Homenagem a Gilmar de Carvalho
Atualidade em Cordel: linguagem popular e suporte jornalístico
Current events in Cordel: popular language and journalistic support
Actualidad en cordel: Lenguaje popular y apoyo periodístico
Atualidade em Cordel: linguagem popular e suporte jornalístico
Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 19, núm. 43, pp. 46-62, 2021
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepción: 25/10/2021
Aprobación: 30/11/2021
Resumo: Este trabalho tem o intuito de apresentar a importância da literatura de cordel, como instrumento informativo importante para apresentar as dinâmicas da cultura popular, haja vista que tal ferramenta é utilizada por várias camadas sociais, perdurando abundantemente na atualidade. Por meio de levantamento bibliográfico e documental, com abordagem qualitativa e análise descritiva, analisou o cordel no campo da Folkcomunicação, colocando-o como veículo jornalístico de acordo com Luiz Beltrão; em contraponto com a “publicidade em cordel”, abordada por Gilmar de Carvalho. Constatou-se que a Literatura de Cordel se configura enquanto processo de folkcomunicação de modo amplo, e como informação jornalística de modo particular, por ser suporte de divulgação e mensagens próprio ao público, e ter modo de inserção em diferentes grupos culturais em âmbito nacional, especialmente no Nordeste Brasileiro. Essa reflexão corrobora a relevância do trabalho de Carvalho na demarcação dos fluxos informacionais do cordel como veículo publicitário.
Palavras-chave: Literatura de Cordel, Jornalismo, Gilmar de Carvalho.
Abstract: It is observed that popular culture has long been the object of study by various researchers and social actors, especially at this time of pandemic, where popular culture is understood as creation and sociability, popular culture and life. For Beltrão (1980), culture is pre-existing, passes through our experience and criticism, and leads us to build a better world, according to the natural order that life requires. Therefore, our focus will be to present the importance of cordel literature, as an informative tool used for a long time by various social layers and which is still abundantly present today. Our study considers Cordel Literature to be a strong means of communication, especially in Northeast Brazil, the voice of a popular segment, which is configured as a process of folkcommunication and folkmedia. The literary, in its specificity, according to Marques de Melo (2008), is both entertainment and the means and support for the dissemination, conservation, transformation and updating of the people's culture. That is how Gilmar de Carvalho developed his work for over 40 years as a teacher, researcher and cultural producer, to whom we pay homage; bringing this secular expression and its creators that conserve strength and permanently feed informational flows as journalistic support.
Keywords: Literature of Cordel, Journalism, Folkcommunication, Gilmar de Carvalho.
Resumen: Se observa que la cultura popular ha sido durante mucho tiempo objeto de estudio por parte de diversos investigadores y actores sociales, especialmente en esta época de pandemia, donde la cultura popular se entiende como creación y sociabilidad, cultura y vida popular. Para Beltrão (1980), la cultura es preexistente, pasa por nuestra experiencia y crítica, y nos lleva a construir un mundo mejor, según el orden natural que la vida requiere. Por tanto, nuestro enfoque será dar a conocer la importancia de la literatura cordel, como una herramienta informativa utilizada durante mucho tiempo por diversos estratos sociales y que todavía está muy presente en la actualidad. Nuestro estudio considera la Literatura Cordel como un medio de comunicación fuerte, especialmente en el Nordeste brasileño, la voz de un segmento popular, que se configura como un proceso de comunicación popular e información periodística. Lo literario, en su especificidad, según Marques de Melo (2008), es a la vez entretenimiento y medio y soporte para la difusión, conservación, transformación y actualización de la cultura popular. Así desarrolló Gilmar de Carvalho su labor durante más de 40 años como docente, investigador y productor cultural, a quien rendimos homenaje; trayendo esta expresión secular y sus creadores que mantienen fuerza y alimentan permanentemente los flujos informativos como soporte periodístico.
Palabras clave: Literatura de Crodel, Periodismo, Folkcomunicación, Gilmar de Carvalho.
