Resumo: O artigo faz uma síntese das relações acadêmicas que o autor deste texto teve com o pesquisador estudado, destacando-se a contribuição de Beltrão à pesquisa em comunicação social no Brasil e o papel, estratégico desempenhado por José Marques de Melo na valorização, reconhecimento e difusão da Folkcomunicação na academia brasileira.
Palavras-chave:FolkcomunicaçãoFolkcomunicação,Luiz BeltrãoLuiz Beltrão,José Marques de MeloJosé Marques de Melo,INTERCOMINTERCOM.
Abstract: This paper has the focus about the relationship between the autor of this study with Beltrão and his work. The paper detach the role of Luiz Beltrão works and the strategic influence of José Marques de Melo to spread the Folkcomunication theory.
Keywords: Folkcomunicação, Luiz Beltrão, José Marques de Melo, INTERCOM.
Dossiê
O legado de Luiz Beltrão sob a ótica de José Marques de Melo¹
The legacy of Luiz Beltrão from the perspective of José Marques de Melo

Recepção: 15/10/2018
Aprovação: 25/10/2018
Eu conheci Luiz Beltrão por um acaso, há muitos anos, trabalhando como jornalista cultural no Correio do Povo, de Porto Alegre. Ele havia sido caçado da UNB, mas contraditoriamente trabalhava como assessor de comunicação da FUNAI... Coisas da ditadura. Ele acabava de lançar um livro pela Editora Vozes, de Petrópolis, chamado O índio, um mito brasileiro. Nele, Beltrão trazia a percepção recém constituída sobre o índio brasileiro e a maneira pela qual, ao mesmo tempo em que ele estava incluído no discurso oficial, era menosprezado e marginalizado. Fiz uma entrevista com ele, que publiquei no jornal, e nada mais aconteceu.
Muitos anos depois, concluindo meu Mestrado e iniciando o Doutorado, aproximei-me da INTERCOM. Já conhecia José Marques de Melo por causa de outra entidade, a pioneira, que aproximara pesquisadores brasileiros da comunicação, diante dos constantes assaltos da ditadura, a UCBC – União Cristã Brasileira de Comunicação, de que participava. José Marques, sabendo que eu concluía meus estudos formais, imediatamente começou a me encomendar pesquisas e artigos. Como todos sabemos, esta era a melhor maneira dele de receber alguém e abrir-lhe espaço. Aproximou-me, então, da Cátedra UNESCO e do Colóquio Internacional sobre a Escola Latino-americana. Logo depois, pediu-me que escrevesse a respeito de personagens da política brasileira sob a perspectiva da Folkcomunicação, o que redundou no artigo “A imagem da política na folkcomunicação” (2004). A partir daí, a cada ano, encarregava-me de abordar algum aspecto que pudesse render alguma reflexão na área. Foi assim que escrevi ensaios como “50 anos de um clássico do jornalismo brasileiro”, quando do congresso da INTERCOM ocorrido em Caxias do Sul, quando se comemorava meio século da publicação de Introdução à filosofia do jornalismo. Mais recentemente, e como conseqüência de minha convivência com sua teoria, escrevi um ensaio intitulado “Uma teoria da comunicação para sociedades com grandes diferenças sociais” (2012), posteriormente publicado em livro. Guilherme Fernandes, há poucos anos, teve a idéia fantástica idéia de organizar uma espécie de enciclopédia ou compêndio com alguns artigos referenciais sobre a Folkcomunicação (Metamorfose da Folkcomunicação, 2013) que servissem de balizamento para a área, e aí estão incluídos, dentre outros textos maravilhosos, artigos meus como “Folkcomunicação: positivo oportunismo de quase meio século” (publicado originalmente em 2001). Também escrevi “Novas tendências nas pesquisas de Folkcomunicação” (2003) e, por desafio de José Marques, fui conhecer a literatura de ficção de Luis Beltrão, o que resultou no artigo “Luiz Beltrão: do Jornalismo à literatura” (2003)³.
Por que me alongo nestas referências? Porque, a partir de minha própria experiência, que deve ser a de muitos de vocês, posso testemunhar a ação extremamente produtiva e positiva de José Marques de Melo no sentido da revisitação, revalorização e renovação constante da herança acadêmica deixada por Luiz Beltrão.
