Editorial
A edição da Revista Internacional de Folkcomunicação (RIF) que encerra o ano de 2021 é um convite a refletir sobre as perdas, as mudanças e os impactos causados pela pandemia da Covid-19 em diversos setores da sociedade. Falar sobre perdas remete à triste marca de mais de 610 mil mortes registradas no país desde o início da crise sanitária em março de 2020 até o final do ano de 2021. Uma dessas vítimas, o professor Gilmar de Carvalho,falecido em Fortaleza em 17 de abril de 2021, recebe a homenagem da RIF em forma de seção especial na presente edição.
A iniciativa surgiu da parceria proposta pela revista Passagens, da Universidade Federal do Ceará, que consistiu em um trabalho conjunto em memória da trajetória e da obra de Gilmar de Carvalho, contando com a colaboração dos(as) pesquisadores(as) Helonis Brandão (SEDUC-CE), Cristina Schmidt (UMC e Rede Folkcom), Maria Érica de Oliveira Lima (UFC e Rede Folkcom) e Fábio Parode (UFC)como editores convidados.
Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho é reconhecido um dos grandes pesquisadores brasileiros das culturas populares. Além de pesquisador e professor, foi ator, teatrólogo, jornalista e publicitário, deixando um legado de múltiplas contribuições. Algumas delas estão registradas na seção especial, que inicia com um cordel em sua homenagem, produzido pela poetisa, cordelista e professora Teresinha Vidal.Um registro sensível das contribuições de Gilmar de Carvalho para a cultura popular se faz presente no artigo de Maria de Lourdes Macena de Souza, artista e docente cearense cujas relações de pesquisa e afeto com Gilmar, “homem semente”,se estabeleceram a partir da luta em defesa dos saberes tradicionais.
A dedicação de Gilmar de Carvalho à literatura de cordel é um dos aspectos centrais de sua trajetória. O tema está representado em dois artigos da seção especial da RIF: o primeiro, de autoria de Maria Gislene Carvalho Fonseca, discute o conceito de tradição em Gilmar de Carvalho e enfoca perspectivas de estudo do cordel na Comunicação. O outro, de Eliane Mergulhão, Cristina Schmidt e Sônia Jaconi, aborda a atualidade do cordel como linguagem popular e suporte jornalístico, referenciando a importância dos estudos do pesquisador.
Outro destaque da edição são os artigos que compreendem o dossiê sobre cultura no contexto da pandemia, organizado pela professora Dra. Betania Maciel (Faculdade de Ciências Humanas - ESUDA; Centro Latino Americano de Estudos em Cultura - CLAEC) e pelo professor Dr. Kevin Willian Kossar Furtado (Universidade Federal do Paraná). Ao todo, são dez artigos que refletem sobreimpactos, transformações e experiências no campo da cultura, de modo a evidenciar as contribuições da folkcomunicação para o conhecimento da realidade em um cenário de crise.
No artigo de Betania Maciel, a comunicação dos grupos marginalizados e as práticas independentes se inserem no contexto dos desafios da (folk)comunicação em tempos da pandemia da Covid-19. Também com foco nas manifestações da cultura, Verena Carla Pereira, Michelle Bezerra da Silva e Otávio Osaki Cruz discutem as adaptações de atividades artísticas e culturais para o formato online, reestruturando as lógicas de produção, circulação e consumo.
As práticas de resistência cultural no cenário pandêmico são tema do artigo de Marcelo Sabbatini sobre o grafite urbano, entendido como um sistema alternativo de comunicação que abordou a problemática da Covid, e de Flávio Santana, Denio Santos Azevedo e Arisvaldo Andrade Santos Neto, que pesquisaram o ativismo de mestres e mestras populares em Sergipe no período.
Também integram o dossiê análises sobre a cultura no ambiente digital, em que se evidenciam formas de adequar manifestações populares à condição de isolamento social. Os eventos audiovisuais realizados na modalidade virtual no período da pandemia em Minas Gerais são analisados por Ariane Barbosa Lemos.O carnaval é o foco da analise deMarco Aurelio Reis, Rafael Otávio Dias Rezendee Sérgio Ricardo Fernandes Rodrigues, que abordam a adaptação para a ciberquadra de ensaio nas lives da escola de samba Mocidade Independente (RJ) e a busca pela participação do público, e de Valmir Moratelli e Mariana Dias, que articulam as noções de nostalgia e memória para analisar um canal do youtube que, diante da ausência dos desfiles, transmitiu imagens de carnavais antigos.
O impacto da pandemia na produção, circulação e consumo cultural também assume destaque nos artigos publicados no dossiê. Manuela Fetter Nicoletti apresenta as adaptações no processo de organização de festivais de cinema decorrentes da digitalização a partir da interrupção das atividades presenciais no mundo; Whaner Endoanalisa as mudanças nas estratégias na gestão das editoras e nas relações entre livros e leitores e, por fim, Pedro Paulo Procópio de Oliveira, Bruno Bernardo Galindo Lopes e Nazarete de Souza observam como a literatura de cordel incorporou a temática da Covid-19, estabelecendo relações entre o saber científico e o popular.
A edição compreende ainda quatro artigos gerais que tratam de diferentes percursos teóricos e análises empíricas. Para começar, o debate em torno do patrimônio cultural no contexto da digitalização é refletido no estudo de Urbano Lemos Júnior e Vicente Gosciola sobre os sinos mineiros. Outros dois artigos apresentam abordagens folkcomunicacionais na análise de produções culturais: as relações entre documentaristas e líderes folk é tema da pesquisa de Thífani Postali e a folkcomunicação imagética de Sebastião Salgado, a partir das obras Êxodos e Gênesis, recebe o olhar analítico de Denis Porto Renó e Lívia Maria de Oliveira Furlan. Por fim, encerra a seção de artigos gerais o trabalho de Kevin Willian Kossar Furtado sobre a cobertura midiática das celebrações da Igreja dos Humildes (Maceió/AL) e os aspectos de uma religiosidade marginal e contra-hegemônica.
A RIF traz também um ensaio fotográficode autoria de Leonardo Reis voltado aos costumes e tradições do sertão do interior do Ceará, valorizando cores que remetem a memórias do local, e uma resenha de Adriele Silva sobre as representações folclóricas na série Cidade Invisível, produzida pela Netflix em 2021.
Os textos apresentadosna Revista reforçam o potencial da teoria da folkcomunicação para compreender fenômenos complexos, oferecendo abordagens críticas e criativas para refletir sobre problemáticas do tempo presente. Que a leitura motive novos estudos e contribua para o reconhecimento do legado de pesquisadores da cultura como Gilmar de Carvalho, a quem dedicamos a presente edição.
Equipe Editorial RIF