Dossiê

Recepción: 21 Octubre 2022
Aprobación: 01 Noviembre 2022
DOI: https://doi.org/10.5212/RIF.v.20.i45.0003
Resumo: O Festejo de São Marçal é uma manifestação da cultura popular maranhense que acontece há mais de 90 anos, no dia 30 de junho, no bairro do João Paulo. Em nosso, estudo abordaremos o tema por meio de pesquisa bibliográfica e entrevistas exploratórias com o objetivo de extrair as mediações encontradas nesse Festejo, bem como indicadores de que ele contribui potencialmente para o desenvolvimento local com divulgação pelas mídias. Buscaremos, ainda, evidenciar as mediações contidas no Festejo de São Marçal e sua essencialidade como fator de legitimação do sotaque do Bumba-meu-boi de matraca, com o objetivo de fazer uma interpretação da tradição cultural local e de sua influência sobre os atores que participam dessa manifestação. A teoria da folkcomunicação está presente neste artigo. Ela dá sustentação à perspectiva acerca da contra-hegemonia no âmbito cultural. Trata-se de um aspecto explícito no caso da festividade de São Marçal.
Palavras-chave: São Marçal, Cultura, Mídia.
Abstract: The celebration of São Marçal is a manifestation of popular culture from Maranhão that has been taking place for over 90 years, on June 30, in the João Paulo district. In our study, we will approach the theme through bibliographic research and exploratory interviews with the objective of extracting the mediations found in this celebration, as well as indicators that it potentially contributes to local development with publicity througt the media. We will also seek to highlight the mediations contained in the celebration of São Marçal and its essentiality as a factor of legitimation of the Bumba-meu-boi accent, with the aim of interpreting the local cultural tradition and its influence on the actors who participate in this demonstration. The folkcommunication theory is present in this article. It supports the perspective on counter-hegemony in the cultural sphere. This is an explicit aspect in the case of the festivity of São Marçal.
Keywords: São Marçal, Culture, Media.
Resumen: La fiesta de São Marçal es una manifestación de la cultura popular de Maranhão que se realiza desde hace más de 90 años, el 30 de junio, en el barrio de João Paulo. En nuestro estudio, abordaremos el tema a través de búsqueda bibliográfica y entrevistas exploratorias con el objetivo de extraer las mediaciones encontradas en este Festejo, así como indicadores de que potencialmente contribuye al desarrollo local con publicidad a través de los medios de comunicación. También buscaremos resaltar las mediaciones contenidas en el Festejo de São Marçal y su esencialidad como factor de legitimación del acento de Bumba-meu-boi de matraca, con el objetivo de interpretar la tradición cultural local y su influencia en los actores que participar en esta demostración. La teoría de la comunicación popular está presente en este artículo. Apoya la perspectiva de la contrahegemonía en el ámbito cultural. Este es un aspecto explícito en el caso de la festividad de "San Marçal".
Palabras clave: São Marçal, Cultura, Medios de comunicación.
Introdução
A cultura popular pode ser traduzida de forma objetiva como identidades de um povo, seus costumes e modos de ser. A seleção do tema, por esta autoria, se deu a partir de discussões durante aulas de mestrado sobre os conceitos de cultura popular, comunicação das classes subalternas, mediações e dos impactos que essas relações podem causar na sociedade.
Decorre desse contexto entendermos que a estratégia contra-hegemônica da folkcomunicação, levantada por José Marques de Melo (2008), sobretudo com relação aos estratos subalternos, leva por extensão cognitiva a um diálogo com a perspectiva diaspórica da cultura de Stuart Hall (2013), em função de ela lançar fundamentação metodológico-discursiva para o fato de os processos globalizantes não terem supremacia, mas sim interagirem, com manifestações vinculadas à tradição. Hall aponta para a problemática, chamando atenção para um aspecto do qual era próximo:
O que podemos mapear é mais semelhante a um processo de repetição-com-diferença, ou de reciprocidade-sem-começo. Nessa perspectiva, as identidades negras britânicas não são apenas um reflexo pálido de uma origem “verdadeiramente” caribenha, destinada a ser progressivamente enfraquecida (HALL, 2013, P. 40)
A partir desse pressuposto, buscamos um corpus que pudesse nos oferecer uma perspectiva de aplicação e, ao mesmo tempo, que se aproximasse da realidade maranhense, assim chegamos ao Festejo de São Marçal, uma manifestação popular tradicional, com uma rica história, sendo considerado como um evento originário do bumba-meu-boi do sotaque de matraca e que, ao longo de sua trajetória, consegue, a cada ano que passa, aumentar o número de brincantes/expectadores, mantendo-se, todavia, elementos dos primórdios de sua realização.
