Resumo: O meu último encontro presencial com José Marques de Melo foi no Recife/PE durante a realização do FOLKCOM 2017, em que ele fazia a importante observação da necessidade de uma releitura dos estudos de Luiz Beltrão para compreender os acontecimentos midiáticos no século XXI no contexto da folkcomunicação. Como não poderia deixar de ser assumi, em parte, esse compromisso que público, parcialmente, neste artigo as pesquisas que venho desenvolvendo sobre as festas tradicionais populares e a importância dos novos agentes intermediários culturais nos processos de atualização da folkcomunicação.
Palavras-chave:AtualizaAtualiza,TempoTempo,CaldeamentoCaldeamento,MarginalizadosMarginalizados,Hibrido CulturalHibrido Cultural.
Abstract: My last face-to-face meeting with José Marques de Melo was in Recife / PE during FOLKCOM 2017, in which he made the important observation of the need to re-read Luiz Beltrão's studies to understand the media events in the 21st century in the context of folkcommunication. As I could not help being part of this commitment, I partially publish in this article the research I have been doing on popular traditional festivals and the importance of the new cultural intermediary agents in the processes of updating folk communication.
Keywords: Updates, Time, Heating, Marginalized, Cultural Hybrid.
Dossiê
Os agentes intermediários culturais e os processos de atualização na folkcomunicação
Intermediate cultural agents and the processes of updating in folkcommunication

Recepção: 15/10/2018
Aprovação: 25/10/2018
Luiz Beltrão, ao publicar o livro Iniciação a Filosofia do Jornalismo – 1960 e Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados – 1980, aqui citando dois livros entre tantos outros, confirma o seu pioneirismo e cada vez mais vejo quanto eram avançados os seus estudos no campo teórico e empírico das ciências da comunicação e suas aproximações com as interações socioculturais principalmente nas cidades rurbanas² do Nordeste brasileiro.
Relendo o livro de Luiz Beltrão, Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados - 1980, no capítulo Civilização e Comunicação vamos encontrar relatos históricos sobre a Península Ibérica, desde a invasão dos mouros, da expansão do cristianismo, passando pela Idade Média, os grandes descobrimentos dos séculos XV e XVI, a revolução comercial e as mobilidades humanas que formaram e desenvolveram um caldeamento sociocultural dos povos ibéricos, que povoaram diferentes localidades da terra.
Mais adiante, ainda no mesmo capítulo, citando o folclorista e etnólogo Edson Carneiro, na sua obra “Dinâmica do Folclore – 1977, ele afirma:
“sob a pressão da vida social, o povo atualiza, reinterpreta e readapta constantemente os seus modos de sentir, pensar e agir em relação aos fatos da sociedade e aos dados culturais do tempo”, fazendo-o através do folclore, que é dinâmico porque “não obstante partilhar, em boa percentagem, da tradição e caracterizar-se pela resistência à moda... é sempre, ao mesmo tempo que uma acomodação, um comentário e uma reivindicação”(BELTRÃO, 1980, p. 24)
E foi a partir dessa citação sobre a dinâmica do folclore que Beltrão vincula o folclore à comunicação popular, que o inspirou e ajudou a criar a Teoria da Folkcomunicação.
No capítulo “O Sistema da Folkcomunicação” Beltrão justifica o uso da expressão marginalizado, a partir do conceito criado em 1928 pelo sociólogo, professor e jornalista norte-americano da Escola de Chicago, Robert Park nas análises dos seus estudos sobre as relações de raças, migrações, movimentos sociais e as desorganizações da ocupação dos espaços urbanos. E não no sentido pejorativo, da conotação vinculada ao marginal, contraventor e ao bandido.
Beltrão também demonstra o seu pioneirismo quando chama atenção para o migrante como sujeito híbrido cultural que em terras estranhas embora compartilhe as suas tradições culturais com a de outros povos, mesmo com todas as dificuldades socioeconômicas e políticas, não esquece as suas raízes.
A expressão marginal surge, na literatura científica, pela primeira vez em 1928, em artigo de Robert Park sobre as migrações humanas, publicado no American Journal of Sociology. O migrante é ali definindo como um “híbrido cultural”, um “marginal”, que, embora compartilhe da vida e das tradições culturais de dois povos distintos, “jamais se decide a romper, mesmo que lhe fosse permitido, com seu passado e suas tradições, e nunca (é) aceito completamente, por causa do preconceito racial, na nova sociedade em que procura encontrar um lugar” (BELTRÃO, p. 38-39).
