Dossiê

Comunicação, cultura e oralidade no Batuque Gaúcho: reflexões teóricas sobre o rito de axé de fala como processo comunicacional batuqueiro[1]

Communication, culture and orality in Batuque Gaúcho: theoretical reflections on the axé speech rite as a batuque communicational process

Comunicación, cultura y oralidad en Batuque Gaúcho: reflexiones teóricas sobre el rito del habla axé como proceso comunicacional batuqueiro

Sérgio Gabriel Fajardo 2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Rudimar Baldissera [3]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Comunicação, cultura e oralidade no Batuque Gaúcho: reflexões teóricas sobre o rito de axé de fala como processo comunicacional batuqueiro[1]

Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 20, núm. 45, pp. 127-144, 2022

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepción: 15 Octubre 2022

Aprobación: 01 Noviembre 2022

Resumo: Neste texto, objetivamos problematizar conceitualmente o rito de “axé de fala” como um rito de passagem legitimador de estatutos nas organizações do Batuque Gaúcho. Para isso, em perspectiva de interfaces, empreendemos revisão de literatura sobre a afro-religião/tradição Batuque Gaúcho, organizações/terreiros, folkcomunicação, comunicação e cultura organizacional, ritos de passagem e rito de “axé de fala”. Como principais inferências temos que, a um só tempo, o rito estudado se materializa, enquanto processo do comunicacional batuqueiro, legitimando estatuto e cumprindo papel para validar a presença do orixá como manifestação do sagrado, para destacar as habilidades das lideranças batuqueiras e para colocar em evidência, na comunidade batuqueira, as organizações/terreiros que realizam o rito de “axé de fala”.

Palavras-chave: Comunicação, Oralidade, Comunicacional batuqueiro, Rito de “axé de fala”, Comunidade batuqueira.

Abstract: In this text, we aim to conceptually problematize the rite of "axé of speech" as a rite of passage legitimating statutes in the organizations of Batuque Gaúcho. For this, in a perspective of interfaces, we undertook a literature review on afro-religion/tradition Batuque Gaúcho, organizations/terreiros, folk communication, communication and organizational culture, rites of passage and rite of "axé of speech". As main inferences we have that, at the same time, the studied rite materializes as a process of batuque communicational, legitimizing status and fulfilling a role to validate the presence of the orixá as a manifestation of the sacred, to highlight the abilities of the batuque leaders and to put in evidence, in the batuque community, the organizations/terreiros that perform the rite of "axé of speech".

Keywords: Communication, Orality, Batuqueiro communication, "Axé of speech" rite, Batuqueira community.

Resumen: En este texto, pretendemos problematizar conceptualmente el rito del "axé de la palabra" como rito de paso legitimador de estatutos en las organizaciones de Batuque Gaúcho. Para ello, en una perspectiva de interfaces, realizamos una revisión bibliográfica sobre la afrorreligión/tradición Batuque Gaúcho, las organizaciones/terreiros, la comunicación folclórica, la comunicación y la cultura organizacional, los ritos de paso y el rito del "axé de la palabra". Como principales inferencias tenemos que, al mismo tiempo, el rito estudiado se materializa como un proceso comunicacional del batuque, legitimando el estatus y cumpliendo un papel de validación de la presencia del orixá como manifestación de lo sagrado, de resaltar las habilidades de los líderes del batuque y de poner en evidencia, en la comunidad del batuque, las organizaciones/terreiros que realizan el rito del "axé de la palabra".

Palabras clave: Comunicación, Oralidad, Comunicación Batuqueiro, Rito del "axé de la palabra", Comunidad Batuqueira.