Para além do aspecto religioso, abordaremos também como o Festejo de São Marçal reúne características que fazem com que sua execução anual, ainda que em apenas 1 dia, seja um potencial fomentador de desenvolvimento local, levando-se em consideração as pessoas e os empreendimentos que são impactados pelo evento. Mobiliza-se a mídia para divulgação regional e para as outras regiões do país, esforço que os meios de comunicação fazem, destacando-se sobretudo as TVs, cuja inserção em rede nacional se constitui em visibilidade que atrai turistas para o Maranhão, num período em que outros estados nordestinos também investem maciçamente no sentido de ocupar a rede hoteleira local. Ao longo deste artigo, a mídia local pontifica na posição de fonte acerca das informações sobre o festivo dia 30 de junho.
Por derradeiro, como foco no aspecto cultural, o sotaque de matraca é legitimado no Festejo de São Marçal, sendo fruto de uma construção social e exemplo de resistência frente às novas tecnologias e às novas formas de interação.
O Festejo de São Marçal como espaço de mediações culturais
O período junino no Maranhão é marcado por exaltar suas tradições culturais e religiosas por meio de folguedos, da culinária, de produções artesanais, dentre outros. Nesse contexto, destacamos o complexo do Bumba-meu-boi, que, no ano de 2019, foi considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO. No Dossiê de Registro do Complexo do Bumba-meu-boi, encontramos que:
O Bumba-meu-boi do Maranhão é, antes de tudo, uma grande celebração na qual se confundem fé, festa e arte, numa mistura de devoção, crenças, mitos, alegria, cores, dança, música, teatro e artesanato, entre outros elementos. Considerado a mais importante manifestação da cultura popular do Estado, tem seu ciclo festivo dividido em quatro etapas: os ensaios, o batismo, as apresentações públicas ou brincadas e a morte. [...] Como parte desse rico patrimônio cultural que é o Bumba-meu-boi, encontra-se uma diversidade de elementos que dão visibilidade à cultura popular maranhense, relacionados à religiosidade popular católica, com os batismos dos Bois; aos cultos afro-maranhenses, com os Bois de Terreiro; e às formas de expressão artística, com os bailados dos brincantes, com a encenação de autos e comédias e com a musicalidade dos Bumbas em seus vários estilos, valorizadas pelo talento de seus amos-cantadores e pela variedade de sons tirados de instrumentos artesanais (IPHAN, 2011, p. 8-10).
Assim, para além das belezas e dos ritos que envolvem a brincadeira, os estilos de Bumba-meu-boi, também conhecidos como “sotaque”, são classificados como: a) da Ilha ou de Matraca; b) de Guimarães ou de Zabumba; c) de Cururupu ou de Costa-de-mão, d) da Baixada e e) de Orquestra. Esses sotaques são diferenciados pelo local de origem, pelos instrumentos e pelas indumentárias utilizadas em suas apresentações.
Na contramão das inúmeras transformações sociais e culturais pelas quais temos passado, principalmente, nos últimos 20 anos, a continuidade dos ritos e dos festejos do Bumba-meu-boi – ainda que com modificações – traduzem a resistência cultural frente às novas dinâmicas de políticas culturais, estratégias de impulsionamento do turismo, inserção de novas mídias e a própria mobilização dos brincantes, considerando o êxodo das gerações mais novas. Sob o aspecto devocional, Fonseca reforça que:
Os compromissos com o Boi fazem parte da trajetória individual do brincante no momento em que escolhe participar ou não da brincadeira. Brincar Boi é visto como uma postura respeitosa que exige comprometimento do brincante com o Boi. Em geral, as pessoas chegam à brincadeira para realizarem o pagamento de promessa ou por curiosidade. A promessa endereçada ao Boi é uma prática muito recorrente entre os brincantes, que buscam nos santos, principalmente na figura de São João, a manifestação de sua crença. Nesse sentido, o brincante assume compromissos com o Boi como forma de agradecer pelo pedido atendido ou que se encontra em vias de concretização. A opção de brincar no Boi por vontade própria, sem a intervenção de um interesse religioso, é outra possibilidade de acesso bastante comum na brincadeira. Nesse caso, as motivações para a entrada no Boi são diversas, alguns são convidados por amigos que já participam do grupo, outros veem sua entrada na brincadeira como prestígio social (FONSÊCA, 2015, p.21).
