussão de questões sociais. Por este viés, o uso da internet e das novas tecnologias, quando combinado a um projeto político pedagógico que incentive a reflexão da audiência, pode colaborar com o processo educativo de uma maneira complementar. Interessante ressaltar que, neste trabalho, a educação é entendida como possível promotora da transformação e da emancipação sociais, contrapondo-se à ideia de reprodutora do status quo.
Segundo Schaun (2002), no contexto atual, adjetivado como Era da Informação, este diálogo entre os campos da comunicação e da educação deve fazer parte do processo de ensino-aprendizagem. Isso porque as inúmeras informações que advêm das mídias, em nível global, nacional e local, precisam ser contextualizadas culturalmente, conectadas e reelaboradas para gerarem conhecimentos aplicáveis à realidade dos educandos e configurarem-se como arma de libertação social. Além disso, a internet e os meios de comunicação social ofertam uma pluralidade de pontos de vista sobre os acontecimentos e conhecimentos, que a escola, sozinha, não daria conta. Dessa forma, faz parte do processo educativo, seja ele formal ou não-formal, no contexto contemporâneo, atentar para o uso pedagógico que se faz da informação e das redes/canais sociais de veiculação, já que o manuseio das tecnologias e dos conteúdos transmitidos por essas, quando realizado de maneira crítica, pode fomentar a construção de conhecimentos, bem como a formação cidadã dos educandos (CITELLI E COSTA, 2011). Em outras palavras, compreendendo que informação e conhecimento são os motes de ambos os campos e que tanto o processo educativo como o comunicativo só se completam quando desembocam no âmbito da cultura, é possível enxergar a pertinência dos projetos que utilizam a comunicação como mediação educacional.
A partir do exposto, o presente trabalho buscou analisar, sob perspectiva construtivista de ensino-aprendizagem, como o Projeto Cordel Animado! contribui para a educação infantil, por meio de uma mídia popular nordestina, o cordel, vinculada a uma mídia global, a internet, gerando um produto folkmidiático. O Projeto estudado, de autoria das produtoras culturais Mariane Bigio e Milla Bigio, é veiculado, desde o segundo semestre de 2014, através de blog pessoal e de canal no youtube. Neles são colocadas narrativas de cordéis infantis e de cunho educativo, construídas com música, sonoplastia e interpretação teatral. Além de socializarem seu trabalho na internet, as cordelistas também realizam shows presenciais. De acordo com as autoras, Cordel Animado! busca promover a valorização da Literatura de Cordel e o apreço pela leitura, mesclando a diversão ao aprendizado das crianças.
Para analisar como o Projeto contribui para o processo educativo infantil, utilizamos como bases teóricas principais a Teoria da Folkcomunicação e suas novas abrangências, que caracteriza o estudo das práticas comunicativas das camadas populares- materializadas, neste estudo, nos cordéis nordestinos- em negociação com as práticas comunicativas globais, bem como a Educomunicação, que, dentre outras questões, busca compreender como os instrumentos de comunicação podem colaborar para o processo de ensino-aprendizagem. Além disso, a pedagogia construtivista de Paulo Freire ofertou os subsídios teóricos que permitiram a integralização das duas teorias acima mencionadas. Combinada ao aporte teórico, a análise de cunho qualitativo buscou identificar nas práticas educativas e comunicacionais, bem como no teor das mensagens dos conteúdos disponíveis em Cordel Animado!, a perspectiva pedagógica latente nos produtos e os aprendizados que eles propiciam ao público infantil.
