Resumo: A festa italiana Nossa Senhora da Achiropita, evento histórico-cultural, religioso, comunitário e gastronômico celebrada anualmente no bairro do Bixiga (São Paulo-SP), é uma ação voluntária para arrecadar fundos ao amparo de pessoas em vulnerabilidade social. O estudo tem como objetivo identificar estratégias de comunicação utilizadas pela Edição Especial - 94ª da Festa em 2020 diante da crise sanitária causada pelo Covid-19. Trata-se de uma pesquisa teórica, de revisão bibliográfica integrativa na qual foram explorados websites, redes sociais e materiais de divulgação sobre o fenômeno estudado. Os resultados evidenciam que em superação ao isolamento social, o e-commerce contribuiu para efetivação do evento. Considera-se, portanto, propostas que possibilitaram, a partir de uma perspectiva folkcomunicacional, e principalmente, do folkmarketing, a preservação de um patrimônio religioso, comunitário e gastronômico, com suas múltiplas expressões histórico-culturais e simbólicas que foram incorporadas à realidade local, originárias de movimentos migratórios, e que recriaram as marcas da referida festa.
Palavras-chave: Festa Religiosa Popular, Folkmarketing, Gastronomia, Cultura, Comunicação.
Abstract: The Italian festival Our Lady of Achiropita, a historical-cultural, religious and gastronomic event celebrated annually in the neighborhood of Bixiga (São Paulo-SP), is a voluntary action to raise funds for the support of people in social vulnerability. The study aims to identify communication strategies used by the Special Edition - 94th of the festival in 2020 in the face of the health crisis caused by Covid-19. This is theoretical research, an integrative bibliographic review in which were used websites, social networks, and printed documents about the phenomenon studied. The results show that in overcoming social isolation, e-commerce contributed to the implementation of the event. It is considered, therefore, that the proposals of commercialization, above all from a folkcommunicational perspective, and mainly from folkmarketing, allowed the preservation of religious and culinary heritage with its multiple cultural and symbolic expressions that were incorporated into the reality of São Paulo from migratory movements, registered in communication networks and folkcommunication that recreated the gastronomic marks of the party.
Keywords: Popular Religious Festival, Folkmarketing, Gastronomy, Culture, Communication.
Resumen: El festival italiano Nuestra Señora de la Achiropita, un evento histórico-cultural, religioso y gastronómico que se celebra anualmente en el barrio de Bexiga (São Paulo-SP), es una acción voluntaria para recaudar fondos para apoyar a las personas en vulnerabilidad social. El estudio tiene como objetivo identificar las estrategias de comunicación utilizadas por la Edición Especial - 94 de la festa en 2020 ante la crisis sanitaria provocada por el Covid-19. Se trata de una investigación teórica, una revisión bibliográfica integradora en la que, de manera explorada, utilizó sitios web, redes sociales y documentos impresos sobre el fenómeno estudiado. Los resultados muestran que, en la superación del aislamiento social, el comercio electrónico contribuyó a la realización del evento. Se considera, por lo tanto, que las propuestas de comercialización, sobre todo desde una perspectiva folkcomunicacional, y principalmente desde el folkmarketing, posibilitaron la preservación del patrimonio religioso y culinario con sus múltiples expresiones culturales y simbólicas que fueron incorporadas a la realidad paulista a partir de los movimientos migratorios, registrados en las redes de comunicación y de comunicación popular que recreaba las marcas gastronómicas de aquella fiesta.
Palabras clave: Fiesta Religiosa Popular, Folkmarketing, Gastronomía, Cultura, Comunicación.
Dossiê
Aspectos do folkmarketing na Festa de Nossa Senhora da Achiropita/SP em tempos de pandemia de Covid-191
Aspects of folkmarketing at Festa de Nossa Senhora da Achiropita/SP in times of the Covid-19 pandemic
Aspectos del folkmarketing en la Festa de Nossa Senhora da Achiropita/SP en tiempos de la pandemia de Covid-19
Recepción: 13/05/2022
Aprobación: 16/06/2022
Os estudos sistematizados sobre a historiografia da Festa de Nossa Senhora Achiropita, realizada anualmente no bairro do Bixiga, em São Paulo, vêm despertando o interesse de muitos analistas acerca desse evento ao longo da história. As apreciações são resultam, antes de tudo, da dinâmica da evolução desse fenômeno, principalmente, em relação ao destaque que vem sendo dado a cada ano à referida festa como um evento de caráter não apenas religioso, mas, econômico, social, cultural e filantrópico e comunicacional.