Sejam com as participações nos Bois por promessa ou por curiosidade, no Maranhão, diferentemente de outros Estados, o período junino se encerra dia 30 junho, com a festa de São Marçal. Em São Luís, o ciclo ritualístico do bumba-meu-boi ocorre da seguinte forma:
[...] o batismo dos grupos na noite da véspera do Dia de São João, quando os Bois têm a permissão do santo para sair de seus terreiros, marcando o início oficial da temporada; a Alvorada de Bumba-meu-boi iniciada na madrugada do dia 29 de junho, consagrado a São Pedro, quando a capela do santo é visitada por grande número de grupos de Bumba-meu-boi, cujos brincantes pedem as bênçãos em frente ao andor; e o Desfile de São Marçal, a grande festa dos Bois do sotaque de Matraca que, da manhã até a noite do dia 30 de junho, passam em cortejo pela avenida do mesmo nome, no bairro do João Paulo. São três celebrações que, pela relação com os santos juninos, estão entre os bens estruturantes do Bumba-meu-boi. (IPHAN, 2011, p. 8-10).
A respeito de sua origem, a Festa de São Marçal teria surgido em decorrência da proibição aos brincantes dos grupos de bumba meu boi de prosseguirem para o Centro da cidade – área nobre da época –, sob a justificativa de manutenção da segurança, ordem e tranquilidade. Ante essa restrição policial, os grupos passaram a se reunir no Areal do João Paulo, dando início aos encontros anuais. Existe, ainda, uma segunda versão: um reconhecido comerciante da época, José Pacífico de Moraes (1901-1972), seria o responsável pela promoção desse encontro, uma vez que, após assistir a diversas apresentações de bumba-meu-boi no bairro do Anil, optou por contratá-las para se apresentarem em frente à sua casa no bairro do João Paulo, iniciando-se a festividade[4].
O festejo de São Marçal possibilita ao público, além de assistir às apresentações dos grupos de Bumba-meu-boi, interagir diretamente com os respectivos brincantes. Essa inserção do público geralmente se dá como “matraqueiros”. A matraca é um instrumento de percussão formado por dois pedaços de madeira batidos entre si, “gerando uma sonoridade marcante [...] instrumento percussivo bastante presente em alguns grupos de Bumba meu boi, é considerado a porta de entrada para a brincadeira.” (FONSÊCA, 2015, p.15).
Neste ano de 2022, o grande encontro dos bois de matraca na Avenida São Marçal, no João Paulo, completou 95 anos. Mais de 35 grupos marcaram presença no festejo, arrastando multidões ao longo do dia. Analisando o contexto social da brincadeira, percebemos que os brincantes são, em sua maioria, da parte periférica da capital maranhense.
São pessoas com pouco recurso e que envolvem toda a família para “botar o boi na rua”, numa clara demonstração de resistência cultural, vencendo as dificuldades financeiras e logísticas – os bois de matraca têm, em média, 150 brincantes – e gerando, direta e indiretamente, movimentação na economia local durante esse período, sobretudo de ambulantes, bordadeiras e artesãs, restaurantes, bares e hotéis.
Devido a sua magnitude, o evento conta com o apoio de parceiros como o governo do Estado, a prefeitura de São Luís e o Exército brasileiro, que conta há décadas com um batalhão em frente à Avenida São Marçal. Por fim, outra tradição que acompanha a festividade é a distribuição do “caldinho de feijão” à população, com o intuito de restabelecer as forças daqueles que dedicaram sua noite ao festejo.
João Vitor Carneiro, caboclo de pena do Boi do Maracanã há 18 anos, e há 14 anos participando do Festejo de São Marçal, falou, em testemunho à autoria deste texto, sobre os elementos que se comunicam dentro da brincadeira e durante a travessia, que vai além de toadas e danças, mas envolvem crenças e afetos:
A representatividade do Boi do Maracanã, não só do Maracanã, mas eu falo mais pelo Boi do Maracanã, que o Maracanã tem uma parte de devoção, uma parte religiosa, a gente vai através de devoção e fé, porque a gente homenageia todos os santos, né? São João, São Pedro, São Marçal, inclusive hoje nós temos no dia de São Pedro, dos únicos que vai na capela de São Pedro é o Boi do Maracanã e o Boi de Itapera de Maracanã. Então o Boi do Maracanã atravessa da Av. São Marçal e mais pela devoção, pela resistência, pela fé, pela tradição que a gente tem pelo santo, né? Que é o São Marçal.