Na releitura do livro de Beltrão e a partir das citações: atualiza, tempo, caldeamento, marginalizados e híbrido cultural, passei a procurar e entender melhor os diferentes processos de atualização da cultura popular e do folclore, no decorrer do tempo histórico da sociedade humana desde a Idade Média aos dias atuais. Nestes processos de atualização emergem com maior intensidade os novos agentes intermediários culturais no sistema da folkcomunicação, agora na sociedade midiatizada, como operadores das mediações entre os produtores de bens culturais midiáticos e a recepção nas comunidades rurbanas. É nessa perspectiva que venho investigando as festas populares tradicionais na contemporaneidade e os seus diferentes processos de atualização no contexto da sociedade midiatizada e da folkcomunicação.
Não se trata de um estudo sobre religiosidade, nem antropológico ou sociológico, poderia dizer que também é, mas, trata-se especialmente, de compreender os processos da folkcomunicação nas festas tradicionais da piedade popular que são cada vez mais associadas aos acontecimentos midiáticos e que passam por profundas modificações nas estruturas de produção e realização, cujos interesses são potencializados pela indústria do entretenimento, do turismo e do poder político local. Portanto, estamos observando a festa enquanto mobilidade das relações entre os grupos primários e a coletividade, através das negociações dos agentes intermediários culturais e as midiatizações tecnológicas propiciadas pela indústria do entretenimento e do turismo, em espaços geograficamente delimitados, locais, regionais, nacionais. Trata-se do fluxo de comunicação massiva no contexto da folkcomunicação (MELO, 2008; BENJAMIM, 2000). É neste campo de negociação entre os produtores e realizadores locais das festas populares, aqui se referindo às instituições da cidade onde acontecem as festas e seus produtores e realizadores, aqui se referindo aos representantes das instituições exteriores que produzem e realizam as festas objetivando o lucro dos negócios e dos espetáculos. Ao longo do tempo essas práticas de realizar festas sagradas e profanas sempre fizeram parte dos processos das transformações culturais e religiosas da sociedade humana dando origem aos diversos protagonistas e suas performances nos modos de produzir e realizar os festejos do calendário litúrgico do catolicismo popular. São essas práticas do passado que chegam ao presente com as suas diversidades nacionais, regionais e locais recheadas de novos significados e referências impregnadas de apropriações e incorporações de valores simbólicos de bens de consumo que reestruturam e atualizam as dimensões culturais, religiosas, políticas e comerciais das festas populares na atualidade.
Como parte essencial da sociedade o ser humano organiza e realiza as suas festas para divulgar as suas culturas, as suas histórias e rememorar seus importantes acontecimentos. É nas observações e nas interpretações das festas populares que as comunidades descobrem os códigos, as regras e os estatutos construtores do ensinar e aprender as diversidades da cultura individual e coletiva (BRANDÃO, 1974)
É importante dizer que as festas religiosas populares passaram e passam por modificações, mas não significa dizer que o povo deixou ou deixará de organizar e realizar as suas festas sagradas e profanas. O que modifica é o sistema de produção e de realização dessas festas nos diferentes contextos culturais, para atender as demandas da indústria do entretenimento, do turismo e dos grupos políticos locais (TRIGUEIRO, 2008).
Na atualidade é quase impossível desconectar as manifestações da cultura popular e o folclore das novas tecnologias da comunicação e da informação, até porque os brincantes dessas manifestações culturais estão, também, quase sempre conectados na Internet, no Tablet, no iPad, no Smartphone, no WhatsApp, no Youtube, no Blog, no Facebook e em tantas outras mídias que registram, que gravam, que divulgam e que até transmitem ao vivo os acontecimentos da vida cotidiana e das suas festas. Ou seja, já não são totalmente dependentes do apoio da exterioridade ou do profissional para documentar os acontecimentos midiáticos no seu grupo social e na sua comunidade rurbana.