Cordel Animado!: Projeto de cunho folkmidiático
De acordo com Santos (2001), o mundo está conectado e cada vez mais interdependente. Uma crise financeira ou ambiental em determinado setor de serviços no sul da Oceania pode atingir diretamente o nordeste da América Latina. Isso porque as empresas filiais e os blocos econômicos espalhados pelo mundo fragmentam cada vez mais o trabalho produtivo, em busca de mão-de-obra e matérias-primas mais baratas. Nas mídias, circulam os imperativos a consumir: músicas mais ouvidas, equipamentos de última geração, roupas de grifes internacionais. Produtos substituídos nas prateleiras na mesma velocidade com que chegam os novos. Descartabilidade e instantaneidade à serviço do lucro (BAUMAN, 2011). Dessa forma, de acordo com Chauí (2006), a globalização, sob o mote de seu provedor, o capital, legitima o modo de produção em voga, entranhando suas crenças, valores e dogmas no Planeta, através das tecnologias da informação e comunicação.
Em contrapartida, segundo Trigueiro (2008), as forças contra-hegemônicas, ao entrarem em contato com os bens simbólicos e materiais hegemônicos, recriam sua cultura, ora fortalecendo suas tradições, ora se apropriando e ressignificando o que lhes chega de novo. O processo de negociação está sempre presente no conflito entre as formas de pensar o mundo e estar nele das camadas populares e das elites. Assim, são gerados o que os teóricos da Folkcomunicação chamam de produtos folkmidiáticos:
Essas aproximações, das culturas populares e midiáticas no mundo globalizado são cada vez mais intensas. A essas cumplicidades culturais, geradas em campos híbridos, passei a chamar de Produtos Folkmidiáticos. Nesses campos estratégicos é que se dão as negociações dialéticas, conflituosas e paradoxais mais importantes no mundo globalizado. São campos operados por diferentes instâncias de negociações que se deslocam em redes capilares de comunicação comunitária interligadas às redes midiáticas. Ou seja, é nesses campos híbridos, folkcomunicacionais que se dão as mediações entre as culturas midiáticas e populares resultando em novos produtos de bens culturais de consumo. (TRIGUEIRO, 2005, p.1).
De acordo com Canclini (1996), essa hibridização cultural, a que Trigueiro (2005) chama de produto folkmidiático, acontece não apenas em virtude de disparidades econômicas entre as classes sociais, mas também porque cada cultura, seja ela popular ou hegemônica, têm modos próprios de entender, interpretar e lidar com o que não lhe é comum inicialmente, gerando produtos miscigenados, a posteriori, através de reconversões, ressignificações, rejeições, apropriações, adequações.
Foi neste contexto de mundo hibridizado e conectado que as produtoras culturais, Mariane Bigio e Milla Bigio, utilizaram a internet, um espaço desterritorializado de troca de informações, conhecimentos e culturas, para veicularem a literatura de cordel. Esta funciona tanto como veículo de comunicação popular, quanto como expressão da cultura nordestina.
Através do site YouTube, as cordelistas publicam, desde o segundo semestre de 2014, em formato de vídeos digitais, narrativas infantis em linguagem de cordel. O objetivo das produtoras culturais é atrair o gosto das crianças pela literatura e pela cultura popular nordestina, chamada neste estudo também de cultura contra-hegemômica.
Para confeccionaram os cordéis animados e divulgá-los na internet em formato de vídeos, as artistas construíram um produto folkmidiático, permeado de características e estratégias da cultura folk (popular) e da cultura midiática. Sonoplastia, música e interpretação teatral enriquecem as histórias narradas através da literatura de cordel. Sobre esta, falaremos com mais profundidade no próximo tópico.
Cordel: Da Idade Média à contemporaneidade como meio de comunicação social de resistência
Ao longo da história das civilizações, observa-se que quem possuía os meios para se comunicar e se informar, detinha também o poder. Por isso, a luta pelo domínio da informação e pelo direito à voz, desde os primórdios até a atualidade, é incessante. De acordo com Lima et al (2011), na Europa, durante a Idade Média, quem detinha esse poder era a Igreja. O clero era quem acessava as bibliotecas e podia expressar suas doutrinas à população, através das missas e aparições públicas. Não foi por acaso, que, com a invenção da imprensa pelo alemão Gutemberg, no século XV, a Bíblia foi o primeiro escrito a ser transfigurado de manuscrito a livro impresso.
