Resumo: O artigo mostra as estratégias para a preservação de saberes e fazeres tradicionais. O objeto da pesquisa são projetos documentais transmídia que por meio da digitalização difundem expressões culturais de uma comunidade. O estudo parte da análise de dois projetos surgidos após o Iphan declarar que o Som dos Sinos e o Ofício de Sineiro são considerados Patrimônio Cultural Imaterial. O objetivo é analisar como a digitalização de patrimônios, por meio de projetos documentais transmídia, permite a preservação e a disseminação de bens culturais. Para discutir sobre documentário transmídia utilizam-se os estudos de Jenkins (2009) e (2011), Renó (2013) e Gosciola (2014). À luz da teoria da modernidade tardia o estudo ampara-se em Giddens (2000) e Luvizotto (2010) para dissertar sobre o caráter de continuidade de tradições que são reincorporadas e reinventadas no ciberespaço. Conclui-se, portanto, que a formatação de projetos transmídia sobre patrimônios imaterias atua na preservação e difusão de saberes e expressões culturais.
Palavras-chave:DigitalizaçãoDigitalização,Documentário TransmídiaDocumentário Transmídia,Patrimônio CulturalPatrimônio Cultural,Memória ColetivaMemória Coletiva.
Abstract: The article shows the strategies for the preservation of traditional knowledge and practices. The object of the research are transmedia documentary projects that, through digitalization, disseminate cultural expressions of a community. The study is based on the analysis of two projects that emerged after Iphan declared that the Sound of Bells and the Bell Craft are considered Intangible Cultural Heritage. The objective is to analyze how the digitization of heritage, through transmedia documentary projects, allows the preservation and dissemination of cultural assets. To discuss transmedia documentary, studies by Jenkins (2009) and (2011), Renó (2013) and Gosciola (2014) are used. In the light of the theory of late modernity, the study draws on Giddens (2000) and Luvizotto (2010) to talk about the continuity of traditions that are reincorporated and reinvented in cyberspace.
Keywords: Digitized Information, Documentary Transmedia, Cultural Heritage, Collective Memory.
Resumen: El artículo muestra las estrategias para la preservación de los conocimientos y prácticas tradicionales. El objeto de la investigación son proyectos documentales transmedia que, a través de la digitalización, difunden expresiones culturales de una comunidad. El estudio parte del análisis de dos proyectos que surgieron luego de que el IPHAN declarara que Som dos Sinos y Ofício de Sineiro son considerados Patrimonio Cultural Inmaterial. El objetivo es analizar cómo la digitalización del patrimonio, a través de proyectos documentales transmedia, permite la preservación y difusión de los bienes culturales. Para discutir el documental transmedia se utilizan los estudios de Jenkins (2009) y (2011), Renó (2013) y Gosciola (2014). A la luz de la teoría de la modernidad tardía, el estudio es apoyado por Giddens (2000) y Luvizotto (2010) para discutir el carácter de continuidad de las tradiciones que se reincorporan y reinventan en el ciberespacio.
Palabras clave: Exploración, Documental transmedia, Patrimonio cultural, Memoria colectiva.
Artigos Gerais
O Digital do Imaterial: estratégias de digitalização para preservação de patrimônios culturais presentes nos sinos mineiros
The Digital of the Immaterial: digitization strategy for the preservation of cultural heritage present in Minas Gerais' bells
Lo digital de lo inmaterial: estrategias de digitalización para la preservación del patrimonio cultural presente en las campanas mineras
Recepción: 22/04/2021
Aprobación: 02/06/2021
O artigo debate ações comunicativas que se inserem em benefício da preservação de patrimônios culturais. Uma das perguntas que surgiu durante a presente pesquisa é como resguardar a representatividade dos toques dos sinos das cidades históricas de Minas Gerais e, consecutivamente, o ofício dos sineiros, responsáveis por manter essa tradição até os dias de hoje? A resposta não é definitiva, mas, de antemão, pode-se constatar que por meio da tecnologia encontra-se estratégias de comunicação e difusão de bens culturais.