As redes folkcomunicacionais na atualidade estão impregnadas de agentes intermediários culturais (BELTRÃO, 1980; FERREIRA, 2012), que operam os diferentes processos de midiatizações (SODRÉ, 2002), como ativistas midiáticos e mediadores (TRIGUEIRO, 2008), entre as empresas da indústria do entretenimento e as instituições locais detentoras dos calendários das festas populares tradicionais. Portanto, na sociedade atual os agentes intermediários culturais da rede folkcomunicacional atuam na produção e realização dessas festas, onde são reinventadas as tradições no tempo e espaço do calendário litúrgico, para atender as demandas da sociedade midiatizada. É nessas ocasiões que, os agentes intermediários culturais da folkcomunicação, executam intensamente os processos de midiatização entre os significados culturais pertencentes às instituições da exterioridade (indústria do entretenimento e do turismo, etc.), e as instituições detentoras do calendário litúrgico das festas populares tradicionais locais (prefeitura, igreja, associação comunitária, corporações, etc.), mas todas convergem para os mesmos objetivos, a produção e realização das festas. Logo os agentes intermediários atuam com maior quantidade e qualidade de informação, de acordo com o seu mundo cognitivo pelo grau de relevância temática. Quanto maior for o campo de interesse comum entre emissor e receptor maior será o nível de recepção no campo da folkcomunicação.
A religiosidade popular, desde a antiguidade, sempre foi alimentada pela criatividade, pela espontaneidade e pela aculturação dos seus seguidores que, através dos longos anos de peregrinações rumo aos lugares sagrados, contavam as histórias de vida nas feiras, nas procissões, nos pagamentos de promessas, nas festas religiosas da piedade popular e em tantas outras atividades da vida cotidiana fortemente marcada com a presença da igreja na Idade Média. Os peregrinos sempre operaram estratégias de comunicação nas extensas redes mnemônicas muitas vezes dissimuladas, astutas, camufladas, como táticas de convivências e de conveniências, quando necessário, mas nunca desatentos, resistindo e interpelando os fatos mesmo entre “a cruz e a espada” da dominação da igreja no período medieval na Europa (ZUMTHOR, 1993, p.147).
Os processos de atualizações das festas religiosas populares são tão antigos quanto a própria expansão do cristianismo na Península Ibérica. As redes tradicionais de comunicação operadas por diferentes povos nos caminhos das peregrinações, com a participação dos agentes intermediários culturais, ao longo do tempo, tiveram grande importância nas ressignificações das tradições religiosas e nos processos de atualização da cultura popular.
Desde a antiguidade os agentes intermediários culturais apropriavam-se dos discursos oficiais da corte, da igreja e davam novos atributos aos conteúdos nas práticas sociais e religiosas nos seus grupos primários e secundários. Mas a interferência dos agentes intermediários culturais na antiguidade era de forma horizontal, de mediações face a face ou grupal e não midiatizada como quase sempre acontece na atualidade. Não quer dizer que o sistema horizontal e face a face não tenha a sua importância nas comunidades rurbanas atuais, mas os sistemas de interação nos grupos locais estão cada vez mais “afetados” pelos sistemas de midiatização e que são cada vez mais operados pelos agentes intermediários culturais como ativistas midiáticos nas negociações de mediação entre as instituições da exterioridade e as instituições locais. Na sociedade midiatizada os moradores das cidades rurbanas continuam vinculados às suas tradições e ao mesmo tempo agregam novos significados culturais veiculados pela mídia nos afazeres cotidianos. É nessas instâncias de interação entre as redes midiáticas e as redes da folkcomunicação nas comunidades rurbanas que emergem, com maior intensidade, os agentes intermediários como mediadores dos diferentes processos de atualização dos novos consumos de bens e das novas tendências socioculturais.
A Páscoa que celebramos na atualidade passou por importantes transformações que vêm desde os ritos dos povos nômades até a ocupação da Terra Santa de Israel. No decorrer do tempo litúrgico outras celebrações festivas como Pentecostes, Corpo de Cristo, Nossa Senhora da Conceição (8 de dezembro), Natal (25 de dezembro), São José (19 de março) e dos santos populares como Santo Antônio (13 de junho), São João (24 de junho) e São Pedro (29 de junho) também passaram por importantes processos de atualização.
