Dossiê

Folkcomunicação na America Latina.

Folkcommunication in Latin America

Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros
UERJ, Brasil

Folkcomunicação na America Latina.

Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 16, núm. 37, pp. 174-188, 2018

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 05/07/2018

Aprovação: 25/10/2018

Resumo: O presente texto aborda a formação cultural e os processos de extermínio de povos originais no Brasil, bem como a trajetória dos estudos de cultura que, desde o século XIX, a partir das contribuições de diversos pesquisadores, buscam compreender a cultura do povo. Apresenta, assim, antecedentes dos estudos de folkcomunicação e conexões com a cultura e a pesquisa na América Latina. O trabalho tem origem em uma palestra realizada na XVIII Conferência Brasileira de Folkcomunicação, ocorrida em Recife em 2017.

Palavras-chave: Cultura, Antropologia: Folkcomunicação, América Latina.

Abstract: This article discusses the cultural formation and processes of extermination of original peoples in Brazil, as well as the trajectory of cultural studies that, since the nineteenth century, from the contributions of several researchers, seek to understand the culture of the people. It presents, therefore, antecedents of the studies of folkcommunication and connections with the culture and the research in Latin America. The work originated in a lecture held at the XVIII Conferência Brasileira de Folkcomunicação, in Recife in 2017.

Keywords: Culture, Anthropology: Folkcommunication, Latin America.

Introdução

Como antropóloga no meio comunicacional, tenho me dedicado a escrever e falar sobre a preocupação de pensadores brasileiros que se voltaram, desde meados do século XIX, através do método etnográfico para o estudo da etnologia brasileira ou estudos da sociedade brasileira, quase um século antes da criação de cursos de Ciências Humanas no país.

Estudiosos nordestinos tiveram a iniciativa de reflexão e escrita sobre o fazer social das camadas mais baixas do Brasil império e republicano, em suas manifestações criativas, naquilo que os românticos alemães denominaram cultura folk, ou cultura do povo. Não importando o teor abstrato da palavra povo, que levou Robespierre à guilhotina ao tentar em 1794 categorizá-la, isto é conceituá-la numa identificação com a concretude das categorias sociais da França, é significativo que, como o grande revolucionário francês, aqueles estudiosos viram como “povo” brasileiro os camponeses (escravos e homens livres) e as camadas sociais mais miseráveis do incipiente Brasil urbano. Ali estava a pergunta de Robespierre, maldita até hoje: “O camponês sem terra da França é povo? A ralé de Paris é povo?”.

Embora o uso da palavra povo designe politicamente os habitantes de uma nação, para efeito da representatividade democrática, nos estudos etnográficos se destaca a categoria povo como a fração das populações menos aquinhoadas no desfrute da riqueza das nações, compreendendo-se riqueza não só econômica, como educacional, usufruto das conquistas científicas em saúde e bem estar, além de acesso a todos os itens da civilização contemporânea, distribuídos como “privilégios de classe”, isto é, vetados ao “povo”. Para Gramsci, povo é o conjunto das classes subalternas da sociedade.

Desde seu surgimento no século XIX, a Antropologia, incialmente dedicada ao estudo dos ditos povos primitivos, ao elaborar o conceito de cultura, supera a concepção de mundo dos ilustrados, para quem os habitantes da terra eram divididos entre civilizados e incivilizados, sendo estes percebidos como não humanos. Ao estabelecer o conceito de cultura como a forma de viver socialmente dos humanos com seus sistemas de produção material, códigos de comportamento (para Lévi Strauss – regras) e os sistemas de crenças, a Antropologia inicia a longa caminhada contra visões etnocêntricas. É também no século de seu surgimento que a Europa, justificando a modernidade que no século XVI, instaurou a escravidão e o tráfico de negros africanos no sistema produtivo da plantation, cria as chamadas teorias racistas que proclamaram as hierarquias raciais, tendo o europeu no ápice da superioridade da espécie humana.

