Dossiê
A pandemia da COVID-19 e o seu impacto na indústria do livro no Brasil
The COVID-19 pandemic and its impact in the book industry in Brazil
La pandemia de COVID-19 y su impacto en la industria del libro en Brasil
A pandemia da COVID-19 e o seu impacto na indústria do livro no Brasil
Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 19, núm. 43, pp. 229-246, 2021
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepción: 22/10/2021
Aprobación: 16/11/2021
Resumo: O objetivo deste trabalho é compreender o impacto que a pandemia trouxe para o mercado editorial no Brasil. Por meio de uma metodologia qualitativa, foram levantados dados secundários sobre a produção e as vendas de livros no período; mudanças nas estratégias na gestão das editoras, em especial, as independentes; o crescimento das publicações no formato digital e as alterações nas relações entre livros e leitores. Foram identificados desafios e oportunidades que o ano de 2020 ofereceu aos principais personagens da cadeia de produção editorial, passando pelas editoras, mercado de distribuição, influenciadores e leitores.
Palavras-chave: Covid-19, Mercado editorial, EditorasIndependentes.
Abstract: The objective of this work is to understand the impact that the pandemic has brought to the book industry in Brazil. Through a qualitative methodology, secondary data on the production and sales of books in the period were collected; changes in the management strategies of publishers, especially independent ones; the growth of publications in digital format and the changes in the relationship between books and readers. Challenges and opportunities faced by the main characters in the editorial process, including publishers, the distribution market, influencers and readers were identified on this work.
Keywords: Covid-19, Book industry, Independent publishing houses.
Resumen: El objetivo de este trabajo es comprender el impacto que la pandemia ha traído al mercado editorial en Brasil. A través de una metodología cualitativa, se recopilaron datos secundarios sobre la producción y venta de libros en el período; cambios en las estrategias de gestión de las editoriales, especialmente las independientes; el crecimiento de las publicaciones en formato digital y los cambios en la relación entre libros y lectores. Se identificaron los desafíos y oportunidades que el año 2020 ofreció a los protagonistas de la cadena de producción editorial, incluyendo editoriales, mercado de distribución, influencers y lectores.
Palabras clave: Covid-19, Industria del libro, Editoriales independientes.
Introdução
O ano de 2020 ficará marcado na história devido ao impacto que a pandemia do 2019-nCoV, mais conhecida como Covid-19, trouxe para a saúde, economia e cultura, além de outras áreas, em todos os países. Segundo comunicado do Banco Mundial, após o Spring Meetings 2020 do Comitê de Desenvolvimento da organização,
O mundo está enfrentando desafios sem precedentes da COVID-19 - a pandemia de coronavírus - que poderá apagar os ganhos de desenvolvimento em muitos países. A pandemia impactou profundamente o capital humano, incluindo vidas, aprendizado, bem-estar básico e produtividade futura. A crise também estreitou severamente as condições de financiamento externo para países de todos os níveis econômicos, interrompendo o comércio, as cadeias de suprimentos e os fluxos de investimento (BANCO MUNDIAL, 2020).
O objetivo deste trabalho é compreender o impacto que a pandemia trouxe para a indústria do livro no Brasil, durante o ano de 2020.
O mercado editorial, como parte da indústria criativa, por meio da produção de suas obras (títulos), “envolve a todos que, de uma maneira ou de outra, atuam na narrativa e diante dela, que foi criada, editada, vendida, fazem parte da circulação, da difusão e do consumo. A obra é uma parte do todo, do campo, no âmbito dos conceitos desenvolvidos por Pierre Bourdieu” (BARCELLOS, 2016, pág. 187), afinal, como afirma Thompson,
(...) cada campo editorial tem uma dinâmica distinta - o que chamo de 'lógica do campo'. A lógica de um campo editorial é um conjunto de fatores que determinam as condições sob as quais agentes e organizações individuais podem participar no campo - isto é, as condições sob as quais eles podem jogar o jogo (e jogá-lo com sucesso). Indivíduos que são ativos no campo têm algum grau de conhecimento prático dessa lógica: eles sabem como jogar o jogo e podem ter opiniões sobre como as regras do jogo estão mudando. Eles podem não ser capazes de explicar a lógica do campo de uma forma clara e concisa, eles não podem fornecer uma fórmula simples que resuma tudo, mas eles podem lhe dizer em detalhes como era quando eles entraram no campo pela primeira vez, como é agora e como mudou ao longo do tempo (THOMPSON, 2012, p. 11, tradução nossa)2.
