Artigos e ensaios

Recepção: 20/04/2018
Aprovação: 17/06/2018
DOI: https://doi.org/10.5212/RIF.v.16.i37.0010
Resumo: O presente artigo foca nas representações de assombrações do folclore brasileiro na história em quadrinhos Piteco – Ingá, escrita pelo autor Shiko e publicada no selo Graphic MSP, o qual intenta dar roupagens mais adultas e sérias aos personagens clássicos criados por Maurício de Souza. Shiko usa em sua narrativa criaturas folclóricas do Brasil, como Boitatá e Caipora. A forma como estas são representadas, de forma mais assustadora e bem diferente do tradicional, será analisada com um viés na folkcomunicação e folkmídia, a fim de compreender como estes elementos folclóricos são modificados pelo autor, buscando ganhar novos leitores e, da mesma forma que torna surpreendentes personagens de gibis bem conhecidos, também faz com que os monstros com os quais todos já estão habituados tornem-se assustadores.
Palavras-chave: Assombrações, Histórias em Quadrinhos, Folkcomunicação.
Abstract: This paper focus in the representations of the hauntings of the brazilian folklore in the comic book Piteco – Ingá, writen by the author Shiko and published in the Graphic MSP, a comic books collection that intends to give a more adult and serious look to classical characters created by Maurício de Souza. Shiko uses in his narrative brazilian folkloric creatures, as Boitatá and Caipora. The way that they are represented, in a more scary way and different from the usual, will be analyzed within the folkcomunicação and folkmídia concepts, to comprehend how this folkloric elements are modified by the author, trying to get new readers and, in the same way that well know comics characters became amazing again, the author also make that monsters that everybody are used to became again scary.
Keywords: Hauntings, Comic Books, Folkcomunicação.
Introdução
A intenção deste artigo é debruçar-se sobre os conceitos de folkcomunicação e folkmídia realizando uma análise da história em quadrinhos intitulada Piteco – Ingá, da autoria do brasileiro Shiko³, publicada em 2013 pela editora Panini. Para tanto, pretende-se verificar como o folclore foi utilizado na narrativa, detendo-se na maneira em que os seres folclóricos brasileiros, monstros, ou, como os nomeou Luís da Câmara Cascudo, “visagens e assombrações” (CÂMARA CASCUDO, 1967), são representados.
Pretende-se portanto analisar a forma com que estas criaturas são representadas por Shiko, roteirista e ilustrador, à luz dos conceitos de folkmídia e folkcomunicação. Esta narrativa foi escolhida para análise não apenas por apresentar como elementos constituintes de seu roteiro criaturas folclóricas, mas também pela série de publicações na qual está inserida.
Piteco – Ingá é a quarta história em quadrinhos de um projeto editorial que recebeu o nome de Graphic MSP. O nome é a junção de graphic, em referência ao termo graphic novel, que pode ser compreendido como um quadrinho mais sério e para um público mais adulto, – contudo, como esta explicação é um tanto quanto simplista, e é necessário deter-se mais sobre o que é uma graphic novel. Este artigo esmiuçará o termo posteriormente – e a sigla “MSP”, de “Maurício de Souza Produções”. Esta nomenclatura é dada à empresa fundada por Maurício de Souza, criador dos personagens dos gibis Turma da Mônica. Como o próprio nome sugere, as obras publicadas pelo selo Graphic MSP são quadrinhos destinado a um público mais adulto, onde figuram os personagens da Turma da Mônica. Estes quadrinhos tornam-se interessantes para uma análise através da teoria da folkcomunicação uma vez que recorrem a personagens presentes no imaginário popular e os colocam com uma nova roupagem, a fim de destacar ou modificar alguns traços destes para lhes conferir um sentido diferente, que pode ser caro a um novo e nostálgico público daquele produto: o adulto.