Então a gente fazer essa afirmação como grupo folclórico, né? De um sotaque, que é o sotaque de matraca, então para gente enquanto grupo é gratificante, a gente fazer esse percurso todos os anos[5].
Tal relato ratifica o simbolismo do festejo não só para o grupo folclórico a que pertence, mas também é um ato de legitimação de sua comunidade e de suas crenças. Nesse contexto a comunicação passou a ser mais do que a mensagem, passando a ter papel preponderante na consolidação da identidade desses agentes culturais
Sob a perspectiva da produção, circulação e consumo de bens culturais durante o festejo de São Marçal, lembramos que tanto a cultura quanto a comunicação têm sido áreas de estudo que ganharam destaque nas últimas décadas, no que diz respeito aos efeitos causados por elas nos territórios. A cultura assume um novo lugar e, atravessada pela comunicação, auxilia no impulsionamento do desenvolvimento da região. Ângela Felippi (2018, p.6), ao descrever a relação entre cultura e desenvolvimento regional, aponta o seguinte:
[...] numa visão determinista, cultura era tida como entrave ou obstáculo ao desenvolvimento quando tomados os modos de vida das comunidades e sociedades que não se enquadravam no modelo de desenvolvimento ocidental hegemônico, e, portanto, obstáculos a sua modernização. [...] Do final do século passado para cá, movimentos sociais, apoiados por uma vertente da pesquisa acadêmica, reivindicam o direito dos povos a seus modos de viver, observando-os ou como formas de resistência e resiliência ao proposto pela hegemonia, ou como gérmen de outras proposições de desenvolvimento. Do mesmo modo, cultura deixa de ser vista como um problema até mesmo para os projetos hegemônicos como aqueles financiados pelos organismos internacionais e corporações, que consideram os arranjos particulares das sociedades para seus projetos (FELIPPI, 2018, p.6).
A evolução e a ressignificação no modo de pensar a cultura e relacioná-la com desenvolvimento destacadas pela autora refletem a própria trajetória do festejo de São Marçal, visto que passou de uma brincadeira promovida por uma classe popular, e com delimitação territorial de atuação, para um bem cultural e imaterial, bem como tendo o dia 30 de junho decretado pela prefeitura de São Luís como “Dia do Brincante de Bumba-meu-boi”.
Nesse sentido, percebemos como a cultura passa a ser enxergada como um recurso pelas empresas e pelo poder público, a exemplo da execução de políticas de fomento à cultura, como a Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão, cujas empresas que financiarem projetos culturais, previamente aprovados pela Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão – SECMA –, têm direito ao abatimento do imposto ICMS. Apenas este ano, foram destinados R$ 45.188.438,61[6] para os projetos culturais incentivados, dentre os quais se encaixam aqueles destinados à manutenção da cultura popular, como o Festejo de São Marçal. Ao todo, foram R$ 25 milhões investidos no São João, com mais de 500 atrações contratadas. A expectativa é de lucro de R$ 100 milhões.[7] A capital maranhense registrou a maior taxa de ocupação hoteleira do primeiro semestre dos últimos 10 anos, com mais de 65% de ocupação de leitos. A estimativa de público apenas para o Festejo de São Marçal foi de 200 mil pessoas.[8] Hugo Veiga, Secretário Adjunto de Turismo do Estado (Setur), em entrevista às autoras deste artigo, destacou ainda a forte participação da Secretaria de Estado da Comunicação (SECOM): “saíram várias matérias em nível nacional, nas emissoras: Globo, Band, Record, Jovem Pan, falando sobre o São João no período excepcionalmente prolongado”[9].
Pela abordagem corrente acerca da literatura sobre a cultura, em marcos teóricos sobejamente visitados, enxergamos as contribuições de Jésus Martín-Barbero como primordiais, por meio da sua “teoria das mediações”, em que o autor correlaciona os estudos sobre cultura popular e sobre a indústria cultural. Nas palavras do autor:
Na redefinição da cultura, é fundamental a compreensão de sua natureza comunicativa. Isto é, seu caráter de processo produtor de significações e não de mera circulação de informações, no qual o receptor, portanto, não é um simples decodificador daquilo que o emissor depositou na mensagem, mas também um produtor. O desafio apresentado pela indústria cultural aparece com toda a sua densidade no cruzamento dessas duas linhas de renovação que inscrevem a questão cultural no interior do político e a comunicação, na cultura (Martín-Barbero, 1997, p.287).