Portanto, pode-se assumir que a indústria do livro de um país representa, de certa forma, parte da identidade nacional, refletindo a cultura do passado e do presente e, por que não, como foi a sua transformação durante o tempo.
Se a folkcomunicação tem como uma de suas funções
Valorizar os diferentes modos através dos quais os grupos sociais se relacionam e produzem a cultura, em meio às tensões entre a comunicação de massa e a comunicação popular. Compreende-se, portanto, que reconhecer a existência de múltiplas culturas e identidades é reivindicar o direito à diferença e à singularidade, ainda que se estabeleça o diálogo e a interação entre tradições e referências culturais diversas (GADINI; WOITOWICZ, 2014, p. 3).
Fica claro que o mercado editorial deve ser objeto de estudo da folkcomunicação, como foi reforçado na IV Conferência Brasileira de Folkcomunicação, em 2002, na cidade de Santos/SP, cujo objetivo principal foi estudar
os processos folkcomunicacionais, cuja difusão era feita pela mídia impressa. Analisar, reconhecer e interpretar os meios impressos de que se valiam os agentes populares da cultura tradicional: folhetos, almanaques, opúsculos, volantes, panfletos, santinhos e outros. Estudar e compreender as mensagens folkcomunicacionais (notícias, anúncios, imagens) publicados na mídia impressa (jornais, revistas, livros) (GOBBI, 2008).
Esta relevância dos estudos folkcomunicacionais sobre o mercado editorial pode ser respaldado, ainda, pelo fato que “este campo busca abrir novas fronteiras, teóricas e metodológicas na compreensão dos fluxos de comunicação e das trocas culturais, entre a cultura global e a cultura local” (MACIEL; SILVA, 2013).
“As estimativas de participação do setor cultural na economia brasileira, antes da pandemia, variavam de 1,2% a 2,67% do PIB e o conjunto de ocupados no setor cultural representava, em 2019, 5,8% do total de ocupados, ou seja, em torno de 5,5 milhões de pessoas” (ATHIAS et al., 2020). O segmento cultural foi um dos que mais sofreu com os efeitos decorrentes da Covid-19 e compreender as consequências da pandemia, em especial, no mercado editorial será tratado a seguir.
Só no Reino Unido, a previsão de perdas no movimento da indústria criativa era de cerca de R$ 590 bilhões, sendo que no segmento editorial, a perda estimada era de R$77 bilhões, ou uma redução de 40% em relação a 2019 (OXFORD ECONOMICS, 2020).
O Observatório do Itaú Cultural, com base na Pesquisa Nacional por amostras de domicílio (Pnad Contínua), do IBGE, identificou que houve queda de quase 50% na ocupação de profissionais brasileiros especializados em cultura no segundo semestre de 2020, se comparado com o mesmo período de 2019 (BÚRIGO, 2020).
Foram levantados dados sobre a produção e as vendas de livros no período; mudanças nas estratégias na gestão das editoras, em especial, as independentes; o crescimento das publicações no formato digital e as alterações nas relações entre livros e leitores.
Foram usadas fontes secundárias, como artigos científicos, pesquisas de órgãos representativos do mercado, além de relatórios de empresas que atuam no segmento editorial brasileiro. Além disso, foi feito um levantamento junto a editoras independentes, logo nos primeiros meses da pandemia, o que permitiu criar uma perspectiva sobre a percepção das casas publicadoras sobre o futuro do negócio, devido aos efeitos da COVID-19 na indústria do livro no Brasil.