Contudo, como é inata a busca humana por se expressar, já no século XII, a população iletrada forjou, nesta conjuntura, uma forma de comunicar suas culturas, anseios, modos de vida. Assim, nasceu o poema popular. Com linguagem regional- diferente dos escritos e falas em latim das classes dominantes- oral, simples e de fácil entendimento, nobres e população em geral começaram a contar suas narrativas nas redes de relações cotidianas locais. Durante peregrinações religiosas e guerras, os vassalos utilizavam o poema popular para contar os casos vistos de valentia e magia (LIMA et al, 2011).
Mais tarde, por volta do século XV e XVI, os europeus tiveram a ideia de imprimir seus poemas em linguagem escrita. Segundo Lima et al (2011), naquele momento, alguns poetas populares se tornavam sedentários e se comunicavam transpondo barreiras físicas e temporais, através das letras. Amarravam, então, os folhetos em cordas de barbantes para vendê-los nas ruas. O folheto de cordel, assim, foi denominado e ganhou força. Inicialmente, os cordéis também eram narrados em linguagem teatral, como nas peças que Gil Vicente produzia. Chamados de trovadores renascentistas, os poetas populares foram, por vezes, perseguidos pela Igreja, por se contraporem à lógica e à cultura hegemônica do clero.
De acordo com Lima et al (2011), no Brasil colonizado por portugueses, esta literatura popular fixou-se predominantemente no Nordeste, no século XVIII, região onde a exploração dos nativos, negros e miscigenados imperou com mais força. Mais uma vez, por necessidade de comunicação, o poema popular servia como catarse e expressão cultural de um povo. Alguns estudiosos afirmam que os cantadores paraibanos Silvino Pirauá e a dupla Leandro Gomes e Francisco das Chagas Batista foram os primeiros brasileiros a criarem narrativas populares, em formato de cordel, no país.
Os cordéis nordestinos contam histórias e crenças construídas oralmente do brejo ao litoral. A religiosidade, os mitos, as histórias infantis, bem como as de amor, além das festas do interior são bastantes presentes nas narrativas literárias. O cordel é caracterizado também pela rima e cantoria, dando origem ao que conhecemos como repente, também compreendido como criação artística muito vista nesta Região. Além disso, a xilogravura, técnica de desenho em que o artesão utiliza a madeira para imprimir sua arte, é bastante utilizada para adornar e representar, através de imagens, as narrativas dos folhetos de cordel.
Por este viés, a folkcomunicação, entendida enquanto teoria que estuda os procedimentos comunicacionais populares, enxerga o folheto de cordel como meio de expressão da cultura contra-hegemônica. O criador deste campo brasileiro de estudo da comunicação, Luiz Beltrão, já na década de 1960 compreendeu os folhetos de cordel como um veículo de comunicação jornalístico e os cordelistas como jornalistas populares. Isto em razão dos cordelistas trazerem informações sobre acontecimentos e experiências culturais várias para as suas localidades de origem, bem como emprestarem linguagem de publicização social aos casos locais, através de cantorias e de escritos estendidos em corda nas feiras, desempenhando mesmo o papel de noticiadores populares.
Neste sentido, o cordel, dentre outros papeis, fomenta o direito à informação e à expressão cultural de um povo, que comumente não é representado pelos meios de comunicação social hegemônicos. As democratizações deste acesso e desta produção cultural colaboram para o empoderamento das camadas populares, uma vez que estas, refletindo sobre suas culturas e suas vidas, através do poema popular, enxergam-se mais umbilicalmente atreladas a um lugar de pertencimento, o que pode colaborar para o enfrentamento de privações coletivas vivenciadas e para o fortalecimento de culturas contra-hegemônicas.