Destaco aqui algumas datas festivas do calendário litúrgico de maiores repercussões na devoção da piedade popular no Brasil, que já eram celebradas em tempos pré-cristãos no hemisfério norte nos períodos das mudanças das estações do ano, conforme as datas do calendário cósmico-astronômico, que determinava as festas do solstício de inverno e de verão e do equinócio da primavera e do outono (MARTIN, 2000).
Na Idade Média a Igreja incorpora ao calendário litúrgico as festas religiosas aos deuses pagãos e pouco a pouco foi trocando símbolos ritualistas dessas divindades por celebrações religiosas aos santos do catolicismo popular. No período medieval a Igreja tinha um grande poder na vida cotidiana das comunidades, nos agendamentos das datas festivas do calendário litúrgico, como também no agendamento do trabalho e do lazer. Ou seja, a Igreja exercia um poder de dominação em quase todas as instâncias da sociedade, do nascimento até a morte, e quase tudo estava sob o controle da hierarquia da igreja e dos significados religiosos.
Portanto, são essas evoluções e evocações que chegam até os dias atuais já incorporadas aos nossos calendários de tradição religiosa e das festas do catolicismo popular, aqui no Brasil. As nossas festas populares são heranças diretas das festas ibéricas, que ao longo dos anos atravessaram o Atlântico e foram incorporando bens culturais tropicalizados dos povos nativos e dos africanos que aqui chegaram no período colonial. Não podemos esquecer da influência mais recente das outras etnias chegadas aqui já depois do domínio do reino de Portugal. Na piedade popular o povo se apropria e incorpora nas festas novos valores culturais da sociedade contemporânea como parte dos processos de atualizações do calendário litúrgico e as demandas dos interesses da indústria do entretenimento e do turismo. São modificações importantes que deram novos sentidos, novas motivações às festividades religiosas, sagradas e profanas, da piedade popular. As festas tradicionais da religiosidade se repetem há séculos e todas as repetições têm algo de novo, estão em constantes processos de atualizações, até porque regressar no tempo é impossível, não tem volta, não volta “atrás” e qualquer tentativa de regresso no tempo não passa de um simulacro de alguma coisa que já foi um dia (MIRANDA, 1999). As festas são ocasiões extraordinárias que recriam e resgatam no tempo, o espaço e as relações sociais (DA MATTA, 2000), e são essas instâncias de atualização das festas populares que têm maior importância no campo da pesquisa da folkcomunicação (TRIGUEIRO, 2007)
No século IV as peregrinações cristãs tiveram grandes mobilidades rumo à Terra Santa e a Roma. A partir dos séculos XI e XII cresciam as peregrinações para Santiago de Compostela como importante centro de convergência de peregrinos de diferentes regiões da Europa, levando nas suas bagagens novos valores culturais, diferentes interpretações da liturgia da igreja e que se propagaram por toda a Península Ibérica.
Nos caminhos para Santiago de Compostela os peregrinos foram estruturando intensas redes tradicionais de comunicação – as redes mnemônicas de difusão cultural e religiosa . que durante séculos, de cidade em cidade, difundiram as feiras, as festas, o teatro, o artesanato, as lendas, os romances de cavalarias, os mitos e tantas outras manifestações culturais que estão até hoje no imaginário das nossas tradições populares com seus arquétipos, com suas variantes narradas pelos seus intérpretes e seus produtores culturais. Da Idade Média à Idade da Mídia os caminhos de Santiago de Compostela continuam como centro importante de peregrinações e de difusão das diversidades culturais.
Portanto, essas manifestações culturais e religiosas do passado chegam aos dias atuais e estão cada vez mais incorporadas aos contextos da sociedade midiatizada que amplia o campo teórico e prático dos estudos da folkcomunicação na atualidade.
As batalhas entre cristãos e mouros narradas milenarmente estão, mais do que nunca, vivas e atualizadas nas produções de conteúdos midiáticos (novelas, filmes, seriados, etc.), mas resguardam as narrativas contadas desde o cristianismo medieval até o cristianismo na sociedade midiatizada. Pode se encontrar no catolicismo popular no Brasil atual as ideias, os valores e a fidelidade que constituíram a expansão da igreja na Idade Média. São narrativas que marcam as diversas manifestações culturais populares brasileiras representadas pelas batalhas entre mouros e cristãos – encarnado e azul, entre o bem e o mal – nas danças, nos folguedos, na literatura popular, na literatura de cordel, nas estórias e nos romances de cavalaria, nas expressões artísticas que continuam compondo os repertórios do povo brasileiro nas festas sagradas e profanas (BARRETO, 1996).
