Dossiê
Batalha do Coliseu: uma proposta pós-abissal para uma ecologia de saberes[1]
Batalha do Coliseu: a post-abyssal proposal for an ecology of knowledge
Batalha do Coliseu: una propuesta post-abismal por una ecología del conocimiento
Batalha do Coliseu: uma proposta pós-abissal para uma ecologia de saberes[1]
Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 20, núm. 45, pp. 70-88, 2022
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepción: 22 Octubre 2022
Aprobación: 28 Octubre 2022
Resumo: O presente artigo tem como objetivo refletir sobre práticas sociais e comunicacionais nas batalhas de rap (ritmo e poesia) no ambiente universitário, considerando o caso da Batalha do Coliseu, que ocorre no Campus Central da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal (RN). Utilizamos pesquisa bibliográfica, observação e entrevistas semiestruturadas, bem como análise do discurso, para relacionar e discutir os dados colhidos durante a investigação. A partir dos resultados obtidos, constatamos que as batalhas de rap podem vistas como manifestações culturais de caráter popular e contra-hegemônicas, devido à relação intrínseca da música rap com as lutas sociais. Ademais, percebeu-se também a necessidade de pesquisas mais aprofundadas acerca dos fenômenos comunicacionais aqui observados, de forma que compreendam suas práticas como manifestações culturais de resistência popular.
Palavras-chave: Batalhas de rap, Decolonialidade, Folkcomunicação.
Abstract: This article aims to reflect on social and communicational practices in rap battles (rhythm and poetry) in the university environment, considering the case of the Battle of the Coliseu, which takes place on the Central Campus of the Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN), in Natal (RN). We used bibliographic research, observational method and semi-structured interviews, as well as discourse analysis to relate and discuss the data collected during the investigation. From the results obtained, we found that rap battles can be seen as cultural manifestations of a popular and counter-hegemonic character, due to the intrinsic relationship between rap music and social struggles. Furthermore, it was also noticed the need for more in-depth research on the communication phenomena observed here, in order to understand their practices as cultural manifestations of popular resistance.
Keywords: Rap battles, Decoloniality, Folkcommunication.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre las prácticas sociales y comunicacionales en las batallas de rap (ritmo y poesía) en el ámbito universitario, considerando el caso de la Batalla del Coliseo, que tiene lugar en el Campus Central de la Universidad Federal de Rio Grande do Norte (UFRN), en Natal (RN). Utilizamos investigación bibliográfica, método observacional y entrevistas semiestructuradas, así como análisis del discurso para relacionar y discutir los datos recogidos durante la investigación. A partir de los resultados obtenidos, encontramos que las batallas de rap pueden ser vistas como manifestaciones culturales de carácter popular y contrahegemónico, debido a la relación intrínseca entre la música rap y las luchas sociales. Además, también se percibió la necesidad de una investigación más profunda sobre los fenómenos comunicativos aquí observados, a fin de comprender sus prácticas como manifestaciones culturales de resistencia popular.
Palabras clave: Batallas de rap, Decolonialidad, Folkcomunicación.
Introdução
O objetivo deste artigo é refletir sobre as batalhas de rap como formas de comunicação popular de caráter contra-hegemônico, considerando suas motivações e ideologias políticas, como movimentos que produzem práticas comunicacionais que se direcionam contra os processos históricos de dominação social. Para isso, propomos uma reflexão a partir dos conceitos de “linhas abissais” e “ecologia de saberes” (SANTOS, 2007), considerando o caso da Batalha do Coliseu, uma batalha de rap que acontece no campus universitário da UFRN, em Natal (RN).
O que se busca com o presente artigo é refletir sobre a seguinte pergunta-problema: como o ambiente universitário influencia as práticas sociais e discursivas em batalhas de rap? Ademais, é esperado, a partir de tal reflexão, compreender os sujeitos e saberes da cultura envolvida, evitando observá-los como meros objetos de pesquisa, e sim em caráter de equanimidade, no qual ambas as partes podem aprender e dialogar uma com a outra. Na melhor das hipóteses, a intenção aqui é também contribuir com esses sujeitos e com iniciativas semelhantes que proponham a integração de saberes de origens e características distintas no interior do ambiente acadêmico.
Breve contextualização sobre batalhas de rap
Rap é uma expressão do inglês, "rhythm and poetry" e pode ser traduzida como “ritmo e poesia”. De acordo com Rose (1996), o rap é uma forma de expressão musical originária do movimento cultural hip-hop que combina narrativas orais e rimadas com batidas eletrônicas rítmicas. Já Price (2006) destaca o papel do elemento MC nos eventos que originaram o movimento hip-hop. De acordo com Price (2006), a princípio, os MCs se reservavam à tarefa de animar o público que frequentava os bailes de hip-hop, atuando como “mestres de cerimônia”, daí a origem da sigla. No entanto, o autor ressalta que o papel dos MCs foi gradativamente adquirindo destaque, ao passo que começaram a elaborar rimas e criar uma conexão mais intrínseca com o público, que passou a despertar mais o interesse por esse tipo de interação. Nesse contexto, DJs (disco-jóqueis) e MCs (mestres-de-cerimônia) passaram a produzir músicas juntos, dando origem ao que hoje conhecemos como rap (PRICE, 2006).