Para tanto, o artigo analisa duas mídias independentes que têm os seus trabalhos intimamente ligados às novas tecnologias, além de explorarem a digitalização e a produção documentária transmídia. As plataformas recorreram aos recursos tecnológicos disponíveis para apropriação de práticas que dialogassem com expressões de culturas populares.
Na contemporaneidade, o emprego de recursos tecnológicos para a salvaguarda de patrimônios culturais vem ganhando adesão e visibilidade. O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), por exemplo, recorre às redes sociais para informar e difundir os bens culturais registrados pelo órgão. Entre as ações promovidas, destaque para o Quiz do Patrimônio Cultural que é publicado no Instagram do Iphan de forma interativa com perguntas e quatro opções de respostas sobre os bens registrados pelo instituto.

Além disso, desde fevereiro de 2021, a instituição criou a página Conectando Patrimônios: Redes de Artes e Sabores, que reúne grupos de detentores de bens registrados e produtos associados. Os interessados entram na página de cada grupo e podem adquirir os artigos diretamente com os detentores. Entre os produtos, está a compra de instrumentos musicais, como a Viola de Cocho produzida artesanalmente pelos mestres dos estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, além de artesanatos, alimentos, indumentárias, entre outros itens.
Deste modo, o artigo debate o digital do imaterial que surge da urgência da preservação de saberes e fazeres de um determinado grupo social e da comunhão da tecnologia com a possibilidade de difusão de saberes centenários. Logo, o digital do imaterial se consolida por meio das potencialidades da digitalização atreladas à força da imaterialidade de um bem cultural. A investigação busca mostrar que, ao formatar um projeto transmídia sobre uma temática que contemple conhecimentos populares e formas de uma comunidade se comunicar e se expressar, o novo pode se revelar como uma importante forma para a preservação do patrimônio imaterial, do conhecimento e, acima de tudo, um meio para realizações midiáticas sobre representações culturais brasileiras.
O toque dos sinos está presente e sua relação com a população das cidades inventariadas não é, exclusivamente, uma relação de comunicação ou de controle do tempo, como também não o era, de maneira exclusiva, no mundo de outrora - Dossiê Descritivo do Iphan sobre o registro do Som dos Sinos, 2009
Os projetos Som dos Sinos3 e Sinoâncias4 surgiram após o Iphan determinar que a forma de expressão cultural presente no Toque dos Sinos em Minas Gerais, assim como os saberes do Ofício de Sineiro seriam reconhecidos como Patrimônio Cultural do Brasil. O inventário teve como objetivo conservar a manifestação cultural dos sinos em nove cidades históricas mineiras: São João del-Rei, Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo, Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes.
De acordo com a instituição, o toque do sino é uma significativa forma de expressão e “agencia processos de construção de identidades legitimadas socioculturalmente” (IPHAN, 2009, p. 17). Esses processos estavam originalmente relacionados à vida religiosa das comunidades, mas hoje, ultrapassam essa dimensão, abrangendo sentidos e significados com a “possibilidade de reconhecimento desse bem como patrimônio” (IPHAN, 2009, p. 17).
Vale destacar que o toque dos sinos é uma das formas de comunicação mais antigas do mundo. Criado na China no ano 3000 a.C., os sinos eram utilizados inicialmente como instrumentos musicais usados em rituais pagãos. Somente no século VI que monges missionários europeus viram nos sinos uma forma eficaz de anunciar o Evangelho e chamar os fiéis para missas e eventos ecumênicos. E o nome não poderia ser diferente, em latim sino significa signum, ou sinal, assim chamado porque servia para dar o sinal à comunidade.