Para o Martín-Barbero, a cultura pode tanto ser um conjunto de simbolizações, quanto recursos sociais e econômicos. O que se aplica igualmente à comunicação. Assim, no Festejo de São Marçal, fazendo uma aproximação entre cultura, comunicação e desenvolvimento, a partir do conceito do autor, vislumbramos as formas como os sujeitos se relacionam entre si e com as tecnologias, considerada como uma nova prática na sedimentação dos saberes.
Atualmente, os devotos ou simpatizantes do Festejo podem, por exemplo, acompanhá-lo em tempo real, sem sair de casa. Seja em transmissão pelos massmedia ou pelos próprios brincantes, existindo a possibilidade de se tornar um registro permanente nas redes. Outros exemplos dessa interação são o pagamento da bebida/comida por pix e registro da festa por drones. Assim, novas práticas são incorporadas ao evento que é o Festejo, sem, contudo, descaracterizá-lo.
A comunicação a partir da expressão cultural popular
De acordo com Burke (2010), foi no final do século XVIII e início do século XIX, que o “povo” (o folk), passou a ser tema de intelectuais europeus, podendo assim datar daí o renascimento da cultura popular. Sobretudo na Alemanha, possou-se a adotar termos como volkskunde, do início do século XIX, que pode ser traduzido como “folclore”, palavra de origem inglesa datada de 1846, sendo outros termos semelhantes adotados em outros países. Movimento, segundo o autor, de redescoberta do povo, de suas tradições, numa reação contra o Iluminismo, seu elitismo e abandono da tradição.
É, sobremaneira, importante enfatizar que o veio conceitual que vai desaguar para folkcomunicação é algo ligado às “ideias, opiniões e atitudes dos públicos marginalizados urbanos e rurais” (BELTRÃO, 1980). Trata-se de uma elaboração conceitual que se afasta, na articulação teórica de Luiz Beltrão, de um olhar verticalizado das elites, com mera curiosidade literária e certo tom romântico. Para o teórico pernambucano, valoriza-se posicionamentos mais horizontalizados e, quase sempre, intercambiantes de informação cultural (BELTRÃO, 2004).
É, todavia, praticamente unânime que a cultura popular emana do povo, dos seus costumes, de tradições, fazeres e comportamentos. Presente na cultura popular de forma indissociável, a comunicação está em um formato diferente do que pode ser encontrado no estilo jornalístico ou informativo, mas cumprindo uma função social essencial, sobretudo na transmissão de saberes e tradições. Em relação a ofícios tradicionais (FERREIRA, 1996), eles de alguma forma pontuam durante as celebrações juninas, sobremaneira na confecção das vestimentas e na preparação dos instrumentos percussivos.
Ao longo dos tempos, a forma de comunicar a tradição vem se modificando, consoante à evolução da sociedade, não obstante, a comunicação na cultura popular mantém conservado alguns elementos, como a tradição oral e o próprio registro histórico, que deve também ser reconhecido como uma ação de comunicação.
Ao situarmos localmente, trazendo especificamente para o Festejo de São Marçal, identificamos alguns elementos que se destacam na comunicação de grupos participantes, conforme relatado pelos próprios agentes culturais.
Não há dúvidas de que o Festejo realizado há 95 anos sofreu mudanças em sua forma de comunicar, que vai desde a divulgação de sua realização, antes limitado ao boca-a-boca, e hoje difundido pelas redes sociais e veículos de comunicação, a exemplo do Rádio e da Televisão. A própria forma de apresentação dos grupos folclóricos se modernizou com a utilização de trios elétricos que se enfileiram ao longo da antiga Avenida João Pessoa, hoje Av. São Marçal, no bairro João Paulo, com drones sobrevoando a multidão para capitação de imagens, até chegar ao palco onde um a um os grupos, além de apresentarem suas toadas, deixam sua mensagem de resistência e reafirmação do sotaque de matraca, dentre as expressões do bumba-meu-boi.