Os trajetos para os lugares sagrados na Idade Média também eram percorridos por pessoas que tinham outros propósitos que não só o religioso propriamente dito, como os comerciantes, os artistas, os ciganos, os taberneiros, os artesãos, as prostitutas, os feiticeiros, os desocupados e os aventureiros, que se relacionavam pelas redes mnemônicas de comunicação através de intensas interações sociais onde prevaleciam as narrativas tradicionais orais operadas por agentes intermediários culturais responsáveis por contar as histórias dos lugares por onde passavam.
O Papa João Paulo II, quando da sua visita a Santiago de Compostela em novembro de 1982, referindo-o como um importante centro de difusão da fé cristã e da cultura diz:
Peregrinação a Santiago foi um dos importantes elementos que favoreceram a compreensão mútua dos povos europeus tão diferentes, como os latinos, os alemães, os celtas, os anglo-saxões e os eslavos. A peregrinação aproximava, relacionava e unia entre si aquelas gentes que, século após século, convencidas pela pregação dos testemunhos de Cristo, abraçavam o Evangelho e contemporaneamente, pode-se afirmar, surgiam como povos e nações. (PAULO II, 1982)
As peregrinações a Santiago de Compostela no período medieval foram responsáveis, em grande parte, pelos processos de desenvolvimento não só religioso mas também econômico e cultural na Península Ibérica como centro de convergência e de interações dos vários povos da Europa. Foi uma época importante de divulgação pelas extensas redes mnemônicas de comunicação, de novas ideias, novos costumes, novas invenções tecnológicas, novos comportamentos socioculturais, que possibilitaram grandes avanços na modernidade ocidental.
Em Santiago de Compostela as notícias percorriam o mundo, no tempo e espaço sagrado determinado pelas celebrações religiosas e festividades populares, que circulavam nas redes mnemônicas de comunicação. Com os avanços dos novos sistemas de comunicação, a ruptura do domínio da informação oral e da escrita pela igreja, as redes de comunicação operadas pelos grupos nômades evoluíram e persistiram no tempo incorporando a escrita em grande escala e na atualidade as novas tecnologias. Assim, nas redes mnemônicas a oralidade, a escritura e, agora, as novas tecnologias da comunicação evoluíram e convergiram para sistemas múltiplos de comunicação do midiático de grandes alcances de audiências e o da folkcomunicação direcionados a determinados grupos sociais.
Agora vivemos numa nova Idade Média ou na Idade da Mídia, um outro momento das grandes mobilidades de pessoas em grandes distâncias em tempos menores, das grandes invenções tecnológicas e da globalização cultural. Mas, ao mesmo tempo, estamos vivendo um momento do crescimento do neonomadismo – peregrinos-turistas – que trilham os caminhos medievais rumo aos lugares sagrados como Jerusalém, Santiago de Compostela e tantos outros viabilizados quase sempre pelos pacotes de empresas de turismo (ECO, 1984).
Michel Maffesoli, observando o que afirmou o sociólogo alemão, Georg Simmel, sobre o papel do sujeito errante – nômade – na sociedade como divulgador das novidades culturais e dos negócios na Europa diz:
O estranho e o estrangeiro desempenharam para Simmel um papel inegável nas interações sociais. Servem de intermediários com a exterioridade e, através dela, com as diversas formas de alteridade. Sob esse ponto de vista, constituem partes integrantes do próprio grupo, e o estruturam como tal. Quer isso se dê positivamente ou servindo de contraste, eles condicionam as “relações de reciprocidade”, elementos de base de qualquer sociabilidade (MAFFESOLI, 2001, p. 44-45).
Umberto Eco (1984), desenha um modelo de uma “Nova Idade Média” que estamos vivendo agora, comparando com o fim da “Alta Idade Média” quando ocorreram importantes transformações na vida intelectual, nos diálogos entre civilizações bárbaras e as grandes viagens dos monges pela Europa a caminho dos centros de peregrinações ou rumo às animadas cidades medievais. Ou como Michel Maffesoli (2001) ressalta a importância do sujeito errante como um intermediário cultural, portador de repertórios de acontecimentos tradicionais, entre a exterioridade e os grupos locais como negociadores das interações individuas e coletivas na atualidade. É inegável a importância dos intermediários culturais desde as redes de mobilidade do nomadismo na Idade Média através das redes mnemônicas de comunicação. Agora, a importância dos intermediários culturais na mobilidade do neonomadismo acontece também através das redes folkcomunicacionais.