Ao longo do tempo, os sinos foram adquirindo prestígio por exercerem importantes funções sociais, tocados em ocasiões de grande alegria (nascimento, missas, casamentos, entre outros), perigo para a comunidade (incêndio, proximidade de vendavais), tristeza (sepultamentos e missas fúnebres) ou marcação das horas. No total, são “mais de 40 tipos de toques de sinos, que formam uma linguagem sonora através da qual moradores das cidades de Minas Gerais se comunicavam, sobretudo, entre os séculos XVII e XIX”, destacam Mansur e Thomé (2019, p. 329), responsáveis pelo projeto transmídia Som dos Sinos.
O certo é que o interesse pelos sinos permanece vivo nessas comunidades mineiras. A ponto de se procurar novas funções e novos sentidos para eles quando a função e o sentido antigos perdem a sua força. Os toques dos sinos são ainda valorizados nas comunidades como meio de comunicação que serve à comunhão em torno de acontecimentos importantes para a coletividade, carregam ainda um sentido místico que alimenta os devotos, mas, gradativamente, também migram para outros espaços, em que se vislumbra talvez condições mais favoráveis para sua continuidade em tempos atuais e futuros. (IPHAN, 2009, p. 102-103).
O Toque dos Sinos e o Ofício dos Sineiros foram reconhecidos em 2009 pelo Iphan como patrimônio cultural imaterial. Os registros são referentes ao bem cultural realizado em cidades históricas de Minas Gerais e foram catalogados em dois livros5: Livro de Registro dos Saberes e Livro de Registro de Formas de Expressão.
Até janeiro de 2021, havia 47 bens culturais imateriais registrados pela instituição. O primeiro registro de natureza imaterial foi realizado em 2002 e contempla o saber envolvido na fabricação artesanal de panelas de barro das artesãs do bairro de Goiabeiras Velha, em Vitória, no Espirito Santo. O bem cultural foi registrado no Livro de Registro de Saberes. O processo de fabricação das panelas de barro é bastante peculiar e não utiliza torno e nem forno. A modelagem é feita pelas mãos das artesãs, que transformam o barro em panelas. Após isso, “os objetos são queimados em fogueiras a céu aberto e não em fornos, e neste momento um tipo de tintura natural denominada tanino é utilizada como impermeabilizante, processo que dá resistência e escurece a panela” (SOUZA, 2016, p. 20).
Já o Toque dos Sinos e o Ofício de Sineiro foram o 17º e 18º bem cultural registrado pela instituição. Goulart e Cardoso (2013, p. 101) destacam algumas impossibilidades em querer fomentar a permanência do conhecimento acerca da manifestação cultural dos sinos. Segundo os autores, o conhecimento recai na materialidade e na presença do sino, haja vista que “sem que se tenha o objeto sino à disposição dos mestres sineiros e dos aprendizes deste conhecimento” o patrimônio imaterial estaria comprometido.
No entanto, em 2018, em entrevista com a então presidente do Iphan, Kátia Bogéa, foi perguntado sobre a importância da salvaguarda dos sinos para além da representatividade do patrimônio material. Segundo a historiadora, não há conhecimento de “outras ações para salvaguarda do patrimônio que privilegie o elemento humano no contexto cultural que envolve os sinos, embora possa ocorrer” e continua:
A presença dos sinos enquanto uma referência cultural certamente não ocorre apenas no Brasil, se considerarmos o quanto a religião católica se difundiu no mundo associada às missões de colonização de outros povos em todo o mundo, como no caso brasileiro. No entanto, não temos informações institucionais sobre como o Estado, em outros países, lida com a questão dos sinos para além de algumas experiências de restauro. Além disso, no Brasil, nossas ações voltam-se não apenas para os sinos enquanto bens móveis que constituem patrimônio material, mas também ao Ofício de Sineiro e Toques dos Sinos em Minas Gerais. (BOGÉA, 2018 apud LEMOS JR; GOSCIOLA, 2018, p. 94).
