Resumo: Este trabalho realiza uma reflexão em torno do conceito de Tradição desenvolvido nas pesquisas de Gilmar de Carvalho. A partir desse referencial, convocamos seu entendimento na abordagem da poesia de cordel como um fenômeno cultural discutido no campo da Comunicação. Para tanto, esse texto traz uma revisão bibliográfica que dialoga com a própria obra do pesquisador e realiza proposições em torno de um aprofundamento teórico sobre o cordel brasileiro. Observamos que, para Carvalho, Tradição é uma fusão de tempos, impossível de ser apreendida em uma leitura linear.
Palavras-chave:Gilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho,CordelCordel,TradiçãoTradição.
Abstract: This paper reflects the concept of Tradition developed by Gilmar de Carvalho's research. Based on this framework, we call upon your understanding of the approach to cordel poetry as a cultural phenomenon and discussed in the field of Communication. Therefore, this text brings a bibliographical review that dialogues with the researcher's own work and makes propositions around a theoretical deepening of the brazilian cordel. We observe that, for Carvalho, Tradition is a fusion of times, impossible to be apprehended in a linear reading.
Keywords: Gilmar de Carvalho, Cordel, Tradition.
Resumen: Este trabajo reflexiona sobre el concepto de Tradición desarrollado en la investigación de Gilmar de Carvalho. Con base en este marco, hacemos un llamado a su comprensión del enfoque de la poesía de cordel como un fenómeno cultural discutido en el campo de la Comunicación. Por tanto, este texto trae una revisión bibliográfica que dialoga con el propio trabajo del investigador y hace proposiciones en torno a una profundización teórica del cordel brasileño. Observamos que, para Carvalho, la Tradición es una fusión de tiempos, imposible de aprehender en una lectura linear.
Palabras clave: Gilmar de Carvalho, Cordel, Tradición.
Homenagem a Gilmar de Carvalho
O conceito de Tradição na obra de Gilmar de Carvalho e as perspectivas sobre a poesia de cordel no campo da Comunicação
Concept of Tradition in Gilmar de Carvalho’ works and the perspectives on Cordel poetry in Communication
Concepto de Tradición para Gilmar de Carvalho y las perspectivas acerca del Cordel en la Comunicación
Recepción: 13/10/2021
Aprobación: 03/12/2021
O tema da Tradição é muito caro à obra de Gilmar de Carvalho. Grande parte de suas pesquisas seguiram essa abordagem, apoiando-se em leituras de Paul Zumthor, principalmente na obra “A Letra e a Voz”, para convocar discussões de memória, fundamentais em suas articulações conceituais. Além disso, o professor de Comunicação e doutor em Semiótica, também dedicou sua trajetória acadêmica aos estudos sobre o cordel e a xilogravura. Esses trabalhos são fundamentais para o entendimento das artes e culturas experienciadas no Nordeste brasileiro.
Gilmar de Carvalho é referência para todas as pesquisas que se propõem a refletir as culturas tradicionais e populares. Seus conhecimentos teóricos e empíricos, seus relatos de campo, suas entrevistas, seus livros, as conversas de corredor, os almoços, aos passeios por museus, suas histórias foram fundamentais para formar pesquisadoras e pesquisadores que, como eu, seguem buscando construir um olhar para a cultura que não a classifique, hierarquize ou encaixe. A cultura, para Gilmar, é fluida, livre, e está sempre associada ao cotidiano de quem a vivencia.
Parte disso o entendimento que ele nos apresenta sobre a Tradição. Este texto realiza uma discussão cujo objetivo é pensar esse conceito para Gilmar de Carvalho a partir do que ele nos oferece de compreensão sobre o universo do cordel. Ele é resultado de revisões bibliográficas de sua obra, mas também de uma experiência riquíssima que tive a oportunidade de construir em nossas conversas, pesquisas de campo, trocas de e-mails, leituras e comentários de trabalhos que ele sempre fez muito cuidadosa e generosamente.
Em Tramas da Cultura: Comunicação e Tradição, livro de 2005 lançado pelo Museu do Ceará, Carvalho discute os conceitos articuladores de sua obra, de seus olhares para o mundo. Meu acesso ao livro veio pelas próprias mãos de Gilmar em 2012, que compartilhou comigo um manuscrito, porque a edição estava esgotada. Conversávamos sobre minha pesquisa de mestrado e a recente “acusação” de que “cordel não seria mídia”, portanto, não poderia ser estudada em um programa de Estudos da Mídia. Naquele momento precisei construir os argumentos epistemológicos desse estudo e, para isso, contei com ensinamentos do professor a partir de seus escritos.