Mas não são apenas nas feiras e nos mercados livres que os cordéis são pendurados e conquistam audiência. No ciberespaço, os cordelistas vêm ampliando seu público, amarrando seus poemas nos varais globais da internet. Na web, as narrativas populares ganham nova roupagem, gerando produtos folkmidiáticos, ao mesclarem características tradicionais com midiáticas. Em Cordel Animado!, a tradição teatral das histórias populares que inspiraram as peças europeias de Gil Vicente, durante o Renascimento, voltam a ditar o tom da linguagem narrativa. Sonoplastia e musicalidade enriquecem a encenação. Mariane Bigio, intérprete, cantadora e criadora dos textos interpretados, conta com sua irmã, a musicista Milla Bigio, para que os sons das narrativas apreendam a atenção das crianças.
É sabido que a hipermídia modificou as formas de captação da atenção das pessoas. Utilizar então mecanismos para captar os vários sentidos humanos é uma estratégia das cordelistas para garantir a atenção infantil. As linguagens visual, sonora e literária se complementam, assim, para gerar um produto educativo interessante às crianças. Sobre esta função pedagógica do projeto, falamos no tópico seguinte.
Educar para quê e a favor de quem?
Quando falamos em educação devemos pensar a proposta política pedagógica que está latente na sua configuração. Comumente, na sociedade capitalista, a educação, ao legitimar única visão de mundo, a da classe hegemônica, situa quem não pertence a esta a condição de sujeito marginalizado na sociedade. Segundo Bourdieu (1975), este tipo de projeto pedagógico fomenta a violência simbólica contra os grupos contra-hegemônicos e colabora com o controle social, uma vez que valida e reforça a ideologia que sustenta o poderio das elites, incitando o conformismo diante das desigualdades naturalizadas artificialmente.
Outra vertente teórica pontua que a educação pode desempenhar uma função social diferente, que não a da reprodução da ideologia hegemônica. O estudioso Perez Gomes, por exemplo, citado por Cardoso e Lara (2009), apesar de concordar com Bourdieu (1975), ao reafirmar que a “escola socializa preparando o indivíduo para aceitar como natural a arbitrariedade cultural” (CARDOSO, LARA, p.1318, 2009), pondera que nela há espaços de autonomia que:
(...) podem ser usados para desequilibrar a tendência reprodutora, uma vez que o processo de socialização envolve um complexo movimento de negociação em que as reações e resistências de professores/as e alunos/as podem chegar a provocar a recusa e ineficiência das tendências reprodutoras da escola. (CARDOSO, LARA, p.1318, 2009).
Neste sentido de combate à reprodução do status quo, o pernambucano Paulo Freire, já na década de 1960, cria uma concepção teórica-metodológica de pedagogia voltada às camadas populares. Essa foi pensada de modo a ser aplicável à formação educacional formal e não-formal. De acordo com Freire (1971), a educação popular deve ser realizada com o fim de incitar a reflexão crítica dos educandos e sua libertação social frente à dominação e exploração que lhes são impostas. Para tanto, a cultura, o lugar, o modo de ser, viver e pensar dos educandos devem rechear os planejamentos pedagógicos. Isso porque, segundo Freire, é no espaço da cultura que os saberes sistematizados fazem sentido e viram molas para transformações sociais.
Nesta lógica, mais do que ensinar os alunos a reproduzirem os conhecimentos transmitidos, Freire acreditava que era papel do educador ensiná-los a pensar sobre os saberes, a partir de sua realidade, pois, para o autor, de nada adiantava o conhecimento que não empoderava e emancipava. “Não basta saber ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”, afirmou Freire ao falar da pedagogia que estava criando no Simpósio Internacional para a Alfabetização no Irã, em 1975.