Deste modo, o recorte da pesquisa se refere ao saber específico em tocar os sinos e, consecutivamente, à multiplicidade que envolve os sons dos sinos brasileiros. Um patrimônio que se manifesta de forma imaterial, mas que tem na materialidade parte significativa da sua pujança, já que além da representatividade cultural, os sinos também integram o conjunto arquitetônico das cidades históricas mineiras.
Desta forma, tanto os toques dos sinos quanto o modo específico de tocá-los são caracterizados como manifestações culturais que consistem no compartilhamento de significativos modos de comunicação. Conforme ressalta Bogéa (2018, p. 95), é preciso valorizar e preservar os saberes específicos presentes nessas cidades. Esse reconhecimento permite vislumbrar a diversidade e, mais do que isso, “permite que a identidade, a memória e as referências culturais dessa comunidade sejam reconhecidas”. Logo, o registro como patrimônio cultural imaterial é fundamentado na história, no recorte territorial e na singularidade da expressão nas diferentes cidades onde ainda se mantém essas tradições e saberes populares.
Antes de discorrer sobre produções documentais transmídia, é importante destacar algumas referências históricas sobre o documentário. Desde o seu surgimento, o cinema documentário se apresenta como uma representação do mundo em que vivemos, um recorte sobre um determinado enunciado que se pretende abordar, levando ao espectador informação e conhecimento. Com o passar dos anos e com o desenvolvimento tecnológico, essa representação documentária passou a contemplar, além da captação de imagens e depoimentos, processos criativos, inovadores e que contribuíssem com a linguagem fílmica.
Além disso, o conteúdo dos documentários passou a valorizar o imperceptível aos olhos. Se no primeiro momento, os profissionais eram grandes exploradores indo a lugares remotos para filmar acontecimentos culturais que poucos conheciam, hoje boa parte do cinema documental se encarrega de registrar a memória histórica e visual, patrimônios de um povo. “A questão então era conhecer o outro, as culturas diferentes, que não tinham alcançado a modernidade” (RUFFINELLI, 2017, p. 11).
Com o desenvolvimento tecnológico, a elaboração de uma produção documentária foi se adequando às novas tecnologias que foram surgindo, como por exemplo, a gravação do som direto na gravação, a utilização de câmeras compactas e leves e, mais recentemente, a realização de documentários em vídeo digital e em múltiplos suportes comunicacionais.
O pesquisador Renó (2013a, pp. 95-96) lembra que o documentário ainda em suas origens era transmídia, “num momento em que os documentaristas realizavam expedições de exploração e em seguida preparavam exposições foto-documentais com diversidade de plataformas de comunicação”. Renó destaca que o documentário transmídia desempenha esse fundamento “original do registro documental proporcionando ao usuário uma navegação (analógica ou digital) por múltiplos espaços e linguagens comunicacionais que ampliam o processo cognitivo”.
A mudança de tecnologia passou a impulsionar cada vez mais a produção e a possibilidade inventiva na realização de documentários que, agora, podem se estruturar tendo a narrativa transmídia como mola propulsora. Essa estratégia contemporânea possibilita a construção de conteúdos em multiplataformas independentes, mas também complementares entre si, e caracteriza a obra audiovisual por meio de registros e depoimentos como um documentário transmídia.
Desta forma, ao debruçarmos sobre a história do documentário constatamos que tanto a formatação quanto o conteúdo passaram por transformações, “porém, em nenhum desses momentos a mudança no que diz respeito à linguagem foi tão expressiva como depois da web 2.0, onde os cidadãos passaram não somente a produzir, como também a distribuir os conteúdos produzidos” (RENÓ, 2013b, p. 214). O pesquisador ressalta que, com as inovações tecnológicas, “surge uma nova linguagem comunicacional: a narrativa transmídia. A partir dela, tornou-se necessário estudar, experimentar e interpretar os resultados da utilização da narrativa transmídia para a construção de documentários”.