Atualmente o livro está disponível no repositório online da biblioteca da Universidade Federal do Ceará e trata do conceito de Tradição ao discutir sobre cordéis, almanaques, jornais, rádios e TVs, livros, quadrinhos, shoppings e feiras. Todos esses fenômenos empíricos analisados pelas óticas do campo da Comunicação e da produção de memórias.
De partida, Carvalho define as Tradições como:
Práticas que se inserem em uma longa duração. É o que fica do que uma geração transmite para outra, evidentemente, com perdas, substituições e lacunas. A tradição é esse lastro comum de experiências (e vivências) de determinados homens em um determinado tempo e lugar. (CARVALHO, 2005, p. 8)
E foram esses “lastros comuns” que Gilmar percorreu em sua obra, possibilitando pensarmos a tradição não apenas como um elemento narrativo, muito menos como “fôrmas nas quais cabem quaisquer receitas” (2013, email, acervo pessoal), compreensão que ele atribuía a Hobsbawn (2012) na Invenção das Tradições. Gilmar propunha uma discussão cujo insight veio do antropólogo e amigo Ismael Pordeus.
Em uma viagem ao interior do Rio Grande do Norte em 2012, em busca de rabequeiros e rabequeiras pelo Nordeste, Gilmar me explicava sobre seus interesses pela Tradição. Seu olhar estava interessado nas permanências. Para aquilo que não se perde por se renovar. Que negocia repetições e inovações para que possam existir e se fortalecer. Novamente, os “lastros comuns”. Isso é a cultura atribuída do adjetivo “tradicional” que encontramos nas obras de Gilmar.
Em nossos diálogos, cheguei a convocar a discussão da tradicionalidade nas construções de narrativas para Paul Ricoeur (2010), a partir da negociação entre memória e esquecimento. Ao ler um de meus projetos de pesquisa que apresentavam essa discussão como ponto de partida, na resposta, Gilmar me convidou a deixar um pouco de lado a abordagem mais filosófica do tempo apresentada por Ricoeur, para pensarmos naquilo que Zumthor (1992, 2010) trazia como reflexões em torno da memória.
No projeto que culminou na minha tese de doutorado (FONSECA, 2019) articulo uma discussão de tradições em três eixos de base ricoeuriana:
1) Tradicionalidade é o encadeamento da continuidade que implica o nosso “ser-afetado-pelo-passado”, na dialética entre passado interpretado e presente interpretante a partir de uma “transmissão geradora de sentido” (RICOEUR, 2010a, p. 377);
2) Tradições são os conteúdos portadores de sentido que são transmitidos, “as coisas ditas no passado que chegaram até nós por uma cadeia de interpretações e reinterpretações” (RICOEUR, 2010a, p. 379);
3) Tradição está relacionada a uma presunção de verdade de um passado, a partir de proposições de sentidos, que aciona a memória coletiva.
Sobre esta apreensão da Tradição, Gilmar de Carvalho entendia como várias facetas de um fenômeno e articuladas dentro de um mesmo aporte conceitual. Para Gilmar, há sim tradições de uma construção essencialmente voltada à dominação e às manifestações de poder e que se impõem pelo argumento da “identidade”. Mas há também essas tradições que se concretizam nas práticas, nas trocas, que circulam pelas vias da oralidade e que se reinventam constantemente, se adaptam aos seus tempos e, assim, permanecem vivas.
O conjunto de reportagens que resultou no livro Artes da Tradição, em parceria com o fotógrafo Francisco Souza, convoca essa ideia. Os textos foram publicados no jornal Diário do Nordeste e indicavam, segundo Carvalho (2005a), a contramão do jornalismo cultural praticado pela imprensa.