Conforme a época, a sociedade e o contexto socioeconômico, político e cultural, as representações e os sentimentos em relação as festas populares religiosas foram se multiplicando, mudando e adquirindo novos significados. Entre as diferentes formas de abordar esse fenômeno na literatura contemporânea, evidencia-se a discussão que dá ênfase à evolução desse acontecimento não apenas como patrimônio cultural, mítico, religioso, como expressões de fé coletiva, mas, também – como tem sucedido nas metrópoles –, como fenômeno turístico, de massa, econômico, gerador de emprego e renda, além de assistencialista no amparo de minorias em situação de vulnerabilidade.
Essa análise passa pela construção de um pensamento comunicacional e integrador sobre as festas populares, trazendo à luz outros entendimentos acerca desse fenômeno. Segundo Oliveira (2007), as festas religiosas são capazes de reunir aspectos tradicionais e modernos, reforçando o pensamento de Amaral (1999) que chama de modos de “festejar à brasileira”. Para Oliveira, trata-se da ampliação da festa com vistas ao turismo religioso e sua inclusão em uma rede regional de fluxos de divulgação, participação e diversidade cultural, de lazer e de fé.
Nesse aspecto, atualizamos o estudo trazendo a análise da edição de 2020 da festa de Nossa Senhora Achiropita, promovida pela Igreja Católica, que de forma representativa reúne aspectos relacionado ao tradicional e ao moderno e que mobiliza um conjunto de pessoas da comunidade direta e indiretamente ligadas à igreja na sua organização e realização, ainda que em época de pandemia e distanciamento social, como mostra esse estudo.
Sem prescindir das devoções dos peregrinos que participam da festa de Nossa Senhora Achiropita de todo Brasil, esse evento popular apresenta características que demonstram que a devoção religiosa e popular não se abstrai do entretenimento, do lazer e dos negócios que envolvem as organizações públicas e privadas com ou sem fins lucrativos que conformam essa festa.
No plano comercial, a festa oferece gastronomia de diversas regiões da Itália – originária na cidade a partir da chegada dos primeiros imigrantes italianos, no fim do século XIX, cujas preparações se tornaram um importante atrativo turístico-cultural, expressando os hábitos alimentares dos/as frequentadores/as. As preparações são comercializadas e os lucros de suas vendas revertidos para obras sociais da igreja. Como é tradição nas festas populares religiosas, além da gastronomia, o evento estudado, conta com outros atrativos como, as missas, os cortejos, quermesse, músicas, danças típicas, jogos e brincadeiras.
Pensando na segurança dos organizadores e frequentadores/as da festa, considerando a conjuntura da crise sanitária causada pelo Covid-19, tendo em vista evitar aglomerações, a paróquia de Nossa Senhora Achiropita utilizou estratégias de comunicação, de folkcomunicação e folkmarketing na perspectiva de manter algumas atividades do evento, sem comprometer o protocolo de saúde pública, de distanciamento social determinado pela Organização Mundial de Saúde - OMS (2020), que são analisadas nesse estudo.
Segundo Andrade Cezar (2015, p. 14-15), as festas populares de santos, inicialmente possuíam apenas o caráter religioso no qual a igreja mantinha o comando sobre o ritual, a fim de promover lazer e festas, espaços de intensa sociabilidade. Os rituais que as constituíam se situavam entre os universos religioso e social o que conferia maior autonomia para a população operar nesses espaços tendo em vista, ao mesmo tempo, a melhoria da condição e qualidade de vida. Nesse processo, a comunicação articulada à cultura local no contexto da globalização neoliberal provoca mudanças na dinâmica cultural das festas populares religiosas, somando-se a estas as estratégias de alcance mercadológico.