Conforme observa Andrade (1999), embora o hip-hop englobe também outras formas de expressão, nomeadamente a dança break e o grafite, foi através da música rap que o movimento desenvolveu seu meio artístico mais expressivo. De acordo com Price (2006), a primeira organização de hip-hop, Zulu Nation, tornou possível mudar gradativamente a realidade social do bairro Bronx, em Nova Iorque, onde surgiu o movimento. O autor ressalta que, no final dos anos 1970, o hip-hop já era um dos movimentos culturais com mais adeptos nas periferias de Nova Iorque, que posteriormente foi se expandindo para outras regiões dos Estados Unidos. Segundo Silva (1999), à medida que os elementos centrais do movimento hip-hop foram sendo constituídos, foram também desterritorializados, se espalhando pelas grandes metrópoles mundiais.
Pelos meios de comunicação, TV, cinema, rádios, indústria fonográfica, redes de computadores etc., os jovens de diferentes metrópoles integram-se ao movimento hip-hop. Desde então passaram a reinterpretar a realidade particular por eles vivida orientados por símbolos e práticas culturais elaboradas externamente. É o que hoje se verifica com a segunda geração de descendentes de africanos na França, com os jovens turcos na Alemanha e com os jovens excluídos nos bairros periféricos de São Paulo e cidades-satélites de Brasília (SILVA, 1999, p.28, grifo nosso).
Price (2006) considera que, com sua globalização, o hip-hop se tornou o movimento negro mais importante do mundo, por expandir a causa negra globalmente, mesclando arte e consciência política, adaptando-se às questões de cada localidade. Isso vai de encontro ao pensamento de Rose (1996), que, por sua vez, destaca que o rap levanta uma série de questões sobre cultura e música popular, pois aborda uma série de problemas sociais, culturais e políticos da sociedade contemporânea. De acordo com Rose (1994), as formas de expressão e linguagens desenvolvidas no hip-hop construíram um imaginário discursivo e simbólico capaz de dialogar com as grandes massas sobre as dinâmicas sociais, positivas e negativas, vividas pelas comunidades negras nas periferias dos grandes centros urbanos.
De acordo com Andrade (1999), além de promover a educação política e o direito à cidadania, o hip-hop também se mostrou uma expressiva ferramenta de complementação à educação formal de seus participantes, com início nas atividades realizadas nas posses, que consistiam em ocupações comunitárias entre jovens com ações pedagógicas em grupo visando “pleitear direitos, atingir objetivos e intervir nas relações sociais” (p. 89). A movimentação desses jovens em torno da cultura hip-hop e, mais precisamente do rap, possibilitou “a garantia de superar a crise social com fatos como desemprego, as dificuldades escolares, e a perseguição dos policiais” (p. 90). Nas ações pedagógicas, os grupos jovens desenvolvem estratégias para superar os fatores da exclusão, fortalecendo sua identidade étnica e reafirmando “sua capacidade de apresentar ideias, compartilhar opiniões e sugerir mudanças sociais” (p. 91).
As batalhas de rap, por sua vez, podem ser definidas como disputas entre MCs organizadas em duelos de rimas improvisadas. Apesar de centradas na disputa entre rappers, as batalhas também podem incluir outras atrações como apresentações de MCs e grupos de rap, bem como apresentações e batalhas de DJs, de dança e de poesia. Existem mais de um tipo de batalhas de rap, sendo a mais comum a batalha de sangue, que propõe a vitória da melhor rima, permitindo inclusive que os adversários se agridam verbalmente. É comum, quando o MC responsável pela apresentação da batalha pergunta: “O que vocês querem ver?” A plateia responder prontamente: “Sangue!”. Com o objetivo de “esculachar” o oponente, os rappers geralmente constroem suas rimas a partir de características pessoais ou físicas e até mesmo “segredos” de seus adversários. Quanto mais ousada for a performance do rapper, mais chance ele tem de ganhar, apesar de o público não aceitar qualquer tipo de ofensa, como xingamentos mútuos e direcionados a terceiros (ALVES, 2013).
Além da batalha de sangue, também existem batalhas de conhecimento, de imagens, temáticas ou de ideias. A primeira batalha de conhecimento surgiu a partir da iniciativa de Gerard Miranda e MC Marechal, em promover uma disputa que privilegiasse a reflexão e o debate crítico, ao invés de uma mera disputa ofensiva, como é comum nas batalhas de sangue. A Batalha do Conhecimento, por sua vez, originou novas categorias com outros nomes, porém com características similares, como Batalha de Ideias, de Palavras ou de Imagens. Nessas batalhas o que prevalece é a capacidade do rapper de elaborar suas rimas a partir de um tema pré-selecionado, que pode ser uma imagem projetada em um telão, um filme ou um debate sugerido. Os critérios levados em consideração para definir o vencedor geralmente são ousadia da performance, maior torcida ou melhor rima. É comum que muitas vezes a vitória se dê mais pela capacidade do rapper de reunir um público que defenda seu território, do que necessariamente pelo seu desempenho artístico, uma vez que a territorialização é uma questão muito forte nessa cultura. Um MC pode ser votado pelo seu talento ou pelo fato de “defender” sua quebrada. A premiação varia, podendo ser livros, camisetas, bonés ou, até mesmo, dinheiro arrecadado com a plateia pelos organizadores (ALVES, 2013).