Introdução
Este estudo está situado na área de Folkcomunicação, tendo como tema o papel da literatura de cordel, como um gênero textual informativo importante para apresentar as dinâmicas da cultura popular, demonstrando o papel dos agentes, ou seja, os responsáveis por construir formas concretas para mostrar os costumes, os fatos, as ideias e as crenças existentes dentro de uma comunidade social. Dessa forma, não tem como iniciarmos esse artigo, sem primeiro falarmos de Folkcomunicação, uma ciência genuinamente brasileira, iniciada por Luiz Beltrão, tratando um conjunto formado por vários elementos, dentre eles, os processos de comunicação inerentes aos grupos populares. Por meio de suas expressões configuradas no contexto da cultura popular, formam mecanismos próprios de comunicação social, mais propriamente uma comunicação interpessoal apoiada em referências do passado e do presente, do folclore e das culturas massivas contemporâneas. Esse acervo motiva as manifestações populares confirmam sempre a dinâmica de sua natureza, sendo atualizado constantemente em seus processos e meio, no compasso das transformações existentes no mundo.
Assim, constata-se que a Folkcomunicação é matriz que compreende a comunicação com foco nos agentes e nos meios populares de informação de fatos e expressões de ideias (BELTRÃO, 2001, p.53). Enquanto teoria aborda "o conjunto de procedimentos de intercâmbio de informações, ideias, opiniões e atitudes dos públicos marginalizados, urbanos e rurais, através de agentes e meios direta ou indiretamente ligados ao folclore" (BELTRÃO, 1980, p.24).
Beltrão (1971, p.47) coloca que os grupos populares por “meios próprios de expressão e somente através deles é que podem entender e fazer-se entender”. E esses meios são aqueles que vêm das épocas mais longínquas em suas origens com a oralidade: nas canções; nas contações de histórias, anedotas e lendas; nas rezas e rituais de sacerdotes e místicos; nas conversações de viajantes. Depois, a literatura escrita em cartas, poesias, contos; e com as tipografias, as missas, os almanaques, os cordéis, as propagandas.
Quando tratamos a Literatura de Cordel como veículo informativo de grupos populares, é importante entender que a origem dessa transmissão cultural está na oralidade. E, a tradição oral tem raízes no cancioneiro medieval, que expressava em suas canções/versos no contexto de suas vivências. E, conforme Diégues Júnior (1975), esta tradição do romanceiro, a literatura de cordel, chegou ao Brasil transladada pelos portugueses desde o início da ocupação vindos “nas naus colonizadoras, com os lavradores, os artífices, a gente do povo, veio naturalmente esta tradição de romanceiro, que se fixaria no Nordeste como literatura de cordel” (DIÉGUES JÚNIOR, 1975, p. 5).
Diegues Junior (1975) fala-nos que a origem da nossa literatura de cordel tem sido atribuída às “folhas volantes” lusitanas, também conhecidas como “folhas soltas”, tendo em conta que, o povo português, antes que se difundisse a imprensa, usava o registro da poesia popular em “cadernos manuscritos”. E, de acordo com Carvalho (2002, p.64) “a edição de folhetos remete à implantação das gráficas e pressupõe um rastreamento da produção popular excluída, por conta do viés elitista, das abordagens da história da imprensa e da literatura cearense”.
Gilmar de Carvalho, professor, pesquisador e produtor cultural, desenvolveu seu trabalho por mais de 40 anos trazendo, dentre outras, essa expressão secular e seus criadores que conservam força e alimentam permanentemente novos fluxos informacionais principalmente na região nordeste. Gilmar de Carvalho afirma que Juazeiro do Norte tornou-se um dos lugares mais conhecidos pela produção de literatura de cordel:
Juazeiro tornou-se ponto de convergência nordestina e, por conta de uma contínua romaria ao sacerdote, formou-se um público que já conhecia e consumia folhetos. Foi esse, o percursor do romeiro alagoano José Bernardo Da Silva, de vendedor de ervas e raízes a um dos mais importantes editores de literatura popular. (CARVALHO, 2002, p.64)
O antropólogo Diegues Junior ainda apresenta alguns fatores que contribuíram para que o Nordeste se tornasse o ambiente ideal para que surgisse forte, atraente e vasta, a literatura de cordel:
Em primeiro lugar, as condições étnicas: o encontro do português e do africano escravo ali se fez de maneira estável, contínua, não esporadicamente. Houve tempo suficiente para a fusão ou absorção de influências. Depois, o próprio ambiente social oferecia condições que propiciavam o surgimento dessa forma de comunicação literária, a difusão da poesia popular através de cantorias em grupo e de forma escrita. (...) No Nordeste, por condições sociais e culturais peculiares, foi possível o surgimento da literatura de cordel, de maneira como se tornou hoje em dia característica da própria fisionomia cultural da região. Fatores de formação social contribuíram para isso; a organização da sociedade patriarcal, o surgimento de manifestações messiânicas, o aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos, as secas periódicas provocando desequilíbrios econômicos e sociais, as lutas de família deram oportunidade, entre outros fatores, para que se verificasse o surgimento de grupos de cantadores como instrumentos do pensamento coletivo, das manifestações da memória popular. (JÚNIOR, 1975, p. 8)
Observa-se, assim, que a literatura de cordel ganha força tendo um papel importante, porque não só servia como um meio artístico, pela musicalidade, como também, informava a população sobre os mais variados assuntos e apresentava os assuntos mais diversos como: política, religião, crenças e mitologias, situações do cotidiano, tecnologia, esportes, celebridades, dentre tantos outros. O literário, em sua especificidade, de acordo com Marques de Melo (2008), tanto é entretenimento quanto o meio e o suporte de divulgação, conservação, transformação e atualização da cultura do povo.