Os três quadrinhos que antecederam a obra de Shiko neste selo foram Astronauta – Magnetar, em que a narrativa mistura a solidão e o isolamento do personagem no espaço, a saudade da família e um antigo amor na terra, além de alguns conceitos astrofísicos em relação às viagens espaciais. Ressaltando o que já foi exposto anteriormente, nem todos estes elementos são inéditos, alguns já estavam presentes nas narrativas do personagem em seus gibis regulares. Contudo, ao mesmo tempo em que alguns elementos novos são utilizados na narrativa, o texto os trabalha de uma forma mais densa, direcionada para o público que se busca. Narrar em diversas páginas uma trama densa sobre solidão e isolamento são bem mais atrativos para adultos que para crianças, consideradas o público normal das histórias de Maurício de Souza. Seguiu-se a este a publicação Turma da Mônica – Laços, na qual a narrativa falou sobre o tema da amizade entre os personagens principais de Maurício de Souza, - Cascão, Mônica, Magali e Cebolinha – e, antecedendo Pitego – Ingá, Chico Bento – Pavor Espaciar, na qual o personagem que dá nome à publicação se vê abduzido por um disco voador. Uma narrativa menos densa que as anteriores e algumas das posteriores, mas ainda assim com um tema diferente das revistas comuns do personagem. Assim, com este rápido detalhamento das primeiras publicações deste selo torna-se possível perceber como estas ou trabalham dentro de elementos clássicos dos personagens ou inserem novos, contudo, o mais importante é: o fazem para agregar um público novo.
Chegamos então a Piteco - Ingá, a graphic novel que é tão cara para esta análise. Ela se utiliza do personagem Piteco, que é retratado nos gibis regulares como um simpático homem das cavernas que, munido de um tacape, na maioria das vezes envolve-se em confusões na hora de ir caçar ou quando foge da caça, e aparece correndo de dinossauros. Na nova roupagem que Shiko dá ao personagem, este ainda é um caçador e mantém a arma, mas suas feições tornam-se bem mais sérias, e uma miríade de elementos molda a narrativa. Shiko utiliza dos dinossauros que tanto contracenaram com o personagem, mas confere um tom autoral na narrativa ao colocar um pouco da sua origem nordestina na história, como observa Maurício de Souza no prefacio do quadrinho, ao ressaltar a seca como um elemento, além da Pedra do Ingá, monumento arqueológico presente na Paraíba (SHIKO, 2013, p. 5), com diversas inscrições rupestres. E a história de Piteco – Ingá torna-se extremamente interessante para esta análise após uma das personagens, Thuga, ser sequestrada por outro povo. Cabe então a Piteco a missão de resgatá-la. E, dentre as adversidades que o personagem e seus ajudantes encontram, pode-se destacar M-Buantan, nome criado por Shiko para referir-se ao que conhecemos por Boitatá, além de ser auxiliado por Arapó-Paco, um protetor das matas, o qual é a versão de Shiko para Curupira ou Caipora. E, tendo em foco a utilização destas criaturas do folclore brasileiro, a análise do quadrinho sob a ótica do conceito de folkcomunicação torna-se bastante interessante, uma vez que a intenção é compreender como Shiko modificou as criaturas para um diferente público, transformando novamente o folclore para uma maneira que melhor aprouvesse seu público.
Graphic Novel: formato e narrativas reimaginados para um novo público
Antes de prosseguir com a análise, faz-se necessário detalhar brevemente o que é uma graphic novel, para demonstrar a importância de uma referência a este nome na nomenclatura do selo em que o quadrinho analisado é publicado e como uma graphic novel pode remeter à mudança de elementos de uma narrativa, para melhor encantar um novo leitor, algo bastante caro para este vislumbre que se intente dar ao conceito de folkcomunicação.
O termo não é recente, e aparece diversas vezes ao longo do século XX, sendo atribuído a histórias em quadrinhos diferentes daquelas com as quais todos estão habituados. Ainda assim, muitas vezes, e de forma incorreta, afirma-se que o termo foi cunhado pelo quadrinistas Will Eisner, pois este foi estampado na capa de sua obra Contrato com Deus, de 1978, a qual possui grande popularidade (GARCÍA, 2012, p. 33). A partir dos anos 80 o termo ganha grande notoriedade, tornando-se cada vez mais presente em publicações, muitas vezes a fim de enaltecer quadrinhos publicados em livrarias e concomitantemente distanciá-los daqueles gibis que todos estavam acostumados a ver em bancas de jornais. Grandes editoras como a Marvel Comics aproveitaram da popularidade do termo à época e lançaram compilados de histórias em um novo formato, pois a opinião que acompanhava as graphic novels era de que estas eram melhores que os quadrinhos convencionais. O que se deve afirmar em relação a isso é que elas eram diferentes, o que não implica necessariamente que fossem melhores (GARCÍA, 2012, p. 33).