Reflexões teóricas sobre rap, comunicação e sociedade
Sob a ótica da folkcomunicação, as batalhas de rap podem ser entendidas como formas de “manifestações culturais”, por se tratar de instrumentos de expressão da cultura local de uma comunidade ou de um povo, estabelecendo canais autênticos de difusão de valores, crenças e histórias de vida (CARVALHO, 2008). Ademais, o MC, por ser um agente responsável por grande parte dos discursos propagados durante as batalhas de rap, podem ser vistos como “líderes folk”, pois transitam entre as regiões hegemônicas e marginalizadas da sociedade, trazendo seus discursos consigo e realizando uma tradução de suas experiências comunicativas com indivíduos de ambas as esferas sociais (BELTRÃO, 1971; 2001).
Nesse contexto, enxergamos as batalhas de rap como promissores objetos de estudo da folkcomunicação, compreendendo a realização desses eventos como formas autênticas de comunicação popular e seus participantes como “agentes ativos” ou “ativistas midiáticos” (TRIGUEIRO, 2008) nos processos comunicacionais que viabilizam. As batalhas de rap criam redes de difusão de fatos e expressão de ideias, através de processos comunicacionais de caráter popular que se dão nos espaços cultural e geograficamente marginalizados da sociedade, tal como descreve Beltrão (1971), ao explicar o que é folkcomunicação. No entanto, essas batalhas também levantam uma discussão sobre o conteúdo das rimas e dos discursos proferidos nesses espaços, bem como suas implicações para com relação aos espaços de realização e ao movimento cultural hip-hop.
A ideia de sujeitos marginalizados sugerida pela tese da folkcomunicação remete ao pensamento de Santos (2007), no qual o mundo moderno é divido por linhas invisíveis, chamadas por ele de “linhas abissais”. De acordo Santos (2007), essas linhas – herança da era colonial – mantém a sociedade dividida em dois universos distintos: o dos sujeitos que estão “deste” e “do outro lado” da linha. Para o autor, as relações de dominação estabelecidas na era colonial não se extinguiram com a descolonização das nações, mas se reconfiguraram de tal maneira que a manutenção da realidade do que se encontra “deste lado da linha” implica na inexistência de tudo aquilo que se encontra do “outro lado da linha” (SANTOS, 2007).
Santos (2007) argumenta que o modelo colonial de exclusão radical, cujas linhas abissais costumavam separar a sociedade civil das regiões em estado de natureza, permanece até hoje no pensamento e nas práticas modernas, separando o mundo humano do subumano. Para o autor, a divisão gerada pelo pensamento abissal submete indivíduos do “outro lado da linha” a condições indignas de negação de direitos, além de invisibilizar seus saberes e culturas, uma vez que “o olhar hegemônico, localizado na sociedade civil, deixa de ver e declara efetivamente como não-existente o estado de natureza” (p. 74). Para o autor, isso explica as desigualdades sociais acentuadas pela globalização e a visão eurocêntrica ocidental predominante no pensamento tradicional hegemônico, sustentados por três principais formas de dominação: o colonialismo, o capitalismo e o heteropatriarcado. As linhas abissais também estão presentes na arquitetura urbana, dividindo as cidades em zonas consideradas desenvolvidas e subdesenvolvidas, centrais e periféricas (SANTOS, 2007).
Em contraponto a essa realidade, Santos (2007) sugere um pensamento “pós-abissal”, cuja principal premissa pauta por uma “ecologia de saberes” baseada no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos, bem como a sua incompletude. A “ecologia de saberes” propõe uma “co-presença” radical, ou seja, uma integração de conhecimentos científicos e não-científicos, através de uma relação dinâmica e sustentável, sem comprometer os diferentes saberes, valorizando sempre o princípio da prudência, que visa dar preferência às formas de conhecimento que garantem uma maior participação dos grupos sociais envolvidos nos processos em questão (SANTOS, 2007).
Pensamos que os sujeitos envolvidos com a Batalha do Coliseu, ora subalternizados pelo sistema de segregação descrito acima, ao decidir transpor as barreiras sociais impostas pelas “linhas abissais” (SANTOS, 2007), se depararam com o próprio mecanismo de defesa desse sistema, que, por sua vez, tenta reafirmar tais barreiras sociais, de modo que seus espaços de poder não possam ser ocupados por tais sujeitos. Nesse sentido, acreditamos que a concepção de uma “ecologia de saberes” (SANTOS, 2007), também se aplica ao caso estudado, uma vez que, apesar de possuírem origens e características distintas, os saberes integrados através dos eventos promovidos pela Batalha do Coliseu apontam para uma necessidade de que esses diferentes tipos de conhecimento, observados no mesmo contexto, possam coexistir, são eles: as linguagens e simbolismos populares e periféricos do rap, juntamente com os saberes tradicionais e problematizações de cunho social e político, recorrentes nos ambientes acadêmicos.