A análise de relatórios de pesquisa publicados por organizações ligadas ao livro é uma metodologia presente na literatura dos estudos sobre o mercado editorial para avaliar cenários, como pode ser visto em Moraes (2020), Reimão (2011) Barcellos (2016), Miranda e García (2019), Yucesoy Et Al. (2018) e Colbjørnsen (2014).
O trabalho divide-se em quatro partes: a primeira, analisa o impacto econômico-financeiro no mercado; a segunda parte, trata das decisões estratégicas tomadas pelas editoras para o enfrentamento da pandemia; a terceira parte indica algumas mudanças no comportamento do leitor e aúltima parte traz as considerações finais sobre o processo de pesquisa e seu resultado, abrindo avenidas de pesquisa para dar sequência ao estudo.
Impacto econômico-financeiro
Em abril de 2020, realizou-se uma pesquisa junto a editoras associadas à Libre – Liga Brasileira de Editoras, com o objetivo de identificar a percepção que seus gestores tinham sobre o impacto da pandemia na vida financeira das casas publicadoras, além de elencardecisões estratégias de enfrentamento ao cenário vivido pelas empresas.
A amostra de pesquisa foi formada por 75 editoras, sendo que 80% das editoras eram da região Sudeste do Brasil, 62% associadas à Libre, 64% com até dez anos de fundação, 69% com até 100 títulos em catálogo e 51% com menos de 25% do catálogo no formato digital.
Fica evidente que houve maior participação de editoras pequenas e médias e independentes, perfil preponderante no quadro de associados da Libre. Convém destacar que, para aumentar a representatividade da amostra da pesquisa, abriu-se a possibilidade de que editoras não associadas também participassem.
Naquele momento, ainda no início da pandemia, o impacto na rotina financeira já era sentido por 81% das editoras que estavam com algum recebimento em atraso, sendo que quase 20% tinham mais de 50% do faturamento não pago em dia pelos fornecedores.
Somente 2% da amostra da pesquisa mantinha a previsão de faturamento para o ano de 2020, sendo que 78% previam uma redução de, pelo menos, 25% no faturamento.
O que era uma expectativa no início da pandemia tornou-se realidade ao longo do tempo.
Para avaliar o impacto no faturamento do mercado editorial em 2020, foram consideradas como fontes secundárias as duas principais pesquisas de mercado do segmento editorial brasileiro: a primeira é a pesquisa Painel do Varejo – Bookscan (BOOKSCAN), um levantamento mensal publicado pelo Snel – Sindicato Nacional de Editores de Livros, e executado pela Nielsen Book, com base nos dados semanais do sistema Bookscan, cujos resultados são obtidos na “boca do caixa” das livrarias, e-commerces e supermercados. A segunda fonte é a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro (PVSEB), também executada pela Nielsen Book, com a gestão da Câmara Brasileira do Livro em parceria com o Snel e que reúnedados fornecidos pelas editoras. Segundo a Nielsen Book, o BOOKSCAN monitora os dados do varejo, enquanto a PVSEB tem como objetivo apurar os dados da indústria.
As principais diferenças entre as pesquisas podem ser vistas na Figura 1.
É importante ressaltar ainda que:
A pesquisa Produção e Vendas tem como característica uma maior abrangência quanto à cobertura de canais e à totalidade do mercado - é uma fotografia anual do mercado de livros que, somada aos anos anteriores, nos permite analisar a evolução e as mudanças da indústria no decorrer de muitos anos. As informações do BookScan, por outro lado, são focadas no varejo B2C, com dados mais granulares e frequência semanal na captura dos dados. É uma ferramenta de planejamento do dia a dia de editoras e livrarias (CBL; NIELSEN BOOK, 2021, p. 13).
