Artigos e Ensaios

Folkcomunicação digital e práticas consumeristas da tanajura em Tianguá (CE)

Digital folkcommunication and consumerist practices of the tanajura in Tianguá (CE)

Folkcomunicación digital y prácticas consumistas de hormigas culonas en Tianguá(CE)

João Eudes Portela de Sousa
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, Brasil

Folkcomunicação digital e práticas consumeristas da tanajura em Tianguá (CE)

Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 17, núm. 38, pp. 183-199, 2019

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 11/09/2018

Aprovação: 18/06/2019

Resumo: A pesquisa tem como objetivo analisar práticas alimentares influenciadas pelos estudos folkcomunicacionais na contemporaneidade. Partindo da premissa que a alimentação faz parte da vida humana e as práticas que envolvem essa temática mediada pela tecnologia foram reconfiguradas, os discursos promovidos nas mídias digitais trazem o reflexo da diversidade cultural nas sociedades. O estudo faz uma análise de como sujeitos do município de Tianguá-Ceará se apropriam dos meios de comunicação digital para compartilhar suas práticas culturais no consumo da tanajura, revelando o ethos do seu povo em produções simbólicas que ressaltam a cultura e suas tradições num sentimento de pertença. As redes sociais digitais têm possibilitado um espaço de expressão e circulação de mensagens promovendo uma visibilidade na representação de grupos historicamente marginalizados.

Palavras-chave: Folkcomunicação, Cultura, Redes sociais digitais, Tanajura.

Abstract: The research aims to analyze food practices influenced by folk communication studies in contemporary times. Starting from the premise that food is part of human life and the practices that involve this technology-mediated theme have been reconfigured, speeches promoted in digital media bring the reflection of cultural diversity in societies. The study analyzes how the people from the city of Tianguá-Ceará have used the digital media to share their cultural practices in the consumption of tanajura (a type of ant) revealing the ethos of their people in symbolic productions that emphasize the culture and its traditions in a feeling of belonging. Digital social networks have enabled a space of expression and circulation of messages promoting a visibility in the representation of historically marginalized groups.

Keywords: Folkcommunication, Culture, Social digital networks, Tanajura.

Resumen: La investigación tiene como objetivo analizar prácticas alimentarias influenciadas por los estudios folkcomunicacionales en la contemporaneidad. A partir de la premisa que la alimentación forma parte de la vida humana y las prácticas que envuelven esa temática mediada por la tecnología se reconfiguraron, los discursos promovidos en los medios digitales traen el reflejo de la diversidad cultural en las sociedades. El estudio hace un análisis de cómo individuos del municipio de Tianguá-Ceará se apropia de los medios de comunicación digital para compartir sus prácticas culturales em el consumo de las hormigas culonas, revelando el ethos de su pueblo en producciones simbólicas que resaltan la cultura y sus tradiciones en un sentimiento de pertenencia. Las redes sociales digitales han posibilitado un espacio de expresión y circulación de mensajes promoviendo una visibilidad en la representación de grupos históricamente marginados.

Palabras clave: Folkcomunicación, Cultura, Redes sociales digitales, Hormigas culonas.

Introdução

A globalização proporcionou uma aproximação entre os povos, fronteiras foram rompidas e o que se pode perceber de forma mais nítida foi uma diversidade cultural presente até dentro de uma mesma sociedade. A comida, a gastronomia, a alimentação de uma forma geral tem revelado dinâmicas policulturais nas sociedades contemporâneas, por sua vez trazem códigos que são constituídos através de símbolos e normas que se estruturaram ao mesmo tempo que estratificaram grupos e sujeitos ao longo dos anos.