Comunicação, cultura e oralidade no Batuque Gaúcho: reflexões teóricas sobre o rito de axé de fala como processo comunicacional batuqueiro[1]

10.5212/RIF.v.20.i45.0007

Sérgio Gabriel Fajardo[2]

Rudimar Baldissera[3]

Submetido em: 15/10/2022

Aceito em: 01/11/2022

RESUMO

Neste texto, objetivamos problematizar conceitualmente o rito de “axé de fala” como um rito de passagem legitimador de estatutos nas organizações do Batuque Gaúcho. Para isso, em perspectiva de interfaces, empreendemos revisão de literatura sobre a afro-religião/tradição Batuque Gaúcho, organizações/terreiros, folkcomunicação, comunicação e cultura organizacional, ritos de passagem e rito de “axé de fala”. Como principais inferências temos que, a um só tempo, o rito estudado se materializa, enquanto processo do comunicacional batuqueiro, legitimando estatuto e cumprindo papel para validar a presença do orixá como manifestação do sagrado, para destacar as habilidades das lideranças batuqueiras e para colocar em evidência, na comunidade batuqueira, as organizações/terreiros que realizam o rito de “axé de fala”.

PALAVRAS-CHAVE

Comunicação; Oralidade; Comunicacional batuqueiro; Rito de “axé de fala”; Comunidade batuqueira

Communication, culture and orality in Batuque Gaúcho: theoretical reflections on the axé speech rite as a batuque communicational process

ABSTRACT

In this text, we aim to conceptually problematize the rite of "axé of speech" as a rite of passage legitimating statutes in the organizations of Batuque Gaúcho. For this, in a perspective of interfaces, we undertook a literature review on afro-religion/tradition Batuque Gaúcho, organizations/terreiros, folk communication, communication and organizational culture, rites of passage and rite of "axé of speech". As main inferences we have that, at the same time, the studied rite materializes as a process of batuque communicational, legitimizing status and fulfilling a role to validate the presence of the orixá as a manifestation of the sacred, to highlight the abilities of the batuque leaders and to put in evidence, in the batuque community, the organizations/terreiros that perform the rite of "axé of speech".

KEY-WORDS

Communication; Orality; Batuqueiro communication; "Axé of speech" rite; Batuqueira community.

Comunicación, cultura y oralidad en Batuque Gaúcho: reflexiones teóricas sobre el rito del habla axé como proceso comunicacional batuqueiro

RESUMEN

En este texto, pretendemos problematizar conceptualmente el rito del "axé de la palabra" como rito de paso legitimador de estatutos en las organizaciones de Batuque Gaúcho. Para ello, en una perspectiva de interfaces, realizamos una revisión bibliográfica sobre la afrorreligión/tradición Batuque Gaúcho, las organizaciones/terreiros, la comunicación folclórica, la comunicación y la cultura organizacional, los ritos de paso y el rito del "axé de la palabra". Como principales inferencias tenemos que, al mismo tiempo, el rito estudiado se materializa como un proceso comunicacional del batuque, legitimando el estatus y cumpliendo un papel de validación de la presencia del orixá como manifestación de lo sagrado, de resaltar las habilidades de los líderes del batuque y de poner en evidencia, en la comunidad del batuque, las organizaciones/terreiros que realizan el rito del "axé de la palabra".

PALABRAS-CLAVE

Comunicación; Oralidad; Comunicación Batuqueiro; Rito del "axé de la palabra"; Comunidad Batuqueira.

Apontamentos iniciais – AlupôBará, Laroyê Exu!

Neste estudo teórico-exploratório, o comunicacional batuqueiro, medulado amplamente pela oralidade, é compreendido como os processos de comunicação/interação que se materializam nas/pelas organizações do Batuque Gaúcho (FAJARDO; BALDISSERA,2021). Considerando a complexidade dessas organizações e dos seus processos comunicacionais/culturais, fundamentalmente por se estruturarem pela oralidade, problematizamos aspectos e significações do comunicacional batuqueiro no rito de “axé de fala”, uma vez que esse ritual desponta como uma das cerimônias de maior relevância na cultura batuqueira (CORRÊA, 2016).

Inicialmente, indicamos a compreensão de organização que adotamos para refletir sobre os terreiros batuqueiros, atentando sempre para o seu caráter religioso. Partimos da concepção de Uribe (2009) de que organização é uma ordenação social, que é passível de gestão e que possui objetivos/finalidades traçados. Assumindo, nessa perspectiva, que as organizações se formulam como construções sociais, inclusive que não se limitam às suas próprias finalidades, Uribe (2009) afirma que para sua existência (manutenção, permanência, transformações etc.) é fundamental que existam interações e intensões entre os sujeitos imbricados nesses espaços. Concebemos, também, as organizações como sistemas vivos (BALDISSERA, 2009) que são/estão, sob diferentes relações, interdependentes do seu contexto/entorno eco sociocultural.