Nesse contexto, conforme Lucena Filho (2012, p. 13-14), a comunicação, o marketing e as vendas utilizam os espaços das festas populares religiosas para darem visibilidade aos seus produtos e serviços por meio de discursos estruturados com marcas oriundas da tradição religiosa em contextos massivos comunicacionais.
Assim, neste estudo, privilegia-se a abordagem de comunicação e de folkcomunicação defendidas por Marques de Melo (2008), Andrade Cezar (2015), Oliveira (2007) e Schimidt (2009), bem como a de folkmarketing – desenvolvida por Severino Lucena (2012) – que tratam das festas populares, religiosas e culturais e suas interrelações com o processo de comunicação e de folkcomunicação. Perpassa ainda pelo referencial teórico, estudos sobre comunidade e celebração das origens de migrantes, com o estudo de Escudero (2017). Como metodologia, foi adotada a pesquisa teórica, de revisão bibliográfica de caráter integrativo, que explorou o fenômeno em questão, por meio de referências sobre a temática e investigação em websites,redes sociais (Google, Youtube, Facebook), bem como, outros materiais de divulgação da Edição Especial - 94ª da Festa de Nossa Senhora da Achiropita, realizada em 2020.
Segundo historiografia descrita pela própria Paróquia de Nossa Senhora Achiropita, a construção desse fenômeno vem dedes épocas remotas, mais, especificamente, do ano de 580. Tudo começou com o capitão Maurício que enfrentou uma grande tempestade em alto mar e suplicou a Nossa Senhora sua proteção. A súplica acompanhou a promessa de que fosse acudido, juntamente com a sua tripulação, e em gratidão edificaria um santuário em sua homenagem. Desviado pelos ventos, por milagre, conseguiu se salvar e, na aldeia em que atracou, encontrou um monge que lhe falou: “Não foram os ventos que o trouxeram para este lugar, foi a Virgem Maria, para que nesse local o senhor construa um santuário, quando o senhor for eleito imperador”. A profecia se cumpriu e o santuário foi construído em Rossano – Calabro, comuna na Itália, da região da Calábria.
No santuário, um artista da região iniciou uma pintura parietal da imagem de Maria, mas acontecia algo estranho: ele pintava a imagem durante o período do dia, e, no período da noite a pintura desaparecia. Por motivo do desparecimento da imagem de Maria no interior da capela, contratou-se um vigia para cuidar da entrada de estranhos na igreja.
Certa noite, uma senhora com uma criança no colo solicitaram ao vigia entrar na igreja para rezar. A demora da mulher chamou a atenção do guarda, que logo entrou para averiguar o que acontecera. Além de não encontrar a senhora com a criança, ele observou uma belíssima imagem no interior do templo, de uma mulher e com o menino em seus braços no mesmo local onde era estampada a pintura que desaparecia durante a noite. Assustado, saiu desvairadamente gritando pelas ruas do bairro sobre o ocorrido: “Nossa Senhora Achiropita! Nossa Senhora Achiropita!”. Esse acontecimento foi registrado como primeiro milagre de Nossa Senhora, dando início as ações de devoção e comemoração à Madona Achiropita.
O sentido etimológico da expressão Achiropita (A-kirós-pita), tem ascendência do grego Byzantine, Madona Achiropita ou Maria Achiropita, diz respeito “não feito à mão”, ou seja, imagem que não tem em sua identidade um artista plástico, não assinada por uma pessoa. Então, a terminação Achiropita surge para descrever a imagem sagrada, da milagrosa que surge sem aclaração, sem participação da feitoria de um artista.