E ao pensar sobre a popularização das graphic novels, que fez estas tornarem-se mais populares a partir dos anos 80, como se afirmou anteriormente, deve-se atentar que a razão desta popularização foram decisões comerciais de grandes editoras devido uma crise e perda de leitores enquanto buscavam novos, tanto que Santiago García afirma que, por trás dos desenvolvimentos artísticos realizados pelos quadrinhos, existem crises na indústria editorial que precisam ser evitadas (GARCÍA, 2012, p. 37). E embora García não se direcione ao mercado brasileiro quando faz esta afirmação, mas ao mercado editorial norte-americano dos anos 80 em diante, é possível utilizar sua análise para compreender o cenário editorial brasileiro no qual surgiram as Graphic MSP, ainda mais quando o autor afirma que, além das perdas habituais de leitores para outras editoras ou produtos já existentes, o mercado de histórias em quadrinhos via surgir um novo oponente para dragar o público, os vídeo-games, o que acabava por tornar necessária uma adaptação nos quadrinhos ao novo cenário, e que culminou no desenvolvimento das graphic novels (GARCÍA, 2012, p. 37).
Pensando no cenário brasileiro, os gibis da Turma da Mônica e outros personagens da autoria de Maurício de Souza transformaram-se ao longo do tempo, pois não se pode afirmar que a mesma estrutura narrativa se manteve presente nas décadas em que estes são publicados. Contudo, o formato e público eram quase sempre os mesmos, com narrativas voltadas para crianças, em formatos pequenos, sem nenhum luxo. Passou a se direcionar as narrativas para um público diferenciado quando, em 2008, os Estúdios Maurício de Souza introduziram no mercado uma publicação chamada Turma da Mônica Jovem, em um formato que remetia ao mangá⁴, e que apresentava os personagens que tanto foram desenhados como crianças agora um pouco mais velhos. Portanto, enquanto o público sempre foi de crianças, agora se buscava os adolescentes. E, se pensarmos o contexto dos anos 80 no mercado editorial norte-americano, quando os quadrinhos viam surgir os vídeo games como uma ameaça, pois tomava parte de seu público, os anos 2000 no Brasil tinham a popularização da internet e smartphones, dando ao público uma nova forma de entretenimento, que novamente minava possíveis e habituais leitores. E embora as publicações da Turma da Mônica Jovem não sejam graphic novels, elas foram importantes para sondar o mercado e, atestando o sucesso destas, tanto que continuam sendo publicadas até os dias atuais, a Maurício de Souza Produções pôde então buscar trazer de volta um público que na infância leu seus gibis, mas na vida adulta encontrava apenas uma nostalgia nestes, o que não lhe possibilitaria tornar-se leitor assíduo. Para capturar estes leitores, deu-se início à também bem sucedida empreitada das Graphic MSP em 2012, com o lançamento da aqui já tratada Astronauta – Magnetar, quadrinho este que, fazendo jus ao nome graphic presente em sua capa, apresentava algo diferente, mas com elementos já conhecidos e caros ao leitor de outrora.
A Maurício de Souza Produções não disponibiliza dados a respeito da tiragem destas publicações. Ainda assim é possível encontrar outras informações acerca destas, como preço e a forma como são comercializadas, a fim de diferenciá-las das publicações tradicionais da Turma da Mônica. Primeiramente, quanto à maneira como são disponibilizadas no mercado. Os quadrinhos tradicionais são disponibilizados mensalmente em bancas de jornais, com o título contendo apenas o nome do personagem daquela publicação – Mônica, Cascão, Magali, ou outros -, e o número da revista. Ao fim do mês, são recolhidos pela distribuidora, para que as revistas do mês seguinte sejam ofertadas. As graphic novels tem distribuição diferente, primeiramente porque não são vendidas apenas nas bancas de jornais, mas também em livrarias ou sites voltados para a comercialização de livros, como Amazon ou Saraiva. Portanto, a intenção é aproximar estas publicações mais dos livros do que dos gibis, a fim de lhe conferir um tom diferente na busca por leitores diferentes.