Luiz Beltrão de certa forma pensou assim quando definiu os agentes intermediários culturais da folkcomunicação como sujeitos nômades – andarilhos – que circulavam nos interiores do nordeste brasileiro, principalmente nas comunidades rurbanas, como animadores culturais, negociantes das novidades de bens de consumo, intérpretes dos acontecimentos entre os produtores de culturas midiáticas e dos produtores das culturas populares. Ou seja:
No sistema de folkcomunicação, embora a existência e utilização, em certos casos, de modalidades e canais indiretos e industrializados (como emissões desportivas pela TV, canções gravadas em disco ou mensagens impressas em folhetos e volantes), as manifestações são sobretudo resultado de uma atividade artesanal do agente-comunicador, enquanto seu processo de difusão se desenvolve horizontalmente, tendo-se em conta que os usuários característicos recebem as mensagens através de um intermediário próprio em um dos múltiplos estágios de sua difusão (BELTRÃO, 1980, p. 27)
Portanto os novos agentes intermediários culturais da folkcomunicação são sujeitos portadores dos códigos que predominam nos seus grupos sociais e dos novos códigos veiculados pelos sistemas midiáticos, que atuam como mediadores ativistas nos diferentes processos de negociações. Ao contrário do que se pensa os agentes intermediários culturais da folkcomunicação são cada vez mais importantes no contexto da sociedade midiatizada como decodificadores das interligações entre os diferentes constituintes da audiência nos seus grupos sociais e nas comunidades que habitam as cidades rurbanas. Esses novos agentes são divulgadores das novas tendências culturais produzidas pelos sistemas midiáticos. Assim como se atualizaram os agentes intermediários culturais – errantes – nômades – das redes mnemônicas de comunicação, os agentes intermediários – andarilhos – como sujeitos híbridos culturais das redes da folkcomunicação também evoluíram como ativistas e operadores das mediações entre os diferentes processos de emissão e recepção dos conteúdos midiáticos em parte responsáveis por novos estilos de viva socioculturais nas cidades rurbanas.
As notícias percorrem o mundo em tempo e espaço real, em transmissão ao vivo pelas redes sociais alcançando as comunidades urbanas e rurais brasileiras e especialmente as nordestinas. Deste modo, as comunidades rurbanas acessam os conteúdos veiculados pela mídia em tempo real, nesta movimentação de circularidade ente o global e o local, os agentes intermediários culturais operam diferentes mediações nas redes da folkcomunicação estruturadas em um conjunto de procedimentos de intercâmbios, que são propagados pelos seus ativistas midiáticos para uso e consumo dos conteúdos nas suas práticas individual ou coletiva da vida cotidiana.
As festas religiosas da piedade popular, mesmo com toda a evolução e atualização, continuam estruturadas em traços culturais importantes que permanecem nas práticas festivas sagradas e profanas desde a Idade Média à Idade da Mídia. O mágico – no sentido mais amplo e não apenas numa visão das superstições, das crendices, mas também da intuição e da supra racionalidade. O simbólico e imagético – a importância das imagens, das fantasias criadoras e da comunicação popular. O sarcástico/cômico – o satírico, a crítica, o humor, o mundo pelo avesso. O místico – carga emotiva, vivencial. O festivo e teatral – as celebrações, os espetáculos nos espaços públicos e privados. O comunal – celebrações comunitárias, a solidariedade, as irmandades, as confrarias (a preocupação com o outro e a caridade). A religiosidade popular cria na comunidade o sentido de pertença, que envolve várias pessoas nas orações e nas festas, nas ações do sagrado e do profano. Assim sendo, é quase impossível separar religião da cultura popular, mas devemos compreender que entre ambas sempre existiu e continuará existindo uma zona de trocas simbólicas conflituosas e de convivências nos campos das interseções do sagrado e profano: sincretismo – misticismo – hibridização cultural. Rodrigues de Carvalho (2018), no seu livro publicado em 1928, já antecipava os atuais estudos latino-americanos ao empregar o termo hibridismo, e não exclusivamente, os termos de sincretismo e mestiçagem para definir os amplos processos de intercâmbio das diversidades culturais tradicionais formadoras da identidade brasileira.