Entre tantos nomes proclamados, o de Nossa Senhora da Achiropita, atribuído a Maria, Mãe de Jesus Cristo, é registrado na igreja de Rossano, na Itália. Nesse contexto, se atribui à grande maioria dos títulos dados à Virgem Maria relacionados às diversas práticas de devoção Marianas espalhadas por todo mundo, divididas em aparições, Vida de Maria, Sacramental e Ícones Milagrosos. Para a Igreja Católica, são títulos relacionados a doutrina, dogmas vastamente reconhecidos por seus devotados: “Mãe de Deus”, “Virgem” e “Imaculada”. A imagem original de Nossa Senhora Achiropita se encontra na Catedral de Maria Santíssima Achiropita, na Itália, onde é reverenciada pelos fiéis. É uma imagem em afresco, com traços que remetem às mulheres camponesas da Calábria.
Outro fato curioso que desperta atenção na história da Santa Maria na Catedral de Rossano, na Itália, é que, em séculos passados, a imagem acolhida no interior da capela recebia uma proteção de sete camadas de vidro com intuito de preservação a impactos de diversas naturezas. Além do mais, esse cenário estabelecia um clima misterioso. Mais tarde, essas camadas de vidros foram retiradas, deixando a pintura da Santa visível aos olhos de seus beatos e turistas que ali chegavam em devoção para conhecer sua história, conforme mostra imagens abaixo.



De acordo com Santos (s/d), por volta de 1833, ocorrera um terremoto deixando toda parte frontal da Igreja Nossa Senhora Achiropita destruída. Anos depois, toda sua fachada foi reconstituída. Mas, foi diante o milagre observado pelo guardião da Capela, que os fiéis, a comunidade local e representantes da Igreja começaram a se reunir em devoção a Santa, como também resolveram organizar a Festa do Dia de Nossa Senhora Achiropita, a Madona Achiropita, para arrecadar dinheiro e realizar benfeitorias, mas o evento só ganhou status turístico algum tempo depois. Já no Brasil, a história de Nossa Senhora Achiropita ganhou popularidade com a imigração dos italianos para o país.
A chegada dos italianos no Brasil foi motivada por uma grande crise econômica, política e social que passava a Itália durante metade do século XIX deixando o povo em estado de calamidade, desamparados e sem recursos para manter suas necessidades básicas de sustento a família.
Por volta de 1870, com o estreitamento das relações entre Brasil e Itália, embarcações superlotadas de pessoas partiam do território italiano com destino ao Brasil, ancorando nos portos do Espírito Santo e São Paulo. No país, alguns desses imigrantes tinham seu destino o trabalho em cafezais; outros iriam para Rio Grande do Sul e Santa Catarina para trabalhar no campo na exploração agrícola, conforme cadastro realizado na Itália antes mesmo de serem embarcados.
Assim, foi a aprovação da Lei de Subvenção Governamental para custear a imigração, que promoveu a vinda desses imigrantes italianos ao Brasil visando introduzir nos cafezais o sistema de parceria de mão de obra branca, livre em paralelo ao trabalho escravo. Contudo, parte deles vindos da Calábria, não se interessavam em trabalhar nos cafezais, e, com o início do processo de industrialização nas grandes cidades, seguiam para residir no Bairro do Bixiga, região da Bela Vista, na cidade de São Paulo (SP).
Os imigrantes italianos trouxeram sua cultura, culinária, rituais religiosos e manifestações fervorosas de fé e expressões de comunicação que acabaram por estabelecer um diálogo intercultural com a comunidade local, com sua cultura e fé católica, já estabelecida no Brasil pelos portugueses. São lembranças que estabelecem a capacidade de preservar e reunir saberes, fazeres, sentimentos e emoções. Legado de um povo com acolhida em solo brasileiro e que reportam cotidianamente o resgate de bens de família, atentando para a importância da manutenção desses domínios culturais.
Em se tratando de cultura, Roque Laraia (1986, p. 59) descreve como:
[...] sistemas que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante.
Desta maneira, muitos italianos se fixaram na maior cidade da América Latina, a metrópole de São Paulo, instalando-se, com suas tradições, hábitos e costumes, em muitos lugares. Alguns foram habitar uma chácara de um senhoril de cognome Bixiga, bairro circunscrito até hoje como cercania acolhedora da Bela Vista. Trouxeram na bagagem a imagem de uma santa e na memória o calendário religioso da terra natal, Nª Sª Achiropita, realizando celebrações de missas em sua devoção e disseminando a marca de sua gastronomia, rica em preparações culinárias de diversas regiões da Itália, patrimônio material e imaterial europeu.