Também há o fato de que os gibis comuns nem sempre se esgotam e, quando isso acontece, não há uma nova impressão, a menos que se trate de uma edição especial ou com grande procura. Com as Graphic MSP, porém, uma vez que estas são esgotadas, depois de algum tempo é realizado uma nova impressão⁵, o que torna possível identificar uma particularidade sua. Isso ocorre também pois há maior demora para surgirem novas Graphic MSP. O que se deve, em parte, por estas terem roteiro e editoração mais trabalhada, de forma que demanda mais tempo para chegarem ao mercado, e também porque a intenção é apresentar narrativas que primem pela qualidade, e não pela quantidade e massificação do produto, uma vez que o leitor que se busca é o mais velho, e também mais exigente, afinal, se sabe que o produto terá ampla concorrência, seja com publicações semelhantes ou outras formas de entretenimento.
Além da estratégia de comércio, destaca-se também o preço: as revistas regulares são vendidas por um preço entre R$ 5,00 e R$ 6,00, tendo um valor mais elevado nos “Almanaques”, que contam com mais páginas⁶. As Graphic MSP, por sua vez, apresentavam, em seu lançamento, o preço de R$ 19,90 e R$ 29,90, variando pelo formato da capa: dura ou cartonada⁷. Estes elementos são indicativos dos diferentes públicos para os quais estas revistas são direcionadas. Com o preço mais caro, dando-lhe um valor maior do que as revistas simples da Turma da Mônica, esta também torna-se mais interessante aos adultos devido ao seu formato: não é um gibi simples, de capa mole, que acaba sendo destruído após algumas leituras descuidadas de uma criança. Ele tem capa dura, ou, mesmo que se opte pela versão cartonada, é melhor do que os gibis comuns. A intenção é conferir como destino às Graphic MSP a mesa de centro do leitor, para deixá-las expostas, ou a prateleira, junto dos livros, um destino diferente dos tradicionais de Maurício de Souza.
Tendo posto estas considerações, antes de partir para as análises de Piteco - Ingá à luz da folkcomunicação, se fez necessário apresentar o conceito de graphic novel, no qual a publicação se insere, para atestar que, tal qual os elementos folclóricos da narrativa são modificados pelo autor a fim de atenderem a um novo público, o mesmo acontece com a história em quadrinhos que agora carrega o novo e pomposo nome de graphic novel, apresentando ao leitor algo que ele já conhece e é familiar, mas com uma nova roupagem, a fim de melhor lhe agradar no seu atual contexto.
Uma aplicação dos conceitos de folkmídia e folkcomunicação para se compreender as transformações de histórias em quadrinhos para diferentes públicos
Reunindo o aparato teórico-metodológico que seria útil para esta análise, realizou-se um recuo até a obra de Luiz Beltrão. Embora outros livros tenham sido utilizados para se teorizar a folkcomunicação, para esta análise a referência principal é a intitulada Comunicação e Folclore (BELTRÃO, 1971). Para Beltrão, a folkcomunicação pode ser considerada como a troca de informações e as manifestações de opiniões, ideias ou atitudes de massa, sendo estas realizadas por meio de agentes ligados ao folclore, de forma direta ou indireta (BELTRÃO, 1971, p. 13). Também escreve o autor que, embora teóricos contemporâneos a ele afirmavam que o folclore não passa de estratificações do que foi vivido, este na verdade não tem em seu cerne a memória, mas sim a atualidade (BELTRÃO, 1971, p. 14). Aplicando o conceito de folkcomunicação de Beltrão, é possível reconhecer que o discurso folclórico, muitas vezes advindo de um passado distante, assume toda uma sorte de novos significados, mais atuais, e isso ocorreria graças à folkcomunicação (BELTRÃO, 2001, p. 72).
Também o conceito de folkmídia é deveras importante para este artigo, contudo, antes de trabalhá-lo, serão apontadas algumas formas de comunicação que constituem a folkcomunicação, sobre as quais Beltrão tratou. Após transcorrer sobre tradição oral e literatura de cordel, o autor chega aos almanaques, e afirma:
Outro gênero da folkcomunicação escrita, de muita tradição, uso e penetração no Brasil, é o dos almanaques, publicações editadas anualmente, contendo, em regra, o calendário, cálculos astronômicos, festas fixas e móveis da Igreja, correspondência das eras históricas, e, ainda, previsões meteorológicas, horóscopos, informações agrícolas, problemas charadísticos, adivinhas, palavras cruzadas, cartas enigmáticas, logogrifos, máximas anedotas, historietas e piada ilustradas, informações sobre geografia, história, avanços da ciência, obras artísticas e literárias, sonetos, poemas e trovas, e conselhos úteis relativos à higiene, alimentação, etiquêta (sic), puericultura, beleza, economia doméstica. (BELTRÃO, 1971, p. 87).