Quatrocentos anos de escravidão oficial de negros africanos - e escamoteada - dos povos do “Novo Mundo”, sedimentaram para as populações ocidentais a naturalização da inferioridade daquelas populações arrancadas da África e perseguidas e exterminadas nas terras das Américas. Esta crença na inferioridade daqueles povos não impediu os invasores de se utilizarem de negras e índias para produzirem braços para o trabalho escravo, perpetrando o maior genocídio da história, mas dando surgimento aos grupos de mestiçagem que caracterizam a população latino-americana, num percentual elevadíssimo de tipos humanos resultantes de cruzamentos entre todas as populações do planeta, com os nativos da África e das Américas.

O chamado século das luzes na América Latina foi atravessado pela euforia do progresso tecnológico dos vencedores e a rebelião dos mestiços do Novo mundo. Populações desde a América Central até quase a Patagônia se rebelaram contra o domínio ibérico em suas atividades socioculturais, no âmbito da política, enquanto mostravam intensa força na busca de recuperação de seus fazeres sociais aprendidos de ancestrais que souberam preservar características tão drasticamente perseguidas como demoníacas pelo processo católico da catequese ou erradicação de todas as concepções de seu mundo mítico, para serem substituídas pelas crenças dos colonizadores.

Durante quatro séculos a Igreja perseguiu a cultura Quichua, matando na fogueira quem escrevesse naquela língua, até só restar a todos os habitantes colonizados a oralidade preservadora da memória de um mundo destruído, para cujas ruínas se dirigem em busca dos deuses e dos saberes ancestrais. No Brasil os habitantes originários dominavam apenas a oralidade, mas também sua língua foi extinta nos processos de colonização ainda hoje vigentes, para imposição da língua portuguesa.

Grande serviço de extermínio prestou à colonização de nativos e seus descendentes, a guerra bacteriana das doenças trazidas pelos dominadores, como febres, gripes e sífilis, contaminando tribos inteiras que desapareceram sem deixar memória, tanto na América Espanhola quanto na Portuguesa. Impedidos de desenvolver seus próprios saberes e forçados nos trabalhos da lavoura, das construções ou da mineração, as populações derrotadas foram impedidas de ter acesso aos conhecimentos letrados dos ocidentais, mas viram suas conquistas culturais alcançadas, como a agricultura de vários produtos como cacau, batata, milho e mandioca, classificação das plantas em comestíveis, medicinais e venenosas, apropriadas pela civilização europeia.

Nas lutas pela independência, que percorreram toda América Latina, evidenciou-se também a luta contra a escravidão, representada concomitantemente pelo desenvolvimento de vigorosa “cultura crioula, mestiça ou sincrética” de preservação de tradições ancestrais, sejam de negros, sejam de indígenas, estabelecendo-se uma denominada “identidade de luta por liberdade” em todas as manifestações da linguagem de expressão oral, pictórica, musical e representativa, na criação fantástica de obras de arte e de diferentes formas de festejos onde se produziu riquíssima teatralidade criativa, com elementos de todas as culturas cruzadas na vivência dos diferentes povos no Novo Mundo.

Como já referido, no mesmo período surgem no Brasil, entre setores sociais que tiveram acesso aos estudos, ao conhecimento dos saberes dos dominadores, intelectuais que se voltaram para o entendimento daquelas populações à margem do poder enquanto, numa perspectiva criada pelo romantismo alemão, caracterizaram-nas como “povo” e toda sua criatividade como artesanal. Dando-lhe visibilidade, ressaltaram a importância daquela dinâmica criativa que passa a ser conhecida como folclore, processando-se, nas primeiras décadas do século XX, verdadeira corrida para se estabelecer critérios identificadores daquelas formas do saber chamado “popular”.

O primeiro trabalho desse filão no século XIX é publicado sob o título Etnologia Selvagem: Estudo sobre a Memória, Região e Raças Selvagens do Brasil em 1875, de autoria de Sílvio Romero, intelectual sergipano que, em 1883, com seguidas reedições até 1894, lança Cantos Populares do Brasil, obra com última reedição em 1977, pela Editora Vozes. Como aconteceu na Europa aos primeiros estudiosos dos saberes folk, também no Brasil desencadeou-se verdadeira polêmica acusatória de falta de método de análise que ultrapassasse o que Tobias Barreto, outro intelectual sergipano, classificava os trabalhos de Sílvio Romero, como meras descrições.