Para que se entenda bem o significado desta ação propositiva de José Marques de Melo, há que se relembrar um pouco o processo de criação e de desenvolvimento da obra de Luiz Beltrão. Ele foi o idealizador do primeiro curso de Jornalismo em nosso país, na Universidade Católica de Pernambuco. Criou o primeiro centro de pesquisas em comunicação do país (o ICINFORM – Instituto de Ciências da Informação) e uma primeira publicação especializada (Comunicação & Problemas, 1965) que há pouco anos a INTERCOM tratou de reeditar, na forma fac-similada e mediante transcrição de textos. Mudando-se para Brasília, assumiu o curso de Comunicação Social da UNB, substituindo Pompeu de Souza, quando, logo depois do golpe, aquela universidade sofreu uma intervenção direta dos militares. Trabalhando ali, resolveu dar exemplo quanto à importância da formação acadêmica dos professores e desenvolveu seu Doutorado, que resultou na tese Folkcomunicação:Um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias (1965), publicada parcialmente pela Melhoramentos, que censurou a obra, sobretudo na parte teórica, com medo das autoridades, já que Beltrão utilizava, dentre outros autores, a obra de um folclorista (Edison Carneiro) considerado comunista na época. O teor completo da tese só veio a ser editado em 2001, por minha iniciativa, através da Editora da PUCRS, encontrando-se atualmente em segunda edição. Beltrão tornava-se, assim, o primeiro Doutor em Comunicação no Brasil. José Marques de Melo, alagoano, desloca-se para o Recife e vem a ser aluno de Luiz Beltrão, mais tarde, seu discípulo, amigo e divulgador. É assim simples? Nem tanto.
A teoria de Beltrão sobre os dois diferentes ciclos comunicacionais existentes no Brasil, o de massa e o popular, surgiu na década de 1960, quando efetivamente o país ainda experimentava um fracionamento radical nos modos e condições de vida da sociedade nacional. As intensas migrações rurais ocorridas nas décadas de 1950 e 1960, que ainda seriam observadas em 1970, por causa da crescente industrialização dos grandes centros, formara extensas camadas de mão-de-obra miserável e pouco remunerável em todo o país. Além do mais, havia enorme carência de infra-estrutura para estes recém-chegados. Ao mesmo tempo, o nível de letramento dos mesmos era praticamente nulo ou mínimo. Tudo isso gerou o contexto surpreendido por Luiz Beltrão em sua tese que, resumidamente, mostrava isso: havia um circuito letrado, historicamente constituído (desde o Brasil colonial, diga-se de passagem) que naquele momento de seus estudos estava vinculado à comunicação de massa. Lembremos que a administração militar mexera radical e profundamente nos meios de comunicação, criando a telefonia à distância, as redes televisivas e se preocupava com satélites de comunicação. Podia-se agora falar com facilidade com Paris, assistir a um programa de televisão internacional, mas nas grandes cidades faltava água e em lugares distantes da Amazônia, Nordeste e Brasil Central inexistia até mesmo a iluminação. Este é o ponto de partida de Beltrão, que se vale da teoria do duplo fluxo da informação (two step flow), de Paul Lazarsfeld, Bernard Berelson e Hazel Gaudet. O problema é que esta teoria era generalista, embora acertada. Para a teoria, uma informação não circula diretamente de uma fonte até um receptor, mas ela é sucessivamente transmitida através de vários receptores, que se transformam em fontes, até um receptor final. Ao mesmo tempo, ela identificava e reconhecia dos chamados líderes de opinião, o que tem a ver com as chamadas influências pessoais. De modo geral, nos grupos sociais, há algumas figuras que circulam mais amplamente, saindo de suas próprias fronteiras, ou porque estabelecem relacionamentos mais variados, ou porque se encontram mais bem informados, a partir de leituras, audiências, etc. Por isso, são reconhecidos e acatados, transformando-se em eficientes agentes de comunicação, na medida em que transmitem o que é produzido em seu próprio círculo de vivência aos demais círculos e vice-versa, realizando uma espécie de tradução e/ou adaptação destas mensagens. No caso da tradução de mensagens externas para o círculo interno podem-se citar os caixeiros viajantes, por exemplo. OU, exemplo recente de uma tese de doutorado defendida em nosso Programa, um engenheiro encarregado de projetar casas populares numa vila de trabalhadores rurais.
A diferença da tese de Beltrão é que ele situava seu estudo, como mais tarde destaquei, em sociedades que se caracterizavam por grandes diferenças sociais, o que, de certo modo, fragmentava aquela sociedade em múltiplos grupos. A teoria, assim, permitia entender os diferentes processos comunicacionais que ocorriam no país, por exemplo, a partir dos ex votos, que foi justamente o primeiro tema abordado por Beltrão, em artigo que chegou a ser elogiado por Câmara Cascudo e chamou a atenção de Gilberto Freyre, artigo este publicado justamente na revista Comunicação & Problemas.
Ocorre que sua teoria pouco circulou nas escolas de comunicação do país, sobretudo graças à hegemonia das teorias norte-americanas. O mesmo professor que falava sobre Lazarsfeld ou Berelson desconhecia Beltrão. Isso significou que, com a morte de Beltrão (1986), seu legado desapareceria. É então que surge a figura de José Marques de Melo. A partir da Cátedra UNESCO, na Universidade Metodista, ele passa a dirigir sua atenção para o que chamará de Escola Latino-americana de Comunicação e, ao mesmo tempo, nos colóquios que propõe, começa a estudar a obra de Luiz Beltrão. Como decorrência desse trabalho, cria-se um grupo de pesquisa, na INTERCOM, dirigido à Folkcomunicação e não tardará que um grupo de parceiros, dentre os quais Roberto Benjamin e Osvaldo Trigueiro, criem a Folkcom que, a partir de então, realizará suas próprias pesquisas, encontros e constituição de uma entidade, com publicações e encontros que logo se tornarão também internacionais, dialogando com pesquisadores de Portugal que igualmente se voltavam para a comunicação popular, de sorte que hoje em dia, no âmbito dos congresso da Lusocom, temos um GT de folkcomunicação.