Considerando os dados do varejo trazidos pela BOOKSCAN, o faturamento total no varejo, em 2020 foi de R$ 1.747,9 milhões, ou seja, houve uma queda de 0,48% em relação aos R$ 1.739,6 milhão de 2019. Já o volume comercializado teve uma variação negativa de 0,87%, de 41.907.487 de exemplares em 2019 para 41.544.162 de exemplares em 2020 (NIELSEN BOOK; SNEL, 2021).Embora, no final de 2020, o resultado anual tenha sido quase que de estabilidade em relação a 2019, durante o período mais crítico para a economia -ou seja, no chamado período de lockdown3, quando somente os serviços essenciais ficaram abertos e, portanto, as livrarias físicas foram fechadas - a venda de livros no Brasil chegou a cair 45,4% em termos de volume e 47,6% em faturamento, se comparado o mês de abril de 2020 e 2019 (NIELSEN BOOK; SNEL, 2021), conforme pode ser visto na Figura 2.
Se no varejo, aparentemente, não houve um impacto muito grande no faturamento do segmento editorial brasileiro, a PVSEB, que traz os dados mais globais, indica que o prejuízo foi muito maior no que se refere à vida financeira das editoras.
A quantidade de exemplares vendidos caiu 18,4% entre 2019 e 2020, de 434 para 354 milhões. Se considerarmos apenas as vendas realizadas para o governo, ou seja, aquelas resultantes de editais de compras publicados pelo poder público, como o PNLD – Plano Nacional do Livro Didático, a redução foi ainda maior, chegando a -38,4%, ou 64 milhões de exemplares a menos.
Já o faturamento da indústria caiu 8,8%, de R$ 5,67 bilhões, em 2019, para R$ 5,17 bilhões, em 2020, ou seja, uma diferença de aproximadamente, 500 milhões de reais.
Esse resultado foi minimizado por várias ações executadas pelas editoras, de forma individual, por meio de associações de classe e, mesmo, por políticas governamentais de apoio à indústria em tempos de pandemia. A seguir, uma análise das estratégias de enfrentamento desenvolvidas pelas editoras, ao longo de 2020.
Impacto na gestão das editoras
Considerando tratar-se de um cenário inicial desconhecido, refletido no resultado da pesquisa desenvolvida junto à Libre, ainda em abril de 2020, algumas decisões consideraram a minimização dos prejuízos que poderiam decorrer dos efeitos da pandemia.
Em razão disso, em relação às estratégias editoriais, 88% das editoras participantes decidiram adiar os lançamentos previstos para 2020 (LIGA BRASILEIRA DE EDITORAS, 2020). O resultado deste fato aparece na pesquisa PVSEB, que mostra que a quantidade de novos ISBNs ou seja, novos títulos ou novas edições, caiu 17,4% entre 2019 e 2020 e a quantidade de exemplares produzidos de lançamentos 28,4% no período.No setor de CTP (livros técnicos, científicos e profissionais) o impacto negativo foi ainda maior, com -38,6% de novos títulos e -31,3% de exemplares produzidos (CBL; NIELSEN BOOK, 2021, p. 29).
Outra decisão que aparece na pesquisa junto às editoras, indicava que 38% haviam decidido anteciparos lançamentos no formato digital (ebooks) e 39% incluíram novos títulos, que antes não faziam parte da grade de (lançamentos em catálogo, para serem publicados no formato ebook.
Esta decisão estava em linha com o que o Centro Regional para o fomento do livro na América Latina e Caribe (CERLALC) indicaria como estratégias para a recuperação do setor editorial, como, por exemplo, “acelerar a conversão para o formato digital dos catálogos das editoras” (GONZÁLEZ; THAINE; ÁVILA, 2020, p. 37), considerando que
Apostar na reconversão ou inserção do setor ao meio digital será decisivo para garantir a competitividade interna e externa das indústrias editoriais dos países ibero-americanos. Não se podem ignorar os possíveis efeitos duradouros nas formas de circulação e acesso aos livros que esta situação de crise gerará e os quais muitos agentes do setor ainda não estão preparados para enfrentar. Isso nos leva a considerar diferentes linhas de ação, que devem configurar uma agenda abrangente para a inserção do setor no meio digital a curto e médio prazo, muitas das quais são tudo, menos inéditas. (GONZÁLEZ; THAINE; ÁVILA, 2020, p. 37, tradução nossa)4.