Podemos dizer que no catolicismo popular as tendências evolutivas das festas religiosas tradicionais estão quase sempre caminhando para uma tipologia de secularização e cada vez mais se afastando da tipologia festiva de clericalização (COSTA, Afonso; COSTA, Hamilton, 1978). Melhor dizendo, na sociedade midiatizada as festas religiosas populares ganham novas conotações de diversão e de espetacularização, com as interferências dos produtores e realizadores das festas vinculadas à indústria do entretenimento, do turismo que incentivam o excessivo prazer do consumo de bens culturais e, com isso, ampliam o campo das manifestações do profano diminuindo o campo das manifestações do sagrado. Mas esse afastamento das festas religiosas populares do campo sagrado – clericalização . e uma expansão para o campo profano – secularização . ocorre em quase todas as partes do mundo. As festas tradicionais são cada vez mais acontecimentos midiáticos de interesses econômicos, turísticos, políticos e de espetacularização.
Como estudar e pesquisar as festas populares no contexto da folkcomunicação? São ou não são autênticas? E a polêmica sobre tradição, modernidade e diversidades culturais? Ou mesmo a sua sobrevivência nos dias atuais? São esses e outros questionamentos que faço. Acho que alguns já estão superados e outros tentamos compreender as consequências dessas transformações nas festas populares em produtos da indústria do entretenimento, pelo turismo e pelo poder público local. Ou seja, como compreender os contratos entre a Parceria Público Privada-PPP na produção e realização das festas populares. O que devemos fazer, como estudiosos e pesquisadores da folkcomunicação, é, sobretudo, acompanhar as suas evoluções, os diferentes processos de atualização que já vêm da Idade Média, agora não mais sob o poder da Igreja como antigamente, mas cada vez mais sob o poder da indústria do entretenimento, do turismo e dos acontecimentos midiáticos. Já temos uma metodologia e métodos testados que possibilitam compreender os diferentes processos comunicacionais de mediações e recepções nas diversas instâncias fazedoras das festas. No entanto, essas instâncias operam objetivos comuns o da realização das festas tradicionais do calendário anual das tradições litúrgicas do catolicismo popular, mas com novos padrões de interações que quase sempre transformam as festas em espetáculos para atender a demanda da sociedade midiatizada. Assim como diz José Marques de Melo, ao lançar um protocolo de investigação das festas populares no contexto da folkcomunicação:
Esse perfil eminentemente comunicacional assumido hoje pelas festas populares alterou-lhes profundamente a fisionomia primitiva. As antigas tradições vão sendo substituídas por novos padrões de interação sociocultural. A mídia e as instituições comerciais transformam as festas em espetáculos coletivos, fruídos por usuários dispersos, muitas vezes convocados aleatoriamente, até mesmo fora dos calendários cívicos ou religiosos (MELO, 2008, p. 77).
O protocolo de investigação das festas populares apresentado por José Marques de Melo no Folkcom de 2001 em Campo Grande/MS continua operante e deve ser assim seguido: estratégias metodológicas, eixos temáticos, processos comunicacionais, roteiro do inventário, referências culturais, memoria/formato/conteúdo/mediações e perspectivas das festas no contexto da folkcomunicação. O roteiro proposto é aberto para possibilitar que cada pesquisador possa agendar outros elementos que considere importantes na investigação da festa no espaço geográfico e no tempo da sua realização local, regional e nacional. Os processos de atualizações das festas, não surgiram com os avanços das novas tecnologias da comunicação, são processos de atualizações que já vem da Idade Média, agora não mais sob o poder da igreja como antigamente, mas cada vez mais sob o poder da mídia e de todos os seus interesses.
