Resenhas & críticas
A voz e a dor da periferia brasileira em rimas e batalhas: a popularização do slam como recriação da poesia contemporânea

A Slam poetry, mais conhecida apenas como slam, é uma manifestação de poesia falada dentro da cultura do hip-hop e se estabelece como uma cena cultural crescente em todo o país. A expressão do slam tensiona as práticas culturais, orais, escritas e visuais em um novo lugar de limite entre a literatura, música, arte e ativismo social. A batalha de poesia falada possui algumas regras, que apesar de variarem de lugar em lugar, organizam a atividade: os textos apresentados devem ser autorais e inéditos, a apresentação dura aproximadamente três minutos e não tem suporte de adereços ou instrumentos musicais, as poesias são julgadas por um júri e pelo público com notas de zero a dez (FREITAS, 2020).
No presente texto serão analisados poemas de slam publicados em 2019 no canal do Youtube do programa "Manos e Minas". O canal no YouTube possui 204 mil inscritos e 21.228.867 visualizações. Cada vídeo dura entre um minuto e meio e dois minutos em média. A lista selecionada para esta análise conta com 44 vídeos de 15 poetas distintos e de diferentes lugares de origem, porém todos são de pele negra e falam das periferias brasileiras. O que também é característico nas batalhas de slam.
Cada vez mais se questiona o lugar de fala da população negra e periférica, afinal segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE em reportagem publicada pela Revista Piauí, o porcentual da população brasileira que se declara negra cresceu para 56,10%. A repórter Nathália Afonso (2019) também coloca que “dos 209,2 milhões de habitantes do país, 19,2 milhões se assumem como pretos, enquanto 89,7 milhões se declaram pardos. Os negros – que o IBGE conceitua como a soma de pretos e pardos – são, portanto, a maioria da população. A superioridade nos números, no entanto, ainda não se reflete na sociedade brasileira” (s/p).
Conforme Djamila Riberio (2017), a linguagem é uma forma de manutenção do poder, pois pode ouvir ou calar grupos sociais e reivindicar o lugar de fala e o direito de voz permite que a população negra reivindique a própria vida. Assim, a poesia de slam escrita por negros e negras brasileiros é o lugar de fala sobre a própria realidade e negritude deste grupo que é a maioria da população brasileira.
Ao todo a lista analisada apresenta 44 vídeos e, a fim de tornar a análise mais pragmática, são observados os temas das poesias de forma ampla e geral, pois analisar poema por poema tornaria o ensaio longo demais. A maioria das poesias são apresentadas por mulheres jovens. Todos os poemas tratam de mais de um assunto em que a população preta é protagonista nas favelas brasileiras em situações racistas. Entre os temas mais abordados estão a morte de negros e negras executadas pela polícia militar e pelo Estado. Outro assunto recorrente nos vídeos é o racismo e o tratamento institucionalizado da raça branca com a raça negra em estruturas sociais que repercutem a noção de casa grande e senzala – como por exemplo, o quarto da empregada. A estatística de que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país aparece em mais de um slam.
Os poemas também tratam da resistência da população negra marginalizada, os relacionamentos familiares entre filhos, mães e pais (em geral, pais ausentes). Também são pautados o machismo, o patriarcado e a mulher negra como protagonista. Já entre os assuntos menos pautados, mas ainda assim recorrentes, estão a religião, educação, escolaridade, fome, autoestima, escravidão, assédio e abuso sexual – um dos textos retrata um caso de estupro. Uma das slammer (Negabi, do Paraná) apresenta três poesias na Língua Brasileira de Sinais (Libras). A cor da pele dele e a identidade surda são assuntos nas poesias que apresenta e escreve.
Em diversas abordagens teóricas e epistêmicas temos a noção do diferente como essencial para a produção de significados e algumas reforçam que há sempre uma ralação de poder entre os polos da oposição binária (um polo é dominante).
Há uma noção desenvolvida por Hall a partir do estudo psicanalítico. Aqui o outro é fundamental para a constituição do chamado self dos sujeitos para a identidade sexual. A partir de Freud (e o que ele chamou do complexo de Édipo) e da perspectiva psicanalítica que pressupõe que o self (ou a identidade) não possui um núcleo interno, estável e determinado. Psiquicamente, nunca seremos sujeitos totalmente unificados. Nossa subjetividade é formada por um diálogo problemático e inconsciente com o “outro”. É formada em relação a algo que nos completa, mas que por se encontrar fora de nós de certa forma sempre nos falta (HALL, 2016).
Na linha de pensamento de Hall, Frantz Fanon (1986 [1952]) usou da teoria psicanalítica na explicação do racismo argumentado que a maioria da estereotipagem racial e a violência surgem a partir da recusa do outro branco em reconhecer o ponto de vista do outro pessoa negra. Essa noção está bastante presente nos textos apresentados pelos poetas que reivindicam no slam e nas batalhas terem as próprias vozes ouvidas e as denúncias levadas a sério.
Pelo lugar de origem dos poetas e poetisas compreende-se o slam como uma expressão da literatura marginal. Literatura marginal aqui é vista como a nomenclatura das obras escritas por autores negros das periferias brasileiras e interfere nos processos de produção e circulação das obras literárias, pois em uma acepção estrita as produções marginais são afrontosas ao cânone ao romper com as normas e os paradigmas estéticos vigentes e deslocar a função e relação da literatura com a sociedade (OLIVEIRA, 2011).
A literatura aborda a periferia, a pobreza e exclusão social em diversas obras, porém em grande parte são pessoas que não pertencem a essa realidade. A característica marcante, então, da literatura marginal é o indivíduo socialmente excluído tomar para si o lugar de fala na produção literária. “Na slam poetry, a poesia deixa o ambiente acadêmico, abandona os circuitos tradicionais de curadoria e produção de sentido, flerta com a canção popular e torna-se uma prática.” (FREITAS, 2020, p.3).
A socióloga e teórica Ribeiro (2017), ao tratar do conceito de lugar de fala, aborda aspectos sociais visíveis na literatura marginal, afinal os marginalizados são sujeitos políticos. A linguagem aqui pode ser compreendida como um mecanismo de manutenção de poder de um grupo maioritário sob outro minoritário. Ao tratarmos da literatura marginal, no ponto de vista da socióloga, a publicação de autores negros os coloca como sujeitos ativos da própria história da negritude brasileira.
Quem sabe falar sobre a experiência da marginalidade e da negritude são os negros e negras colocadas nestas situações sociais rimadas e denunciadas nos diversos textos analisados, afinal a vivência de um homem negro é diferente de um homem branco e ainda mais diferente de uma mulher negra. Refletir sobre o lugar de fala é uma postura ética reivindicada pela prática do slam e por isso Ribeiro (2017) afirma que “a reflexão fundamental a ser feita é perceber que, quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida” (2011, p. 45).
Ficha técnica:
Canal do YouTube Manos e Minas
Playlist com vídeos de slam publicados em 2019:
https://www.youtube.com/watch?v=Azlo4qfBJi4&list=PL16dU6TIO2nniE3IueYKOSz2Aok4k57JV
