Artigos e Ensaios

Día de los Muertos no México: Uma análise folkcomunicacional

Día de los Muertos in Mexico: A folkcomunicacional analysis

Día de los Muertos en Mexico: Un análisis folkcomunicanional

Daira Martins Botelho
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Brasil
Marina Darcie
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Brasil
Maria Cristina Gobbi
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Brasil

Día de los Muertos no México: Uma análise folkcomunicacional

Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 17, núm. 38, pp. 200-216, 2019

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 15/10/2018

Aprovação: 30/11/2018

Resumo: O Día de los Muertos é um evento representativo da cultura mexicana e reconhecido mundialmente. Apresenta-se como uma manifestação cultural de grande significado, pois se trata de uma mescla de culturas e também mostra a forma com a qual os mexicanos lidam com a morte. O objetivo deste trabalho é analisar, por meio de observação, as manifestações que compõem o período que compreende esse evento, que vai do final de outubro até o início de novembro, tendo as comemorações encerradas no dia 02, dia dos mortos/finados. Para tanto, lançou-se mão da teoria da Folkcomunicação para compreender tais manifestações sob viés sócio-cultural e, principalmente, comunicacional, já que é uma manifestação que comunica ao mundo o que é a morte no México.

Palavras-chave: Comunicação, Cultura, Folkcomunicação, Día de los Muertos.

Abstract: Día de los Muertos is a representative event of Mexican culture and recognized worldwide. It is a cultural manifestation of great significance, because it is a mixture of cultures and also shows the way Mexicans deal with death. The objective of this work is to analyze, through observation, the manifestations that make up the period that comprises this event, which runs from the end of October until the beginning of November, with the celebrations closed on 02, day of the dead / dead. For that, the theory of Folkcommunicação was used to understand such manifestations under socio-cultural and, mainly, communicational bias, since it is a manifestation that communicates to the world what is the death in Mexico.

Keywords: Communication, Culture, Folkcomunicação, Día de los Muertos.

Resumen: El Día de los Muertos es un evento representativo de la cultura mexicana y reconocido mundialmente. Se presenta como una manifestación cultural de gran significado, pues se trata de una mezcla de culturas y también muestra la forma con la que los mexicanos tratan con la muerte. El objetivo de este trabajo es analizar, por medio de observación, las manifestaciones que componen el período que comprende ese evento, que va de finales de octubre hasta principios de noviembre, teniendo las conmemoraciones cerradas el día 02, día de los muertos / finados. Para ello, se echó mano de la teoría de la Folkcomunicación para comprender tales manifestaciones bajo sesgo sociocultural y, principalmente, comunicacional, ya que es una manifestación que comunica al mundo lo que es la muerte en México.

Palabras clave: Comunicación, Cultura, Folkcomunicação, Día de los Muertos.

El culto a la vida, si de verdade es profundo y total, es también culto a la muerte. Ambas son inseparables. Una civilización que niega la muerte, acaba por negar a la vida.

Octavio Paz

Introdução

O México é um país colonizado pelos espanhóis e carrega em seus processos sociais e comunicativos uma mescla das culturas de ambos os territórios. É possível observar o sincretismo cultural nesse espaço no Día de los Muertos, que também possui grande influência do Halloween que confere grande influência de seu país vizinho, os Estados Unidos. O Día de los Muertos é uma celebração que ocorre no país anualmente e é nela que os indivíduos comemoram a volta de seus entes queridos já mortos para uma visita. A relação dúbia que os mexicanos mantêm com a morte – algo entre o medo e o fascínio – é resultado da cultura indígena dos povos nativos daquele espaço com a cultura dos espanhóis educados sob a égide do catolicismo. Não comemorado apenas em um dia, o Día de los Muertos faz parte do calendário de eventos do México e, mais precisamente na Cidade do México, engloba outras manifestações que também passaram a fazer parte das comemorações “oficiais”.