Dessa forma, esse tema merece um olhar atento de pesquisadores da comunicação uma vez que a Literatura de Cordel se revela com grande importância no âmbito social e cultural, pois além de retratar os fatos sociais ela, desde o início, apresenta um cabedal de informações dos grupos populares.
Por isso, por meio de pesquisa bibliográfica e documental, e com análise descritiva, nosso foco está em apresentar a importância da literatura de cordel, como instrumento informativo utilizado por grupos sociais e que persiste abundantemente na atualidade. Nosso estudo considera a Literatura de Cordel um forte meio de comunicação, em especial no Nordeste Brasileiro, a voz de um segmento popular, e que se configura enquanto processo de Folkcomunicação e comunicação jornalística.
As dinâmicas culturais na Folkcomunicação
O termo cultura tem várias acepções, em diferentes campos científicos e apresenta amplo espectro de significados, principalmente na Sociologia e na Antropologia. Enquanto a primeira compreende os processos cotidianos, a segunda se atém às produções culturais. Em uma abordagem ampla do que seja cultura, e ao que nos interessa nessa análise, é que ela corresponde a um conjunto de conhecimentos, hábitos e procedimentos interpessoais voltados aos seus territórios geográficos e históricos que vão constituir sua representação em sociedade.
Esse arcabouço de conhecimentos produzidos por grupos culturais diversos, manifestados de forma material e imaterial, vão compor o mapa cultural que, conforme Lévi-Strauss (2011, p.29-30) não é possível fazer uma demarcação hierarquica. Para ele, não há como valorar uma cultura em detrimento da outra, não se pode classificar uma superior a outra, mas sim como culturas distintas que se compõem com uma infinidade de elementos concretos e simbólicos, no contexto em que são produzidas, na formação de diversas estruturas sociais.
Desse modo, podemos entender a cultura, em seu dinamismo, enquanto cultura material e cultura imaterial. O material abrange os produtos culturais concretos (obras de arte, escritos literários, arquiteturas, objetos utilitários). Enquanto que a cultura imaterial constitui-se pela produção abstrata, ou seja, envolve todos os aspectos ligados aos saberes e fazeres. Ambas são constituídas por aspectos subjetivos, valorativos e simbólicos herdados ou não, mas que fazem parte do percurso social-histórico das diferentes sociedades e vão compor seu patrimônio. Pellegrini e Funari (2008, p.9) lembram que “se a apreensão dos bens culturais imateriais como expressões máximas da ‘alma dos povos’ conjuga memórias e sentidos de pertencimento de indivíduos e grupos, evidentemente fortalecem os seu vínculos identitários”.
Observa-se, no decorrer da história da humanidade, que a cultura vai delineando a constituição de sociedades diversas. Os vínculos culturais expressam suas identidades, na formação de um patrimônio coletivo por meio de processos de transmissão de geração em geração, por meio do mecanismo cumulativo forma um cabedal de conhecimento, saberes e fazeres que configuram as referências maiores da coletivodade ou, o Patrimônio Cultural (PELLEGRINI E FUNARI, 2008, p.28-29)
Outra dinâmica cultural importante para a formação do patrimônio cultural é o ‘mecanismo adaptativo’, que consiste na “capacidade de responder ao meio de acordo com mudanças de hábitos e, dessa forma, cada sociedade, em diferentes regiões, apresenta manifestações próprias, como valores religiosos, sociais; ou expressões específicas de vestuário, alimentação, estilos musicais, dialetos”. Essas modificações são feitas pelas gerações que se sucedem de modo que a cultura incorpora aspectos mais adequados à sobrevivência e desenvolvimento do momento (MERGULHÃO, 2014, p. 03).