Mais do que isso, foi por iniciativa de José Marques de Melo que a INTERCOM instituiu, em 1988, o Prêmio Luiz Beltrão, desdobrado em quatro categorias: Personalidade – Maturidade Acadêmica e Personalidade – Liderança Emergente; Grupo Inovador e Instituição Paradigmática. O prêmio da categoria Personalidade se dirige aos pesquisadores brasileiros que, ora se destacaram, ao longo de sua carreira, ora começam a se projetar, no início de suas pesquisas. Os prêmios dirigidos às instituições focam aquelas que já mostram evidente contribuição com a pesquisa brasileira sobre comunicação, seja aquelas que inovam significativamente o campo da pesquisa⁴.
Uma segunda questão que se deve levar em conta, e que foi sabiamente bem trabalhada e recuperada por José Marques de Melo, é o fato de o próprio Luiz Beltrão ter atualizado sua teoria. O Brasil dos anos 1960 naturalmente não era mais o Brasil dos anos 1970 e 1980. Neste sentido, Luiz Beltrão se deu conta de que a teoria sobre a comunicação dos marginalizados precisava acompanhar as mudanças verificadas no país. Por isso, a dualidade originalmente anotada apenas entre as grandes cidades e as zonas rurais deu lugar a uma observação mais complexa, que mostrava a manutenção de dois circuitos nem sempre comunicáveis, na sociedade brasileira, mas que co-existiam espacialmente. Daí que, em um de seus últimos trabalhos (Subsídios para uma teoria da comunicação de massas, 1986), Beltrão, passou a falar de grupos marginalizados do ponto de vista cultural, geográfico, sexual (de certo modo, ele foi pioneiro na identificação desta categoria social que hoje em dia é tão discutida e pesquisada em nosso país), o que permitiu uma renovação e atualização de sua teoria para a contemporaneidade. Foi a partir desta perspectiva que José Marques de Melo buscou divulgar os estudos de Luiz Beltrão, alcançando pleno êxito, como se verifica com facilidade, bastando observar-se a dinâmica e a organização, bem como a repercussão e a lenta mas constante difusão da teoria beltraniana entre pesquisadores brasileiros que têm dificuldade de reconhecer a contribuição do pesquisador nordestino sobretudo por seu vezo colonizado, que muitas vezes impede que se reconheçam contribuições locais para estudos mais gerais.
Seja como for, o que se pode afirmar, com absoluta certeza é que, sem as iniciativas de José Marques de Melo, provável e independentemente de sua qualidade, importância e oportunidade, como já escrevi em um artigo, a teoria da folkcomunicação não teria sobrevivido ao tempo. Neste sentido, pode-se e deve-se afirmar, sim, que foi graças a José Marques de Melo, seguido por outros pesquisadores, dentre os quais, hoje em dia, Maria Cristian Gobbi, Marcelo Sabattini, Guilherme Fernandes, Karina Woitowicz, Cristina Schmidt, Betânia Maciel, Itamar Nobre e muitos outros, que a Folkcomunicação sobreviveu enquanto uma teoria que traduz uma importante contribuição brasileira à discussão sobre os processos comunicacionais, e que pode ser amplamente aplicada no estudo de correntes e processos comunicacionais, sempre que ocorrerem diferenças sociais significativas, o que significa, em todas as sociedades: pensemos as comunidades negras dos Estados Unidos; as distâncias entre populações francófonas e anglófonas canadenses; as diferenças entre os povos eslavos na Europa; as relações entre imigrantes e populações nativas de países como Alemanha, França, Itália, hoje em dia , e assim por diante. A teoria da Folkcomunicação é, SM, uma perspectiva muito rica, muito útil e muito efetiva para estudos deste tipo, facilitando a apreensão de fenômenos que se preocupem com marginalizações sociais e suas conseqüências ou ultrapassamentos a partir justamente de processos comunicacionais.
Por fim, registre-se que o próprio José Marques de Melo é a perfeita ilustração da teoria beltraniana da liderança folkcomunicacional. Melo foi formado no círculo formal universitário da cultura de massa, mas seja graças às suas origens alagoanas, quer por sua ação enquanto professor e pesquisador, vinculando-se desde cedo à perspectiva teórica de seu mestre e amigo, foi suficientemente sensível para tornar-se esta liderança a que se referia Luiz Beltrão, convivendo com naturalidade com os círculos mais populares e, ao mesmo tempo, com as instâncias formais da universidade, aproximando ambas as instâncias e enriquecendo-as, alternativamente.