O que leva um alimento a ser aceito dentro de uma cultura são os sistemas de interdependência construídos no seio de cada sociedade, isso influenciado pelos fenômenos da comunicação em um processo que se fortalece em uma perspectiva de aceitação e/ou reprovação que passa por um processo intercomunicacional. Nessa pesquisa não observaremos a tanajura² só enquanto alimento. Portanto, adquirindo novas funções, para além da tradição, o consumo da tanajura traz uma dimensão comunicativa que se constrói com base em um caráter étnico possibilitando que práticas comunicacionais surjam nas redes sociais digitais travando uma dinâmica de negociações culturais com sujeitos em diferentes lugares.

O que nós questionamos aqui, é: como o consumo da tanajura na cidade de Tianguá-Ceará proporciona um elo de comunicação entre sujeitos, provocando inquietações e questionamentos. Tendo em vista que a comunicação digital contribuiu e influenciou na proliferação de produtos comunicacionais, como tem se dado essas práticas comunicacionais no consumo da tanajura diante da apropriação destes sujeitos nos espaços tecnlogizados.

Para entender a cultura

O significado da palavra cultura passou por diversas transformações ao longo dos anos e os estudos Denys Cuche (2002) e Raymond Williams (2011) relatam que este termo teve entendimentos diferentes em países como Alemanha, França e Inglaterra. O termo kultur para os alemães tinha uma conotação atrelada as realizações políticas, artísticas e intelectuais dos sujeitos, já para os franceses e os ingleses o significado estava associado de forma mais ampla, a uma ideia de civilização que vai desde aos modos e costumes como também aos fatores religiosos, tecnológicos, econômicos, sociais e políticos.

Somente no final do século XIX, cultura começou a ser compreendida “como todo um sistema de vida, no seu aspecto material, intelectual e espiritual” (WILLIAMS, 1969, p.18). Entretanto, o termo cultura já chegou a estar atrelado a questões genéticas, “muita gente ainda acredita que os nórdicos são mais inteligentes do que os negros; [...] que os brasileiros herdaram a preguiça dos negros, a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses” (LARAIA, 2001, p.17), estando imersos em um determinismo biológico para definir uma superioridade cultural de determinados povos.

As pesquisas de Edward B. Tylor (1958) foram um marco nos estudos de cultura trazendo para a discussão as questões sociais e antropológicas, influenciado pelos estudos evolucionistas de Darwin que apresentava a diversidade humana em diferentes momentos e estágios de civilizações. Vale ressaltar que o naturalista britânico falhou em optar por uma perspectiva evolucionista unilinear em que colocava os países europeus no topo da escala.

O conceito de cultura se desenvolveu em uma perspectiva etnocêntrica influenciado por uma visão pseudocientífica falsa de um evolucionismo cultural em que “o grupo do “eu” faz, então, da sua visão a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do “outro”, o grupo do diferente fica, nessa lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível” (ROCHA,1994, p. 8-9). Com isso, contribuindo para uma fertilização nas concepções preconceituosas que logo fez brotar a estereotipia entre as diversidades.

A partir daí passa a repensar essa ideia de cultura, com um olhar mais aberto para aqueles traços etnocêntricos, abrindo espaço para uma concepção menos generalista sobre o termo. Na atualidade compreender a cultura é perceber as influências e as múltiplas referências que se (re)fazem presentes nas sociedades contemporâneas diante do deslocamento dos sistemas culturais.

Cultura em seu caráter dinâmico

Existe uma falta de compreensão que parte do senso comum ao entender as culturas, suas tradições e as sociedades contemporâneas. É recorrente os questionamentos que levam em consideração a quebra de paradigmas por parte de comunidades que reconhecidas por suas características tradicionais ao se apropriarem de novos modelos são estigmatizadas por estarem perdendo sua essência, no momento em que abre espaço para novos hábitos, trazendo novos elementos que se aproximam dos utilizados das sociedades tecnologizadas.

Acontece que, as manifestações culturais são dinâmicas, não ficam estagnadas. As culturas contemporâneas dialogam de forma mais rápida, pois os modelos foram reconfigurados e as trocas simbólicas ficaram mais próximas. O meio digital contribuiu para essa mudança ao ponto que estamos vivendo em uma aldeia global (MCLUHAN, 1969) em quem os meios de comunicação reconfiguram as práticas sociais, agora cada vez mais híbridas, fluídas e dinâmicas, se antes o consumo das tanajuras era compartilhado somente nas aldeias, na contemporaneidade essa prática cruza fronteiras.