Ao nos remetermos à cultura popular e à Folkcomunicação, consideramos a sociedade como construção política e social no convívio de coletivos humanos, em que interagem inúmeras comunidades de diferentes perfis. Os vínculos culturais, portanto, expressam a identidade da comunidade, por meio de seu patrimônio cultural. Para Hohlfeldt (Et al, 2001, p.33), o viver em comunidade é a experiência que engendra a construção de suas características, porém, “[...], o indivíduo não tem seu vínculo coletivo, nem sua identidade, assegurados de antemão pela tradição, mas deve construí-los através de seu engajamento espontâneo na diversidade das formas coletivas de agrupamento”.
Essas concepções compõem nosso ponto de vista para abordar a Folkcomunicação e sua dinâmica dentro dos grupos populares; pois, essa disciplina abrange os elementos da diversidade cultural em seus processos de adaptação e atualização, e para BELTRÃO (2001, p.125) as classes populares têm meios próprios de expressão por meio dos quais “é que podem entender e fazer-se entender”.
As classes populares têm, assim, meios próprios de expressão e somente através deles, é que podem entender e fazer-se entender. Tais meios são, ainda, em grande parte aqueles mesmos que lhes serviram na fase da Independência: - a literatura oral, com os cantadores, as estórias e anedotas, os romances cheios de moralidades e filosofia; o jornalismo ambulante dos caixeiros-viajantes, dos choferes de caminhão, dos frades e padres missionários ou dos vigários(...). (BELTRÃO, 2014, p.125)
Logo, para Carneiro apud Beltrão (BELTRÃO, 2014) é através desses veículos e agentes que as camadas populares se organizam, preservam experiências, educação, recreio e estímulo, dando expansão aos pendores artísticos, podendo ser visto por todos.
Sabe-se que, inicialmente, Beltrão havia concebido a Folkcomunicação como processo de intermediação entre a cultura das elites (erudita ou massiva) e a cultura dos trabalhadores (rurais ou urbanas). No entanto, Marques de Melo (2008, p.17) refaz essa conceituação explicando que se “o folclore compreende formas interpessoais ou grupais de manifestação cultural, protagonizadas pelas classes subalternas”, os chamados excluídos; e, “a Folkcomunicação caracteriza-se pela utilização de mecanismos artesanais de difusão simbólica para expressar, em linguagem popular, mensagens previamente veiculadas pela indústria cultural”, ou seja, da comunicação de massa para a comunicação dos excluídos.
Literatura de cordel como expressão jornalística
A literatura popular tem sido fonte de estudos para muitos historiadores e antropólogos que têm por objetivo conhecerem as culturas populares e a história de uma época. Assim, em meio à ficção, esses folhetos literários depreendem as raízes e a identidade de um grupo social. Por intermédio dessa expressão cultural é possível resgatar dados sobre vestimentas, alimentação, rituais, crenças, comportamentos, objetos, linguagem, arquitetura, fatos políticos e sociais.
Para o Campo da Comunicação a literatura de cordel é expressão de comunicação e informação popular. Luiz Beltrão (2014) explica que literatura de cordel como um gênero textual relacionada à arte popular, e pode ser compreendido como texto jornalístico, pois tem um caráter informativo. Tem o mesmo papel que o discurso jornalístico de colocar a sociedade a par dos fatos que acontecem na sociedade; como também, de uma forma implícita, expressar opinião e ideias. Para Marques de Melo (2008) a literatura de cordel pode ser considerada como jornalismo; este que, segundo ele, é informativo e opinativo, cujas funções essenciais são informar, opinar, interpretar por meio de gêneros textuais tais como editorial, resenha, crítica, coluna, crônica, caricatura e carta.
Portanto, para que o jornalismo cumpra suas funções, como um veículo de comunicação, seu principal canal é a linguagem. Assim, sem uma linguagem afinada com o receptor não há informação e sem informação não há comunicação. Desse modo, é possível afirmar que a literatura de cordel, como linguagem por excelência, pode carregar em si conteúdos jornalísticos. E, alinhado com o público, é uma linguagem folkcomunicacional jornalística.
Além disso, de acordo com Marques de Melo (2008, p.92) a literatura de cordel é uma expressão jornalística que anuncia uma variedade temática, provocando uma reflexão acerca das questões sociais, religiosas, políticas, educativas e outras. E, esta, se classifica como gênero folkcomunicacional visual, de formato impresso, do tipo almanaque.