Segundo Freire (1979), o projeto político pedagógico voltado às camadas contra-hegemônicas deveria estabelecer a relação entre o saber científico e o popular. A comunicação horizontal, neste processo, foi vista, portanto, como arma metodológica para incitar a autonomia e a emancipação dos educandos. Contrapondo-se, portanto, a uma pedagogia opressora e reprodutora do status quo, Freire (1979) sugeria outra postura dos educadores no processo formativo. Ora, se se queria incitar o sujeito transformador e político existente em cada educando, a opressão e o autoritarismo seriam os primeiros inimigos a serem combatidos no processo educativo. Em Extensão ou Comunicação? (1971), Freire lança a concepção de que o papel do educador não é transmitir/estender conhecimentos, mas construir junto com os educandos e a partir de seus contextos culturais os saberes pertinentes à emancipação dos sujeitos da condição de explorados.
Estas bases teóricas também fomentam uma das principais vertentes de estudo do campo científico chamado Educomunicação, que prevê a comunicação e a educação como processos que devem caminhar juntos para fomentar a cidadania e a democratização social, valorizando os contextos culturais vários (SCHAUN, 2002). Por esta perspectiva, estudam-se maneiras de estimular a reflexão crítica sobre os conteúdos hegemônicos veiculados pelas mídias, bem como sobre os processos de produção de conteúdos das camadas contra-hegemônicas. Também se observa neste campo de estudo como o uso das tecnologias e das informações/conhecimentos podem colaborar para o processo educativo.
A partir, então, desses dois campos, Educação Popular Freiriana e Educomunicação, o projeto Cordel Animado! foi analisado. No campo da educação popular, verificamos que o projeto, ao incitar a educação infantil através de lições construídas pela própria cultura nordestina, fomenta a valorização do saber não-formal e o gosto pela arte, pela história e pela literatura regionais, a partir de uma perspectiva contra-hegemônica de produção de bens simbólicos. Através do olhar da educomunicação, observamos como a web e o cordel, enquanto veículo de comunicação, podem colaborar para a produção e o acesso democrático da cultura popular- esta com seus conhecimentos, informações, crenças- incitando um processo pedagógico de ensino-aprendizagem libertador para a formação infantil. A Folkcomunicação, como falamos mais acima, também entra como lupa de análise para o melhor entendimento dos procedimentos comunicativos das camadas populares. Interessante observar que a integralização destas três teorias se faz por meio do ponto que as tornam convergentes: a valorização da cultura no processo pedagógico.
O que as rimas ensinam?
O projeto Cordel Animado! utiliza, desde o segundo semestre de 2014, o canal de internet gratuito e aberto de compartilhamento de vídeos, YouTube, como espaço de produção e veiculação de narrativas de cordel para o público infantil. Para confeccionarem estes produtos, que, neste estudo, são chamados de folkmidiáticos, as produtoras culturais Mariane Bigio e Milla Bigio (foto), fazem uso da interpretação teatral, da sonoplastia e da música. O objetivo do Projeto, segundo elas, é estimular o gosto das crianças pela cultura nordestina e pela leitura.

Até a conclusão desta pesquisa, na conta do youtube Cordel Animado! 14 vídeos estão disponibilizados online e gratuitamente. A partir das teorias da Folkcomunicação, da Educomunicação e da perspectiva pedagógica de Paulo Freire, três deles foram analisados. Nosso intuito foi investigar como o cordel, enquanto veículo de comunicação popular, e a internet, um espaço social global, podem, ao serem utilizados conjuntamente, colaborar para o processo educativo das crianças.
Evidenciando o latente e realçando o evidente dos cordéis animados
Nesta pesquisa, selecionamos três cordéis animados para analisar como o Projeto em questão pode contribuir com a formação educacional das crianças. Foram eles: Lampião, Lá do Sertão!, Cordel para muitos chapéus e a Lenda de Calunga. Optamos por estes três produtos folkmidiáticos por compreendermos que eles são os que oferecem mais elementos para a análise do projeto educacional infantil, dentre o universo de Cordel Animado! A seguir, procuramos apresentar o resumo do enredo narrado em cada cordel, com o objetivo de explanar com mais clareza os elementos observados para a construção da análise.