No início, a Festa de Nossa Senhora Achiropita se dava com quermesses, barracas bem singelas para a comercialização de comidas preparadas pelas “mamas”. Faziam sorteios de prendas, leilões sobre carroças, pau de sebo para a criançada e uma animada banda de nome Bersaglieri, para a qual vinham músicos da Itália para tocar e cantar canções de suas regiões. Havia também o cortejo em devoção a Achiropita que acontecia em carro que levava a imagem da Santa decorada com rosas e fitas em suas mãos. Por onde passava a procissão, as famílias nas sacadas de suas casas decoradas com colchas e toalhas coloridas apreciavam o cortejo e faziam suas doações em dinheiro para ajudar na compra do terreno e na construção da igreja.
Assim, expressões de fé e cultura são espalhadas pelo bairro do Bixiga e toda metrópole de São Paulo. São tradições com práticas religiosas promovidas anualmente com uma programação gastronômica tipicamente italiana, uma ementa de pratos como pastas ao molho de tomates, espaguete à moda Achiropita, folgazas, fricazza, melanzana al forno, peperone al forno, polentas, sfogliatele e canolli, antepastos dentre outros.
Uma culinária focada na transmissão do saber e fazer, que comunica, tem representatividade de uma cultura alimentar característica de determinada região, que aproxima a comunidade e seus fiéis. Para o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, citado por Freixa e Chaves (2004, p.7):
‘O cru e o cozido’, quando se percebe a lógica e o conteúdo da alimentação, a ordem que regula a comida, a mesa (o que se come, como se come, com quem se come, a lógica dos diversos lugares e funções à mesa), alcança-se um saber antropológico decisivo (1964).
O que significa para Mikhail Bakhtin (2008, p. 129):
O encontro do homem com o mundo que se opera na grande boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos assuntos mais antigos e mais marcantes do pensamento humano. O homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si.
Nesse entrosamento, o fenômeno cultural alimentar se apresenta como bens culturais que vão muito além do ato de comer para se nutrir. Comunicam representações sociais, sobrevivência de um patrimônio intenso, culturalmente tecido por pessoas que perpetuam técnicas e mantêm costumes intercedido por saberes, fazeres, sabores, ingredientes e técnicas que são passadas de geração em geração, na formulação, produção, comercialização e consumo dessa culinária.
É um ato de comunicar algo, comunicar a presença de bens culturais, pois onde toda ação de alimentar-se se fortalece em muitos contextos com valores simbólicos e se apresentam como elemento decisivo da identidade cultural humana e como tal, como um dos mais eficazes instrumentos de comunicação de um patrimônio (ANDRADE CEZAR, 2013, p. 6).
Para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2006), trata-se de bens culturais:
Dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares - como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas.
A Festa de Nossa Senhora Achiropita é, assim, uma comemoração vivenciada pela comunidade com uma culinária típica, ao som da música e danças típicas folclóricas, artesanato, show de fogos que envolve a preservação de bens de família e o trabalho voluntariado para subsidiar sete projetos sociais à amparar moradores de rua, entre eles um centro educacional, assistência infanto juvenil, assistência a casa de recuperação de dependentes químicos, assistência à Instituição de Longa Permanência para Pessoas Idosas.
São bens simbólicos. Conforme Chartier (1995), práticas culturais que legitimam uma tradição secular e acolhem a assistência social aos necessitados. No entanto, São Paulo tem não apenas acompanhado essa tradicional festividade, mas também movimentado a economia local com o turismo, o mercado e realizado um trabalho social significativo de amparo a pessoas que vive em situação de vulnerabilidade social.