Por meio de observação da festividade, procurou-se compreender os elementos que compõem essa época festiva, analisando os eventos e locais visitados – como os cemitérios e museus – e buscando entende-los como manifestações envoltas pela teoria da Folkcomunicação, pois acredita-se ser possível compreender a combinação entre as culturas e as significações resultantes de processos que não são finitos. É interessante notar que a relação dos indivíduos com a morte originou signos comunicativos passíveis de leitura, principalmente tendo em vista que se trata, afinal, de uma grande festa, que envolve aspectos culturais, sociais, além dos econômicos, mercadológicos e turísticos. Esclarece-se, aqui, que se trata de uma observação pontual dos eventos que compõem o Día de los Muertos, a fim de mostrar as festividades e trazer um olhar folkcomunicacional na tentativa de entender de que forma essas manifestações interagem e se colocam na sociedade mexicana, tanto de maneira institucionalizada, quanto espontânea.

As festas e a Folkcomunicação

Festa é um tema bastante recorrente nas pesquisas relacionadas à Folkcomunicação, pois sua relevância como manifestação cultural é reconhecida pelos autores, principalmente no que tange à potencialidade comunicacional existente em suas engrenagens. Ao longo do tempo e desde seu surgimento em um contexto específico, as festas estão em constante transformação, seja por conta de sua dimensão, seja pelo fato de terem de procurar apoio financeiro ou então serem institucionalizadas por instituições ou pelo governo. As transformações nas festas que estão situadas em uma realidade sociocultural e econômica diferente dos tempos remotos também apresentam novas relações na contemporaneidade.

As potencialidades culturais e turísticas despontam atualmente pois ocorre o rompimento de fronteiras (transnacionalização, ou globalização), e a “busca das raízes” torna-se um posicionamento local no mercado globalizado. Em razão desse processo, posso afirmar que nos dias atuais, as manifestações da cultura popular, particularmente as Festas, não manifestam apenas os aspectos tradicionais, mas assimilam características decorrentes desse processo maior, dando-lhes novas formas e novos significados. (SCHMIDT, 1997, p.35).

Para Antônio Hohlfeldt (1997), tais significados se configuram como atualização e reinterpretação, a fim de transformar a cultura da qual partilham no presente ou no futuro, e, por conseguinte, transformações influenciadas pela industrialização do urbano e das tecnologias da informação que compõem o cenário. Além disso, como enfatiza Marques de Melo (2008, p.76), as festas são “[...] iniciativas mobilizadoras das comunidades humanas”, que estabelecem profundas relações culturais, religiosas, políticas e comerciais, mas, na verdade, devem ser vistas como processos de comunicação que fazem parte da sociedade e podem ter (ou não) ligação e apropriação da mídia, de forma que as relações estabelecidas em um processo de comunicação existente em uma festa são tão diversas que, para Schmidt (1997, p.39) é possível “[...] ter várias festas da mesma festa, ou até não tê-la mais”. Os motivos para isso são a mudança do homem do campo para a cidade e, recentemente, seu retorno; a chegada da urbanização às áreas rurais; o fenômeno descrito como conurbação, ou seja, a união de cidades pelo processo de crescimento das mesmas; e a chegada dos veículos de comunicação de massa, agora locais e regionais (SCHMIDT, 1997, p. 35-36).

Para tanto, aqui, entende-se a festa como processo cultural e, sobretudo, comunicacional, sendo assim, tomam-se os estudos de Roberto Benjamin (2004), onde o autor sistematiza a distinção entre os tipos de festa existentes. As festas privadas dizem respeito aos ritos de passagem, como aniversários, casamentos, comemorados em âmbito familiar ou em pequenos grupos. Já as festas públicas são subdivididas em dois grupos: institucionalizadas e espontâneas. As festas de caráter institucional são aquelas realizadas por meio de iniciativa de um grupo organizado, pelo poder público, ou seja, alguma instituição que a promova e divulgue. Tais manifestações podem ou não cair no gosto do público. Em oposição, existem as festas espontâneas, representadas pelas comemorações em conjunto da população ou de determinado grupo, incluindo os festejos folclóricos tradicionais. O autor é enfático em relação a essa modalidade de festa, pois, pode haver a influência por meio da cooptação da festa, além de sua manipulação por diversos interesses, sejam eles políticos, econômicos, e até religiosos.