Neste livro, que era destacado por Gilmar de Carvalho como uma de suas obras preferidas (HOFMEISTER, CARVALHO, 2019), ele aborda um amplo campo de produções artísticas. Gastronomia, artes plásticas, rituais e festejos, danças, trabalhos manuais, encenações, produções literárias, religiosas e tantas outras manifestações que ele chamou de tradicionais. Sobre cada uma delas, Gilmar construiu narrativas que não se prendem ao olhar antropologizante do estranhamento, mas encontrando, quase que de forma psicanalítica, os pedaços daqueles mundos que o integraram como sujeito. Um sujeito acadêmico, formal, que sabia olhar para o amplo do mundo sem ignorar os fenômenos que compunham a sua “aldeia”.
Segundo Carvalho (2005a), Artes da Tradição fala sobre cultura e sobre as habilidades exercidas pelas pessoas como estratégias de sobrevivência. E retoma os “lastros” como os traços fundamentais a serem percorridos em busca desses elementos comuns que articulam as diversas experiências do tempo.
Da circularidade da cultura, com influências do mundo todo e da importância da tradição, como permanência de saberes e fazeres. E a constatação, baseada em teóricos, de que qualquer criação, que pretenda ser contemporânea, deve se basear num lastro de experiências, vivências, crenças e valores. (CARVALHO, 2005a, p. 266)
Em síntese, a grande contribuição do pensamento de Gilmar de Carvalho para o entendimento da Tradição não diz respeito apenas a uma sucessão linear de acontecimentos no tempo, dos quais alguns deixam marcas, que continuam sendo convocadas no presente com vistas a um futuro. Em vez disso, a Tradição é tratada como uma fusão de momentos em que vivenciamos diversas experiências do passado, sem que eles precisem ter acabado – para serem consideradas como passado. Na obra de Gilmar, o passado também é vivo e é constitutivo do presente como uma realidade, não como uma reverberação de memórias.
Dentre esses diversos temas relacionados a práticas culturais tradicionais listadas, catalogadas e discutidas por Gilmar, um tema que teve grande visibilidade e relevância em sua obra foram os estudos sobre Xilogravura e Poesia de Cordel. Com um amplo e aprofundado estudo sobre a obra de Patativa do Assaré, uma tese voltada para a xilogravura produzida em Juazeiro do Norte e os trabalhos seguintes de coleta e produção de antologias foram fundamentais para construir um pensamento comunicacional do cordel como um fenômeno da tradição.
A proposta da Folkcomunicação suge no Brasil nos anos de 1970 e se mostra como uma possibilidade de estudos sobre a poesia de cordel. Nesta perspectiva, os poetas cordelistas são mediadores de tradução das informações. Seriam eles agentes facilitadores de uma comunicação para as pessoas que estavam fora do circuito midiático. Esse pensamento se ressignifica quando, com o passar dos anos, o cordel e a mídia em geral se reorganizam e passam a se apresentar de formas distintas. Esta abordagem é o ponto de partida para a compreensão apresentada aqui, e que dialoga com aquilo que Gilmar de Carvalho vai propor em sua extensa obra sobre a poesia de cordel dentro do campo Comunicacional.
Pela perspectiva da Folkcomunicação proposta por Beltrão (1967, 2004), os agentes ligados ao folclore seriam líderes de opinião, chamados de agentes folk, cuja função seria a de mediar os processos comunicativos, possibilitando aos indivíduos ‘marginalizados’ que pudessem, assim, estar inseridos nas formas de comunicação.
A vinculação estreita entre folclore e comunicação popular, registrada na colheita dos dados para este estudo inspirou na nomenclatura deste tipo cismático de transmissão de notícias e expressão do pensamento e das reivindicações coletivas. Folkcomunicação é, assim, o processo de intercâmbio de informações e manifestação de opiniões, ideias e atitudes da massa por intermédio de agentes e meios ligados direta e indiretamente ao folclore. (BELTRÃO, 2004, p. 47)
Desta proposta, a partir do prefixo folk, são construídas diversas outras expressões que dizem respeito aos modos de produção popular: Folkmídia, referente às mídias disponíveis para os usos dos ditos agentes folk – lugar em que, pela Folkcomunicação, se situa o cordel –, que fazem uma ponte entre a mídia de massa e a população marginalizada; Folkmarketing, que se refere às campanhas publicitárias que utilizam elementos da cultura popular como recursos estéticos e de sentido; Folkjornalismo, referente ao jornalismo popular; Folkturismo, que dá conta das formas de turismo popular e comunitário etc.