Gilmar de Carvalho (2002, p.63), ao estudar os Cordéis no estado do Ceará, afirma que “a edição de folhetos remete à implantação das gráficas e pressupõe um rastreamento da produção popular excluída, por conta do viés elitista, das abordagens no campo da história da imprensa e da literatura cearenses”. É justamente esse elitismo das mídias hegemônicas que vai servir de estímulo à produção popular, como forma alternativa de interpretação e divulgação dos fatos. Para ele,
Importante chamar a atenção para a constituição de pequenas tipografias, com estrutura familiar, mais próxima das corporações de ofício medievais. O acesso a técnicas de reprodução teria mostrado a necessidade de fixação de um corpus de tradição oral e teria tornado viável uma atividade editorial que vai ter fundas repercussões na cena cultural. (CARVALHO, 2002, p.63)
A literatura de cordel, também conhecida no Brasil como folheto, constitui um gênero literário popular escrito frequentemente na forma rimada, originado em relatos orais e depois impresso em folhetos. Remonta ao século XVI, quando o Renascimento popularizou a impressão de relatos orais, e se mantém até então como uma forma literária popular no Brasil. Essa expressão é muito difundida e utilizada pela cultura do nordeste brasileiro, uma espécie de poesia popular, impressa e divulgada em folhetos ilustrados com desenhos, que são feitos com o processo de xilogravura. (MERGULHÃO, 2014, p.4)
Segundo alguns historiadores e até mesmo nos dicionários constam que este nome vem de Portugal, pois lá era costume deixar desenhos expostos ao povo, amarrados em cordões, estendidos nas pequenas lojas de mercados populares ou até mesmo nas ruas. Até hoje, em cidades portuguesas, é comum de se ver nas lojas de suvenires os “varais” com cartões postais e artesanato local. (MERGULHÃO, 2014, p.4)
Luyten (1987, p.10) lembra que muitos pesquisadores “confundem literatura de cordel ou poesia popular com manifestações poéticas nordestinas”. Mas vale lembrar que há poesia popular em todo Brasil e em toda a América Latina e que a “literatura de cordel significa a parte impressa” e representa muito pouco da poesia popular como um todo. O cordel, no Nordeste, é cantado nas feiras por violeiros e cantadores. Mas eles cantam também outros tipos de cantigas, tais como desafios, emboladas, repentes e outros.
Segundo Gilmar de Carvalho, a literatura de cordel constitui uma forma de comunicação e preservação da memória individual e coletiva; quando sua poesia oral ganha “dimensão impressa como forma de assegurar sua permanência e importância” (CARVALHO, 2001). Conforme descrito por Carvalho (2017), a produção poética atua como reforço de um projeto político mais amplo, ainda não definido em documentos ou normas.
Nesse sentido, corrobora-se o esforço dos cordelistas em atualizar as temáticas, mantendo a tradição; incorporar influências massivas das histórias em quadrinhos, da televisão e da Internet; improvisar instrumentos; e recorrer às novas tecnologias para dar mais agilidade ao processo de criação (CARVALHO, 2017).
Na atualidade as transformações culturais com mudanças de valores, com redefinições das estruturais sociais, com usos das inovações tecnologias e dos espaços digitais envolvem também as expressões culturais populares e, claro, as temáticas e formas de produção dos Cordéis. Segundo Josenildo Lima (2013, p.31), pesquisador da Paraíba, “a literatura de cordel brasileira tem se adaptado a cada uma dessas etapas, pois com o advento do rádio os poetas passaram a se apresentar nas rádios e agora com a utilização exponencial da internet, encontram-se facilmente diversos sites e blogues destinados à divulgação e comercialização dos folhetos de cordel”.
De acordo com Gilmar de Carvalho, apesar da proliferação de jornais e da interiorização da maquinaria desatualizada para as necessidades dos grandes centros, a literatura popular em verso segue em voga, reforçando a importância da imprensa no contexto da literatura popular, mediante a fixação de polos nordestinos de produção de folhetos, numa contestação definitiva à tese de Sílvio Romero (CARVALHO, 2002).
De modo enfático, o autor coloca que o folheto de cordel é muito utilizado como um importante suporte publicitário “e dentro dessa rubrica os folhetos assumiam a conotação do regional com base na apropriação e diluição das culturas populares”, no que denomina de “linguagem cearense de publicidade” (CARVALHO, 2002, p.167). Para ele, no campo da publicidade, a linguagem desses folhetos foi sendo modificada em detrimento dos interesses mercadológicos e dos produtos aos quais estavam promovendo.