Para Benjamin (2004), o processo de um sistema cultural deve passar pelos seguintes itens a fim de estabelecer essa relação de adequação de acordo com as relações contemporâneas: 1. Resistência cultural; 2. Refuncionalização como preservação; 3. Fusão com elementos da cultura de massa, gerando novos produtos; 4. Desaparecimento parcial, com sobrevivência de traços; 5. Desativação com possibilidade de reativação e refuncionalização; 6. Desaparecimento total; 7. Sobrevivência na arte erudita e na cultura de massas, através de projeção; 8. Recriação com refuncionalização através da recuperação dos elementos projetados na arte erudita e na cultura de massas (BENJAMIN, 2004, p. 27). Tais elementos podem ser encontrados em diversas festas que existem atualmente no país. Como resistência cultural pode-se citar a Congada da cidade de Ilha Bela, que se conserva como tradicional e não busca se “modernizar”, além de não deixar que as influências externas permeiem a manifestação. Já as manifestações que possuem refuncionalização como forma de preservação estão por toda parte, como exemplo, o artesanato, que não tem mais como função predominante o utilitário, mas sim o aspecto decorativo. Em relação às manifestações que incorporam elementos da cultura de massa, o autor cita como exemplo a música de Luiz Gonzaga – cantor também citado por Osvaldo Trigueiro (2005) como mesmo exemplo –, que tem suas raízes na música sertaneja, mas ao mesmo tempo, agregou elementos da música atual, e teve aceitação do público. Já a reativação diz respeito às festas que são deixadas de lado por um tempo, mas que podem voltar ao cenário da comunidade.

O desaparecimento parcial, com sobrevivência de traços é o mais comum pela forma como as influências econômicas se instauram nas manifestações, transformando-as. Há o desaparecimento total, configurado pelas manifestações que não conseguem se manter e chegam até os dias de hoje somente em citações orais ou pelos livros. Os itens 7 e 8 dizem respeito à relação que as manifestações estabelecem com a cultura de massa e com a cultura dita erudita, pois a cultura popular pode se projetar para essas duas esferas com o objetivo de se disseminar ou como uma forma de não deixar a manifestação morrer.

No contexto da comunicação, Marques de Melo (2008, p.79) estabeleceu três formas de comunicação existentes nas festas: a interpessoal (a festa age enquanto produtora das relações de grupo e da comunidade); a massiva (quando a festa se utiliza de meios tecnológicos promovidos pelas indústrias da mídia em espaços delimitados, ao estabelecer a comunicação entre os grupos primários e os participantes) e a intermediação comunicativa (que é a comunhão dos dois tipos citados, já que estabiliza relações institucionais sob a iniciativa de “[...] entidades enraizadas comunitariamente e antenadas coletivamente, que decidem o que celebrar, em que circunstâncias, com que parceiros”).

As manifestações populares possuem caráter diferenciado, pois se instauram no imaginário dos indivíduos de forma intrínseca àqueles que estão em sua volta. Da mesma forma que são influenciadas pelo sistema socioeconômico e pelas relações capitalistas, pois

São manifestações que estão associadas a essas dualidades do mundo real da vida e o mundo ficcional do imaginário simbólico, do disforme da natureza e as experiências oníricas que sempre fizeram parte das nossas histórias de encantados no mundo da infância e que chegam à vida adulta mais próximas da racionalidade. É a hibridização de tudo isso que dá a tônica à cultura popular no mundo globalizado pelos meios de comunicação e pelos novos interesses de consumo de bens culturais. (TRIGUEIRO, 2005, p.3).