Em sua obra “Modernidade e Holocausto”, Bauman (1998), versa sobre a construção de preconceitos motivados pela heterofobia[5], como racismo e antissemitismo, e seus impactos na sociedade moderna. Para isso, o autor busca compreender como crimes contra a humanidade e os direitos civis, como o Holocausto, vieram a ocorrer. Segundo Bauman (1998), a raiz do problema pode estar no surgimento de uma heterofobia, que constrói, num imaginário coletivo, uma narrativa de ódio entre grupos étnico-raciais distintos, mais precisamente, pela concepção de superioridade de um grupo sobre o outro. Para Bauman (1998), o antissemitismo representa esse tipo de ressentimento contra o povo judeu, através da concepção de que judeus são um grupo “estranho, hostil e indesejável” (p. 37).
De acordo com Bauman (1998, p. 24), “todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável”. Por não se adequar aos padrões morais, estéticos ou cognitivos, o estranho é, para Bauman (1998), um ser considerado indesejável e incômodo para o conjunto da sociedade, devendo, portanto, ser excluído dela. Nesse sentido, o estranho representa, para o autor, um problema a ser resolvido, uma erva daninha a ser eliminada, em prol da harmonia do jardim. Para isso, foi estabelecida uma guerra contra os estranhos e diferentes. Tal projeto de exclusão consistia em marginalizar esses estranhos e escondê-los por trás das paredes dos guetos, das barreiras sociais da exclusão, silenciamento e apagamento histórico, além da impossibilidade de construir espaços para difusão de suas ideias (BAUMAN, 1998).
O conceito de estranho de Bauman (1998) pode ser complementado pela visão de Santos (2002), acerca das linhas abissais, uma vez que os sujeitos considerados estranhos são aqueles que perpassam os limites sociais a si permitidos moralmente, passando a integrar espaços antes não ocupados por seus semelhantes, gerando um processo de “outrificação” do sujeito. Isto posto, consideramos válido ressaltar o pensamento do autor indiano Homi Bhabha (1998), quando considera, nesse contexto de hibridação, que diversidade cultural não é o mesmo que diferença cultural, uma vez que a primeira sugere a dicotomia entre o eu e o outro, o diferente, enquanto, a última sugere um reconhecimento do potencial criativo dessas culturas. Bhabha (1998) argumenta que “a cultura só emerge como um problema, ou problemática, no ponto em que há uma perda de significado na contestação e articulação da vida cotidiana entre classes, gêneros, raças, nações” (BHABHA, 1998, p.63). O que Bhabha propõe é ampliar o debate sobre as diferentes formas de interações culturais, considerando o que impede ou causa as más interpretações sobre as práticas e símbolos oriundos de cada cultura. O autor ressalta que, apesar de bem-intencionadas, muitas das iniciativas nesse sentido tendem a superficializar o debate, evidenciando estereótipos e preconceitos criados a partir de tais interações culturais, tornando tais debates recorrentemente moralistas.
Caminhos metodológicos na pesquisa em folkcomunicação
Neste artigo, evidenciamos a utilização da análise do discurso como método interpretativo para as informações colhidas durante a observação e as entrevistas semiestruturadas direcionadas a membros da organização da Batalha do Coliseu (a quem identificamos apenas como Informantes A, B, C e D). Optamos por seguir a linha da escola francesa da análise do discurso, nos baseando em autores como Courtine (2014) e Pêcheux (2014). Para Pêcheux (2014), a análise do discurso tece uma relação com o materialismo histórico, a linguística e a teoria do sujeito. De acordo com o autor, o materialismo histórico compreende os processos de formação social, a linguística diz respeito à análise dos processos de enunciação, enquanto a teoria do sujeito visa compreender as subjetividades, bem como a relação que o sujeito cria com o simbólico (PÊCHEUX, 2014). Já Courtine (2014) defende que a análise do discurso aborda a textualização do político, visando interpretar politicamente o que é materializado nos textos, através de uma decodificação de seus sentidos, símbolos políticos e as relações de poder neles inerentes. Para o autor, devido ao fato de o texto se tratar de uma construção política, a análise crítica do discurso também acaba por ser uma análise política (COURTINE, 2014).