Por outro lado, Luiz Beltrão ressalta que essa forma de informação tornou-se tão popular entre as classes desfavorecidas, acentuada com o acesso às tipografias manuais, que sua prática continuou, mesmo com a implementação de jornais mais modernos e massificados. O autor considera que:
Os folhetos pertencentes à literatura de cordel, são o jornal, o romance do trabalhador rural ... narram feitos de heróis ladinos... falam de sertanejos valentes e da vida de cangaceiros célebres, contam estórias de Trancoso [...] registram acontecimentos importantes da região... neles estão registrados as impressões do povo a respeito de acontecimentos sucedidos no município, no estado, em todo o país... a maneira de ver e analisar os fatos sociais, políticos e religiosos da gente rude... denunciando costumes, atitudes, preferências e julgamentos. (BELTRÃO, 2014, p.141)
Em que pese às posições dos autores acima citados, essa literatura está compreendida no campo da comunicação, um a vê como mídia jornalística e o outro como suporte publicitário; e, ambos concordam que sua eficiência comunicativa com o público está em sua origem orgânica. Beltrão fala sobre os “poetas-jornalistas” que fazem parte do universo de seu público. Ele diz:
[...] e os poetas jornalistas dos folhetos de época são autênticos intérpretes do seu público: conhecem suas ideias, sentem os seus problemas, aspiram as suas aspirações, vivem a sua vida, podem falar com ele porque são parte integrante dele. A interpretação jornalística dos poetas do povo está ligada a essa indissolubilidade entre eles e o público; por isso é muito mais fecunda do que no jornalismo ‘ortodoxo’. Baseia-se não apenas no fato em si, mas naquilo que corre deles: nos rumores, nos boatos, nas versões múltiplas colhidas pela sensibilidade desses rudes repórteres. (BELTRÃO, 2014, p. 146)
Carvalho (2002, p.168) vai à mesma linha com o uso do Cordel na publicidade. Para ele, no meio publicitário existe a presença da agência que interfere na liberdade do autor, e acaba dividindo a autoria do folheto. A partir de um briefing, o “poeta” constrói um relato com as referências populares, com uma “aparente simplicidade, de argumentações retóricas como forma de convencimento e de adesão”. Nesse caso, então, não há a liberdade de criação e diálogo com o público em seus anseios, mas sim “o produtor popular é porta-voz de uma encomenda recebida [...] obrigando-se a se pautar pelos interesses dos que detêm o poder econômico e que solicitam esses folhetos”.
Ele destaca a importância estratégica do uso desses folhetos na publicidade, num movimento de empobrecimento de discurso e identidade, mas ainda assim eficiente: “esses folhetos se justificaram exatamente pela não-exigência de um esforço interpretativo e recorrem à familiarização dos receptores com essa linguagem calcada nos referenciais como fator de sua eficácia”. (CARVALHO, 2002, p.167)
Mas, não podemos negar também que o relato de acontecimentos e fatos marcantes de um acontecimento social ou político feito pelo poeta de cordel, em determinados momentos, ocorre com o intuito de “fazer média com a mídia”, tendo em vista que a associação com algumas instituições garante a ampliação do mercado editorial (KUNZ, 2001).
Os “Cordéis” que seguem abaixo exemplificam os aspectos jornalísticos dos folhetos. Trata-se de uma análise descritiva para comprovar a atualidade dessa expressão cultural, seu compromisso com os grupos populares, e seu formato informacional jornalístico.
Dada a escolha dos “cordéis” com viés jornalístico em temáticas de grande relevância e repercussão nacional, optamos pela escolha de duas temáticas em áreas diferenciadas, dentre os templates abaixo, exemplificando, portanto, a abordagem deste trabalho.