Esse fenômeno é chamado por Yúdice (2004, p. 34) de “economia cultural” e diz respeito às relações produzidas por meio da cultura que “[...] simplesmente se tornou um pretexto para a melhoria sociopolítica e para o crescimento econômico” (YÚDICE, 2004, p.26), e que, de acordo com Sodré (2001, p.22), serve como uma ferramenta que ajuda a reproduzir as relações capitalistas. Trata-se da “conveniência da cultura” inerente ao modo de vida das sociedades contemporâneas e trabalhada por Yúdice em livro homônimo, que remete aos elementos que estabelecem a cultura como comércio.

Essa transformação também é comentada por Marques de Melo (2008, p.78) quando afirma que as manifestações populares “[...] funcionam como alavancas para o acionamento da engrenagem econômica, mobilizando produtores industriais, entrepostos comerciais e prestadores de serviços”, ou seja, as manifestações agora possuem caráter comercial. Dessa forma, entende-se que as manifestações populares – não somente as festas – estão intimamente ligadas às relações econômicas, de mercado e de interesses – tanto políticos quanto de determinada comunidade ou grupo hegemônico. Por isso a oferta de cultura é cada vez mais diversificada, sendo adequada de acordo com o pedido do freguês, como afirmou Gordon Mathews (2002, p.21): os indivíduos encontram-se um “supermercado cultural”. Ainda, como afirma Cristina Schmidt (1997, p.39), “se festa é comunicação, não há processo de comunicação que não se ajuste a fim de atender o receptor”. Assim como o supermercado se organiza para atender ao cliente, se o supermercado for cultural ou comunicacional, de acordo com as formas pré-estabelecidas de economia da sociedade, este também irá se diversificar para atender as demandas de seu público.

A morte e as festividades institucionalizadas do Día de los Muertos

A colonização do México possui uma grande diferença em relação à colonização em outros territórios, como, por exemplo, a brasileira. Dentre alguns dos motivos estão o objetivo, já que, diferentemente de um final extrativo, o México se tornou parte do território espanhol e muitos de seus habitantes foram viver na nova colônia, chamada de Nova Espanha. Outra questão importante foi a visão religiosa que passou a imperar no território mexicano desde a chegada desse povo, resultado do sincretismo entre as culturas que se chocaram. Entretanto, muitos dos costumes mexicanos continuaram presentes, resistindo ao tempo e às intervenções dos colonizadores. “O México antigo não conhecia o conceito de inferno” (tradução nossa) e, por isso, a morte era vista de forma diferente à crença derivada do catolicismo. A forma pela qual os mexicanos passaram a ver a morte desde a colonização influenciou bastante no que se pode ver atualmente em suas manifestações: um misto de veneração misteriosa aliada à não finitude da vida – herança dos indígenas e suas tradições relacionadas aos deuses – com um medo que lhes foi inculcado por meio da instauração da religião católica pelos espanhóis. Essa relação dúbia foi descrita por Octavio Paz em sua crônica Todos Santos, Día de Muertos:

Para os habitantes de Nova Iorque, Paris ou Londres, morte é palavra que jamais se pronuncia porque queima os lábios. O mexicano, ao contrário, a frequenta, zomba dela, a acaricia, dorme com ela, a festeja, é um dos seus brinquedos favoritos e seu amor mais permanente. De fato, em sua atitude há tanto medo como nos outros, mas, ao menos, não se esconde e nem a esconde; contempla-a cara a cara com impaciência, desdém ou ironia. (Tradução nossa).

Um dos exemplos mais significativos do sincretismo que aconteceu entre os mexicanos e os espanhóis se converteu em um dos eventos mais importantes na atualidade e de renome internacional, o Día de los Muertos. Festividade realizada em praticamente todo o país – cada região com sua particularidade – que abrangem grupos como os cuicatecos, ixiles e maias.

Como herança católica, observa-se a implementação da comemoração na data cristã estabelecida para o dia de “todos os santos” e também dos “fiéis defuntos”, celebrados nos dias 01 e 02 de novembro, diferentemente da época pré-hispânica, quando os indígenas celebravam o culto aos mortos de acordo com seu calendário agrícola. Mesmo com a mudança, os costumes indígenas continuaram presentes na manifestação, como a fartura alimentar – que garantia a fartura também na outra vida (VILLASEÑOR; CONCONE, 2012). Assim, afirma-se que a celebração é “[...] uma representação da identidade, uma recriação das origens de um povo sincrético e sintético. Sintetizam-se, somam-se, os corpos e as ideologias, sistemas culturais, mesclando não só nossas características físicas, mas também nossas mentalidades e saberes” (Tradução nossa).