A importância deste excerto no momento em que se trabalha com uma história em quadrinhos está no trecho que cita como elementos dos almanaques as historietas e piadas ilustradas. Embora historietas possam se referir a narrativas curtas, com etimologia do francês historiette, esta também é uma nomenclatura que se dá a histórias em quadrinhos na Argentina (RAMOS, 2016, p. 83) e, por vezes, também foi aplicada a esta mídia no Brasil. Embora não se possa afirmar que Beltrão se referia ou não a uma narrativa gráfica quando utilizou a palavra historieta, ele a cita junto de piadas ilustradas, e não as separa com vírgula, mas com um “e”, as complementando. Seria um erro afirmar, contudo, que o autor se referia a histórias em quadrinhos neste momento. O que se pode fazer com certeza é afirmar que estas, em uma forma bastante rudimentar, estavam presentes em um gênero da folkcomunicação escrita.
Considerando que histórias em quadrinhos não são apenas texto, mas a junção de texto e imagem, deve-se levar em consideração a importância das imagens para a compreensão de uma mensagem, como escreve Maria Isabel Amphilo Rodrigues de Souza, afirmando que estas são um acessório importante para a folkcomunicação (SOUZA, 2003, p. 81). E embora a autora escreva isso discorrendo sobre a xilogravura, a importância que ela dá à imagem em si, a qual também está presente nas histórias em quadrinhos, não deve ser desconsiderada, de forma que a afirmação da autora pode ser aplicada a quadrinhos, bem como sua aplicação como um gênero da folkcomunicação.
Ainda sobre os almanaques, é interessante como é possível não apenas relacioná-los às histórias em quadrinhos em si, como também ao gênero de graphic novel dentro do qual Piteco – Ingá se insere, pois, de acordo com Beltrão, a popularidade destes só foi realmente alcançada quando o lugar de venda deixou de ser as prateleiras de livraria e passou para os balcões de farmácias (BELTRÃO, 1971, p. 81). Ou seja: é um fenômeno similar e oposto ao das graphic novels, onde parte do que as constitui é o lugar de venda, que passa das bancas de jornais e lojas especializadas para as livrarias. Desta forma, é possível afirmar que parte do que faz o sucesso destes formatos não é apenas o conteúdo, mas o público para o qual é escrito, e também o local onde é vendido.
Para tratar sobre gibis dentro do conceito de folkcomunicação, também nos é útil a noção de folkmídia. Marques de Melo discorre sobre as tradições comunicacionais de populações marginalizadas e sobre a força que estas têm, sobrevivendo a inovações tecnológicas e resistindo culturalmente (MARQUES DE MELO, 2008, p. 57). Contudo, ao mesmo tempo em que as tradições sobrevivem, como escreve, também são incorporadas pela folkmídia, pela cultura de massas. Este conceito é explicado por Joseph Maria Luyten, quando escreve que folkmídia é uma consequência da utilização dos elementos da folkcomunicação pela mídia, podendo ser exemplificado como a utilização dos elementos folkcomunicacionais pelos sistemas de comunicação de massa (LUYTEN, 2006, p. 47). Dentro dessa discussão propomos inserir a publicação Piteco – Ingá, em que estão presentes diversos mitos folclóricos brasileiros, mas modificados para um novo público e inseridos em uma lógica de mercado massificada.
As visagens e assombrações do folclore brasileiro em Piteco - Ingá
Por fim, chegamos às assombrações, as criaturas fantásticas do folclore brasileiro. Como se afirmou anteriormente neste artigo, dois seres aparecem na narrativa de Shiko, embora nenhum dos dois conserve os nomes originais, mas sejam referidos por nomenclaturas inventadas, com grafias que lembram o tupi-guarani. Posteriormente se discorrerá sobre a possível razão que levou o autor a esta escolha. Antes de fazê-lo é necessário contextualizar alguns conceitos que são utilizados neste trecho da análise. Primeiramente, quanto a folclore, um dos cernes deste artigo, a definição escolhida é de Câmara Cascudo, para o qual o folclore inclui “mitos, lendas, figuras indígenas de outrora e contemporâneas” (CÂMARA CASCUDO, 2012, p. 11). Para o autor, o folclore é a cultura popular, quando esta se torna normativa em decorrência da tradição. Os objetos presentes no folclore são sensíveis a seus ambientes, e por eles também são remodelados, refazendo ou abandonando estruturas que são dispensáveis em determinadas regiões (CÂMARA CASCUDO, 2012, p. 402). O folclore, então, abrange diversas estruturas e possui um leque gigantesco. E dentre estas estruturas, o que nos interessa são os mitos, uma vez que estes serão analisados neste artigo.