Respondendo à necessidade de criação de metodologia dos estudos daquele saber do povo, João Ribeiro, também famoso intelectual sergipano, membro da Academia Brasileira de Letras, filólogo, escritor, crítico literário e professor do Colégio Pedro II ministra, em 1913, curso sobre folclore, com grande frequência de interessados e registro dos conteúdos nos Annaes da Biblioteca Nacional. Em 1969 esse curso é transformado no livro O Folclore, publicado no Rio de Janeiro. Organização Simões/Campanha de defesa do Folclore Brasileiro – MEC. Registre-se que nesse período não mais se nominava aquelas manifestações do povo como conhecimento artesanal ou popular, mas como cultura popular, classificação determinada na década de 1940, quando já tinham sido criadas, desde meados da década de 1930, Universidades com cursos de História, Geografia, Antropologia e Sociologia.

Os tardios acontecimentos no Brasil - abolição da escravatura, 1888; surgimento da imprensa, 1808; independência da metrópole, 1822; e criação de universidades, década de 1930 - não significam, porém, que não houvesse no país consciência da presença das populações indígenas e negras e de seus descendentes mulatos e mamelucos, maior contingente da população nacional. Logo no início da segunda metade do século XIX a literatura brasileira, através do escritor romântico José de Alencar (01/05/1829-12/12/1877) registra a presença do indígena em sua famosa Trilogia Indianista: O Guarani (1857); Iracema (1865) e Ubirajara (1874). É uma tentativa de valorização do indígena na formação da sociedade brasileira, a partir da uma visão romântica e acrítica na construção dos personagens, mas registra um lugar dos nativos na história pátria.

O registro da presença indígena já existia cientificamente no Brasil colonial, quando da expedição de pesquisa feita pelo baiano radicado em Portugal, Dr Alexandre Rodrigues Ferreira, desenvolvida em quase 10 anos (1783-1792), intitulada Viagem Filosófica, com importantes registros sobre flora, fauna e habitantes do norte do Brasil, com descrições de suas características físicas e costumes das populações, com ricos detalhes, apresentados pelos desenhistas que integraram a expedição que antecedeu os viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil no século XIX.

A situação do negro é de ausência na literatura e naturalizada presença nos noticiários da imprensa da época - nos anúncios de venda de lotes de negros desembarcados nos mercados, de fugas de escravos, surgimento de “redutos perigosos de negros rebelados” (o que já constava dos documentos oficiais desde o século XVII, nas lutas contra o Quilombo dos Palmares, maior reduto de negros fugidos da escravidão, na história do Brasil). A abordagem do negro, elemento fundamental no sistema econômico mercantilista, iniciado com a criação da empresa de plantation em finais do século 15 será, em toda a zona de produção de monocultura de exclusivo colonial para as metrópoles europeias, como açúcar, fumo, café e algodão, tão explosiva em toda a América, como tratar das populações indígenas do altiplano nas zonas de exploração dos minérios anteriormente propriedades de Astecas, Incas e Maias.

Quanto maior a necessidade dos mercados, maior a agressividade dos colonizadores contra as populações por eles demarcadas para exercerem o trabalho escravo, fossem negros ou indígenas. Pela ausência de leis garantindo a escravidão indígena, a Igreja disputou, no âmbito da catequese, a posse das populações catequisadas. Os indígenas de toda a América Latina eram aprisionados nas missões onde “aprendiam as atividades” de sobrevivência na produção de enriquecimento das Ordens Religiosas que os catequisavam, sem que fossem considerados escravos. Uma vez treinados, viviam sob a ameaça das Entradas e Bandeiras que assaltavam frequentemente os redutos de catequese para escravizar trabalhadores a serem vendidos nas empresas agrícolas, de mineração ou de exportação de madeira. Recusando a catequese, pela Lei da Guerra Justa os indígenas seriam eliminados, destino de todas as tribos frente à necessidade do último requisito da Empresa Colonial – posse de terras para plantação em larga escala, completando a tríade colonialista: Trabalho escravo dando origem às exitosas empresas europeias de tráfico negreiro, terras gratuitas (barateando a produção com eliminação de tribos inteiras) e monopólio comercial das mercadorias produzidas no Novo Mundo.