Nesta festa é possível enxergar a forma como o mexicano lida com a morte, com uma espécie de devoção; além da maneira como convive com seus mortos quando se prepara para recebê-los com suas oferendas que estão repletas de alimentos, fotos e itens dos quais seus mortos gostavam. Trata-se realmente de uma celebração diferente da morte, tendo em vista a tradição brasileira do dia de finados, quando o costume é ir ao cemitério e prestar homenagem aos mortos. No caso mexicano, essa homenagem não é triste: mostra a alegria em estar com seus entes falecidos novamente nessa época do ano. Por isso, “[...] atualmente é a festa em que a morte invade a vida e a vida invade a morte, como dois movimentos do mesmo evento” (VILLASEÑOR; CONCONE, 2012, p. 40), o que mostra a força da tradição indígena no México, que conseguiu conservar essa relação, mesmo com a intervenção espanhola cristã.

Atualmente, o calendário das festividades conta com dois eventos institucionalizados. O primeiro deles é a Mega Procesión de las Catrinas, evento inspirado pela Catrina e que dá início às comemorações do Día de los Muertos na Cidade do México. Organizada pelo grupo Mega Body Paint México (autointitulado uma organização não-governamental e criado em 2014), a Procesión acontece desde 2014. De acordo com sua página no Facebook, o grupo se considera uma “organização artística multidisciplinar” com vários artistas, como telas vivas, fotógrafos, que tem como um dos eixos a educação, e que prioriza “fomentar o respeito pelo corpo humano e diminuir a morbidade nas novas gerações, mostrando o belo da arte corporal no ramo Body Paint. A educação e a reeducação no México também é nossa tarefa” (Tradução nossa).

O evento é todo organizado pela ONG, que chama o público para ajudá-los em todas as etapas pelas redes sociais. A mobilização é grande: as pessoas se reúnem ao redor do Angel de la Independencia, onde são montadas diversas barracas com artistas de pintura corporal que fazem as artes por um valor de cerca de 150 pesos mexicanos. Há uma grande concentração de pessoas fantasiadas, famílias, grupos, em sua maioria representando a Catrina e suas variações. A primeira edição teve a presença de aproximadamente 1500 pessoas, já em 2016 o número passou para 16 mil10. Em 2017 a expectativa foi de 30 mil pessoas, número que dobrou em 2018. Em 2019, o evento acontecerá no dia 26 de outubro.

Mega Procesión de Las Catrinas
Figura 1
Mega Procesión de Las Catrinas
Das autoras

O outro evento é o Desfile, que possui um caráter bastante interessante e que vai ao encontro do que foi citado acima sobre a intersecção entre mídia e cultura, além da cooptação das manifestações pelo governo. Esse evento não fazia parte do roteiro relacionado ao Día de los Muertos até o ano de 2016. Apesar de toda a tradição do culto à morte que acontece no México, a inclusão do Desfile no calendário ocorreu por conta de um elemento externo: o lançamento do filme 007 Contra Espectre, lançado nos Estados Unidos em novembro de 201511 e que traz, nas cenas de abertura, o personagem principal em uma aventura que se passa em um desfile do Día de los Muertos na capital mexicana.