A BookwireBrazil, considerada a principal distribuidora de ebooks e audiobooks no Brasil, fornecendo títulos de 500 editoras que, segundo a empresa, corresponde a 70% do mercado brasileiro, identificou, em um relatório publicado em 2020, algumas mudanças na relação do mercado com o livro digital.
Como metodologia para seu estudo, a Bookwire dividiu o período analisado em três: pré-isolamento (antes de 14/03/20), durante o isolamento (entre 15/03 e 31/05) – período do chamado lockdown e pós-isolamento (entre 01/06/20 e 16/08/20). Não foram divulgados números, mas apenas as tendências identificadas. Percebe-se, na Figura 3, que houve uma tendência de alta nas vendas de ebooks no Brasil, em especial, durante o isolamento.
Embora os números gerais não tenham sido publicados pelo relatório, alguns resultados por gênero demonstram a ordem de grandeza do crescimento: a venda de ebooks da categoria juvenil e young-adult cresceu 227% no período. Na categoria ficção, o aumento girou em torno de 154%.
Mais do que um resultado de campanhas de marketing voltados para o digital, esta consequência, aparentemente, deve ser mais perene, pois:
Embora diversos esforços de marketing tenham sido feitos nos primeiros dois meses da pandemia, eles diminuíram o ritmo depois desse período, e os números de vendas continuaram a subir. Isso nos mostra que a pandemia em si criou novos leitores e trouxe aqueles que já leem constantemente para mais perto do formato digital (BOOKWIRE, 2020).
Outra mudança de estratégia, como consequência da pandemia, foi o investimento no elo de distribuição via meio digital, ou seja, as vendas diretas realizadas via site, marketplaces (plataformas de e-commerce dos grandes varejistas) e livrarias virtuais. Essa decisão advém da identificação da mudança no comportamento do consumidor, que cada vez mais migra das lojas físicas para o ambiente online.
Um dado para reforçar essa mudança é este indicador trazido pela PVSEB que mostra que houve um crescimento de 84% na participação das livrarias exclusivamente online no faturamento das editoras. No caso das obras gerais, a participação destas livrarias, como meio de distribuição, cresceu 237%. Já as livrarias físicas, durante todo o ano de 2020, tiveram sua participação como elo de distribuição de obras gerais caindo à metade, passando de 57,9%, em 2019, para 28,9%, em 2020. Por sua vez, os marketplaces mais do que dobraram a sua participação na matriz de distribuição do mercado: de 6,1% para 12,3%.
Esta tendência de amplificação da presença dos meios digitais na distribuição é algo que já vem acontecendo há alguns anos e relaciona-se a uma mudança na jornada de compra do consumidor – fato que não é exclusivo do mercado editorial.
Por exemplo, há que se considerar que, da mesma maneira que houve um vertiginoso crescimento da digitalização na educação, devido à migração do processo ensino-aprendizagem do ambiente presencial para o online, também houve um crescimento exponencial desta digitalização no segmento editorial ao longo de 2020, possivelmente antecipando as mudanças que aconteceriam nos próximos anos ou décadas. Assim, pode-se identificar a velocidade com que algumas mudanças ocorreram no mercado editorial, fato que levaria muito mais tempo caso a pandemia não tivesse acontecido.
A pandemia COVID-19 transformou o panorama do ensino superior. Embora ainda não se saiba se essas transformações criaram raízes e persistirão no futuro, não é difícil imaginar que o ensino superior nunca mais será o mesmo em alguns aspectos importantes (bons ou ruins) (EDUCAUSE, 2021).