Seguindo toda essa historiografia, o presente trabalho tem como objetivo descrever as estratégias de comunicação – a partir de uma perspectiva da folkcomunicação e do folkmarketing – empreendidas pelo movimento dos imigrantes italianos, seus descendentes e simpatizantes, moradores do Bairro do Bixiga, e pela igreja Nossa Senhora Achiropita, durante a Edição Especial da 94ª Festa de Nossa Senhora da Achiropita, em São Paulo, em 2020, diante a pandemia de Covid-19 para continuar mantendo a tradição e as obras sociais realizadas pela Paróquia, como de costume, em todos os anos.
De acordo com o Ministério da Saúde (MS), a Covid-19 é uma enfermidade causada pelo coronavírus, SARS-CoV-2 que exibe comportamento clínico variando de infecções assintomáticas a quadros graves. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a maioria dos indivíduos contaminadas (cerca de 80%) pela Covid-19 pode ser assintomático ou oligossintomáticos (sintomas brandos). Em torno de 20% dos casos detectados, no entanto, podem requerer atendimento hospitalar devidos complicações respiratórias, e dentre 5% podem necessitar de suporte ventilatório (2020). Nesse panorama, a OMS repassa para todos os países em âmbito emergencial protocolos e medidas de distanciamento social.
Diante a pandemia de Covid-19, a tradição religiosa, a preservação dos bens culturais, de uma “cidadania glocalizada”, termo fincado por Marques Melo (2011, p. 11), pela cultura alimentar que integra anualmente as comemorações à Nossa Senhora da Achiropita exige um outro formato, imprimindo novos comportamentos e significados à sociedade paulista. O “glocal” para dar visibilidade aos seus produtos e serviços, usando as festas como “pano defundo” e o apelo ao imaginário simbólico às ações de amparo aos que por eles são assistido sem nas instituições filantrópicas.
Assim, a Festa foi ressignificada, utilizando-se como suporte maior as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s), a internet, ambientes de navegação com inteligência artificial em websites, home page, redes sociais digitais, interface gráficas amigável – aplicativos (app) e o próprio comércio eletrônico – e-commerce com subsídio instrumental econômico. Com esse novo formato, a Festa de Nª Sª da Achiropita foi refuncionalizada para atender as demandas das práticas religiosas, como manutenção das obras sociais e conservação da cultura.
Para Sotratti (2022), no dicionário do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan (s/d), o termo “refuncionalização”, “revitalização” vem sendo empregado para nomear um patrimônio que é acompanhado por sua manutenção e modernização, possibilitando sua inserção de amplo interesse à sociedade contemporânea, assim, ressaltando sua identidade.
Para efetivação desse trabalho, realizamos uma pesquisa exploratória em websites e redes sociais digitais – Google, Youtube, Instagram e Facebook. Trata-se de uma abordagem que se baseia em dados de textos de internet, em documentários, vídeos no YouTube, imagens e entrevistas disponibilizadas nesses canais. Desta maneira, consideramos uma estratégia de investigação e análise dos fenômenos sociais capaz de descrever o acontecimento em sua origem e as transformações que ocorreram devido afastamento social provocado pela pandemia.
No cenário da pandemia de Covid-19, não foi possível realizar 94ª Festa Nossa Senhora da Achiropita de maneira presencial, com missas, cortejos, quermesse, comercialização de comidas, músicas, danças típicas, jogos e brincadeiras, diante da necessidade de cumprimento do protocolo de saúde pública – de isolamento social determinado pelas autoridades. Dessa maneira, o evento foi refuncionalizado, estabelecendo-se novas estratégias de comunicação e marketing em uma Edição Especial.

A 94ª Festa de Nossa Senhora da Achiropita em Edição Especial ganhou status de um evento remoto e híbrido, com auxílio das TIC’s, uso de dispositivos que acompanham essa evolução pós-moderna. Nesse contexto, destaca-se o uso do comércio eletrônico (e-commerce) como espaço para proposta de folkmarketing na divulgação da Festa para comercializar produtos e serviços. Essa estratégia envolveu o uso de ferramentas como: aplicativos de delivery e drive-thru (de pratos típicos da festa), a parti de planejamento dos integrantes das cozinhas da Igreja e organizadores do evento.