É fato que as tendências evolutivas das festas religiosas populares estão caminhando para uma tipologia de secularização e se afastando da tipologia de clericalização, cada vez mais estruturadas como acontecimentos midiáticos de interesses econômicos, turísticos e políticos. Também é verdade que estão perdendo o sentido da clericalização, mas não perdem o sentido de acontecimentos de festa popular com importante participação do povo que ressignifica as tradições e os costumes dando um novo sentido às festas (ORTIZ, 2015). Não podemos negar que com os processos de atualização das festas tradicionais a tendência é de uma maior aproximação da cultura popular com a indústria do entretenimento e do turismo na sociedade midiatizada.
Mas isso acontece em diferentes partes do mundo e cito algumas festas populares que venho observando aqui no Brasil e em Portugal nesses últimos anos, que já estão inseridas no contexto da sociedade midiatizada onde predomina o campo do profano – religioso recreativo - tais como: Santo Antônio em Lisboa e São João no Porto. No Brasil podemos destacar as festas de São João em Campina Grande, na Paraíba e Caruaru, em Pernambuco; o Festival do Boi de Parintins, no Amazonas e o já consagrado Carnaval do Rio de Janeiro, considerado como um dos maiores acontecimentos midiáticos do mundo a céu aberto. No entrando podemos dizer que algumas festas que caminham para o campo dos grandes acontecimentos transmitidos ao vivo pela televisão e pelas redes sociais, continuam organizadas e realizadas nos territórios do sagrado e do profano, ou seja, da clericalização e da secularização, que envolvem diferentes instituições de interesse, ao mesmo tempo mágico-religioso-midiático (FAUSTO NETO, 2013). Entre essas festas podemos destacar o São João em Braga e no Valongo, as Festas dos Tabuleiros e de Nossa Senhora da Agonia, em Portugal. No Brasil temos a festa da piedade popular do Círio de Nazaré e de Nossa Senhora Aparecida, entre tantas outras.
Mas, não podemos excluir as festas populares nas médias e até mesmo nas pequenas cidades que em menores proporções incorporam na sua organização e realização interesses da exterioridade para atender os novos estilos de vida e das tendências de consumo de bens culturais que “afetam” os hábitos e costumes nas cidades rurbanas (música sertaneja, forró estilizado, etc.). Estamos diante de novos fatos socioculturais, que modificam com muita rapidez os acontecimentos, o que na atualidade torna quase impossível estudar e pesquisar as manifestações das culturas populares e do folclore desvinculadas da indústria do entretenimento, do turismo e do poder político. Mas, mesmo com a “debandada” do significado mágico-religioso, ou ainda do sentido da clericalização para o da secularização não podemos afirmar que as festas estão deixando de ser populares, até porque desde a Idade Média, nas redes mnemônicas de comunicação, até os dias atuais as classes populares desenvolvem os seus próprios meios de comunicação e sempre incorporam novas criações que vão da oralidade, às imagens, às escrituras e, mais recentemente, com a incorporação das novas tecnologias da comunicação. É nessa zona de interseção que, atualmente, a folkcomunicação preenche as brechas deixadas para um novo campo de estudo nas redes tradicionais cotidianas, operadas pelos produtores da indústria do entretenimento e pelos produtores das culturas populares e do folclore, na organização e realização das festas religiosas e profanas.
Assim podemos dizer que não é o mundo globalizado e muito menos a sociedade midiatizada que vai acabar com as festas populares tradicionais, porque o que estamos vendo é o ressurgimento dessas manifestações, crescente em quase todas as partes do mundo TRIGUEIRO, 2007). Então, fazendo uma releitura do pensamento teórico e prático das pesquisas pioneiras de Luiz Beltrão, no ano de celebração do centenário do seu nascimento, passo a acreditar que o propósito da pesquisa no campo da folkcomunicação no contexto da sociedade midiatizada, em pleno século XXI, é tentar compreender as festas populares observando os diferentes processos de atualização proporcionados pelos novos estilos de vida e as tendências socioculturais da população brasileira, principalmente daquela que habita as cidades rurbanas. Qual o papel dos novos agentes intermediários culturais da folkcomunicação que operam as negociações mediadas como ativistas midiáticos na zona cinzenta dos contratos das Parcerias Público Privadas - PPP na organização e realização das festas populares no contexto da sociedade dos espetáculos (DEBORD, 1997), da sociedade midiatizada (MORAES, 2006), quais as consequências com os afastamentos dos significados mágico-religiosos e a “debandada” das festas populares tradicionais mais para o campo dos acontecimentos midiáticos.