Em relação às oportunidades que as tecnologias digitais oferecem para o mercado editorial, deve-se lembrar do POD (print on demand) digital, que ao ser utilizado com as impressões em baixas tiragens, tem possibilitado o aumento do catálogo de muitas pequenas editoras e, com isso, viabilizando seus negócios. Os marketplaces, já citados anteriormente, também têm ajudado as pequenas e médias editoras a suprirem uma demanda pela distribuição precária, já que a presença de seus títulos nas grandes redes sempre foi difícil de acontecer, ainda mais em uma época quando as duas principais redes (Livraria Cultura e Saraiva) passam por uma crise sem precedente.
O aproveitamento destas oportunidades também deve ter acelerado em meio à pandemia e devem ser objeto de estudos mais aprofundados.
Uma outra área que foi afetada na gestão das editoras foi a da comunicação e marketing. Com o fechamento das livrarias por um período durante a pandemia, os eventos de lançamento tiveram que migrar para as redes sociais e um festival de lives passou a ser compartilhado nos perfis de editoras e livrarias, nas principais mídias sociais, como Instagram, Facebook e YouTube. Embora tenham dado visibilidade para autores e editoras, as lives muitas vezes não geraram um resultado de vendas esperado (KIRCH, 2020). Fato é que as editoras passaram a depender um pouco mais da participação dos autores para a divulgação das suas obras.
Campanhas de marketing voltadas para os livros digitais foram muito comuns durante a pandemia e deram ótimos resultados, como mostra relatório da Bookwire:
Campanhas de gratuidade foram muito bem-sucedidas duranteo pico de isolamento, desacelerando posteriormente,como seria de se esperar, mas a apreciação dos consumidoresajudou claramente a conectar novos públicos a materiais(pagos) de leitura digital mesmo após o isolamento. [...] Campanhas dedicadas de marketing impulsionaram produtospara consumidores com muito sucesso e respaldaramuma dinâmica de crescimento sustentável que continuou adar frutos mesmo após o isolamento ter sido amplamenteabrandado (BOOKWIRE, 2020).
A maioria dos exemplares de ebooks consumidos durante o período de lockdown foi de livros gratuitos e, como resultado, houve um impulso nas vendas subsequentes, aumentando a receita das editoras, como mostra a Figura 4.

Os grandes eventos como as bienais do livro e as feiras de literatura também tiveram de migrar para o ambiente online, causando uma necessidade de mudança, tanto no planejamento quanto na expectativa dos resultados, gerando preocupação no mercado, como afirma Rüdiger Wischenbart: “estou bastante confiante de que o mercado de livros em geral vai lidar e se adaptar - o que é sinônimo de ‘transformar profundamente’ - no curso da pandemia. Mas também estou convencido de que o mesmo pode não se aplicar necessariamente às feiras de livros” (WISCHENBART, 2021, tradução nossa)5.
Se a vida das editoras sofreu grande impacto com a pandemia, os leitores também tiveram que se adaptar ao momento, o que poderá ser visto a seguir.
Impacto no hábito do leitor
A pandemia trouxe grandes mudanças nos hábitos da população: trabalho remoto, distanciamento social, períodos de lockdown, aulas online... A necessidade de adaptação se fez presente em diversas áreas e, em relação à leitura não foi diferente.
Ao se ver perante o fechamento de livrarias e bibliotecas, o leitor teve de buscar alternativas e o consumo do livro digital passou a ser a alternativa mais natural.
No Brasil, apenas metade da população afirma conhecer o livro digital e esse cenário não muda há quase uma década, pois, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, “em 2019, 47% da amostra afirmou que nunca havia ouvido falar de livro digital. Este percentual se mantém desde 2012, quando 45% da amostra afirmou nunca ter ouvido falar em livros digitais, o que gera uma certa preocupação” (ENDO, 2021) e, dos que já ouviram falar nos ebooks, apenas 37% já tinha lido (INSTITUTO PRÓ-LIVRO; ITAÚ CULTURAL, 2020).