A tecnologia coexiste nas relações sociais e sujeitos têm se apropriado dela. É recorrente o uso das redes sociais digitais para manifestações culturais, o momento possibilita construções de diferentes discursos que trazem representações identitárias e se estabelecem por meio de uma intercomunicação de hábitos culturais, pois “a forma pelas quais a cultura estabelece fronteiras e distingue a diferença são cruciais para compreender as identidades” (WOODWARD, 2014, p.42), os nativos produzem conteúdos, constroem discursos que aproximam seus pares das práticas culturais locais. As tecnologias possuem um potencial sociopolítico e a apropriação em tempos de globalização possibilita dinâmicas em um espaço crítico, com influências internas e externas.

Raymond Williams (1969) compreende que cultura são sentidos compartilhados. A partir dos pressupostos do autor, podemos entender que o consumo da tanajura é guiado por um sistema que conduz, direciona e gere o comportamento dos sujeitos. A produção e as leituras relacionadas ao consumo da tanajura no espaço tecnologizado (facebook, instagram e whatsapp) têm possibilitado novas experiências e modos de subjetivação em que as práticas comunicacionais envolvem sujeitos em um processo mediado por sentidos e significados. Com influências globais cada vez mais presentes, a cultura local partilhada em rede causa um estranhamento diante de um espaço de disputa e negociação global.

O consumo da tanajura enquanto manifestação da cultura local tem se proliferado nas redes sociais digitais em um processo folkcomunicacional que pode se caracterizar como “ meios de expressão de idéias e informações próprias aos grupos em sua linguagem, de modo que emissor e receptor se fazem entender numa comunicação própria ao mundo a que pertencem”. (SCHMIDT, 2007, p.36). Essa ação comunicacional que acontece pelos usuários conectados principalmente nas plataformas sociodigitais analisadas nesta pesquisa: facebook e instagram, traz novas categorias de expressão e percepção em que a produção da grande mídia perde espaço e os construtos sociais se deslocam e circulam nos discursos dos sujeitos conectados.

Sejam em uma linguagem verbal ou não verbal, as postagens nas redes comunicacionais digitais são carregadas de sentimentos com demonstrações de orgulho pelos hábitos culturais que se estabeleceram em práticas consumeristas na cidade de Tianguá (CE). Essas manifestações em rede alicerçam a noção de grupo e aproximam os sujeitos frente às diferenças que “com a multiplicação de formatos e conteúdos de comunicação digital, os grupos marginalizados dos processos hegemônicos vislumbraram possibilidades de posicionamento e divulgação de sua produção” (SCHMIDT,2007, p.32), proposto por uma tríade que envolve tecnologia, relações sociais e representações.

Nessa perspectiva, Benedict Anderson (1989) discorre sobre a ideia de nação enquanto narração cultural de grupo, em que sujeitos se reconhecem como parte de um todo e a entende como comunidade imaginada, pois “são imaginadas porque mesmo os membros das menores nações nunca irão conhecer a maioria dos seus companheiros, encontrá-los, ou mesmo ouvi-los, ainda que nas mentes de cada um exista a imagem da comunhão deles” (ANDERSON, 1983, p.6). Já os estudos de Hall (2013) em uma perspectiva contemporânea afirmam que os pontos que ligam essa ideia de nação é a invenção da tradição e o mito do nascimento da nação.

Entretanto, a cultura é constituída por um sistema, sendo este formado por símbolos e significados. Clifford Geertz (2003) compreende que este sistema se estabelece nas relações em si, ou seja, no relacionamento dos sujeitos em sociedade, que são partilhados por membros de um mesmo sistema, e que agora mediante as conexões em rede online (as redes sociais digitais) produzem conhecimento e trocas comunicacionais alcançado sujeitos de diferentes grupos.