La Catrina Garbancera de José Guadalupe Posada e gravações do filme “007 Contra Spectre” na Cidade do México
Figura 2 e 3
La Catrina Garbancera de José Guadalupe Posada e gravações do filme “007 Contra Spectre” na Cidade do México
Fonte 1: Das autoras. Fonte 2: https://www.youtube.com/watch?v=Tkvsyf1ke3w

A iniciativa aconteceu, sim, após a exibição do filme, que levou as autoridades à viabilizarem a realização do Desfile. Em entrevista à CNN, Alejandra González Anaya (uma das diretoras criativas), afirmou que “como resultado do filme de James Bond decidimos tomar vantagem diante dos holofotes e colocar na rua a grande oferenda que damos a nossos mortos” (Tradução nossa)12. Já para a BBC, a diretora executiva da Junta de Turismo de México, Lourdes Berho, disse que havia uma grande expectativa devido ao filme: “sabíamos que isso ia gerar um desejo por parte dos mexicanos e turistas para vir e participar de uma celebração ou um grande desfile” (Tradução nossa)13.

No ano de sua estreia, 2016, o Desfile do Día de los Muertos teve 250 mil pessoas, número que quadruplicou no ano de 2017, com um público de um milhão de pessoas, de acordo com os dados14 do governo mexicano.

As festividades espontâneas

O que acontece, independentemente da institucionalização, é o cenário que pode ser visto por toda parte. Nesse caso específico, a Cidade do México se enfeita e se prepara para receber seus mortos em suas casas, com suas oferendas, papel picado e muita comida. Todas as cores e sabores do México são evidenciados nessa época do ano, para que seus mortos sejam recebidos com aquilo que mais gostavam em vida. A tradição – de acordo com depoimentos orais – diz que é preciso montar a oferenda para receber aqueles que, a partir do dia 28 de outubro, começam a chegar para celebrar o Día de los Muertos. Para isso, devem ser colocadas flores (cempasúchil) que indicam o caminho das almas que saem para a visita, as comidas que os finados mais gostavam, bebidas, as caveiras feitas de açúcar/chocolate, fotografias dos entes queridos. Como a visita é feita desde o dia 28, no dia 2 de novembro as pessoas vão ao cemitério para acompanhar aqueles que estão em outro plano fazendo a alumbrada – o acender de muitas velas – para iluminar o caminho daqueles que precisam partir. A tradição é tão forte que se acredita que ao fazer o levante, quando todos comem o que foi oferecido, as comidas já não têm mais o gosto, uma vez que as “visitas” as comeram durante esses dias de festa.

Em uma comparação breve com o que é feito no Brasil, que tem em seu cerne a tristeza pela perda, por exemplo, o dia de finados no México é alegre e colorido. No dia 02 de novembro os cemitérios ficam cheios: são colocadas barracas de comida, há música, oficinas para as crianças e brinquedos. Pelas imagens é possível perceber a intensidade dos eventos e o envolvimento do povo mexicano, que também está presente nas atividades espontâneas, que acontecem nos lares ou nos grupos que conseguem manter a tradição viva em todos os espaços.

Día de los Muertos no cemitério de San Antonio Tecomitl
Figura 4
Día de los Muertos no cemitério de San Antonio Tecomitl
Das autoras.

Ofrenda em uma casa
Figura 5
Ofrenda em uma casa
Das autoras.

Alumbrada no cemitério de Mixquic
Figura 6
Alumbrada no cemitério de Mixquic
Das autoras.

Considerações finais

O Día de los Muertos se configura em um “[...] conjunto de práticas e tradições que prevalecem em torno das celebrações dedicadas aos mortos [...], que hoje constitui um dos costumes mais vigorosos e dinâmicos do México” (Tradução nossa)15. Justamente por isso corresponde a um aspecto cultural em constante transformação, mudança essa que pode estar nos mais diferentes elementos da sociedade. No entanto, a título de esclarecimento, de acordo com a historiadora Yolanda García González (INFORMAÇÃO VERBAL)16, a retomada do uso das Catrinas como elemento de identificação mexicana é uma dinâmica recente, mesmo que nunca tenha deixado de existir no imaginário do país.