Estes estudos são importantes para o reconhecimento de diversos fenômenos artísticos, culturais e religiosos em suas perspectivas comunicacionais. Como ponto de partida, a proposta de Beltrão (2004) é muito interessante para colocar em evidência outras formas de comunicação que são baseadas em práticas culturais populares.
O método de análise proposto pela Folkcomunicação está ancorado ao funcionalismo norte-americano, e isso nos demanda um aprofundamento das investigações, saindo de uma zona de conforto de identificação dos agentes e de suas funções. Precisa-se compreender as redes comunicativas de cada fenômeno, acompanhando, inclusive, suas transformações. Mudam os objetos, mudam também os métodos de análise. Durante os estudos de Beltrão desenvolvidos na década de 1960, havia um acesso restrito aos meios de comunicação, principalmente pelas pessoas que não estavam nos centros urbanos. Mas atualmente isso tem se modificado por conta, por exemplo, de programas sociais e governamentais que levam luz elétrica e acesso à Internet para o interior do Brasil. Neste sentido, o cordel não é mais o mediador único entre a mídia de massa e o público, porque este já tem acesso direto a outros veículos midiáticos. Importa sabermos sobre os novos lugares ocupados pelo cordel.
Dentro do campo da Folkcomunicação, o cordel é tratado principalmente por Luyten (1992), que realizou um estudo sobre as notícias em cordel. Segundo o autor, os cordelistas tomavam emprestadas as notícias que circulavam nos jornais e as traduziam de modo que tivessem uma linguagem mais acessível ao restante da população marginalizada, muitas vezes analfabeta e sem acesso aos meios de comunicação de massa. “A literatura de cordel, enquanto noticiosa, se preocupa essencialmente com aspectos interpretativos e opinativos e não informativos, pura e simplesmente” (LUYTEN, 1992, p. 23). Os folhetos analisados são destacados a partir do que ele chama de “autores mais significativos”, e aponta Leandro Gomes de Barros, Cuíca de Santo Amaro, José Soares, Rafael de Carvalho, Raimundo de Santa Helena e Toni de Lima.
Luyten (1992) também considera que o cordel “está entre a vida e a morte” (p. 21), mas que subsiste em pequena escala, com uma visão fixada no passado. Mas reconhece uma transformação no público da época (para estudantes e turistas) e das temáticas (de ordem noticiosa e de contestação social). A ideia de morte do cordel decorre da diminuição – que ele reconhece não ter sido devidamente investigada – das publicações chamadas de romance, ou seja, as de ficção (ou invenção, como trataremos no capítulo seguinte).
O cordel seria, então, uma forma de comunicação popular que corresponderia às questões sociais do qual faz parte, representando um fenômeno comunicativo, em que os poetas são líderes de opinião, pessoas que estariam um nível acima na etapa comunicativa proposta pelo funcionalismo. Nessa perspectiva, interessaria à Folkcomunicação saber das intenções apresentadas em cada manifestação, e a isso corresponderia o sentido nela contido.
Nas longas e profundas pesquisas de Gilmar de Carvalho convocando os fenômenos da tradição, o tempo inteiro ele esteve atento aos aspectos comunicacionais dessa abordagem. Se temos a tradição condicionada pelas trocas simbólicas, dentro deste campo, Fonseca e Azevedo (2021) discutem as tradições no cordel e no brega convocando tal entendimento a partir da ideia de que a tradição existe como uma articulação entre as experiências e memórias dos diversos atores que constituem as trocas.