Apesar de não nos atermos a refletir sobre o Batuque Gaúcho enquanto afro-religião/tradição, para que possamos refletirmos sobre a comunidade batuqueira, pontuamos, mesmo que sucintamente, algumas das suas características. Florescendo no território riograndense na primeira metade do século XIX, na região de Rio Grande e Pelotas, a partir dos saberes de escravos bantos e sudaneses que foram traficados forçadamente para laborar nas estâncias de charque (CORRÊA, 2016), a afro-religião Batuque Gaúcho é uma “tradição de matriz africana” (SILVEIRA, 2020). Atualmente, é praticada por negros/as, não-negros/as, homens, mulheres, LGBTs (dentre outros sujeitos), e se constitui por meio da amálgama dos conhecimentos de diferentes nações africanas: Jejê, Nagô, Oyó, Cabinda e Ijexá. Ao todo, são cultuados doze orixás no Batuque Gaúcho: Bará, Ogum, Iansã, Xangô, Odé, Otim, Obá, Ossanha, Xapanã, Oxum, Iemanjá e Oxalá. Essas divindades são consideradas como masculinos e femininos e possuem diferentes relações entre si, tanto harmoniosas quanto conflituosas, conforme narram seus mitos e lendas. Cada orixá possui características próprias e influência, nesse sentido, sob o comportamento dos sujeitos que por eles são regidos. Oxum, por exemplo, é orixá da feminilidade, logo, é natural, na cosmovisão batuqueira (CORRÊA, 2016), que os sujeitos regidos por ela possam expressar, ou não, trejeitos, sexualidades e gêneros para além do masculino heterossexual, pois carregam consigo grande carga do “feminino”. Isso demonstra, a partir de concepções que partem do campo do sagrado (especialmente dos mitos e lendas sobre os orixás, que orientam a vida batuqueira), que diferentes tons e cores tecem a cultura dos batuqueiros, das organizações batuqueiras e da comunidade batuqueira.

Conforme as especificidades de sua ambiência, compreendemos as organizações batuqueiras como espaços coletivos de resistência (CORRÊA, 2016) e de reinvenção de mundo (RUFINO, 2019). Consideramos, conjuntamente, que “o terreiro se inscreve como um axis mundi, um local que liga o mundo material ao mundo espiritual e também um imago mundi” (SILVEIRA, 2020, p. 91), principalmente porque não se delimita ao seu espaço físico, revelando-se como campo inventivo que emerge pela criatividade e por meio do encantamento do tempo/espaço[5] (RUFINO, 2019). Em suma, destacamos que as organizações batuqueiras são estruturadas nas interações dos sujeitos batuqueiros, caracterizadas, principalmente, por serem espaços de experiências coletivas, no qual se relacionam diferenças que formulam a comunidade batuqueira como uma unidade (SILVA NETO, 2022).

As relações que se materializam nas/pelas organizações batuqueiras são, de distintas maneiras, impactadas pelos processos orais do comunicacional batuqueiro. Os processos do comunicacional batuqueiro são orientados pelos princípios de Bará e de Exu (a quem pedimos licença ao iniciar este texto), senhores de toda comunicação/interação, seja entre humanos, seja entre humanos-orixás. Nos terreiros, a oralidade assume outras particularidades ao ter origem no campo do sagrado (fator que a complexifica e a potencializa), uma vez que a palavra é encantada e tem poder realizador.

Para mais, destacamos o fato de o Rio Grande do Sul despontar, nos censos do IBGE (2000; 2010), como o estado brasileiro onde há mais sujeitos que se declaram afro-religiosos, e de Porto Alegre ser considerada a capital mais afro-religiosa do Brasil no Novo mapa das religiões (NERI, 2011), dados esses que, apesar de subestimados (TADVALD, 2016), demonstram a importância da cultura do Batuque Gaúcho no seu contexto local/regional. Isto posto, nas aproximações teóricas aqui realizadas, acreditamos que “[...] a análise da religiosidade afro-gaúcha sob o prisma da Folkcomunicação é território fértil para novas reflexões no campo” (HOHLFELDT; KROPIDLOSKI, 2021, p. 29). Diante disso, sob o objetivo de problematizar conceitualmente o rito de “axé de fala” (cerimônia que abordamos na terceira parte deste texto), estimamos contribuir com a gama dos conhecimentos comunicacionais/culturais sobre a comunidade batuqueira, pois a falta de dados e de fontes específicas prejudicam a produção científica sobre o Batuque Gaúcho (TADVALD, 2016; CORRÊA, 2016).