Como eventos institucionalizados, de acordo com a proposta de Roberto Benjamin (2004), a Mega Procesión de las Catrinas pode ser um exemplo, mas que demonstra um caráter popular no que diz respeito a sua realização, pois consegue se organizar aquém dos meios massivos. Mesmo tendo a cobertura do evento realizada pelas principais mídias da Cidade do México, a convocação das Catrinas é realizada pelas redes sociais e também por meios alternativos como sites e blogs, reiterando a afirmativa de Beltrão (2004, p.16) de que essas informações veiculadas por meios alternativos têm “[...] tanta importância comunicacional quanto aquelas difundidas pelos mass media”. Além de levar as pessoas à uma ação efetiva para promover sua cultura.

Já o surgimento do Desfile do Día de los Muertos, deveu-se à influência de um blockbuster hollywoodiano, responsável pela criação e inclusão do evento na agenda festiva do México. Isso mostra como as mídias – neste caso, o cinema – tem um grande apelo e pode ser responsável pelo agendamento cultural, em um movimento cíclico. O questionamento de Marques de Melo à “roupagem hollywoodiana” (2008, p.71) em relação ao carnaval traz questionamentos pertinentes de como a influência externa afeta as manifestações populares, já que a mídia pode atuar como projetora de tal cultura. Esse aspecto é o que se observa no caso do Desfile do Día de los Muertos, já que nele pode-se ver realmente de que maneira uma mídia pode projetar uma cultura – por meio do filme e independentemente do motivo pelo qual o governo mexicano decidiu incluir o evento em sua agenda17. Nesse sentido, o autor pontua que a agenda midiática contemporânea “[...] também podem funcionar como alavancas para a renovação dos modos de agir, pensar e sentir”, e ainda reitera que

[…] o folclore midiatizado possui dupla face. Da mesma forma que assimila ideias e valores procedentes de outros países, preocupa-se com a projeção das identidades nacionais, exportando conteúdos que explicitam as singularidades dos povos aspirantes a ocupar espaços abertos no panorama global. (MELO, 2008, p.41-42).

Foi dessa maneira que o México viu uma de suas tradições ter um alcance global e resolveu aproveitar a chance para, também, mostrar sua cultura para o mundo.

Por fim, nascida de manifestações populares espontâneas, o Día de los Muertos mostra sua força em cada residência mexicana, revela ao mundo suas cores e sabores com mostrando ao mundo uma forma diferente de olhar a morte, manifestação essa que se transformou e que foi cooptada pelo poder público e pelas instâncias econômicas.

Pensemos em uma festa popular, como podem ser a festa do dia dos mortos ou o Carnaval em vários países latino-americanos. Nasceram como celebrações comunitárias, mas num ano começaram a chegar turistas, logo depois fotógrafos de jornais, o rádio, a televisão e mais turistas. Os organizadores locais montam barracas para a venda de bebidas, do artesanato que sempre produziram, souvenirs que inventam para aproveitar a visita de tanta gente. [...] Claro que as relações não costumam ser igualitárias, mas é evidente que o poder e a construção do acontecimento são resultado de um tecido complexo e descentralizado de tradições reformuladas e intercâmbios modernos, de múltiplos agentes que se combinam. (CANCLINI, 2008, p.262)

A afirmação de Canclini deixa evidente a relação comumente estabelecida entre a festa e os diversos setores da sociedade, sobretudo em relação à mídia. A questão também é abordada por Alfredo Bosi (1987): quanto o autor afirma que a festa está nos e entre os festeiros e os elementos que a compõem, de forma que existe uma conaturalidade entre a festa e os participantes. No entanto, o autor é enfático ao falar da perda dessa característica, pois afirma haver um distanciamento provocado através do momento em que “[...] o turismo (ou a TV, paraíso do viajante de poltrona) toma conta dessas práticas: a festa, exibida, mas não partilhada, torna-se espetáculo. Nesse exato momento, o capitalismo se apropriou do folclore, ocultando o seu teor original de enraizamento” (BOSI, 1987, p. 11). A mercantilização, economicização e espetacularização das festas são fatos recorrentes àquelas que não conseguem sobreviver ou que são cooptadas, no entanto, “[...] o cerne das festas populares está localizado no interior da sociedade civil, cujas instituições desencadeiam os processos de celebração que as nutre e fortalece, mas também pode fazê-las definhar e desaparecer” (MELO, 2008, p.79), pois, de acordo com Marques de Melo, as festas que não possuem o elemento civil não se configuram como atos culturais, ou, também, manifestações culturais. De forma que, como sistema comunicacional, as festas possuem em sua essência a necessidade da interação com a sociedade na qual está inserida, para que o processo seja heterogêneo e passível do “[...] conjunto de procedimentos de intercâmbio de informações, ideias, opiniões e atitudes” pregado por Luiz Beltrão (1980, p.24), por isso o Día de los Muertos se mantém vivo, pois antes de ser uma agenda para turista, está na vida e nas relações dos mexicanos.