Para se pensar estas narrativas folclóricas enquanto mito, deve-se considerar que durante muito tempo estas foram qualificadas como fábulas, pura ficção. É a partir do século XIX que estudiosos passaram a compreender que os mitos, em sociedades arcaicas, carregam o valor de uma história verdadeira, o que torna-os mais significativos, uma vez que passam a ter um tom sagrado (ELIADE, 1963, p. 1). Ainda assim, para Mircea Eliade, a definição de mito é extremamente difícil, principalmente quando se busca uma que seja aceitável tanto para acadêmicos quando para o público leigo, e isso se deve à grande complexidade deste conceito. A definição que melhor cabe ao autor, e a que será utilizada neste texto, é de que mitos narram histórias sagradas, muitas vezes se passando em tempos imemoriáveis. Assim, o sobrenatural é utilizado para explicar a existência tanto da realidade em si quanto de um fragmento desta (ELIADE, 1963, p. 5). Pensando o mito junto às criaturas que tomam parte neste artigo, Boitatá e Caipora ou Curupira, é possível estender a explicação de Eliade para tratá-los como explicações para fenômenos naturais simples, como uma ventania forte em meio à mata, ou um aviso punitivo a intrusos, para evitar que prejudiquem florestas e os animais destas.
Também para esta análise, principalmente quando se trabalha o folclore e alguns mitos deste em diferentes meios, literatura, tradição oral e histórias em quadrinhos, é necessário contextualizar a intertextualidade, outro conceito caro a este artigo. Para tanto, se recorreu a Graham Allen, para o qual textos, sejam literários ou não, não possuem nenhum tipo de significado independente, e são o que os teóricos convencionaram chamar de intertextual. Desta forma, quando se lê, são colocadas em ação redes de relações textuais. E, quando se interpreta significados, estas redes são percorridas, sendo necessário mover-se entre textos a fim de se encontrar um significado (ALLEN, 2000, p. 1). A intertextualidade é importante neste instante pois, para a compreensão de folclore que se busca, não se deve se ater a apenas um texto ou explicação deste, mas buscar como é aplicado em diversos meios, em diferentes mídias, e, por fim, como, nestas redes de significados, este modifica-se das suas tradições orais para uma representação em histórias em quadrinhos.
Tendo exposto alguns dos conceitos que guiarão este artigo, também é necessário se ater à literatura sobre estas assombrações do folclore brasileiro, recorrendo então a Luís da Câmara Cascudo, folclorista renomado que é de grande importância para esta análise.
Escreve o autor que as assombrações e visagens, como ele chama estas criaturas monstruosas, receberam grandes mudanças a partir do século XVI, com cronistas portugueses as documentando. E isso ocorre pois, para cumprir a sua função, que seria entregar uma mensagem aterrorizadora, deveria ajustar-se àqueles que seriam apavorados no futuro (CÂMARA CASCUDO, 1969, p. 121). E não apenas modificava a sua forma física, como também as suas ações. Exemplo citado pelo autor é das Ipupiaras e Cobras negras, mitos originais indígenas, que matavam, diferente da sua contraparte adaptada pelos colonizadores, Iara, que era sedutora, podia lhes dar um beijo apaixonado. O mito original matava, o adaptado amava (CÂMARA CASCUDO, 1969, p. 122). Estas modificações podem ser observadas em Piteco – Ingá.
A primeira das duas criaturas a aparecer é Boitatá, na publicação chamado de M-Buantan. O protagonista e um amigo estão perdidos quando, em meio a um pântano, avistam uma luz ao longe. Pensando tratar-se das pessoas que perseguiam, Beleléu, que acompanha Piteco na aventura, corre pântano adentro em direção à luz, sem perceber que se tratava de uma armadilha, a qual o conduz para o perigo até que estivesse tão imerso nos charcos que não poderia mais retornar.