Ao mesmo tempo, como afirmam Barbosa e Ribeiro (2011), a comunicação também é uma marca histórica de atos comunicacionais, o que as autoras chamam de entre-lugar: “o passado possui marcas escriturárias na narrativa – as roupas de época, as performances discursivas, os utensílios e adereços, as paisagens – que se constituem em espécie de passagens em direção ao tempo pretérito” (BARBOSA; RIBEIRO, 2011, p. 12).
O Festejo de São Marçal soma quase um século, traduzindo por intermédio de seus símbolos as performances comunicacionais da comunidade que colaboram na consolidação da história do sotaque de matraca, enquanto expressão cultural de grupos.
Seguindo nessa mesma direção que relaciona a comunicação e cultura, na década de 1970, surge na Inglaterra a Cultural Studies, que traz à tona o pensamento de que “a comunicação para ter seu entendimento completo deveria ser considerada a partir dos processos socioculturais da sociedade em que está inserida” (COSTA, 2005, p.29).
De acordo com Mauro Wolf:
O interesse dos cultural studies tende sobretudo a analisar uma forma específica de processo social, relativa à atribuição de sentido à realidade, ao desenvolvimento de uma cultura de práticas sociais compartilhadas, de uma área comum de significados. (WOLF, 2005, p.103).
Tal visão corrobora com a ação comunicacional contida no festejo de São Marçal, no qual se apresenta a expressão conjunta de um grupo, que se une em torno de uma tradição cultural; e, unido, constrói uma mensagem de resistência e identificação, comunicada por meio de sotaques de matraca.
O sotaque de matraca contido no festejo de São Marçal
Mais do que uma expressão de sotaque de bumba-meu-boi, o sotaque de matraca representa uma construção social que se perpetua e se legitima no Festejo de São Marçal.
Podemos entender por legitimação o que diz Thompson, “relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas, como observou Max Weber, pelo fato de serem representadas como legítimas, ou seja, como justas e dignas de apoio”. (THOMPSON, 2011, p. 82). No caso apresentado neste artigo, a legitimação é feita pelos defensores e participantes da cultura popular, considerada não dominante, mas que podemos tomar como base para a mesma teoria.
Sendo o maior encontro de bois de matraca do estado, o Festejo de São Marçal se diferencia de arraiais e espaços públicos de apresentação cultural, devido, entre outros elementos, à heterogeneidade de seu público, oriundos de diversos bairros, classes sociais, até mesmo de outros países, que durante o cortejo de bois de matraca se torna homogêneo, num verdadeiro fenômeno social e cultural, embalado pelos sons de matraca.
À medida em que os anos se passam, o Festejo de São Marçal ganha maior visibilidade nas mídias, num processo de globalização proporcionando pelos mass media que convergem para reafirmação do sotaque de matraca, fazendo deste um patrimônio cultural maranhense evidenciado para o mundo.
Seja por seu cunho cultural ou pelo fenômeno social que congrega o Festejo de São Marçal, pode ser considerado um movimento de resistência popular, de pessoas pobres e negras, que por meio do sotaque de matraca legitimam suas raízes, ao mesmo tempo, em que legitimam sua cultura, conforme relato oral de João Vitor Carneiro à autoria deste artigo:
O Festejo de São Marçal, é de grande importância no âmbito da cultura popular maranhense e também brasileira, traz o resgate e a vivência de cada grupo tradicional do sotaque de matraca. Então há essa afirmação de tradição, de permanência, de resistência, porque uns anos lá atrás o boi de matraca, bem mesmo lá atrás, era visto como coisa pra negro, e os matraqueiros eram taxados como pessoas que tinham as matracas para usar como arma, que era uma coisa de preto, que não podia, daí assim, tinham algumas regiões que poderiam ter o boi de matraca e outras não. Então, além de fé, e de conceito de tradição e afirmação da manifestação, é a troca de saberes culturais e de vivência, né? Embora hoje tenham alguns grupos que não conseguem fazer essa travessia, que não conseguem passar, então essa afirmação é mais de resistência mesmo, do sotaque de matraca, que é o sotaque da Ilha.
O relato apresentado pelo entrevistado está alinhado ao que Martín-Barbero descreve na segunda parte de sua obra Dos meios às mediações, quando diz que:
Através de uma “indústria” de narrativas e imagens, vai-se configurando uma produção cultural que de uma vez medeia entre e separa as classes. Pois a construção da hegemonia implicava que o povo fosse tendo acesso às linguagens em que ela se articula. Mas nomeando ao mesmo tempo a diferença e a distância entre o nobre o vultar, primeiro, entre o culto e o popular mais tarde. Não há hegemonia – nem contra-hegemonia – sem circulação cultural. (MARTÍN-BARBERO, 1997, p.147).