Se a presença indígena no Brasil surge romanticamente na literatura de José de Alencar (respeitado defensor da escravidão negra), a entrada do negro como elemento literário se faz com profunda politização, debates e lutas contra a escravidão, associados à contestação da Monarquia e reivindicação de Regime Republicano, vividos por setores da juventude acadêmica da época, desde o ativismo poético-político do baiano Castro Alves (16/03/1847-06/07/1871).

Na infância e juventude frequentando a fazenda do avô, também traficante de escravos, Castro Alves teve a vivência típica das brincadeiras com os filhos de escravos, assistindo as festas e cantorias daqueles trabalhadores do eito, absorvendo-lhes a espontaneidade criativa das cantigas, ditos, histórias e poesias improvisadas e cantadas ao som da viola. Desde muito cedo espantava professores e colegas de colégio com a facilidade com que versejava, antes mesmo de se aprofundar nos estudos da língua e nas leituras que o fascinavam. De temperamento extremamente irrequieto e apaixonado, entrega-se desde a adolescência à poesia e à defesa da liberdade com voos condoreiros, centrando a inspiração no sofrimento do povo escravizado e arrancado de suas terras de nascimento, pela ganância e a violência do tráfico negreiro, tendo negada sua condição humana. Entregando-se à causa da liberdade, muda-se para o Recife, onde se matricula na Faculdade de Direito e incendiará a juventude com a eloquência, o destemor e a riqueza dos versos de improviso guardados na tradição oral da cidade, que perenizou a memória de seus debates no teatro Santa Isabel, com o sergipano Tobias Barreto, entusiasta da cultura alemã, autor de um jornal publicado no idioma daquele país. O mais divulgado verso do jovem poeta, “A praça, a praça é do povo, como o céu é do condor”, foi o apelo feito à multidão atacada pela cavalaria, quando discursava num meeting contra a escravidão e pela queda da Monarquia, clamando para que o povo permanecesse no seu lugar de direito. Juntamente com os colegas de Faculdade Regueiro Costa, Rui Barbosa e Álvares Guimarães funda a Academia Abolicionista do Recife, iniciativa que, a partir de seu precoce falecimento, será encampada por seus seguidores em vários estados do Nordeste, criando imprensa abolicionista e Associações Libertadoras das quais fizeram parte homens e mulheres, iniciando-se o fim do regime escravista no Brasil em 1884, com a abolição da escravatura no Ceará. Nesse Estado, jangadeiros, a exemplo do Dragão do Mar, tiveram forte participação nas lutas abolicionistas.

Durante quase cem anos após sua morte, nas escolas do Nordeste os Grêmios Literários e a boemia literária ainda recitavam os versos do “Poeta do Povo”. No texto Instinto de Nacionalidade, Machado de Assis considera Castro Alves o fundador da literatura brasileira, por ter sido o primeiro escritor a fazer literatura com os problemas dominantes da população majoritária do país, os escravos, fazendo-o patrono da cadeira número 7 da Academia Brasileira de Letras.

Seu contemporâneo dois anos mais velho (31/07/1845), o negro escravo analfabeto Inácio da Catingueira, nascido em Teixeira- Paraíba, em todo o sertão do Nordeste é o bardo, o mais famoso poeta do improviso de seu tempo, sendo sua mais importante obra a peleja com o repentista Romano da Mãe D’Água, acontecida em Patos, Paraíba, em 1870, sendo preservada pela oralidade da cultura sertaneja por décadas. Com a chegada da primeira tipografia no sertão (adquirida pelo poeta Silvino Piruá) juntamente com os poetas populares Leandro Gomes de Barros, Chagas Batista, Otacílio Batista, Ugolino do Sabugi são publicados seus versos e cantorias no fim do século XIX e primeiras décadas do XX, quando esses poetas passam a imprimir todas as manifestações da oralidade poética do Nordeste, dando forma à literatura de cordel. A comunicação entre as populações recônditas e iletradas está garantida pela oralidade e desenvolvida de forma primorosa pelo registro, circulação e venda dos inicialmente nominados “livrinhos de feira”, hoje “literatura de cordel”.