Quando a figura da assombração enfim se revela, é retratada como uma mulher esguia, de pele alva, com os braços tingidos de vermelho, provavelmente de sangue. Dois pedaços de pano, como vestes, penduram-se nas laterais do seu corpo, cobrindo parcialmente seus seios e deixando todo o seu torço do seu corpo desnudo. Estas vestes estão presas em seus ombros através de crânios de bodes. No seu pescoço M-Buantan usa um colar com ossos e, no centro dele, um crânio que parece humano. A criatura tem lábios vermelhos, usa em sua cabeça outro crânio de bode, com chifres mais alongados que os demais e, de seus olhos brancos, emoldurando sua sinistra coroa, emanam chamas, elemento característico do Boitatá (SHIKO, 2013, p. 23).
Embora o nome Boitatá se origine das palavras mboi, que pode ser traduzido com coisa, e tatá, fogo, ou seja, “coisa de fogo” (CÂMARA CASCUDO, 2012, p. 171), sua representação mais usual é de uma cobra flamejante, uma chama viajando pela escuridão. A representação realizada por Shiko é inédita, pois não é comum que Boitatá seja descrito como uma mulher esguia e, literalmente, atraente, uma vez que sua função é atrair os incautos. No folclore é descrito que a assombração intenta matar os índios, os incendiar, e proteger a floresta. Não existe menção a atraí-los (CÂMARA CASCUDO, 2012, p. 171), sendo esta uma visível liberdade criativa do autor dando uma função para suas chamas, ao mesmo tempo em que se utiliza de mitos europeus, como as sereias que atraem e seduzem marinheiros, para dar cabo de suas vidas. Outro elemento interessante é a utilização dos chifres de bode na composição do personagem, denotando seu caráter maligno, uma vez que o animal é ligado ao mal no imaginário cristão. Curiosamente, este animal tem origem europeia e asiática, ou seja, não existia na américa, sendo totalmente incompatível com um mito brasileiro (BELANGER; BREDSEN, 2010, p. 20). Assim, tal qual Câmara Cascudo afirma que as assombrações tem de se modificar para aterrorizar as pessoas, Boitatá se modifica, e deixa de ser uma cobra de fogo para tornar-se uma mulher sedutora, adornada com crânios de bode, elementos que, para um leitor atual, remetem ao mal e lhe causam medo. Pensando nos indígenas, que cunharam as formas mais antigas deste mito, a figura de uma mulher esguia com crânios de bode não necessariamente lhes incutiria medo, pois para eles o bode, além de não ser um animal conhecido, também não tem referência nenhuma ao maligno.
A forma como M-Buantan ataca os personagens também é diferente. Pois, uma vez que não conseguiu matá-los afogados no charco, ergue suas mãos e surgem do chão diversos esqueletos, os quais começam a atacar os personagens (SHIKO, 2013, p. 24). Confere-se assim um novo poder à criatura, um bem mais aterrorizante para o leitor do que simplesmente atirar fogo nos personagens.
Assim, é possível atestar como a assombração é modificada por Shiko, a fim de causar mais medo, atualizando o aterrorizante para um novo contexto. Sem se esquecer dos conceitos que são tão caros para esta análise, folkcomunicação e folkmídia, é possível afirmar que a cultura de massa apropria-se dos mitos folclóricos e, para angariar um novo público, dissemina-os e os modifica, convergindo assim as reflexões de Câmara Cascudo e Beltrão.
A segunda criatura que aparece é Arapó-Paco. Esta pode ser Caipora ou Curupira. Câmara Cascudo afirma que as duas são praticamente a mesma, com um nome diferente dependendo da região. A diferença principal seria que Caipora manteria os pés normais, enquanto Curupira os tem invertidos (CÂMARA CASCUDO, 2012, p. 223). E, como Arapó-Paco é retratado sem os pés invertidos, será chamado nesta análise de Caipora.