Nesse contexto, visamos identificar os sentidos e simbolismos presentes no discurso considerando a perspectiva do emissor, portanto vale ressaltar que muitas vezes os artistas tentam convencer a plateia que a sua visão sobre determinada questão ou problema condiz com a verdadeira realidade. Isso porque, de acordo Borges (2012), a construção de um discurso implica também a construção de uma “imagem de si”, ou ethos, no qual o sujeito projeta a maneira como quer que esse discurso seja percebido, tornando-o uma ferramenta para obtenção de uma maior adesão social a esta imagem projetada. Segundo o autor, “o ethos está ligado àquilo que o sujeito quer parecer ser e à imagem de si que esse sujeito cria por intermédio de seu discurso, com o objetivo de conseguir adesão ao mesmo” (BORGES, 2012, p. 90).
Borges (2012) atenta para o fato que, ao se investigar um ethos discursivo, não podemos nos ater somente aos elementos linguísticos do discurso, uma vez que a força dos elementos não-linguísticos e/ou pré-discursivos podem afetar, tanto positiva quanto negativamente, a eficácia do ethos que se deseja construir, afetando também o resultado da análise. Para Borges (2012), a análise daquilo que “parece ser” torna-se relevante, uma vez que as pistas discursivas capturadas a partir dessa intenção podem também ser analisadas e nos levar a uma compreensão mais ampla não só do discurso, mas também das estratégias criadas para se obter adesão às ideias, posicionamentos e argumentações apresentadas no mesmo. Borges (2012) explica que a criação do ethos está diretamente relacionada à mobilização de afetividade do interlocutor, uma vez que esta é uma maneira de alcançar a compreensão do receptor. Tal compreensão pode ser afetada por uma série de fatores, como as escolhas lexicais utilizadas pelo locutor ou até mesmo o timbre da voz. Esses fatores muitas vezes podem fugir do controle do locutor, o que pode resultar no sucesso ou fracasso da transmissão do discurso construído (BORGES, 2012).
Assim, o modelo de análise do discurso em que nos pautamos tem sua base teórica no funcionamento do ato de comunicação, cujo sentido final é o resultado da relação de intencionalidade entre as instâncias de produção e de recepção do ato de comunicação. Logo, se a instância de recepção não estiver interessada na compreensão do que a instância de produção realiza (não aderir a ele), o ato falha, perde seu sentido e o contrato de comunicação está desfeito. A interpretabilidade (o sentido), então, está sempre coadunada à intencionalidade dessas duas instâncias, constituindo-se, portanto, como resultado de uma co-intencionalidade (produtor e receptor) (BORGES, 2012, p. 92).
A partir das reflexões propostas por Borges (2012) sobre a intencionalidade no processo comunicativo, quando trazidas para o contexto da Batalha do Coliseu, passamos a considerar a seguinte reflexão: qual o ethos – ou ethé, no plural – são criados, de maneira consciente ou não, pelos rappers para que se obtenha adesão dos demais indivíduos presentes na batalha aos seus discursos? Além disso, quais elementos podemos destacar nesses discursos para compreender as narrativas construídas nesses processos comunicativos e as práticas sociais que os rodeiam, a partir de relações com as teorias das ciências sociais aqui articuladas. A partir do registro, transcrição e análise dos discursos coletados durante a fase de observação, é possível analisar o conteúdo dessas práticas comunicativas através do método de análise do discurso aqui proposto.
Batalha do Coliseu: uma proposta pós-abissal
Na Batalha do Coliseu, cada MC tem o mesmo tempo para improvisar suas rimas sobre a batida que sai da caixa de som trazida por membros da organização que se revezam em tarefas como reproduzir e pausar a música nos momentos oportunos, anotar os nomes dos participantes em uma folha de caderno, indicando os vencedores até o final dos duelos, explicar as regras para os participantes e mediar o encontro com o público (constantemente convocando a plateia para “fazer barulho” para quem consideram ser o vencedor do duelo) e puxar uma série de palavras de ordem, sendo as mais comuns: “se tu ama essa cultura como eu amo essa cultura grita hip-hop. HIP-HOP!” (escrito conforme pronunciado); “Batalha do Coliseu, conscientiza e fortalece. Conhece? CONHECE! Conhece? CONHECE!” e “Batalha do Coliseu, tem homem e mulher na gangue. O que vocês querem ver? SANGUE!”. Nas palavras de ordem é possível perceber adaptações de frases normalmente ditas em outras batalhas de diversas regiões do país, trazendo elementos da cultura local como a gíria “conhece”, normalmente utilizada entre os natalenses.
Apesar de ser visível a presença de mulheres na Batalha, elas ainda são minoria dentre as pessoas que participam dos duelos, reforçando os pensamentos de Rose (1994), Collins (2006) e Postali (2020), de que existe uma disparidade de gênero no hip-hop. Apesar disso, é possível observar a presença de mulheres, tanto na plateia, quanto na organização da Batalha do Coliseu. A atuação das mulheres na organização da Batalha do Coliseu geralmente se dá nas questões organizacionais da batalha, como realizar registros e atuar como mestres de cerimônia, o que é visto como posição de destaque no contexto. A presença de homens é visualmente mais expressiva, não desconsiderando, porém, a participação do público feminino nos encontros. Mesmo assim, durante todo o período de observação, só foi possível presenciar mulheres duelando em duas ocasiões, na qual em uma, a MC também fazia parte da organização da Batalha do Coliseu.