O cordel desempenha a função da imprensa entre as baixas camadas sociais rurais e urbanas do Nordeste e alcança, com as migrações de nordestinos nas secas e na corrida da borracha, o Norte do país, com casas de revenda de cordel, almanaques, orações e histórias locais e míticas da tradição ibérica, no Maranhão, Manaus e Belém do Pará, além de todas as capitais e grandes cidades do Nordeste, numa verdadeira revolução quebrando o decantado isolamento dos sertões do Brasil durante a primeira metade do século XX.

Papel importantíssimo no conhecimento da sociedade brasileira desempenhou o carioca médico antropólogo e músico Edgar Roquette-Pinto (25/09/1884-18/10/1954), que em 1912 participou da Missão Rondon estudando os índios Nambiquara, experiência da qual resultam dois importantes livros para o desenvolvimento dos estudos etnográficos das populações brasileiras: Guia de Antropologia (1915) e Rondônia – Antropologia etnográfica (1916). A relevância de Roquette-Pinto ressalta ainda, principalmente para os estudos de comunicação no país por, em 1922, na Exposição Internacional comemorativa do Centenário da Independência do Brasil, tomando conhecimento de equipamentos de rádio difusão expostos no stand dos Estados Unidos, viu na nova tecnologia o melhor meio de difusão educacional para o povo de toda a nação. Membro da Academia de Ciência, convence os colegas da importância da compra daquele equipamento, criando em 1923 a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, primeira rádio do Brasil, para a difusão de programas educativos da população. Eugenista que reverteu a concepção racista de eugenia europeia que condenava a miscigenação racial como elemento altamente degenerativo de tipos humanos, o antropólogo brasileiro demonstra a criatividade e a resistência dos mestiços que, como os negros, trabalharam na construção desse país. Combatendo os preconceitos contra a miscigenação, afirma que os problemas do país não vêm dos cruzamentos populacionais, sendo as questões sociais e políticas resultantes da falta de educação e saúde pública. Em 1936 a Rádio dirigida por Roquette-Pinto é doada pela Academia de Ciência ao Governo Brasileiro, incorporada ao Ministério da Educação e Saúde (MES). Garantindo-se sua função educativa, é transformada na Rádio MEC.

Nos profundos entrecruzamentos de culturas regionais e locais vai-se preenchendo o fosso delimitador de rural x urbano e, com a difusão do rádio, a musicalidade espontânea dos artistas nordestinos costura as fusões de ritmo e dança, invadindo e incorporando fazeres e saberes de todos os artistas populares do Brasil, encontrando-se pouco a pouco com os cantares e a musicalidade da América Latina, do México aos confins da Argentina, Paraguai e Uruguai. Na capital da República as comunicações se desenvolvem com a chegada das gravadoras e o surgimento do Teatro de Revista, acontecimentos que darão grande impulso à música popular brasileira, com a projeção do samba e do choro e a criação de público cativo do teatro musical gênero “revista”. É o tempo da profissionalização de Pixinguinha como ápice da composição popular e dos grandes cantores e programas de rádio, até à chegada da televisão.

Paulatinamente, a partir da década de trinta do século XX, com a criação de Universidades em São Paulo e Rio de Janeiro vai-se estabelecendo uma espécie de “latinidade comunicacional” pela difusão não apenas dos saberes populares do continente, mas pela intensidade de correspondência entre professores das antigas Universidades da América Espanhola e o grupo brasileiro envolvido na hercúlea tarefa de, institucionalizando a implantação do estudo das Ciências Humanas, criar editoras, centros de pesquisa e se articularem teórica e metodologicamente com os centros de saber europeus, sul e norte-americanos.