Referências bibliográficas

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Notas

4 “O culto à vida, se realmente é profundo e total, é também culto à morte. Ambas são inseparáveis. Uma civilização que nega a morte, acaba por negar a vida.” (Tradução nossa). Trecho retirado do livro El labirinto de la soledad, 1999, p. 65
5 “El México antiguo no conocía el concepto del inferno” (WESTHEIM, 1983, p. 10)
6 “Para el habitante de Nueva York, Paris o Londres, la muerte es la palabra que jamás se pronuncia porque quema los labios. El mexicano, en cambio, la frecuenta, la burla, la acaricia, duerme con ella, la festeja, es uno de sus juguetes favoritos y su amor más permanente. Cierto, en su actitud hay quizá tanto miedo como en la de los otros; mas al menos no se esconde ni la esconde; la contempla cara a cara con impaciencia, desdén o ironía.” (PAZ, 1999, p. 63)
7 “[...] es una re-presentación de la identidad, una re-creación de los orígenes de un pueblo sincrético y sintético. Se sintetizan, suman, los cuerpos, somas, y las ideologías, sistemas culturales, mestizando no sólo nuestras características físicas, sino también nuestras mentalidades y saberes.” (CONACULTA, 2006, p.32)
8 Criada por José Guadalupe Posada a La Catrina Garbancera foi uma maneira bem humorada do autor expor o ponto de vista das camadas populares, focando no popular frente às personalidades da sociedade mexicana. Ela retrata o esqueleto de uma mulher com um grande chapéu e que foi utilizada por Posada para representar as mulheres da alta sociedade mexicana do início do século XX, ou mesmo aquelas que gostariam de fazer parte desse círculo social e, para isso, tentavam imitar as damas.
9 “Mega Body Paint México es una organización artística multidisciplinaria en la cual convergen artistas visuales, lienzos vivos, fotógrafos entre otras actividades. Uno de los ejes base es la Educación... Fomentar el respeto por el cuerpo humano y disminuir el morbo en las nuevas generaciones mostrando lo bello del arte corporal en la rama del Body Paint.” La Educación y re educación social también es tarea nuestra. Mega Body Paint México.”
11 Informações e ficha técnica disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-206892/
12 "Como resultado del filme de James Bond decidimos tomar ventaja de los reflectores y poner en la calle la gran ofrenda que le damos a nuestros muertos". Matéria disponível em: http://cnnespanol.cnn.com/2016/10/28/la-ciudad-de-mexico-copia-a-spectre-y-realiza-su-primer-desfile-del-dia-de-muertos/ , 2016
13 "Sabíamos que esto iba a generar un deseo por parte de los mexicanos y turistas para venir y participar en una celebración o un gran desfile". Matéria disponível em: http://www.bbc.com/mundo/noticias-37813219 , 2016.
15 “El conjunto de prácticas y tradiciones que prevalecen en torno a las celebraciones dedicadas a los muertos, tanto en las ciudades como en un gran número de poblaciones rurales, hoy constituye una de las costumbres más vigorosas y dinámicas de México.” (CONACULTA, 2006, p. 18)
16 Entrevista concedida à autora em outubro de 2017
17 Neste caso, vê-se claramente que o motivo para a realização do Desfile foi o atrativo turístico que foram, primeiro, explorados pelo filme
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