Alimentação e pertença

Identidade e pertença se relacionam com os códigos construídos diante de práticas culturais que enraízam os sujeitos ao mesmo tempo que os conectam com seu passado. As construções acerca do consumo da tanajura unificam sujeitos diante de uma linguagem que fornece elementos para a institucionalização de uma nação. Hall (2003, p.50) defende que “uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos”, uma posição identitária que somos obrigados a assumir. Ao observar postagens relacionadas ao consumo da tanajura, nos comentários é evidente o sentimento de saudade e lembranças do passado.

A alimentação está carregada de símbolos que são objetos de referências que revelam identidades de grupos e sujeitos. Porém, as identidades são fluídas e passam por reconfigurações que no meio comunicacional digital ocorre de forma mais rápida e frequente. O consumo alimentar contém mensagens de culturas passadas, contextos históricos, sentimento de pertença, etc. Sob este aspecto seria, portanto, cultura “o sistema de significações mediante o qual necessariamente [...] uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada” (WILLIAMS, 2011a, p.13). Compreende-se que, as produções discursivas construídas pelos habitantes de Tianguá (CE) no consumo da tanajura por meio das redes sociais digitais facebook e instagram atuam como marcadores de identidades conectadas a uma rede de significados.

Quando os sujeitos se utilizam das mídias sociais digitais (facebook, instagram, dentre outros) para produzir conteúdo em um universo comunicacional que envolve sentido e sentimentos, estão desempenhando papel importante no processo de (re)afirmação fazendo que se sintam parte de um grupo. Ao analisarmos alguns perfis no facebook, pudemos identificar uma interação social promovida por essas expressões simbólicas decorrentes das publicações associadas a tanajura. São narrativas que localizam os sujeitos e fazem com que se identifique como parte de uma comunidade, tendo em vista que, é esta que nos fornece sentidos e valores, padronizam hábitos e costumes por meio dos laços referenciais.

Para Canclini (1995, p. 124) “os referentes de identidade se formam, agora, mais do que nas artes, na literatura e no folclore. [...] em relação com os repertórios textuais e iconográficos gerados pelos meios eletrônicos de comunicação e com a globalização da vida urbana”. Dentro deste universo globalizado em que novas linguagens de grupos marginalizados (seja pelo isolacionismo geográfico, classe econômica, nível intelectual) têm se inserido, o consumo da tanajura em Tianguá (CE) tem sido uma expressão de forte referência em que a comida nos alimenta de signos e significações, o consumo dos alimentos é revelador, tendo em vista que “o gosto é moldado culturalmente e socialmente controlado. O homem [...] necessita de um longo período de aprendizado, antes de integrar-se às estruturas sociais. Tal processo compreende a formação do gosto e dos hábitos alimentares”. (FRANCO, 2001, p.20).

O gosto é algo que o sujeito aprende, não é estático e sofre influencias de ordem social. É nessa perspectiva que se fortalecem os parâmetros que os sujeitos se balizam em situações de conflitos no cotidiano. Para Geertz (2003 p. 15) o “homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias. [...] como uma ciência interpretativa, à procura do significado”. A partir do que sua cultura define como certo ou errado, deste conhecimento que nos é transmitido, definiremos o nosso “sistema de sabores”. A tanajura nessa comunidade é um alimento bastante estimado, já em culturas vizinhas um alimento extremamente repudiado.

O sistema alimentar é complexo, “temos o alimento e temos a comida. Comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se” (DAMATTA, 2001, p. 56) resultado de processos culturais estabelecidos por critérios sociais, econômicos, religiosos, etc. que desempenham um papel imprescindível nas sociedades e em suas estruturas. As práticas alimentares vêm mostrando traços socioculturais que se estabeleceram ao longo dos anos e têm contribuído para uma aproximação cultural. Seja na cozinha oriental com sushis e yakisobas, nas massas italianas, no acarajé baiano, o consumo dos pratos típicos e os alimentos de determinadas regiões despertam a curiosidade pela cultura do outro. O presente pesquisador tem observado que o consumo da tanajura com o “boom” das redes sociais digitais tem ganhado espaços nos portais de notícias, despertando uma curiosidade e abrindo um espaço de diálogo sob a identidade da cultura local.