Entre os intelectuais que alcançaram os “estudos superiores” também se destacam, em toda a América Latina, pensadores refletindo sobre esse saber e fazer das populações iletradas ou semiletradas do continente. No Brasil, muitos deles dotados desse “fazer espontâneo” exercido por vários cientistas, médicos, engenheiros, advogados, sacerdotes e militares portadores de inspiração musical, pictórica, literária e poética irmanam -se com músicos, pintores, escultores, poetas e ativistas políticos de matizes libertários, como Fábio Luz, e instauram debates sobre a sociedade e os efeitos da realidade hierárquica da organização político-econômica com sequelas da escravidão, herdada das concepções e práticas colonialistas.

Poucos desses intelectuais, como o médico sergipano Manoel Bomfim (08/08/1868-21/04/1932), se ocuparão da problemática indígena, num período de pensamento dominante das teorias racistas, quando eram discutidos “os males da miscigenação racial”, e raças inferiores como os negros e indígenas. Pensador erudito e engajado na ideia de educação do povo brasileiro como condição de ruptura com hierarquias raciais e fim de preconceitos, Bomfim é ainda o iniciador de proposta de articulação do Brasil com os países da América Latina, publicando em sua rica bibliografia América Latina, Males de Origem, em 1905. Na obra de 1932, Cultura do povo brasileiro, não só combate a ideologia dominante, como resgata a importância dos indígenas e dos negros e mulatos na formação cultural de nossa sociedade. É um pensador que precocemente pautou a luta da geração criadora das primeiras Universidades, ele que se dedicara ao Pedagogium e à Escola Normal do Distrito Federal, exercendo forte influência em seu tempo na formação educacional da infância e juventude, através de vasta produção de livros para educação infantil, inclusive em associação com o poeta Olavo Bilac, militando ativamente por décadas na imprensa, num combate ininterrupto pela formação de uma sociedade democrática.

No pós Primeira Guerra Mundial os antropólogos alemães Frobenius (29/06/1873-09/08/1938) e Franz Boas (19/07/1858-21/12/1942) desenvolveram estudos respectivamente sobre a cultura africana e populações autóctones do Canadá e dos Estados Unidos, tendo Boas se dedicado também a pesquisas sobre populações negras na América e elaborado teoria da cultura englobando raça e etnicidade. Enquanto Frobenius encampa a teoria difusionista da cultura, Boas se afasta progressivamente dessa teoria e do evolucionismo, aproximando-se da psicologia e do estudo das mentalidades tendo, através de seus discípulos como Ruth Benedict, Ralph Linton, Margareth Mead e outros, dado origem à Escola Culturalista norte americana, de forte repercussão entre estudiosos da cultura latino-americana, com seus conceitos de caráter nacional, personalidade básica, aculturação, sincretismo religioso.

No combate às chamadas teorias racistas, o culturalismo foi muito utilizado por autores que falavam de uma “cultura nacional”, no estudo de populações negras, indígenas e mestiças, em toda a América Latina, quando predominaram no Brasil os estudos da cultura afro-brasileira. Na constituição da Universidade do Distrito Federal – UDF em 1935, a cadeira de Antropologia, tendo como catedrático Gilberto Freyre, contou com professores como Heloísa Alberto Torres (Diretora do Museu Nacional), Josué de Castro e Maria Julia Pourchet, grande estudiosa dos índios Kaingang, correspondente assídua de Boas e divulgadora de sua obra no Brasil.

No mundo da música, intelectuais como Mário de Andrade (09/10/1893- 25/02/1945) e Luciano Gallet (28/06/1893-29/10/1931), como já o fizera a maestrina Chiquinha Gonzaga (17/10/1847-28/02/1935) desde o século XIX, dedicaram-se à pesquisa e valorização da música popular brasileira. Chiquinha Gonzaga adaptou o piano para o choro e compôs a primeira música para o carnaval “O abre alas”, juntando-se aos grupos de choro. Na UDF estão os músicos Heitor Vila-Lobos, Arnaldo Estrela e Lorenzo Fernandes, a poetisa Cecília Meireles e o pintor Portinari, todos envolvidos na valorização dos saberes populares do país.