De acordo com seus idealizadores, a Batalha do Coliseu se caracteriza como uma batalha de sangue, na qual os temas são livres e são permitidos ataques mais incisivos aos seus adversários, inclusive mencionando características físicas, pessoais, eventos do passado e até mesmo segredos que, muitas vezes, parte do público não sabe, tornando-se um fator surpresa durante o duelo. Em batalhas que acontecem na rua é comum que os ataques cheguem ao nível de xingamentos pessoais entre os MCs, embora tal atitude não seja bem-vista em algumas batalhas ou alguns tipos de batalhas como as temáticas e de conhecimento, nas quais são predefinidos temas para as rimas e a desenvoltura dos MCs em construir uma boa narrativa rimada sobre esse tema é que é avaliado, não sendo permitido ataques pessoais ao seu adversário. Apesar de, na Batalha do Coliseu, também ser possível ver os ataques típicos de uma batalha de sangue, muitas vezes, tais ataques não são bem recebidos pela plateia, o que pode acabar prejudicando o desempenho do MC, uma vez que é a plateia ou a comissão de jurados previamente estabelecida que definem os vencedores de cada duelo. Em entrevista com uma das informantes, foi explicitado o seguinte:
A Batalha do Coliseu é uma batalha de sangue, mas você não pode simplesmente ir lá e falar qualquer besteira. Falar “pederastia” ou alguns insultos que, na minha opinião, não cabem na batalha de MC. Eu acho que o MC tem que ter noção de diversos assuntos, seja político ou qualquer que seja, e não só tentar ficando menosprezando o MC que está batalhando com ele (INF-A, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu, informação verbal).
O termo “pederastia” é usado no contexto das batalhas de rap para se referir a rimas com conteúdo ofensivo ou que contenha “baixaria”, como se fala popularmente. Segundo relata a informante, a Batalha do Coliseu se configura como uma batalha de sangue, mas nem toda rima é bem-vinda e principalmente bem-vista pelo público. A hipótese formulada é de que o ambiente influencia nisso, uma vez que, por se tratar de uma batalha que acontece na universidade – cujo público é majoritariamente formado por estudantes universitários, principalmente das áreas das ciências humanas, que geralmente possuem posicionamentos bastante incisivos sobre determinados assuntos, principalmente envolvendo desigualdade social, violência, opressão, e questões associadas debates sobre raça e gênero – seus participantes tendem a se adaptar àquele ambiente e, caso não haja uma adaptação, existe a possibilidade de que ocorra um “choque cultural” (BHABHA, 1998). Ao ser questionada sobre a possível influência do ambiente universitário sobre a forma como a Batalha do Coliseu acontece, a informante relata:
O fato de ser na UFRN influencia por se tratar de um público que simplesmente não aceita qualquer tipo de discurso de ódio, xingamentos ou falas pejorativas. E isso meio que obriga o MC a estudar, se atualizar e a parar de rimar besteira (INF-A, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu, informação verbal).
A razão para esta questão pode estar ligada diretamente ao local onde a Batalha do Coliseu ocorre: o Campus Central da UFRN em Natal (RN). Nesse contexto, os posicionamentos, as ideologias políticas e argumentos utilizados nos discursos podem ser avaliados pela plateia presente, composta, em sua maioria, de estudantes universitários, conforme foi apontado pelos dados obtidos nos questionários. Isso pode, de certa maneira, influenciar a forma como os MCs e demais presentes na batalha se comunicam, uma vez que, conforme argumenta Santos (2007), quando as estruturas tradicionais do saber se sentem ameaçadas, colocam os demais saberes em cheque, subjugando-os. Em outro relato concedido por informante, foram evidenciados os conflitos surgidos a partir dos choques causados pelos discursos.
Tinha muito conflito com o pessoal, que é a galera do Setor II, obviamente, o pessoal de Ciências Sociais, etc. E os MCs eram pessoas que não estudavam na UFRN, né? A maioria tinha muito conflito com a galera, tá entendendo? Muito conflito, da galera que estava assistindo, com as coisas, que porque o pessoal não estava entendendo que aquilo ali era uma batalha de sangue, aquilo ali era um movimento de rua e que ninguém ia sair dali fazendo de lacração, entendeu? Porque a galera não tinha acesso a esse tipo de discussão. Se, para as próprias pessoas que estão dentro da universidade, é um debate ainda complicado, imagine pra quem nem terminou o Ensino Médio (INF-D, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu, informação verbal).
Tais conflitos podem ser compreendidos pela teoria de “choques culturais” de Homi Bhabha (1998), resultado das interações culturais promovidas pelas atividades da Batalha do Coliseu, no contexto do hip-hop. Uma informante relatou que houve ocasiões em que a Batalha do Coliseu quase encerrou suas atividades, devido aos conflitos gerados pelos discursos utilizados por alguns MCs, principalmente os que vinham de fora da universidade. Segundo foi relatado, esses MCs frequentavam outras batalhas da cidade, que acontecem na rua e geralmente são menos restritivas quanto aos discursos adotados pelos MCs, apesar de também haver batalhas que possuem regras bem definidas quanto a essas questões. De acordo com a informante, os conflitos aconteciam mais diante de discursos de ódio ou carregados de preconceito, principalmente os com cunho sexista, racista ou homofóbico.