Em Lampião, Lá do Sertão!, cordel animado publicado em 26 de setembro de 2014, é contada de forma lúdica e informativa a história do Rei do Cangaço. Este é representado na encenação por um boneco de pano caracterizado de cangaceiro, que ganha vida através da voz e da interpretação de Mariane Bigio. A produtora cultural, que, ora fala em primeira pessoa, ora em terceira do singular, inicia a narrativa situando onde o protagonista da sua história nasceu: na vegetação sertaneja da caatinga, no município de Serra Talhada, em Pernambuco. Tal contexto é retratado também através do cenário artesanalmente produzido pelas cordelistas. Tentando perfilar para seu público quem era Lampião, Mariane Bigio optou por mostrar-lhe as duas facetas: a do herói e a do vilão. Odiado pelas forças oficiais hegemônicas, ao mesmo tempo em que era aclamado pelos mais pobres, Lampião roubava de quem tinha muita riqueza financeira para oferecer a quem tinha quase nada, configurando-se como um justiceiro, ao seu modo, do povo nordestino, segundo o cordel. Ao longo da narrativa, o temperamento valente e bravo do herói-vilão foi realçado, bem como sua nuance mais singela e carinhosa. Nesta perspectiva, foi retratado o amor que Lampião sentia pela sua esposa, Maria Bonita. Esta, que entrou na luta dos cangaceiros para defender igualmente o grupo de pessoas ao qual pertencia, é representada também pela força e determinação que caracterizam socialmente a mulher nordestina. Além disso, a temática da morte, que é vista ainda como tabu para produtos infantis em nossa sociedade, foi tratada de maneira muito sutil, mas não camuflada, quando as cordelistas envolveram o falecimento de ambos os protagonistas com as vestes da cultura, da música e da crença regionais.

Com este cordel, as artistas narraram uma parte importante do protagonismo popular nordestino e da história de sua gente, revelando os conflitos de classes sociais, bem como aspectos peculiares da cultura nordestina, sua música, suas características, seu modo de encarar a vida. A preocupação em não divinizar o Rei do cangaço pelos seus feitos, nem difamá-lo, também chama a atenção. Percebe-se a tentativa das cordelistas de minimizar o maniqueísmo das histórias infantis, humanizando as personagens e possibilitando a compreensão de que um mesmo ato pode ser interpretado de maneiras diversas, dependendo do ângulo de quem o avalie. Além disso, este entendimento talvez aluda já na infância a capacidade de perceber que todos têm defeitos e qualidades e que estão sujeitos ao erro e a bons feitos na vida em sociedade; o que pode levar a uma percepção mais compreensiva e realista do outro e de si. Importante ressaltar ainda que tal estímulo à reflexão de múltiplas visões de uma mesma questão incita o pensamento crítico, sistêmico e complexo, ponto basilar da educação engajada para o empoderamento dos sujeitos.
Cordel para muitos chapéus, publicado em 3 de novembro de 2014, segue também por esse viés de buscar produzir informação contextualizada, quando destaca a vasta quantidade de chapéus existentes em todo o mundo, o que possibilita que as crianças reflitam sobre a pluralidade cultural no uso que se faz de alguma coisa. Fala-se em chapéu de bruxa, cangaceiro, Napoleão, marinheiro, cozinheiro, pescador, mexicano, vaqueiro, mágico, caubói, Charles Chaplin. Enfim, se caracteriza cada tipo deles, de acordo com a personalidade de quem os veste e com a função que é ofertada à peça. Lição ensinada: há várias maneiras de se fazer uma mesma coisa e nenhuma desmerece a outra. Um grito em respeito à diversidade cultural foi o que o cordel quis bradar. Neste, o ensinamento de que não existe apenas uma forma de ser e pensar, ou seja, de que outras possibilidades e caminhos igualmente legítimos convivem no mundo, revela a dimensão freiriana do projeto político pedagógico das cordelistas. Isso porque, segundo Freire, para se combater a violência simbólica a que Bourdieu (1975) se referia- quando este refletia sobre a reprodução social da ideologia hegemônica no ambiente escolar, através de uma metodologia pedagógica que excluía outras culturas para afirmar a oficial- torna-se necessário incitar a compreensão de que não existem culturas e saberes melhores nem piores, pois eles são apenas diferentes, enquanto formas próprias de aprendizados e construções simbólicas de cada coletividade.