Sobre o uso das TICs por parte dos imigrantes, Escudero (2017, p. 62), diz que é um meio para preservação de identidades e manutenção de vínculos:
... migrantes continuam a manter laços fortes, emotivos, de lealdade e filiação das famílias, tradições, instituições e organizações políticas em sua terra natal, os avanços das “tecnologias de contato” poderosamente afetaram a extensão, intensidade e velocidade com que eles podem fazê-lo.
Sobre o entendimento dos estudos culturais popular, Canclini (1997) destaca que a cultura envolve o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação da vida social. Pois é um espaço folkcomunicacional, intercultural, evidenciando uma série de mudanças nos processos de significação, redefinição e hibridização da cultura diante uma pandemia que atinge continentes.
A folkcomunicação adquire cada vez mais importância pela sua natureza de instância mediadora entre a cultura de massa e a cultura popular, protagonizando fluxos bidirecionais e sedimentando processos de hibridização simbólica. Ela representa inegavelmente uma estratégia contra hegemônica das classes subalternas (MARQUES DE MELO, 2008, p. 25).
Nesse sentido, a festa de Nossa Senhora da Achiropita consegue ser refuncionalizada, mediadora do processo de comunicação e permanência da cultura, ao mesmo tempo que ganhando novos espaços.
O mercado imprime novos significados, não apenas na preservação da cultura raiz, mas, estratégias inovadoras são implementadas para que essas manifestações sejam reinventadas e possam cumprir funções na sociedade contemporânea capitalista (SILVA et. al., 2018, p. 30).
Essa mudança carrega junto novas estratégias folkcomunicacionais empreendidas por toda comunidade do bairro do Bixiga na Edição Especial da 94ª Festa da Madona Achiropita, alcançando diversas mídias. Reprojetando a comemoração e comercialização da festa veiculada em websites e redes sociais digitais para o público como um todo. Uma verdadeira mudança de comportamento dos organizadores da festa, dos fiéis e consumidores.
São festas com laços de amizades carregadas de história, da cultura da imigração italiana no Brasil que saem do espaço do senso comum para o fortalecimento de identidade, que ganha novos contornos e sentidos, novas perspectivas dentro do contexto do espaço virtual e folkcomunicacional diante a pandemia do coronavírus.
[...] novos caminhos têm sido delimitados para os estudos com a multiplicação de formatos e conteúdo de comunicação digital, os grupos de cultura folk, marginalizados dos processos midiáticos hegemônicos, vislumbraram possibilidades de posicionamento e divulgação de sua produção.
Muitas manifestações populares – antigas ou recentes - se atualizam para se integrar às novas linguagens. Uma sociedade globalizada com informações rápidas e em grande quantidade exige uma inserção de todos. A construção de uma comunicação própria a ‘um mundo’ específico torna-se ferramenta de conhecimento e fortalecimento de grupos. (SCHMIDT, 2009, p. 9).
Nesse sentido, essa interação do presencial e virtual – marcada pela presença das TICs – fortalecem as manifestações da cultura popular italiana, que constituem meios de comunicação que não apenas expressam uma determinada ideia, mas representam também uma forma de ação na mídia desses grupos nessa versão especial do evento.
Foi um ano atípico, com uma equipe de voluntariados bem menor, devido orientações de isolamento social. Ademais, grande parte dos envolvidos na construção e efetivação da festa são pessoas jovens e da terceira idade que, de acordo com o planejamento, foi alcançado seus objetivos propostos para arrecadação de fundos para manutenção das obras sociais.
No que diz respeito ao cardápio, foi reorganizado com apenas dois pratos de massas (spaguetti ao sugo e penne ao sugo), entradas (antepasto, melanzana, pepperone – pimentão recheado, fogazza) e sobremesas (cannoli e tiramissu).

A interação da equipe organizadora enquanto intercâmbio cultural virtual com consumidores no e-commerce aconteceu com pedidos realizados por meio online e com antecedência, conforme programado com datas de fechamento de pedidos, assim, poderiam se organizar, produzir e distribuir toda comida. Quanto aos serviços prestados nas entregues, o delivery seguiu os protocolos sanitários descritos pelo MS e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (2020), conforme estabelecido um raio de distância de sete quilômetros entre o local de produção (Paróquia) e de entrega, sendo realizado por motoboys ou de forma presencial, mas com horário pré-estabelecido.