Com os sujeitos se apropriando dos meios digitais e das possibilidades das novas tecnologias de comunicação, a produção de mensagens com uma linguagem oriunda da cultura popular tem ganhado mais espaço. Segundo Woodward (2014, p.43) “a cozinha é também uma linguagem por meio da qual ‘falamos’ sobre nós próprios e sobre nossos lugares no mundo”. Talvez possamos adaptar a frase de Descartes (filósofo francês que escreveu a frase Penso, logo existo) e dizer “como, logo existo”. Os hábitos alimentares provenientes da tanajura revelados e representados nas redes sociais digitais estreitam laços e apresentam novos olhares, como defende Raquel Recuero (2015) tudo parece ter ficado mais visível e mais próximo.

É nessa perspectiva que entendemos que o consumo do alimento se apresenta como um canal de comunicação em um processo de mediação entre gerações e povos de diferentes culturas. Para além das questões básicas do ser humano que envolvem a alimentação, a comida deve ser considerada como um meio de (re) afirmação em que sujeitos assumem papeis de interação em rede perpassando práticas de comensalidade que atuam como um canal de comunicação em que a comida e as práticas culinárias produzem significados.

Alimento enquanto dimensão comunicativa

Os estudos culturais compreendem a alimentação enquanto comunicação tendo em vista que a comida tem uma relação bastante estreita com a cultura e essa pode ser entendida como uma linguagem. Lévi-Strauss (2004) corrobora com esse entendimento, ao ponto que analisa as práticas alimentares das culturas ocidentais relacionando com as de outras culturas e identificando que a cozinha (enquanto produção simbólica) revela elementos que constituem e formam a cultura de um povo.

Nas práticas alimentares existe um arcabouço cultural que pode ser entendido como uma forma de acessar experiências vividas por gerações passadas e por meio dessas práticas podemos compreender melhor as estruturas sociais e mentais presentes em uma determinada sociedade. “O caráter simbólico-ritual do comer se expressa claramente no hábito de convidar pessoas para jantar em nossa casa, no ‘jantar fora’ em determinadas ocasiões ou no ‘almoço de domingo’” (WOORTMANN, 1985, p.9). Práticas alimentares trazem características relevantes para refletir sobre a sociabilidade, para além do campo nutricional. Atuam como referências no compartilhamento das experiências, e s revelam como atos simbólicos.

Em linhas gerais, é como se fosse um livro apresentando os modos e costumes de um povo, como compreende Câmara Cascudo (1967, p.386): “diz-me o que comes, dir-te-ei quem és”. Todavia, a comida fornece informações, pois está carregada de significados. Na alimentação estão presentes enunciados de diferentes formas. Esses enunciados no processo comunicacional se fazem presentes no ato de se alimentar que ocorre nas diferentes formas de publicizar essa ação que na sociedade contemporânea com o uso das redes socais digitais ficaram mais evidentes com o maior fluxo das mensagens.

Compreende-se que o consumo da tanajura é um ato social, político que “fala” sobre sujeitos e seus lugares no mundo. As publicações em redes sociais digitais expressam hábitos, costumes, sabores, diálogos, classes, tradições que são representadas e aprendidas no consumo e nas mensagens em que o grupo tem acesso. Mesmo acontecendo de forma digital essa prática revela que, “o consumo de alimentos permite estabelecer interações sociais, identificar grupos (a partir de aspectos étnicos, de classe, gênero, religião, geração, etc) ”. (WOITOWICZ, 2016, p.3) pois as redes sociais digitais aproximaram sociedades e suas culturas, com isso permitido que grupos marginalizados pela mídia tradicional ganhassem voz e alcance global. As manifestações culturais ficaram mais evidentes dando espaço para novas representações sociais.