Luvizotto (2015, p. 18) destaca que essa segunda geração de serviços online é “caracterizada por potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações, além de expandir os espaços para a colaboração entre os participantes desse processo”. As pessoas começaram a participar ativamente do processo de criação em uma produção documentária, o contribui com o que Jenkins (2009, p. 56) denomina de “inteligência coletiva”, já que a comunidade virtual passa a alavancar a expertise dos “consumidores midiáticos”.
À luz da teoria da modernidade tardia, a indagação é: como fazer o registro de memórias e manifestações culturais na atualidade? De acordo com Luvizotto (2013, p. 253), “a modernidade tardia indica uma mudança no modo de vivenciar as relações a partir da identificação da razão como o elemento ordenador” e é fundamental rever e atualizar as práticas para a preservação das memórias coletivas de um determinado grupo social. Neste sentido, pode-se dizer que a produção documentária é ressignificada e passa a ser instituída em novos meios e com a tecnologia como pano de fundo para a construção de linguagens midiáticas e novos formatos narrativos.
O discurso cidadão presente em uma produção documentária pode ser também a essência em uma produção multimidiática, já que possibilita que o espectador participe interagindo. Magnoni e Miranda (2013, pp. 106-107) falam da cultura participativa como uma forma que o usuário tem de experimentar novas formas de sociabilidade. E se falarmos da digitalização de patrimônios culturais imateriais, essa dinâmica pode estar diretamente ligada a um movimento colaborativo de compartilhamento de informações.
As comunidades colaborativas no ambiente virtual são consideradas o “elemento condutor das transformações profundas que podem surgir da superação do modelo hegemônico de propriedade das ideias” (SILVEIRA, 2009, p. 260) já que possibilitam que saberes históricos e expressões culturais de uma determinada comunidade sejam disseminados e, consequentemente, preservados.
O antropólogo Antonio Augusto Arantes, que presidiu o Iphan de 2004 a 2006, destaca a “necessidade de diálogo dos agentes públicos de preservação com áreas de conhecimento que têm sido consideradas, até agora, menos relevantes do ponto de vista do patrimônio, como é o caso das Ciências Sociais e do audiovisual” (ARANTES, 2010, p. 53). Essa consideração é significativa, pois indica a premência de estudos interdisciplinares a fim de atender a demanda acerca da preservação de patrimônios imateriais considerando as possibilidades comunicacionais contemporâneas.
Deste modo, a digitalização e a inserção de conteúdos em ambientes virtuais podem conferir uma nova dimensão de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. A admissão da narrativa transmídia para abordar o universo dos bens imateriais viabiliza a adoção de diversos recursos midiáticos (textos, fotos, áudios, infográficos e mapas) que buscam complementar e aprofundar o tema apresentado. De acordo com Luvizotto, (2015, p. 25) com esse “aparato digital, é possível criar, inventar, reinventar tradições, conferindo-lhes a aparência de repetição e preservando a memória coletiva”. Neste sentido, Giddens (2000, p. 87) destaca que a modernidade tardia é uma espécie de revigoramento do passado por meio da reflexividade e interpretação do mundo contemporâneo. Segundo o autor, “vivemos de modo muito mais reflexivo do que as gerações passadas. [...] A radicalização da modernidade significa ser obrigado a viver de modo mais reflexivo, enfrentando um futuro mais incerto e problemático”.
Já Luvizotto (2010, p. 65) considera as potencialidades apresentadas pelas tecnologias informacionais e comunicacionais para a disseminação da tradição e preservação da memória coletiva. Para ela, “a tradição deve ser considerada dinâmica, e não estática, uma orientação para o passado e uma maneira de organizar o mundo para o tempo futuro”. A autora destaca que na contemporaneidade é necessário a reflexividade “marcada pela redescoberta e pela dissolução da tradição” (LUVIZOTTO, 2010, p. 57).