No âmbito da política e da violência, a escolha pelo cordel intitulado “Marielle- o sonho não acabou” de autoria do cordelista e membro da Academia Sergipana de Cordel, Ronaldo Dória (2018), retrata a luta da parlamentar em questão na sua militância pelos direitos humanos. O relato do poeta acerca das diversas formas de violência comumente sofridas pelas mulheres, além de trazer vários aspectos noticiados pela grande mídia, reflete a importância da denúncia, de modo a conter a violência contra a mulher, o machismo enraizado na sociedade e a submissão desta:
Vou fazer mais um folheto:
Pra poder denunciar
O que está acontecendo
De uma forma tão vulgar
Com mulheres maltratadas
Que vem nos preocupar
Em todo noticiário
Está lá bem estampado
“Marido mata mulher”
Por estar enciumado
Se a mulher o deixar
A morte é o resultado
A mulher virou manchete
Em rádio e televisão
Sendo bem discriminada
Sem lhe dar muita atenção
Ficando em segundo plano
Esta é a maior questão
Como também na política
Não pode se destacar
Os “marchistas de plantão”
Ficam a se incomodar
E querendo condená-las
Você pode acreditar
(DÓRIA, 2018, p.4)
Nos versos do poeta, justifica-se a repercussão nacional e internacional da morte da parlamentar às diversas lutas travadas pela mesma. O reflexo da formação da sua identidade (negra, pobre, favelada, lésbica) com a maioria dos brasileiros suscitou uma maior comoção, vocalizando as penúrias da sociedade, conforme exposto em vários meios de comunicação na ocasião do fato (2018). Como pode se vê nas sextilhas abaixo:
Até no exterior
O fato repercutiu
Ela era conhecida
Dentro e fora do Brasil
Pelo seu jeito singelo
Sua forma tão gentil
Grandes manifestações
São feitas no mundo inteiro
Todo mundo quer saber
Sobre esse paradeiro
Quem matou a Marielle
Com golpe traiçoeiro
Já nas redes sociais
Gente desqualificada
Fica falando besteira
Com mentira deslavada
Querendo manchar a honra
De quem foi assassinada
Só porque este país
Tá sem qualquer direção
E quem tem muita dignidade
Muitos acham ser em vão
Quem lutou pelos direitos
Morrer é a solução
(DÓRIA, 2018, p.9)
Paralelo a isso, o autor ressalta a importância de tratamento justo e adequado para as mulheres, citando ainda a relevância da luta dos negros e dos pobres no contexto social vivenciado. O cordel em questão retrata com a história de Marielle a possibilidade da mulher, do pobre e do negro legitimarem seus direitos, mesmo diante das mazelas sofridas, conforme se segue abaixo:
Marielle era uma voz
Ecoando na favela
Mostrando p’ras mulheres
De uma forma tão singela
Falando dos seus direitos
Para não cair em esparrela
Porque mulher, pobre, negra
É pra ser humilhada
Para eleger os ricos
E ser massa manobrada
Não pode ter instrução
E não pode ser votada
Para bater palma em comício
Viver no escuro sem velas
A Marielle aparece
Pra mostrar a todas elas
A encontrar as saídas
De todas as mazelas.
Com sua sinceridade
Foi ganhando a confiança
De quem já vivia ao léu
E sem ter esperança
E acumulou sofrimento
Desde o tempo de criança
(DÓRIA, 2018, p.10)
No que tange à temática da Pandemia, que impactou todo o planeta, de modo a ter acompanhamento minucioso da imprensa mundial, muitos cordelistas dedicaram suas produções para informar os grupos populares sobre a gravidade desse problema público, os consumidores desse tipo de notícia e de literatura. Até pelo fato de várias autoridades políticas, grupos religiosos e sociais negarem a gravidade e até a existência do problema.
A escolha pelo cordel “Covid-19- O vírus da morte”, do mesmo autor, datado em Julho de 2020, torna-se extremamente pertinente, tendo em vista que ele assume um papel mediador entre o discurso da mídia massiva e os grupos populares. A princípio o poeta destaca a banalidade dada ao coronavírus pelos brasileiros, através do relato da diversão em pleno carnaval, mesmo diante do alerta mundial da gravidade do vírus.
Vou entrar em sintonia
Com o Deus do Universo
Pra fazer mais um folheto
E contando tudo em verso
Falar dum vírus mortal
Poderoso é tão perverso.
Dizem que veio da China
Essa doença infernal
Enquanto aqui no Brasil
Tudo era carnaval
Parecia que esse vírus
Era uma coisa banal
Toda rua tinha um bloco
Fazendo batucada
Tudo era cantoria
Pra toda nossa moçada
Que dançava a noite toda
Indo até de madrugada
Canais de televisão
Toda essa festa mostrava
Disputa de escola de samba
Na avenida desfilava
Esse vírus de mansinho
Aqui no Brasil chegava
(DÓRIA, 2020, p.1)
O cordelista destaca ainda a irrelevância política dada ao coronavírus mesmo diante do número de mortes divulgadas pelos meios massivos de comunicação, ressaltando ainda a importância da manutenção dos cuidados para conter a pandemia, e vai na linha informativa para esclarecer que o vírus é disseminado para qualquer pessoa, em qualquer condição.