Oportunamente, os hábitos alimentares tiveram mais visibilidade e práticas comunicacionais referentes a alimentação humana passaram a figurar no campo midiático com mais frequência, oportunizando consumos alimentícios de comunidades e grupos menores. Flandrin e Montanari (1998, p. 108) revelam que “o homem civilizado come não somente (e menos) por fome, para satisfazer uma necessidade elementar do corpo, mas também (e sobretudo) para transformar essa ocasião em um momento de sociabilidade, em um ato carregado de forte conteúdo social e de grande poder de comunicação”. Dito isso, sujeitos se manifestam em redes sociais digitais para demarcar fronteiras ao mesmo tempo que apresentam seus aspectos socioculturais.

Os meios de comunicação digital possibilitaram uma visibilidade para estas práticas, e neste universo que “as pessoas estão mais atentas do que nunca a respeito de suas ações e se são aceitáveis ou não, podendo isso ser julgado pela família, casta e comunidade” (MILLER, 2015, on line) grupos têm incorporado estas novas linguagens para disseminar sua cultura. A tecnologia alterou diversas práticas sociais, reconfigurou modelos alimentares e possibilitou de forma mais célere e eficaz o consumo e as trocas culturais. A folkcomunicação nessa arena digital nos ajuda a compreender diante dos novos paradigmas comunicacionais ações inerentes à comida como transmissão de informação. Defende-se neste artigo que o consumo da tanajura atua como canal de comunicação entre os sujeitos, no processo que se estabelece através dos valores simbólicos e seus significados.

Segundo Valeri (1989, p. 191), a alimentação é “uma forma de comunicação, ocasião de trocas e de atos de ostentação, um conjunto de símbolos que constitui, para determinado grupo, um critério de identidade”. São nessas ações características que representam e inserem os grupos e os sujeitos para além do campo da identificação e pertencimento que a alimentação dialoga no campo da comunicação, pois “o sistema alimentar contém e transporta a cultura de quem o pratica, é depositário das tradições e da identidade de um grupo” (MONTANARI, 2008, p. 183). No momento em que práticas alimentares comunicam, fornecem informações, dão sentido para as raízes culturais, revelam identidades e mantêm a tradição.

A tecnologia oportunizou que o sistema de comunicação presente no consumo da tanajura circulasse em rede de forma mais rápida, e isso não só na cultura local, já que os “novos meios de comunicação são desenvolvidos e introduzidos, eles mudam as maneiras pelas quais os indivíduos se relacionam uns com os outros e com eles próprios” (THOMPSON, 2011, p.12). Os sistemas simbólicos presentes no processo comunicacional do consumo da tanajura têm se (re)configurado como um forte apelo na construção da realidade desses sujeitos e circulado para além das barreiras geográficas, é recorrente as postagens no instagram e facebook de sujeitos que moram em Brasília, Fortaleza, São Paulo, dentre outros lugares, comendo tanajura e fazendo referências as práticas que exerciam quando moravam em Tianguá (CE).

Os meios de comunicação possibilitaram uma aproximação com novas culturas, atuando como um meio importante no processo de (re)conhecimento do outro. Nessas práticas que reconhecem símbolos, que contribuem para valorizar diante da propagação em rede as diversas culturas existentes nas sociedades, os meios de comunicação tradicional não conseguiram apresentar tamanha diversidade cultural e com o advento da internet “costumes, tradições, gestos e comportamentos de outros povos, próximos ou distantes, circulam amplamente na ‘aldeia global’” (MELO, 2008, p.41).

A comunicação digital detém uma linguagem bem diversificada - vídeo, fotografia, texto, entre outros. O consumo da tanajura tem ganhado espaço a partir do momento em que os usuários têm se apoderado deste espaço para produzir conteúdo e, acima de tudo manifestar-se. As manifestações em “redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação” (CASTELLS, 1999, p. 566). A partilha de costumes alimentares quem envolve a tanajura em redes digitais por nativos de Tianguá se fortalece em um processo comunicacional identitário.