A produção das tradições, a partir de um conjunto de performances, convoca as memórias que identificamos ao vivenciarmos os ambientes das festas e das declamações. Constituindo-se como um acervo, é a partir da memória que são acessados os conhecimentos sobre os quais a textualidade dos fenômenos se estabelece. Como uma poética de vozes e de corpos, dependemos constantemente daquilo que os atores envolvidos na performance lembram - ou demonstram lembrar. (FONSECA e AZEVEDO, 2021, p. 67)
Além dessa ideia de uma abordagem comunicacional não midiacêntrica da tradição, Gilmar de Carvalho também convoca o cordel como mídia, de forma mais direta. Dialogamos, então, essa perspectiva teórica, para chegar às articulações propostas por Gilmar de Carvalho, com o entendimento de mídia a partir de Antunes e Vaz (2006), no qual é impossível não perceber características comunicacionais do cordel:
A mídia é, então, algo capaz de transmissão que permite uma modalidade de experiência assentada no transporte e deslocamento incessante de signos. Tal processo de midiatização, muito mais do que meio, afigura-se também para além de um estado. A melhor tradução de seu processo é de um fluxo onde se dão operações, onde se mesclam e entrecruzam mundos simbólicos e materiais que têm os meios à montante e à jusante, e que a seu curso carreia grande parte das narrativas na contemporaneidade: cotidianas e institucionais, corriqueiras e especializadas, midiáticas e não-midiáticas. Os produtos midiáticos carregam consigo uma remissão a uma multiplicidade de sujeitos sociais, técnicas, lugares e dispositivos encaixados em momentos diferentes e simultâneos de produção, transmissão e apropriação. [...] A mídia pode ser apresentada como um lugar de apontamento de sentido, de estabelecimento de formas interativas de criação e de partilhamento de representações e de (re)interpretação de experiências, de vinculação, de junção, de formação de elos, de instrumentação. Por outro lado, a mídia também afigura-se como o caráter de transmissividade e de reprodutibilidade, um modo de estabelecimento de temporalidades, um tipo de solicitação de disponibilidade aos sujeitos para o compartilhamento de experiências, uma maneira de estabelecimento de contatos e de estruturação de sentidos. (ANTUNES E VAZ, 2006, p. 44-45)
Neste lugar de compreensão, temos, então, os estudos de Carvalho (2002, 2005, 2010) sobre o cordel na Comunicação. Como fenômeno de tradição, Carvalho aponta para o cordel como uma mídia utilizada em diversas situações, seja para a publicidade, seja como espaço para uma crônica em que se trabalha a memória (aqui como um conceito histórico de registro), seja como estética explorada em diversos outros formatos a partir das imagens de xilogravuras reproduzidas em contextos diversos.
Para Carvalho (2002), o cordel é um conjunto de histórias que surgem pela oralidade e chegam ao impresso, mas não se fixam nele, podendo voltar ao oral (declamações, por exemplo) e chegar a qualquer tecnologia disponível ao uso dos poetas. Deste modo, considera que o cordel não está restrito ao folheto, mas ao conjunto de narrativas que, pela tradição, continuam a fazer sentido e ser transmitidos. “Cordel é uma iluminação (epifania), um instante mágico de viver esta emoção que a voz transmite, do corpo que fala no gesto e na performance, da leitura individual ou coletiva de um folheto” (CARVALHO, 2002, p. 287). A partir desta ideia, Gilmar de Carvalho considera possível que o cordel esteja presente nas cantorias, nas xilogravuras (como uma relação forte, mas não necessária), em vídeos, artes plásticas e produtos da indústria cultural.
Ainda segundo Carvalho (2005), as “camadas subalternas” sabem tirar proveito das tecnologias disponíveis para a produção de seus conteúdos – ao contrário do que pensam os folcloristas, para quem o uso das tecnologias se apresenta quase que acidental e exótico.
À medida que a maquinaria se tornava obsoleta para os grandes centros, era levada para cidades do interior, contribuindo para o incremento da atividade jornalística e, posteriormente, para o estabelecimento de focos de produção de folhetos populares na região nordestina. (CARVALHO, 2005, p. 16)
Estes recursos foram condições para o registro impresso de uma comunicação que se fazia pela oralidade, pelas performances de poetas/cantadores, que segundo Carvalho (2005), adaptaram o romanceiro medieval europeu às práticas poéticas locais com a inserção de metrificação, rimas, improviso e novas temáticas. Mais recentemente, o cordel é disposto online, “se rebelando contra a fôrma antiga, incorporando a intertextualidade, a paródia e a citação, elementos da chamada pós-modernidade” (CARVALHO, 2005, p. 22).
Carvalho (2005, p. 23) aponta ainda para o uso do cordel como forma de comunicação popular a partir do jornalismo e da publicidade, evocando o senso de oportunidade dos poetas e a agilidade para a produção contínua de conteúdos que enfocam temas relevantes para o público que a consome. Como forma de legitimação, dá aos temas um tratamento jornalístico que fica fora das normas de codificação e dos manuais de redação, com uma “angulação subalterna”.
Muitas notícias da mídia, chamada de massiva por Carvalho (2005), servem de ponto de partida para que o poeta, também chamado pelo autor de “jornalista popular”, desenvolva seu relato, cuja permanência está relacionada à credibilidade do poeta com temática voltada para temas políticos e sociais.