Essa hegemonia, e ao mesmo tempo a mistura circulante entre o culto e o popular, é justamente o que presenciamos no Festejo de São Marçal. Ao mesmo tempo em que vemos pessoas das mais diferentes origens e classes sociais se unirem em torno de um culto religioso, de uma devoção e tradição cultural, encontramos pessoas que dizem não participar do evento exatamente pela diversidade de público e por ser um evento “muito popular”. Trata-se de um fato que se perpetua desde os primórdios do sotaque de matraca, conforme relato citado acima, no qual João Victor Carneiro descreve o preconceito contra o boi de matraca, visto como “coisa de negro”, sendo proibido em alguns lugares, num claro distanciamento entre o nobre e o vulgar, como citou Martín-Barbero.
Considerações finais
Expressões cultuais apresentadas no Festejo de São Marçal nos permitem construir um roteiro das mediações encontradas e expressas durante sua execução, que traduzem as vivências, religiosidade, tradição e troca de saberes, num circuito cultural que já dura 95 anos.
O Festejo de São Marçal, mais do que um encontro de brincadeiras juninas, é um espaço de pertencimento popular. Há frequências rotineiras de indivíduos de classes sociais diversas, incluindo-se as mais abastadas, sem necessariamente haver disputas entre hegemonia ou contra-hegemonia. Constata-se uma circulação cultural comunitária, entretanto com visibilização midiática intensa no plano local e regional, mas também com visibilidade nacional, unindo-se esforços governamentais, empresariais e a dedicação de comunidades populares da capital maranhense.
As expressões vivenciadas por brincantes e simpatizantes durante o Festejo de São Marçal demonstram, além da motivação cultural de várias comunidades, as práticas vivenciais de seu cotidiano, além de suas lutas, dificuldades e conquistas.
Aliado à tradição, vemos a possibilidade de crescimento da região por conta da realização quase secular do Festejo. Anualmente, parcerias são mantidas e novas são formadas, impactando a vida das pessoas que trabalham formal e informalmente no entorno da festividade. Apostar em projetos incentivados que foquem na transmissão de saberes (oficinas, documentários etc.) é uma opção para gerar renda de forma continuada aos envolvidos nas festas do período junino, que culminam no Festejo de São Marçal.
Referências
BARBOSA, Marialva; RIBEIRO, Ana Paula Goulart (org.) Comunicação e história. Florianópolis: Insular, 2011. 296p.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez, 1980.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: teoria e metodologia. São Bernardo do Campo: UMESP, 2004. Acesso em: 20 out. 2022.
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna: Europa, 1500 - 1800. Trad. DeniseBURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna: Europa, 1500 - 1800. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 472p.
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa. 4.ed. São Paulo: Edusp, 2011. 392p.
COSTA, Cristina. Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. 2.ed.rev.ampl. São Paulo: Moderna, 2005. 416p.
CUNHA, Patrícia. Tradição no João Paulo volta com força total. 2022. Disponível em: https://oimparcial.com.br/noticias/2022/06/tradicao-no-joao-paulo-volta-com-forca-total/.
FELIPPI, Ângela C. T. “As mediações de Jesús Martín-Barbero e os estudos de comunicação no âmbito do desenvolvimento regional”. Intexto, nº 43, agosto de 2018, p. 135-50, doi:10.19132/1807-8583201843.135-150.
FERREIRA, Jerusa Pires. Os ofícios tradicionais: cultura é memória. Revista USP. São Paulo, n. 29, p.102-106, mar./maio 1996. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/25645/27383.
FONSÊCA, Daniele de Jesus Souza. Tem mascarado na festa de São Marçal: o brincante de pai Francisco no Bumba meu boi em São Luís-MA. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/18909/1/2015_DanielledeJesusdeSouzaFonseca.pdf.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik. Tradução Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN). Dossiê de registro do complexo cultural do Bumba-meu-boi. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_bumba_meu_boi(1).pdf.
MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
MELO, José Marques de. Mídia e Cultura Popular: história, taxionomia e metodologia da Folkcomunicação. São Paulo: Paulus, 2008.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. 427p.
WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 295p.
Notas
Notas de autor