Neste sentido, Luvizotto (2010, p. 59) salienta que “a modernidade teve que (re)inventar tradições” e assinala o dinamismo como uma considerável característica da modernidade tardia. Para ela, essa possibilidade reflexiva se relaciona “a um mundo cada vez mais constituído de informação” que procura “negar modos preestabelecidos de conduta, conduzindo o indivíduo a realizar escolhas sucessivas, permitindo que este componha a sua narrativa e identidade, sempre aberta a revisões” (LUVIZOTTO, 2010, p. 62).
Deste modo, uma das possibilidades de interpretação do mundo nos dias de hoje é por meio da adoção da narrativa transmídia. Segundo Jenkins (2009, p. 135), ela se desenvolve através de múltiplos suportes midiáticos e cada um contribui de maneira distinta e valiosa para a compreensão do todo. Já Gosciola (2014, pp. 7-14) destaca que a narrativa transmídia desenvolve a força convergente através de vários meios de comunicação e conta com a “colaboração da audiência via redes sociais e por vídeos virais”, promovendo o “engajamento colaborativo” e o desenrolar das narrativas. Segundo o autor, a narrativa transmídia é:
Basicamente uma história, mas o que a diferencia de outras histórias é que ela é dividida em partes que são veiculadas por diferentes meios de comunicação, cada qual definido pelo seu maior potencial de explorar aquela parte da história (GOSCIOLA, 2014, p. 9).
Essas definições se aplicam da mesma forma aos documentários, que neste caso, tiveram que se adaptar com novas estratégias de realização e divulgação e passaram a ter novas possibilidades de linguagens e formatos, ampliando a circulação de informações e oferecendo ao espectador discursos navegáveis de realidade (RENÓ, 2013b, p. 210). Destarte, a realização desses projetos mostra que o documentário transmídia é mais que uma possibilidade tecnológica, mas uma adequação ao novo, que pode se apresentar como uma eficiente ferramenta de digitalização, registro e difusão do conhecimento humano.
Nos dois projetos analisados, a importância do bem cultural presente no som dos sinos e no trabalho dos sineiros das cidades mineiras é evidenciada por meio da digitalização e da multiplicidade de recursos. Mesmo sendo um tema que compreende sons e saberes específicos de uma determinada comunidade, entende-se que a digitalização e a elaboração de projetos transmídia podem contribuir na difusão e na preservação de saberes centenários, além de divulgar a importância dessa expressão cultural brasileira evidenciada por meio do ambiente virtual.
Ao debruçar sobre esses projetos, contatou-se que os documentários analisados foram desenvolvidos para a web e possuem características transmídia. Jenkins cita as três principais características presentes na narrativa transmídia: intertextualidade, multimodalidade e compreensão aditiva. Sendo assim, verificou-se que os dois projetos analisados utilizam estratégias comunicacionais por meio da intertextualidade, pois possuem conteúdos complementares e independentes, da multimodalidade, já que cada meio utilizado trabalha com diferentes tipos de representações e da compreensão aditiva, pois cada mídia adiciona algo para a compreensão do usuário. Essas considerações foram elaboradas por Jenkins (2011) ao cunhar o termo “Narrativa Transmídia6”.
Percebeu-se ainda que a digitalização nos projetos Som dos Sinos e Sinôancias proporciona novas possibilidades informativas e interativas por meio de estruturas hipertextuais e hipermidiáticas. Segundo Falci (2002, p. 5), a estrutura hipertextual é “uma obra em constante construção e renegociação, segundo o princípio da metamorfose. A construção constante remete ao desafio enfrentado pelo autor, qual seja, o de sugerir caminhos, o de construir partes a serem unidas”. Já Renó (2011, p. 37), destaca que o hipertexto é um “texto estendido, de estrutura não linear e fragmentado, que proporciona ao usuário a navegabilidade entre os fragmentos, de acordo com seus anseios”.