O personagem é retratado montado em um tatu de proporções enormes, o qual emerge da terra junto à criatura, que tem os cabelos rubros, como é normalmente retratada nas lendas, olhos igualmente vermelhos, e carrega em sua mão um galho com três sinos, onde repousa um corvo. Arapó-Paco carrega dentes e garras de pássaros em seu pescoço, e um apito (SHIKO, 2013, p. 36). A presença dos animais conflui com a característica de Caipora de protetor da selva e animais, ao mesmo tempo em que o sino e apito junto a si são um indicativo dos barulhos na floresta que, nas lendas, denotam sua presença. É importante dizer que Arapó-Paco não é uma criatura que apresenta ameaça aos personagens, mas os auxilia. Assim, não possui junto a si elementos que remetem ao terror, como é o caso de M-Buantan. Contudo, está longe de ser representado como uma criatura diminuta, quase uma criança, com pele negra e cabelos vermelhos, aterrorizando quem está diante de si apenas pela presença, ou um homem gigantesco, como foi descrito por Charles Frederik Hartt em uma viagem à Amazônia (CÂMARA CASCUDO, 1969, p. 123). Carrega uma série de elementos, um galho de árvore na mão como um cetro, uma montaria imponente, para denotar sua importância, uma vez que não poderia fazê-lo apenas pelo tamanho, pois os protagonistas já eram homenzarrões musculosos. Ou seja: novamente, o elemento folclórico foi modificado para atender ao novo público ao qual se destinava.
Considerações finais
Para este artigo foi utilizada a representação de duas criaturas folclóricas, Caipora e Boitatá, em uma história em quadrinhos, utilizando como fio condutor teórico os conceitos de folkcomunicação e folkmídia. E é interessante que, enquanto Beltrão escreve sobre como o folclore não se mantém estagnado, mas é modificado por diversos agentes, de onde advém a folkcomunicação, para atender à atualidade (BELTRÃO, 1971, p. 14), e o conceito de folkmídia trata sobre como este folclore torna-se mídia de massa (LUYTEN, 2006, p. 47), muito do que se tratou neste artigo gira ao redor de uma readaptação de formato e conteúdo para um novo público. E, da mesma forma como as lendas folclóricas brasileiras passam a ter um novo conteúdo e formato para atrair novos leitores, sendo remodelada por Shiko, isso também acontece com o suporte onde estão inseridas, pois o gibi da Turma da Mônica torna-se graphic novel, a história divertida e curta com personagens caricatos torna-se séria, com elementos assustadores e destinada a adultos que já deixaram de lado as leituras da obra de Maurício de Souza. Assim, tanto a narrativa quanto o suporte em que é publicado e os elementos que o constituem tem algo em comum: são modificados para agregar um novo público.
No caso de Piteco – Ingá, Shiko modifica mitos bem conhecidos pelos brasileiros e os adapta, a fim de deixá-los mais assustadores. A cobra de fogo torna-se a mulher sedutora que ergue os mortos para lutar por ela. A pequena criatura que protege a floresta dá lugar um homem esguio e imponente, montado em um grande tatu, que magicamente se locomove por baixo da terra. E tanto se modifica as criaturas que abdica-se de seus nomes mais conhecidos e lhes confere novos, de sonoridade parecida, mas que lembram mais o original na língua indígena do que aquele que foi aportuguesado, fazendo Boitatá tornar-se M-Buantan e de Caipora (ou Curupira) Arapó-Paco. Ironicamente, enquanto Shiko tenta aproximar os personagens do original, conferindo-lhes inclusive nomes que parecem fazê-lo, acaba dando a eles toques mais europeizantes, uma vez que tem de utilizar de referências comuns e populares aos leitores a fim de lhes incutir o medo, e as referências mais populares acabam sendo as hollywoodianas, que, por sua vez, bebem em muito dos mitos europeus. Portanto, enquanto tenta tornar as assombrações mais próximas do original com os nomes, as distancia disso com a forma como são representadas. E a isso cabe muito bem o que Câmara Cascudo escreveu: “um mito pode possuir nome indígena e ser puramente europeu como a Iara” (CÂMARA CASCUDO, 1969, p. 123). No caso, pode-se afirmar que um mito pode ser puramente hollywoodiano e possuir um nome que remeta muito às línguas indígenas, como M-Buantan.
Desta forma, é possível concluir, tendo em mente o aparato teórico da folkcomunicação que, em Piteco – Ingá, Shiko atualiza alguns personagens e elementos do folclore brasileiro para um público diferente, mantendo parte do que pode ser chamado de essência das criaturas, o que torna possível saber que aquelas representações são de Boitatá e Caipora, mesmo que não sejam chamados por estes nomes, mas faz com que elementos constitutivos destas criaturas continuem presentes, modificando suas aparências e atendendo à atualidade: uma cobra de fogo não é mais assustadora, e uma criança ruiva de pés virados não é imponente. As referências dos leitores são diferentes, e Shiko as utiliza para tornar Boitatá e Caipora o que deveriam ser: assombrações, temidas e respeitadas.
Referências bibliográficas
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Notas