Teve esse choque de cultura, tá ligado? A gente teve que conversar muito, tanto com a plateia, quanto com os MCs, para ter uma conscientização, porque quando o cara falava, por exemplo, uma coisa homofóbica, a galera gritava, tá ligado? Tipo, não deixava a batalha terminar (INF-B, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu, informação verbal).
Ainda segundo a informante, em algumas ocasiões a comoção foi tamanha que membros da plateia começaram a intervir na batalha para impedir que algum determinado MC que estava proferindo tais discursos pudesse rimar. Por essa razão, buscando uma maneira de solucionar as consequências do “choque cultural” (BHABHA, 1998) provocado entre parte da plateia e dos MCs que frequentavam a Batalha do Coliseu, os organizadores estabeleceram as seguintes regras internas para o evento: a) proibido qualquer tipo de discurso de ódio, seja racismo, homofobia ou o que quer que seja. Em caso de descumprimento, o MC leva uma advertência. Com duas advertências o MC é eliminado; b) Proibido xingamentos, agressões ou palavras de baixo calão sem fundamento; e c) proibido envolver terceiros (mãe, pai, amigo, etc).
A partir dos testemunhos das informantes, pudemos constatar que houve um “choque cultural” (BHABHA, 1998) entre as pessoas vindas de diferentes contextos sociais que se reuniam na Batalha do Coliseu. Foi necessário que houvesse uma mediação, ou ainda, um processo de conscientização coletiva para que se pudesse dar continuidade às atividades da batalha. Do contrário, a ausência de diálogo entre os indivíduos pertencentes a cada uma das instâncias que constituem uma batalha de rap – MCs, organização e público – acabariam por dar fim às atividades da Batalha do Coliseu. No entanto, conforme relatam as testemunhas, aos poucos foi sendo adotada uma consciência coletiva por parte dos participantes da Batalha, de maneira que, posteriormente, os próprios MCs passaram a cobrar uma postura antes exigida apenas por alguns membros da plateia.
Levando isso em consideração, surge a pergunta: como se classifica então a Batalha do Coliseu? Ela é uma batalha de sangue ou uma batalha de conhecimento? Levamos este questionamento para as entrevistas semiestruturadas direcionadas às pessoas informantes consultadas durante esta pesquisa. Em suma, as respostas das diferentes informantes igualmente tenderam a se construir de uma maneira um pouco vaga, mas sempre direcionando para o pensamento de que a configuração da Batalha do Coliseu está para algum lugar entre a batalha de sangue e a batalha de conhecimento, conforme podemos constatar no exemplo a seguir:
Se eu fosse falar da Batalha do Coliseu, eu acho que ela, em particular, sempre foi uma coisa que ficou meio perdida, porque nunca foi esclarecido muito isso no início, sabe? “O que vocês querem? Vocês querem uma batalha de sangue propriamente dita, vocês querem uma batalha temática?” Porque dava pra fazer. “Vocês querem uma batalha do conhecimento?” […]. Eu acho que o que a galera tentava se propor era ser uma batalha de sangue. Mas eu não sei isso ficava tão esclarecido na relação com o público. Porque um evento como uma batalha é uma relação tripla: é uma relação dos MCs, público e organização. E se qualquer uma dessas coisas for ignorada a batalha não anda direito. Se não há um diálogo com o público, a batalha não anda. Se não há um diálogo com os MCs, a batalha não anda. Se não há um diálogo com a organização, a batalha não anda (INF-C, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu, informação verbal).
No entanto, apesar de tal processo de reconfiguração estrutural ter tomado início ainda em 2018, ano que a Batalha do Coliseu iniciou suas atividades, os conflitos ainda persistem e tendem a acontecer em uma edição ou outra. Observando esse fenômeno a partir dos pensamentos elucidados no capítulo teórico desta dissertação, é possível afirmar que tais conflitos persistem, pois quando o “estranho” (BAUMAN, 1998) atravessa a “linha abissal” (SANTOS, 2002), há a possibilidade de ocorrer um “choque cultural” (BHABHA, 1998). Ou seja, retomando o pensamento Santos (2002), podemos considerar que o MC, que comumente vem da periferia e/ou frequenta outras batalhas da cidade que acontecem na rua, ao atravessar a “linha abissal” (SANTOS, 2002) que corta o mapa urbano, dividindo-o em zonas consideradas desenvolvidas e subdesenvolvidas, torna-se um “estranho” (BAUMAN, 1998), a partir do momento que atravessa essas linhas abissais para ocupar um espaço de poder como a universidade pública. Esse atravessamento também pode ser interpretado a partir de ótica da teoria da folkcomunicação, de Beltrão (1971), uma vez que o MC pode ser enxergado como um líder de opinião, ou um “líder folk”, que transita entre os espaços marginalizados e não-marginalizados da sociedade, realizando uma tradução de seus discursos, de forma que estes sejam compreendidos em ambas as esferas (BELTRÃO, 1971).