Já no que se refere à publicidade, Carvalho (2010) sintetiza a pesquisa publicada em 2002, na qual constata a presença do cordel em campanhas como reivindicação de espaço e como afirmação de uma linguagem, como um formato com o objetivo de “dar um recado” ou para servir de ferramenta de prestígio para quem o distribui. Nestes casos, muitas vezes, recorre-se a um aspecto rudimentar ou precário dos folhetos como uma encenação de um padrão cristalizado do cordel preso ao passado. Ao passo em que este cordel encomendado não pode abrir mão de seus traços “encantatórios”, sob o risco de não atrair a atenção do público consumidor do produto anunciado.
Os folhetos de cordel publicitários tiveram e têm sua vez, talvez não em termos de tendência do mercado ou vertente de criação, mas como ofensiva pontual, de eficácia garantida e não duvidosa, quando vale a pena investir para ter aquele produto atraente, sedutor, com suas rimas, suas histórias mirabolantes (ou não), suas capas com xilogravuras, mesmo que em grandes tiragens, com papel de qualidade e pouco apego à tradição. De qualquer modo, a eficácia da mídia cordel vem sendo comprovada e sua permanência reforça essa assertiva. (CARVALHO, 2010, p. 103)
Pensar o cordel pelas perspectivas de Gilmar de Carvalho tem como premissa o entendimento desta poesia como fenômeno da tradição. Baseando-se em discussões sobre memória, oralidade e performance, Gilmar nos apresenta um cordel múltiplo, amplo, diverso, indomável.
É a partir desse referencial proposto por Gilmar de Carvalho que desenvolvo meus argumentos de que o fenômeno do cordel se trata de um movimento de textos, no qual se pode falar a partir de uma apreensão unificadora. A mesma poesia lida duas vezes não é a mesma textualidade, não é a mesma performance, comforme nos define Zumthor (2010). Porque, quando pensamos no texto como processo, é preciso levar em consideração diversos elementos da situação comunicativa que não se repetem. E é a isso que Gilmar de Carvalho está atento ao discutir sobre os folhetos.
As definições com as quais trabalho o cordel e que vem essencialmente das contribuições de Gilmar de Carvalho, em diálogo com os trabalhos de Ria Lemaire e de Fanka Santos, nos dizem de um produto cultural, comunicativo, que integra texto e voz, e que não estaria restrito a uma forma poética apenas. Em vez disso, Carvalho (2002) indica que o cordel é mais que os versos. Trata-se de uma forma de ver o mundo e, como tal, é um fenômeno fluido. Indisciplinado e, portanto, impossível de ser definido em si mesmo. Temos constantemente no cordel um “algo a mais” que o torna impreciso, aberto e sempre maior que definições.
O cordel é como um pássaro beija-flor. Que bate as asas em uma velocidade impossível de ser acompanhada pelos olhos humanos. Assim são as publicações do que chamamos de cordel, ou que consideramos ter a chamada estética do cordel. É poesia cantada, é letra, é imagem. É folheto, é voz, é ambiência, é tempo. Tempo de declamação, tempo do qual emerge e o que faz emergir. São poetas, são ouvintes, são pesquisadores e colecionadores. E cada situação comunicativa da qual emerge a poesia tem esses elementos se materializando de formas distintas e constituindo novas narrativas. (FONSECA, 2019, p. 79)
Observamos, assim, uma impossibilidade de aprisionamento do cordel em um conceito fechado, que defina o que pode ou não ser tratado como poesia de cordel, porque este universo dispõe de uma série de sentidos socialmente difundidos, os quais não podemos desprezar. O que socialmente se reconhece como cordel nem sempre está relacionado diretamente com o folheto impresso, mas inclui a estrutura dos versos, sejam impressas, digitais, declamadas e improvisadas, além das imagens com estética de xilogravura que são associadas a esta forma poética.
Para Gilmar de Carvalho, o cordel tem uma origem que remete a raízes portuguesas. Ele não é um “híbrido”, conceito que o pesquisador considerava insuficiente para tratar da multiplicidade do folheto. Ele considerava fundamental observar-se que essa origem ibérica não era única, mas não podia ser desprezada em seu entendimento a partir da entrada das máquinas impressoras ao interior do Brasil, pós-chegada da Família Real em 1808. Além disso, destaca os Cinco Livros do Povo listados por Câmara Cascudo como uma referência importante para identificarmos os diálogos poéticos nos folhetos.