Dedicando-se ao estudo das populações negras, o médico antropólogo Arthur Ramos (07/07/1903-31/10/1944) publicou em 1934 o livro O Negro Brasileiro, que teve repercussão internacional. Em 1935, lecionando a disciplina Introdução à Psicologia Social na UDF, o antropólogo analisa a importância dessa disciplina, demonstrada nas primeiras teorias da comunicação, principalmente na propaganda e nas técnicas formadoras de opinião pública. Extinta a UDF em 1938 com forte crise política no país, em 1939 é criada a Universidade do Brasil, transferindo-se os alunos da área de Ciências Humanas para a Faculdade Nacional de Filosofia – FNFi/UB. Para a cadeira de Antropologia e Etnologia é nomeado Arthur Ramos, aprovado em concurso público para Professor Catedrático em 1945, após ter organizado a 2ª edição de O Negro Brasileiro em 1940. No prefácio a essa edição Ramos celebra a repercussão alcançada por seu trabalho mostrando uma extensa rede de comunicação entre estudiosos da cultura negra na Europa, África, Estados Unidos, Haiti, Cuba, Argentina e Peru que publicaram em revistas científicas comentários sobre a obra, dando destaque aos comentários do etnógrafo haitiano Price-Mars, criador do Movimento Negritude no Haiti.

Afirmando a provisoriedade das teorias científicas por uma atualização constante das pesquisas que apontam a dinâmica da sociedade, em 1948 na Semana Euclidiana (8 a 15/08) em São José do Rio Pardo, Arthur Ramos dá entrevista a jornal de São Paulo apresentando limitações ao uso dos conceitos de cultura brasileira e caráter nacional. Afirma que a sociedade brasileira é composta de tantas etnias que poderia ser analisada como multicultural, além do que não se pode falar de um caráter nacional, acrescentando a necessidade de “experiência de um novo campo – a Antropologia Social da vida contemporânea”. É um primeiro enunciado da superação da Escola Culturalista e sinalização de surgimento de novo método de análise do social. Vê como novos campos de pesquisa o estudo de “comunidades de folk – cultura”, a exemplo das “Monografias do Grupo de Chicago, e depois alargando o seu campo ao estudo de outras comunidades, não apenas rurais, mas também urbanas”.

Um ano após a entrevista e a conferência falece em Paris em 1949 como primeiro Diretor Efetivo do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, deixando importante acervo hoje depositado no Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Para se entender a formação de redes intelectuais de estudos da cultura do povo negro e indígena, ou a posteriormente nominada Folkcomunicação na América Latina, destaque-se nesse acervo sua correspondência passiva, composta de 934 comunicações de intelectuais do México, Peru, Argentina, Inglaterra, Cuba, Portugal, Estados Unidos, Colômbia, França, Uruguai, Alemanha, Bolívia, Áustria, Cabo Verde, Venezuela, Haiti, Suíça, Guatemala, Daomé, Panamá e Chile, dialogando sobre seus livros e artigos, criticando-os, elogiando-os, esclarecendo dúvidas, pedindo e oferecendo informações sobre temas de seu interesse. Muito significativo é o número de cartas apresentando estudiosos que vêm ao Brasil para receber suas orientações sobre o estudo das populações negras do Brasil, entre os anos de 1927 a 1949. Nesse período de estreita comunicação entre os estudiosos das culturas negras e indígenas da América Latina, o intelectual cubano Israel Castelhado propõe intercâmbio científico entre os dois países, o que se concretiza em 1934, com o intercâmbio entre Fernando Ortiz e Arthur Ramos. Em 1939 o intelectual peruano Fernando Romero solicita ao estudioso brasileiro parecer sobre o seu Ciclo Panamericano de Transmisiones Folklóricas. Demonstrando a existência de ampla comunicação entre estudiosos latino-americanos das culturas negras e indígenas, o estudioso peruano Armando R. Artol solicita colaboração de Ramos no II Congresso Indigenista Interamericano.

A partir da década de 1950 as Universidades se multiplicaram em todos os estados brasileiros, implantando Faculdades de Jornalismo, iniciativa dos chamados “jornalistas espontâneos” que, com formação de nível superior em diferentes profissões, desenvolviam atividades jornalísticas por vocação. Exemplo desses jornalistas espontâneos é o pernambucano Luiz Beltrão que, em 1959 integra o corpo docente do primeiro Curso de Jornalismo do Nordeste, da Faculdade de Filosofia do Instituto Nossa Senhora de Lourdes – Paraíba. Em Recife lecionou na Universidade Católica de Pernambuco, tendo os concluintes de 1963 e 1964 recebido o diploma de Bacharéis em Ciência da Comunicação.