Por fim, no cordel A Lenda de Calunga, veiculado em 28 de janeiro de 2015, a narradora, ora observadora, ora protagonista, Mariane Bigio, conta a história lendária da Calunga do Maracutu. Considerado patrimônio cultural do país, o maracatu é um ritmo musical de origem afro-brasileira tocado nos festejos carnavalescos pernambucanos. Mariane Bigio registra no texto escrito abaixo do vídeo um pouco do que pensou contar ao produzir o cordel:
(...) as origens do Maracatu se entrelaçam com história da escravização dos africanos que aqui chegaram, somando-se aos índios e portugueses, para formar o que hoje somos. A Calunga do Maracatu evoca essa ancestralidade africana, que é a nossa própria ancestralidade também. Ela representa os reis e rainhas do passado, o que há de mais sagrado no folguedo do Maracatu Nação. (BIGIO, 2015).
“A Lenda de Calunga” conta a história fictícia de uma princesa negra que tinha o poder de transformar “tudo que é triste em coisa maravilhosa” (BIGIO, 2015). Assim, quando sua família foi forçada a sair do reino e adentrar os navios negreiros rumo à escravidão de suas capacidades, Calunga sofreu e chorou de saudade dos parentes em meio à mata africana. Mas das lágrimas, surgiu a magia, assim o cordel retratou o motivo da alegria que repentinamente invadiu Calunga e a transformou na boneca de madeira mais conhecida do carnaval de Pernambuco.

Durante a interpretação do cordel, os tambores afro-brasileiros do Maracatu deram o tom e o ritmo da encenação. Como numa volta ao passado, as cordelistas propiciaram, por meio de narrativa fictícia, a compreensão infantil das raízes históricas de sua cultura. Este produto folkmidiático, composto pela mescla de procedimentos comunicativos tradicionais- o teatro, o cordel e a própria história contada- e midiáticos- o vídeo, a sonoplastia e os recursos de edição- é também um produto educativo, de acordo com os campos da educação popular e da educomunicação. Isso porque as tecnologias da informação e comunicação, como o cordel via web, servem como mediações comunicacionais da educação (Schaun, 2002) para a promoção do conhecimento da cultura popular, que, segundo Freire, deve ser lugar de sistematização e problematização de saberes para a formação cidadã dos educandos.
Analisando os três cordéis do Projeto, foi percebido que todos traziam, ao fim da narrativa, a possibilidade de reflexão acerca de valores e princípios que se chocam com a lógica capitalista individualista e competitiva. Isso porque, noções de responsabilidade consigo e com o outro, de valorização da cultura popular nordestina- com o realce a sua forma de se comunicar, através do sotaque, da música, das crenças, histórias e do próprio cordel, gênero de expressão literária forte na Região - de respeito às singularidades e de incentivo à solidariedade foram abarcadas em Cordel Animado!. Esta preocupação em produzir conteúdos permeados por valores coletivos desvela o projeto político pedagógico que se encontra nas entrelinhas do quefazer educativo de Mariane Bigio e Milla Bigio. Então, mais do que diversão e do próprio estímulo à leitura do cordel, o Projeto estimula, ainda que de maneira inicial, já que se trata de um público infantil, a percepção crítica dos educandos acerca de si e da realidade em que vivem. Os cordéis possibilitam que eles conheçam sua história e que gostem de ser partícipes dela. A autoestima e a valorização da cultura são fundamentais para a fomentação da energia impulsionadora da luta.