Da mesma forma que a estrutura hipertextual, o conceito de hipermídia também é compreendido como um processo interativo e se caracteriza como um ambiente “onde os elementos de multimídia que compõem um documento estão conectados por meio de hipervínculos, de maneira que são independentes da estrutura em vez de ficar definidos de um modo imóvel” (MANOVICH, 2005, p. 84). A estrutura hipermidiática inclui diversos conteúdos integrados com textos, imagens e sons. Segundo Renó (2011, p. 37), o ambiente hipermidiático “é composto por um coletivo de informações multimidiáticas que estão dispostas, ou planejadas, de forma não linear, e a leitura destas pode ser feita de forma planejada, ou conduzida pelo espectador/usuário”.
No projeto midiático Sinoâncias, por exemplo, a narrativa transmídia fica evidenciada com a possibilidade de assistir ao documentário de 8 minutos e 30 segundos sobre os sinos da cidade de São João del-Rei, de navegar por abas complementares, de visitar o blog do projeto ou entrar em contato com a equipe responsável enviando uma mensagem pelo site. A narrativa transmídia está presente nos vídeos e na utilização de diversas fotos de sinos das igrejas da cidade. “O espectador/usuário interage com o conteúdo proposto, definindo seu próprio caminho” (RENÓ, 2011, p. 60).

Já no projeto Som dos Sinos o usuário vivencia uma experiência a partir de uma navegação construída por hiperlinks que conectam conteúdos a partir de elementos visuais e sonoros. Além de São João del-Rei, o projeto contempla mais 8 cidades mineiras já citadas anteriormente. No entanto, a narrativa transmídia presente no projeto abrange, além da plataforma multimídia com documentários independentes entre si, áudios dos sinos e fotografias das comunidades apresentadas. Além da plataforma multimídia foram desenvolvidos mais 4 produtos (documentário transmídia, documentário linear, cinema itinerante e aplicativo para celular).
A criação do aplicativo Som dos Sinos para celular (disponível para iPhone e Android) funciona como um audioguia narrado pela comunidade local e pelos sineiros. Por meio do aplicativo, o usuário pode navegar pelas cidades históricas e usar o mapa para traçar a rota até o ponto que deseja conhecer e, assim, ouvir os sons dos sinos que são geolocalizados nas igrejas. No total, 110 áudios de 45 igrejas foram disponibilizados.

Outro destaque de interatividade existente no projeto Som dos Sinos é a possibilidade de navegar pelas abas: Projeto, Sons, VideoCartas e Micro-histórias. Em Projeto, o usuário conhece os detalhes da apresentação por meio das formas de navegabilidade nas multiplataformas (webdoc, documentário, cinema itinerante e aplicativo para celular), além de contar com artigos e reportagens sobre o projeto. Já em Sons é possível selecionar uma das nove cidades e escutar o toque dos sinos por meio de barras coloridas que indicam os diferentes tipos de áudios (Toques, Comunidades, Sineiros e Celebração). Cada barra é um som. O usuário navega pela onda sonora que escolher. Há a possibilidade de filtrar por cidade, baixar os toques dos sinos em Creative Commons e compartilhar qualquer som.
A terceira aba é Videocartas e foi pensada para o usuário interagir com o projeto, montando uma carta virtual com pequenos vídeos. Para participar, basta escolher cinco cenas de vídeos, das 32 disponíveis; escolher uma trilha sonora das 3 opções disponíveis e, por fim, preencher o campo “Conte sua história” e inserir o e-mail da pessoa que receberá a videocarta. Já em Micro-histórias, o usuário escolhe a forma na qual quer ver o documentário transmídia por meio de opções de navegabilidade: Toques, Sineiros e Sinos. Cada aba, apresenta a possibilidade de escolher o caminho que se quer traçar. A interatividade está presente em todas as abas.