Talvez, neste caso, o ano de 2020 pode ter acelerado uma tendência que estava estagnada nos últimos anos e que poderá ser verificada na próxima edição da pesquisa.
Se ainda não existe um dado direto, pode-se inferir, com base no consumo de ebooks, que o processo de adoção do livro digital, devido à pandemia, pode ter acelerado. A pesquisa Conteúdo Digital do Setor Brasileiro, em sua edição de 2021, com ano base, 2020, indica que houve um crescimento de 81% na quantidade de unidades vendidas: de 4,74 milhões em 2019 para 8,57 milhões em 2020. É preciso salientar que neste total, 8% é composto por audiobooks, que mostra uma outra tendência de adoção deste formato.
Já em relação ao faturamento, houve um aumento real de 38%, ou seja, de R$ 71 milhões em 2019 para R$ 102 milhões em 2020. O gênero que teve o maior aumento foi o de ebooks de ficção, com um aumento de 134% em unidades vendidas, correspondendo à um acréscimo de, aproximadamente, R$ 10 milhões no faturamento (CBL; SNEL; NIELSEN BOOK, 2020).
A pesquisa BOOKSCAN identificou um crescimento geral de 3% no faturamento do gênero de ficção e comparando com os 134% citados anteriormente. Isso pode indicar que o leitor que decide adotar o livro digital poder ter neste gênero uma possível preferência.
As mídias sociais passaram a ter um papel cada vez mais importante como interface entre leitores, editoras, autores e, também, com as obras. Booktubers, podcasters e influenciadores na área da literatura se fizeram presentes no ano de 2020 e, de certa forma, substituíram os eventos presenciais. Se adaptar a esse contexto foi outro desafio que os leitores tiveram durante a pandemia, o que foi entendido por parte do mercado, como afirmou Maju Alves, responsável pelos projetos especiais do portal Publishnews, sobre a rede TikTok:
a relação pessoal que o TikTok constrói com o público é o que faz diferença e o sucesso de muitos livros. A diferença é que no app, as recomendações são muito pessoais e contam com muita emoção. Isso faz com que as pessoas se identifiquem e, assim, os livros atingem muitas outras pessoas. (FACCHINI, 2021).
Será interessante verificar o quanto desta mudança comportamental será mantida no “novo normal”, pós-pandemia.
Considerações finais
Embora a vida pareça estar retomando seu caminho natural, com o avanço da vacinação, a abertura da economia, a volta às aulas presenciais, muitas transformações ocorridas durante o ano de 2020, em meio à pandemia da COVID-19 devem se tornar perenes.
No caso do mercado editorial brasileiro, o avanço no processo de digitalização, não só dos processos de produção, mas a distribuição e a comunicação devem trazer benefícios para o segmento.
Se houve, realmente, um avanço na adoção do livro digital entre os leitores, isso pode significar uma democratização do acesso aos livros e à informação e, também, à uma melhora do processo ensino-aprendizagem. Algo que só vai poder ser confirmado nas próximas edições das pesquisas promovidas pela CBL e Snel que tratam desta temática.
Uma possível linha de pesquisa derivada deste trabalho, cuja metodologia qualitativa permitiu uma visão do contexto que o mercado editorial se encontra, em meio à pandemia, seria a utilização de métodos quantitativos para avaliar, por exemplo, por meio de um modelo dif-in-dif, o impacto que políticas públicas de auxílio financeiro geraram em editora que se beneficiaram destas políticas comparando com aquelas que não conseguiram tal apoio.
É importante lembrar que os efeitos da pandemia da COVID-19 serão sentidos por muitos anos, quiçá décadas e, por isso, a sua avaliação contínua será importante para leitores, editores, poder público e pesquisadores que se dedicam ao livro no Brasil.
Referências
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Notas