O jornalismo torna-se um gênero da nova ciência, bem no espírito do tempo, desde a eclosão dos estudos da sociedade da segunda metade do século XX, sob a influência das tecnologias comunicacionais, teorizada pelo antropólogo, filósofo e semiólogo francês Edgar Morin, fundador do “Centro de Estudos de Comunicação de Massa – abordagem transdisciplinar”, em 1960 e a publicação do livro que o celebrizou em 1962, intitulado Cultura de Massa no século XX – O espírito do tempo.

Como previra Ramos em 1948, os métodos científicos se superam para entender as mudanças sociais, antecipando a troca da Antropologia Cultural pela Antropologia Social e ampliação dos estudos dos costumes da cultura popular não somente rurais, mas também urbanos. Aplicando essa etnografia das camadas populares urbanas em suas pesquisas jornalísticas, Beltrão observou a reação dos não letrados ao impacto da moderna comunicação de massa e sua força condutora de audiência, verificando a criatividade espontânea popular na criação de elementos de mediação com suas próprias modalidades comunicacionais, dando surgimento à palavra Folkcomunicação, defendendo tese de doutorado na Universidade de Brasília em 1967, intitulada Folkcomunicação : um estudo dos agentes e meios populares de informação de fatos e expressões de ideias.

Discípulos de Beltrão, como o Professor José Marques de Melo, divulgam sua obra nacional e internacionalmente, dando vida ao gênero Folkcomunicação, em todas as Faculdades de Comunicação do país, com a criação de associações, no mundo luso espanhol, como informa Betania Maciel (2013) no texto “Folkcomunicação em Rede Latino-Americana”. Hoje é papel fundamental da INTERCOM difundir a metodologia da Folkcomunicação pela necessidade de maior compreensão dos efeitos da tecnologia na sociedade globalizada e seus canais comunicacionais de informação no tempo real, numa interdisciplinaridade com estudos antropológicos, sociológicos e de psicologia social.

Em toda a América Latina os estudos de folclore tiveram e têm profundo significado para o mapeamento dos saberes do povo, formando-se redes entre folcloristas, filósofos e comunicadores, em busca de elementos fundantes de uma identidade latino-americana. Nesta construção intelectual, pensadores como Foucault e Stuart Hall (década de 1960) são citados como teóricos, tanto quanto, a partir da década de 1980, Jesús Martin-Barbero, que faz a interessantíssima interdisciplinaridade comunicação, cultura e hegemonia, trazendo forte politização ao debate.

Essa busca de uma identidade latino-americana também mobiliza intelectuais como o grande filósofo mexicano Leopoldo Zea (30/06/1912-08/06/2004), autor da concepção filosófica do “Latinoamericanismo Integral na História”, fazendo estudo ontológico da América Latina, valorizando a cultura popular na construção da vida, tanto quanto o fator geohistórico. Professor da Universidade Autônoma do México – UNAM, foi ativista incansável na organização de instituições de estudos sobre os saberes latino-americanos, escrevendo e ministrando cursos sobre uma Filosofia Latinoamericana. De sua extensa bibliografia, destaco as obras: El pensamiento latino-americano; En torno a una filosofia americana; Filosofia y cultura latino-americanas; Colonización y descolonización de la cultura latinoamericana.

Referências bibliográficas

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RAMOS, Arthur. Documenta: “Os Grandes Problemas da Antropologia Brasileira”. Revista MANA, 21(1), p. 195-212, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v21n1/0104-9313-mana-21-01-00195.pdf.

SALADINO, Alberto; SANTANA, Adalberto (org.) Visión de América Latina: Homenage a Leopoldo Zea. México: Instituto Panamericano de Geografia e Historia/Fondo de Cultura Económica. Coleción Tierra Firme- Visión de América Latina, 2003.

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