Em projetos políticos educacionais hegemônicos, essa valorização do contexto cultural dos educandos não é levada em consideração, propiciando uma educação que privilegia a transmissão de conteúdos, com estratégias de memorização, reprodução, bem como de conformação social. Na análise de Cordel Animado! foi evidenciado que a proposta dos cordelistas foi de justamente combater a aculturação dominante. Para tanto, elas incitaram o gosto de pertencimento à cultura popular e o pensamento crítico, construindo ensinamentos que valorizam o respeito aos saberes diversos. Estes princípios de igualdade, solidariedade, respeito, participação, inclusão das minorias e direito de reconhecimento e acesso aos espaços sociais de fala fazem parte do exercício democrático. Por isso, acreditamos que o Projeto contribui, através de linguagem lúdica, para a formação cidadã das crianças, bem como cria mecanismos para a captação da atenção e do interesse infantil pela cultura e literatura nordestinas.
Considerações finais
No campo da educação popular, verificamos que Cordel Animado!, ao incitar a valorização do saber contra-hegemônico, através do fortalecimento do gosto pela arte, pela história e pela literatura regionais, fomenta também o fortalecimento de princípios democráticos e, por conseguinte, colabora para a formação de sujeitos históricos, protagonistas da vida em sociedade e influentes no jogo de relações de poder.
Através do olhar da educomunicação, observamos como a web e o cordel, enquanto veículo de comunicação, podem colaborar para a produção e o acesso democrático de bens simbólicos e materiais da cultura popular, incitando um processo pedagógico de ensino-aprendizagem inclusivo. Partindo daquela perspectiva de que ter acesso à informação e aos espaços sociais de fala empodera o homem, podemos refletir como o ciberespaço e a literatura popular vem contribuindo para o fortalecimento da cidadania, através do incentivo à democratização da comunicação e ao acesso à pluralidade de pontos de vistas e de conhecimentos.
A Folkcomunicação, por sua vez, também se configurou como lupa de análise para o melhor entendimento dos procedimentos comunicativos das camadas populares. Observou-se que as cordelistas produziram bens simbólicos folkmidiáticos, recheados de sotaque, música, histórias, crenças e formas de expressão nordestinos, combinados ao aparato midiático, em formato de vídeo e recursos de edição, para captar a atenção e o interesse infantis pela literatura de cordel.
Interessante observar que a integralização destas três teorias se fez possível por meio do ponto que as tornam convergentes: a valorização da cultura popular no processo pedagógico. Esta permeia todo o projeto de ensino e aprendizagem dos conhecimentos produzidos em Cordel Animado! Por isso, foi possível perceber que tal proposta educativa promove a democratização de produção e de acesso aos conhecimentos contra-hegemônicos, bem como fomenta a reflexão crítica e a formação cidadã dos educandos, que, ao assistirem os cordéis interpretados, são incitados a se perceber como partícipes de sua cultura e realidade. Isso possibilita que os saberes adquiridos sejam pensados como aplicáveis à realidade, numa proposta educativa de transformação social.
Concluímos, dessa forma, que o produto folkmidiático Cordel Animado!, por ser ancorado em valores cidadãos de luta pelo poder e de valorização dos conhecimentos contra-hegemônicos, promove os valores e princípios das perspectivas educativas e comunicativas emancipatórias previstas nas teorias da Educação Popular e da Educomunicação. Para além desta perspectiva que relaciona comunicação e educação à cidadania, análises científicas posteriores de projetos como o Cordel Animado! podem dar conta de refletir sobre as especificidades da linguagem de cordel e da midiática, com a intenção de observar o processo de hibridização que ocorre entre as duas mais profundamente.
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