A imprensa alertava
Que o vírus chegaria
Muita gente não gostava
Dizendo é tudo histeria
É só uma gripezinha
Sem saber o que dizia.
Foi preciso muita gente
De repente adoecer
Pra que as autoridades
Viessem a se convencer
Foi quando a ficha caiu
O vírus é pra valer
Esse tal de coronavírus
Vem silenciosamente
Infecta todo mundo
Que vive na sua frente
Ele não quer saber
Pra ele não tem patente
Quanto mais aglomeração
Ele chega bem ligeiro
Bem assim como o ladrão
Corre atrás do dinheiro
E não importa quem seja
Vai cumprir paradeiro seu paradeiro
(DÓRIA, 2020, p.3)
A abordagem de temáticas como machismo, feminicídio, pobreza, violência, política, saúde pública, tecnologia, corroboram a contemporaneidade dos “cordéis”. Cabe salientar que apesar da relevância das denúncias apresentadas nos “cordéis”, eles refletem as concepções de mundo e opiniões dos autores, dada a sua liberdade editorial.
Considerações finais
Neste artigo, ao adotar um objeto muito estudado por diferentes autores e especialmente pelo professor Gilmar de Carvalho, buscamos localizá-lo enquanto produção cultural, processo cultural e como veículo jornalístico que estabelece uma linguagem própria aos grupos populares, seus consumidores. E, apesar da proliferação dos jornais e diferentes mídias, a literatura de cordel se expandiu se apropriando de temáticas e tecnologias contemporâneas.
Essa literatura tem se ampliado e ganhando espaço além das localidades nas quais são produzidas e para públicos mais diversificados. Conforme destacou Carvalho (2017), o cordel e a xilogravura se mantêm ganhando espaço nos meios populares e científicos, como é o caso das participações na Bienal Internacional do Livro do Ceará e em outros estados, e nas escolas, contribuindo, portanto, para sua maior divulgação.
Como vimos em Carvalho, os folhetos de cordel utilizados na publicidade acabaram se consolidando e constituindo uma linguagem própria no Ceará, ao que o autor chama de “linguagem cearense de publicidade”. Isso faz com que sejam adotadas as referências e formatos da literatura popular nos mecanismos mercadológicos para venda e comercialização de produtos. Dessa forma, compromete a autoria e o vínculo cultural com o grupo popular de origem; mas, mantém as aproximações de linguagem e a eficiência na comunicação com o público.
Em Beltrão, a literatura de cordel é definida com ênfase como instrumento jornalístico em que o poeta/autor é o responsável pelo registro e divulgação de fatos importantes para a comunidade na qual está inserido. O cordel como veículo jornalístico traz uma identidade direta com o público por trazer suas histórias, suas impressões sobre determinados fatos, seus acontecimentos.
O poeta-jornalista é dinâmico ao coletar as impressões e sentimentos do grupo e em pouco tempo, quase que imediatamente após o fato ocorrer, circulam seus folhetos informativos. E, ainda, trazem como característica da notícia uma forte ênfase emocional, se aproximando ainda mais do público que “não é sensível ao objetivismo jornalístico”. Como pode ser visto nos versos do cordel “Marielle- o sonho não acabou”, e também no folheto “Covid-19- O vírus da morte”.
Portanto, os folhetos de cordel são meios de comunicação diretamente ligados à cultura popular e toda sua linguagem está diretamente ligada ao seu universo cultural, diverso, contraditório, de produção e criação de patrimônios. Os folhetos são expressões culturais que têm efetivamente função comunicativa e fazem parte do contexto folkcomunicacional, e por isso são canais familiares, próximos e próprios tanto para o comunicador quanto para o receptor.
A interseção do jornalismo na Literatura de Cordel, exemplificada com a crítica do cordelista em duas produções, corrobora a importância da literatura de cordel no âmbito jornalístico. E, mediante a pesquisa de Gilmar de Carvalho colocando-a no meio publicitário com ressalvas à interferência do mercado na produção popular; vislumbramos a ampliação do diálogo entre publicidade, jornalismo e Folkcomunicação.
Referências
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