Outra característica da digitalização do imaterial encontrada no projeto Som dos Sinos é a possibilidade do material disponível na multiplataforma ser projetado em diferentes cidades (Cinema Itinerante), como uma nova forma do usuário apreciar o conteúdo documental sobre o patrimônio cultural. De acordo com o site de notícias Aconteceu no Vale7, foram produzidos 9 vídeos, exibidos em projeções itinerantes nas fachadas das igrejas em 9 cidades de Minas Gerais que ainda mantêm o toque dos sinos. Cada vídeo conta a história do local onde é exibido, com depoimentos de moradores e sineiros. Deste modo, esse projeto contribui para o entendimento das reverberações que o documentário transmídia possibilita em temas que envolvam a preservação e o registro da memória histórica, visual e sonora, considerados patrimônios de um povo.
Além dos projetos analisados, há outros documentários que versam sobre patrimônio imaterial e a representatividade dos sinos mineiros, dentre eles, destaque para o longa metragem Entoados (1997), com direção de Jason Barroso Santa Rosa. O filme registra as manifestações culturais nas cidades de Catas Altas, Diamantina, São João del-Rei, Ouro Preto, Tiradentes e Mariana. Já o curta metragem Ecos do Badalo (2012) foi realizado durante a oficina Olhar Documental: o vídeo como instrumento de memória e retrata a história dos sinos de São João del-Rei, considerada a Cidade dos Sinos. Há ainda um webdocumentário denominado Sinos (2009), produzido a partir do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), pelo Iphan e que aborda, além da diversidade de sons dos sinos, alguns personagens importantes e o cotidiano dos moradores das cidades registradas pelo programa. O documentário foi realizado no mesmo ano da salvaguarda dos sinos. No entanto, esses projetos não contam com a adoção da narrativa transmídia para difusão do patrimônio cultural.
Deste modo, o artigo buscou analisar como a digitalização de patrimônios imateriais, por meio de projetos documentais transmídia, contribui com a preservação e a disseminação de memórias históricas, visuais e sonoras, presentes em saberes e expressões culturais de uma comunidade. O estudo proporciona novos olhares sobre a elaboração de documentários transmídia e sobre processos de digitalização e criação que singularizam e constituem temáticas sobre preservação de saberes centenários.
A pesquisa se debruçou em compreender como a elaboração de produções documentárias formatadas exclusivamente para o ambiente virtual podem reverberar saberes centenários e expressões culturais de uma determinada comunidade que são digitalizados em ambiente aberto, com interatividade e novas possibilidades comunicacionais.
Diante do que foi apresentado, entende-se que o documentário transmídia torna-se um repositório capaz de conservar e difundir os valores culturais de um patrimônio imaterial. Deste modo, o artigo propõe novos olhares às práticas culturais dos diferentes sujeitos que coexistem na contemporaneidade marcada pela interculturalidade, hibridez e pluralidade. A digitalização e a adoção de narrativas transmídia proporcionam ao usuário a escolha de novos caminhos para obter novas experiências e, assim, consolidar novos conhecimentos para si mesmo.
O artigo partiu do pressuposto de que as novas linguagens e estruturas narrativas e participativas contribuem com o desenvolvimento de um documentário transmídia. No caso específico dos bens culturais imateriais entende-se que a digitalização e adoção de documentários transmídia favorecem a difusão de saberes e expressões culturais de um determinado grupo social.
Conclui-se, portanto, que a formatação de projetos transmídia atua na difusão de saberes e expressões culturais que poderiam se perder com o tempo. Essa observação se deve ao fato de que os projetos transmídia trabalham com múltiplos suportes midiáticos para transmitir importantes informações sobre um determinado bem imaterial. Sendo assim, verificou-se que a narrativa transmídia, ao ser elaborada e desenvolvida exclusivamente para o ambiente virtual, contribui com a preservação cultural de forma dinâmica e interativa. Por meio da multiplicidade de suportes midiáticos é possível ter acesso ao som dos sinos, às fotos das comunidades abordadas e a uma diversidade de textos sobre os sinos e o ofício dos sineiros. Os sinos que tocam no interior do país reverberam em ambiente digital em saberes e fazeres tradicionais e trazem consigo ecos da nossa identidade brasileira.