As adaptações sofridas pela configuração das batalhas, bem como o comportamento e discursos dos seus participantes, indicam uma reconfiguração dos aspectos culturais relacionados à manifestação cultural em questão – que são as batalhas de rap – uma vez que os elementos simbólicos e culturais trazidos de um contexto não-local, acabam se adaptando às características intrínsecas ao meio local em que se realizam. Da mesma forma que as diferenças culturais entre os participantes envolvidos em um mesmo contexto provoca a ocorrência desses “choques culturais” (BHABHA, 1998), o que no caso da Batalha do Coliseu, resultou em um processo de diálogo estabelecido entre as três instâncias de grupos participantes da batalha, bem como a reformulação de regras para garantir a continuidade do evento, evitando ao máximo, os conflitos gerados por esse choque.
O que pudemos observar, a partir de uma análise dos dados colhidos, é que, apesar dos conflitos gerados pelos “choques culturais” (BHABHA, 1998) promovidos entre os participantes da Batalha do Coliseu, dadas as suas diferenças de contextos social, em um espaço de poder como a UFRN[6], a partir de uma “ecologia de saberes” (SANTOS, 2007), é possível que os saberes oriundos desses diferentes contextos sociais coexistam, em virtude da promoção do progresso social.
Considerações finais
Ao final deste trabalho, consideramos que o objetivo principal, definido no início da pesquisa foi alcançado, uma vez que, a partir das análises propostas através da combinação de metodologias e técnicas de pesquisa, pudemos constatar que as práticas sociais e discursivas em batalhas de rap podem sofrer influência do ambiente de realização quando este ambiente se trata de um espaço universitário. Percebeu-se, através dos dados coletados, que a Batalha do Coliseu, por acontecer nas instalações do campus universitário da UFRN, em Natal (RN), acabou sofrendo algumas influências do seu espaço de realização, afetando as práticas sociais e comunicacionais realizadas nesses eventos, em detrimento de outras batalhas de rap que acontecem em outros ambientes urbanos e/ou de periferia.
Para além da discussão sobre qual definição específica de categoria pode ser atribuída à Batalha do Coliseu, o que foi possível perceber, através da observação, registros bem como a análise dos registros e aplicação de entrevistas e questionários, foi ocorrência de uma reconfiguração no formato habitual da Batalha do Coliseu em relação aos tipos de batalhas já conhecidos. Devido ao seu local de realização não usual, um campus universitário de uma instituição pública de ensino, em contrapartida às demais batalhas que geralmente acontecem na rua, foi necessário fomentar um diálogo entre a organização da batalha, seu público e os MCs que dela participavam, para que houvesse uma conscientização por parte dos indivíduos de que havia ali um choque que necessitava ser problematizado e superado para que a batalha pudesse acontecer sem interrupções e de maneira plena. Nesse contexto, foram definidas regras para evitar que discursos delicados sensibilizassem a plateia, gerando novos conflitos, o que, por sua vez, fez com que os MCs passassem a construir mais cuidadosamente seus discursos, visando evitar novos conflitos.
Por essa razão, consideramos que a resposta para a pergunta-problema, estabelecida no início deste artigo, não só foi respondida, como também deu surgimento a novos questionamentos, tais como: Quais são as práticas discursivas que acontecem neste tipo de manifestação cultural? Qual o perfil socioeconômico dos indivíduos participantes? Existe diferenças de contexto social? Qual o motivo da necessidade de uma reformulação desses discursos? Como podemos interpretar este fenômeno? Constatamos que, devido às suas características, não só as batalhas de rap podem ser consideradas uma forma de comunicação social de caráter contra-hegemônico, como também existe a possibilidade de que a realização de atividades relacionadas a este tipo de manifestação cultural pode sim sofrer influência do espaço de realização, quando considerados os espaços de convívio social do ambiente universitário em uma instituição pública de ensino.
A partir da reflexão proposta neste estudo, tornou-se possível esclarecer questões acerca da relação que o nosso objeto de estudo desenvolve com os espaços em que se realiza, bem como investigar suas origens e motivações político-ideológicas e relacioná-las com as teorias das ciências sociais e da comunicação aqui articuladas. Dessa forma, consideramos que pudemos compreender as batalhas de rap como formas de comunicação popular contra-hegemônica e contribuir, de alguma forma, com os avanços dos estudos sobre rap no contexto das pesquisas em comunicação midiática, assim como no desenvolvimento das pesquisas no contexto dos “Hip Hop Studies” como um todo. O que se espera é que este trabalho também sirva de referências para outras pesquisas, inspirando outros pesquisadores, impactando-os de alguma forma, tendo em vista o fomento e estreitamento da relação entre o hip-hop e seus elementos com as dinâmicas tradicionais de educação formal.
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Notas
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