Possivelmente os laços que se constroem nas redes sociais digitais facebook e instagram com postagens relacionadas ao consumo da tanajura se fortalecem pelas narrativas de pertença na produção de discursos de orgulho, valorização e saudosismo em um processo comunicacional que representa a identidade cultural de um grupo que nessa era digital consegue revelar sua identidade, “... não existe nada, no horizonte cultural, que não carregue a conotação do valor que o usuário, criador ou intérprete, agrega”, ou seja, “os sentidos e os modos como os sentidos ajustam a vivência social” (BARRETO, 2005, p. 78).

Os meios digitais de comunicação oportunizaram produtores de conteúdo facilitando as emissões de mensagens e informações socioculturais bem como sua interação em rede e no âmbito digital pode se estabelecer práticas sociais jamais imaginadas em décadas passadas. Na contemporaneidade “muitas manifestações populares – antigas ou recentes – se reestruturam para se adequar às novas linguagens” (SCHMIDT, 2007, p.47). Com o uso das ferramentas digitais as propagações de conteúdos culturais criam elos bem maiores nas relações entre os sujeitos.

A protagonização do consumo da tanajura nas redes sociais digitais trouxe para as pautas sociais manifestações culturais adormecidas. O que se pode perceber nos últimos anos, é a participação dos sujeitos na produção simbólica de mensagens relacionadas à tanajura dando ensejo a criações de produtos midiáticos como o Festival da Tanajura, a mascote do time de futebol da cidade é uma tanajura, obras de artes, como a escultura de uma tanajura na entrada do shopping da cidade, adaptação de cardápios em bares e restaurantes que servem esse alimento, campanhas publicitárias que associam suas marcas à tanajura, debates, matérias jornalísticas, dentre outros assuntos que geram conteúdo relacionados a essas práticas de consumo.

Esse fenômeno cultural tem proporcionado diferentes experiências dos sujeitos com a comunidade, o consumo da tanajura é um produtor de sentidos e o ato de se alimentar vai muito além das necessidades fisiológicas, é uma comunicação. Montanari (2008, p.165) entende a alimentação “não como uma simples soma de produtos e comidas, reunidos de modo mais ou menos causal, mas como uma estrutura na qual cada elemento define o seu significado”. Por sua vez, podemos compreender que “comer é comunicar” e partindo dessa perspectiva o consumo da tanajura se legitima como um porta voz da identidade cultural tianguaense.

Os hábitos que envolvem a alimentação vêm carregado de símbolos que traduzem significados da cultura e da identidade local. O consumo da iguaria tanajura (formiga, saúva) está envolvido em um campo simbólico representado em diferentes atividades socioculturais. Como corrobora Barthes (2001, p.177), uma “iguaria, um gesto, um filme, uma música, uma imagem publicitária, uma mobília, uma manchete de jornal, eis aí, aparentemente, objetos completamente heterogêneos. Que podem ter em comum? Pelo menos o seguinte: todos são signos”.

O consumo da tanajura surgiu no processo de “socialização” que se estabeleceu entre os índios Tabajaras (primeiros habitantes dessa região) e os portugueses. Estes, preocupados com as formigas nas plantações, falavam para os nativos que: “quem comesse tanajura, não passaria pela morte, voava para o infinito, como um guerreiro forte”. (GASPAR, 2012, p. 101). Nesse momento a formiga entra para o cardápio dos indígenas da região e livra as plantações dos ataques da saúva. O que poderia ser um simples paliativo para amenizar a destruição das plantações, se transformou em uma marca identitária de um povo.