A partir da obra de Gilmar de Carvalho, podemos observar que aquela Tradição no singular proposta por Ricoeur como uma estratégia narrativa de poder não se sustenta na prática cotidiana. Carvalho (2005, 2005a) apresenta em diversas manifestações os fenômenos que encontram estratégias, brechas, resistências e permanências que escapam às catalogações, às histórias lineares, aos acervos e aos patrimônios. Como defendem Fonseca e Azevedo (2021),
Deste modo, consideramos a tradição a partir de suas dimensões ideológicas, que são transmitidas e negociadas em performances do cordel e do brega, tidos como “referenciais”. Mas essa imposição nunca garante uma permanência imutável das práticas, porque elas estão condicionadas às suas relações com o tempo presente, além do tempo da memória. (FONSECA e AZEVEDO, 2021, p. 71)
O trabalho de Gilmar sobre a tradição dos cordéis como fenômeno da comunicação nos possibilita pensar dessa forma, observando, inclusive, elementos de tempo e espaço que se articulam na própria existência de uma tradição. Se a Tradição implica permanência, Gilmar de Carvalho nos ensina a refletir sobre o que é preciso haver de transformação para que essa dita permanência se consolide?
É claro que não há respostas prontas para essa questão. O próprio Gilmar, em suas pesquisas, destacou a diversidade, a multiplicidade de práticas culturais, adaptações, rituais, artes, encontros e desencontros que apenas cada manifestação é capaz de dizer sobre si. É preciso olhar para cada cordel para identificar o que há de tradição e de permanência ali. Só assim, é possível compreendê-los como uma força que tem o tempo (e sua diversidade de percepções) como motriz. E, assim, entender todos os elementos de negociações e disputas que constituem as tradições como narrativas e como práticas cotidianas.
Ao realizar estudos e reflexões conceituais em torno da ideia de Tradição para Gilmar de Carvalho, nos deparamos com uma infinidade de inquietações. Uma delas, que tem me mobilizado bastante, e que conduziu parte do que convoco aqui na construção desse texto, diz respeito a um processo de descolonização do pensamento.
Gilmar sempre estudou atores e atrizes sociais envolvidos com a cultura e a Tradição do Ceará, do Nordeste e do Brasil, respeitando suas vozes, não se interpondo ou falando por eles. Gilmar dialogou e trouxe para o ambiente acadêmico uma ampla diversidade de saberes e formas de conhecimento que eram deixados à margem. E como ele dizia, parafraseando sua orientadora de doutorado, a professora Jerusa Pires, “a riqueza está nas bordas, nos interstícios” (2013, e-mail, acervo pessoal).
O pensamento de Gilmar de Carvalho não se enquadraria numa tradição decolonial, se pensarmos nas definições que partem de Quijano e Mignolo. Tampouco farei essa classificação que geraria em Gilmar um rebuliço que eu mesma não quero enfrentar. Mas para quem parte para os estudos que consideram sujeitos como sujeitos, não como objetos, que respeita os tempos diversos, as ambiências distintas, e, principalmente, que respeitam, valorizam e aprendem com todas as formas de conhecimento, desde o tradicional, o pop, o massivo, o culto, erudito, canônico e acadêmico, é fundamental transitar pela obra de Gilmar de Carvalho.
Com ele aprendi que a Tradição não é um tempo que passa ao lado ou definido pela modernidade. Modernidade nem precisa ser convocada para essa conversa. A Tradição aqui é uma fusão de momentos distintos: passados, presentes e futuros que emergem em temporalidades que variam de acordo com as experiências e propósitos dos sujeitos que fazem parte de determinada cultura.
A partir de Gilmar, sigo pensando a tradição do cordel no Ceará, no Nordeste e no Brasil. Esse texto não é só uma revisão conceitual em torno de suas ideias, mas um tributo, um agradecimento por tudo o que ele nos lega para a continuidade um de pensamento que fragmenta, que escancara feridas e contradições e que respeita os saberes. O pensamento de Gilmar está situado nos espaços que Glória Anzaldúa (2019) chama de fronteira. Mas isso é mote para outra conversa...