Ressalta-se que, independentemente do contexto de pandemia, a produção alimentícia da festa é sempre planejada, seguindo protocolos do Ministério da Saúde e normas de segurança de alimentos preconizadas pela Anvisa na RDC 216/2004.
De acordo com Benazzi (2015), no local da produção dos alimentos, entorno da paróquia, encontram-se quatro cozinhas de formato industrial onde se prepara toda comida da festa. As normas higiênico-sanitárias – de segurança dos alimentos são realizadas desde a escolha da matéria prima, higienização, confecção dos produtos, fracionamento em embalagens seguras, e com a distribuição em delivery – conforme protocolo e mostras imagens abaixo.






Destaca-se, desse modo, que em todo o processo foram adotadas estratégias de folkmarketing, ou seja, ações e atividades de promoção a partir de manifestações folclóricas e elementos da cultura popular como tema da estratégia comunicacional.
A ação comunicacional do folkmarketing é uma estratégia que podemos considerar integrada aos processos culturais da região. Para contextualizá-la, é necessário que as marcas dos saberes da cultura popular sejam mobilizadas em apropriações e refuncionalização, para geração de discursos folkcomunicacionais dirigidos ao contexto da sociedade massiva (LUCENA, 2011, p. 3).
O processo de comercialização de produtos (alimentos) e serviços foi refuncionalizado do presencial ao virtual. Utilizou-se de estratégias de marketing e vendas no e-commerce com variadas formas de pagamento tendo uma comunicação clara a atender ambas as partes, fornecedor/consumidor, conforme canais de veiculação.

Considera-se que as estratégias de comunicação empreendidas na comercialização dos produtos alimentícios e serviços durante a Edição Especial da 94ª Festa Italiana de Nossa Senhora da Achiropita desenvolvidas pela equipe organizadora, pelo movimento migratório italiano, pela comunidade e pela Paróquia Nossa Senhora da Achiropita, no bairro do Bixiga, na cidade de São Paulo, foram eficazes considerando os resultados obtidos a partir do material analisado.
Pode-se atribuir esses resultados a refuncionalização do evento realizado pela igreja, fundamentadas nas táticas folkcomunicacionais, especificamente do folkmarketing. A análise do fenômeno pesquisado descreve os desafios para o atendimento das necessidades dos participantes da festa com destaque, sobremaneira, para preservação de sua gastronomia, não apenas na perspectiva de satisfazer a necessidade de degustar a culinária italiana, mas, na perspectiva de conservação do patrimônio material e imaterial da Colônia Italiana e sustentabilidade financeira.
Nessa direção, o estudo da festa popular religiosa e cultural de Nossa Senhora da Achiropita apresenta uma evolução histórica na sociedade de consumo contemporânea que se constitui questão de significado e relevante, uma vez que associado as técnicas de comunicação, folkcomunicação e folkmarketing que propiciaram o alcance para obtenção de recursos para manutenção das obras sociais promovidas pela paróquia promotora do evento, inovando a metodologia de realização da referida festa.
Dessa forma, este estudo identifica a refuncionalização do evento, permitindo acesso as comunidades a métodos virtuais, contribuindo para manutenção da gastronomia, comercialização e preservação da culinária italiana em suas múltiplas manifestações culturais, significações com marcas de identidade em redes comunicativas – que recriam marcas culturais – religiosas.
Considera-se, portanto, que as TIC’s, especialmente a internet, não só incrementou, mas fortaleceu a abertura de propostas de comercialização, possibilitando à preservação do patrimônio religioso e culinário com suas múltiplas expressões culturais e simbólicas que foram incorporadas a realidade paulistana a partir de movimentos migratórios italianos, registrado nas médias escrita e oral, provando que recriaram as marcas gastronômicas da referida festa, e sobremodo, a manutenção a um grupo de pessoas a margem da sociedade.