O interessante é perceber como essa prática permanece forte e tem se perpetuado nas cozinhas dos lares, nos bares da cidade, etc. Com novos olhares e sentidos reconfigurados, as postagens nas redes sociais digitais faz com que todos se sintam participando mesmo estando em outros lugares, de forma desterritorializada, pois “comer não é um ato solitário ou autônomo do ser humano, ao contrário, é a origem da socialização, pois, nas formas coletivas de se obter a comida, a espécie humana desenvolveu utensílios culturais diversos, talvez até mesmo a própria linguagem” (CARNEIRO, 2005, p. 71). Os meios de comunicação digital influenciam no preparo e consumo deste alimento ao mesmo tempo que fortalecem laços, transferem comportamentos, revelam histórias, perpetuam costumes e fortalecem as tradições.

O consumo de alimentos é uma ação comunicacional que com o uso das redes sociais digitais tem ecoado de forma global. Sujeitos têm se apropriado do meio comunicacional online como espaço de manifestações culturais em que “a reprodutibilidade digital da folkcomunicação cria a oportunidade na construção de novas linguagens e a incorporação de gerações mais jovens a manifestações antes estagnadas, propõe outros diálogos com outros grupos ou até mesmo com o próprio, mas com outra dimensão” (SCHMIDT,2007, p.40). Fica evidente que as redes sociais digitais têm reconfigurado as relações entre sujeitos e possibilitado novas experiências.

O capital social diante dessa prática que as redes sociais digitais têm possibilitado permite que diferentes sistemas simbólicos contribuam para uma integração social de diferentes culturas. Raquel Recuero (2011, p.12) acredita que: “as tecnologias digitais ocupam um papel central nas profundas mudanças experimentadas em todos os aspectos da vida social” e os discursos construídos em rede se propagam de forma mais “democrática” tendo em vista que ser produtor da mensagem ficou mais fácil e as interações podem acontecer em tempo real.

Considerações finais

O consumo de alimentos nas culturas tem um caráter revelador por trazer à tona toda a história de um povo. Sujeitos têm estabelecidos relações estreitas com as novas tecnologias de comunicação que tem possibilitado reconfigurações no campo da cultura. Esse feito da globalização pode ser compreendido como uma faca de dois gumes, ao mesmo tempo que promove o acesso de pequenos grupos com hábitos dos grandes centros urbanos, proporciona um espaço de interação que permite sociedades menores apresentarem seu ethos cultural. Sujeitos têm se apropriado dos recursos tecnológicos para se manifestar em rede. O que temos observado mais recentemente é o uso das mídias digitais como lugar de produção simbólica.

O consumo da tanajura pode ser observado para além das questões identitárias como uma prática comunicacional quando sujeitos se apropriam do meio digital para revelar tensões, tradições, costumes, lutas, promover debates etc. Se observarmos o manejo, o armazenamento, o preparo das comidas e a conservação dos alimentos, percebemos que isso tudo acompanhou a tecnologia e adequou-se as transformações sociais, com as práticas comunicacionais alimentares não foi diferente. O consumo deste alimento é uma ferramenta comunicacional e com a utilização das redes sociais digitais tem possibilitado um maior alcance com o sentimento de valorização e pertença que se fortalece nas construções de discursos que contribuem para uma (re) construção identitária.

Na comensalidade estão presentes elementos de autenticidade de uma cultura representados por tradições que se fortalecem nas práticas comunicacionais construídas pelos sujeitos detentores dessa identidade que, mesmo com a globalização oferecendo novos paradigmas, persistem em praticar hábitos de épocas remota mudando apenas o canal em um processo intercomunicacional. O consumo da tanajura deve ser compreendido como uma produção simbólica que em diferentes narrativas (nas redes sociais digitais, no audiovisual, no impresso) apresenta diversas questões, sejam estas sociais, políticas, culturais e/ou econômicas.

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Notas

2 Também conhecida como iça, a tanajura é um tipo de formiga que aparece nas primeiras chuvas do ano na região da Serra da Ibiapaba no Ceará. É um alimento bastante valorizado na região em que crianças e adultos saem à caça para o consumo e/ou comercialização.
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