Quanto a estrutura, indicamos que o texto, além deste item introdutório, será composto por quatro seções: no segundo e no terceiro item, refletimos conceitualmente sobre comunicação e folkcomunicação, comunicação organizacional, cultura organizacional, ritos de passagem e, por fim, sobre o rito de “axé de fala”. Por sua vez, a partir das reflexões desenvolvidas, na quarta e última seção indicamos nossas inferências.

Reflexões conceituais sobre os processos comunicacionais e culturais

Na reflexão sobre o comunicacional batuqueiro, frisamos que compreendemos a comunicação como “processo de construção e disputa de sentidos” (BALDISSERA, 2004, p. 128). Parece frutífero também, para refletirmos sobre a oralidade do comunicacional batuqueiro, recorrermos a Watzlawick, Beavin e Jackson (2007) que, ao estudarem a pragmática da comunicação humana, afirmam que todo comportamento humano, em situação de presença (quando há dois ou mais sujeitos em interação), é, também, comunicação. Mais precisamente: “não existe um não-comportamento, ou, ainda em termos mais simples, um indivíduo não pode não se comportar” (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 2007, p. 44). Para os autores (2007, p. 46), a comunicação é assumida como “[...] um complexo fluído e multifacetado de numerosos modos de comportamentos [...]”. Além disso, destacamos, conforme afirma Braga (2017, p. 21), que a comunicação não pode ser tomada apenas como os processos exitosos, satisfatórios, mas, sim, como “[...] toda troca, articulação ou tensionamento entre grupo, entre indivíduos, entre setores sociais [...]”, que é marcada por desencontros e conflitos que agregam interesses de variadas ordens. Nessa perspectiva, os processos comunicacionais são, frequentemente, canhestros (BRAGA, 2017).

Nos parece fértil, também, cotejarmos alguns aspectos sobre Folkcomunicação. Concisamente, esse conceito comporta, de acordo com Beltrão (2014), os processos e manifestações, direta ou indiretamente, ligados ao folclore. O autor ainda destaca que há manifestações folkcomunicacionais no âmbito da oralidade, como é o caso dos cantadores (BELTRÃO, 2014), ao quais agregamos, ao pensarmos sobre os processos do comunicacional batuqueiro, por exemplo, os tocadores de tambores e entoadores dos cânticos sagrados, os griôs com suas práticas de retórica etc. Retomando Hohlfeldt e Kropidloski (2021, p. 31), consideramos, neste estudo, que “a Folkcomunicação [...] da conta de explicar as religiões afro-gaúchas e suas liturgias enquanto narrativas e formas não convencionais de contar histórias”. Como elementos que contribuem nesses processos, os autores (2021, p. 32) destacam o uso de sinetas, as danças, as cores e as vestimentas, haja vista que “o conjunto formado por esses elementos, torna-se uma narrativa, conta uma história, e decodifica os códigos”.

Sobre os processos comunicacionais/culturais das organizações batuqueiras, Corrêa (2016, p. 66) afirma que os batuqueiros se comunicam “[...] mutuamente através de certos símbolos (do campo da linguagem falada ou objetos), que passam despercebidos ou revelam-se totalmente desconhecidos [...]” para quem não compõe a comunidade batuqueira. Além da oralidade, o comunicacional batuqueiro é medulado também por danças, gestos, símbolos e performances próprias da comunidade batuqueira, comportamentos esses que restringem o acesso ao comunicacional/cultural das suas significações para quem não é iniciado/praticante. Com interações próprias da cultura batuqueira, para além da perspectiva dos atos comunicacionais, a cultura organizacional batuqueira é tecida instituindo fronteiras e domínio de territórios com restrições de acesso para os não-batuqueiros. Ainda sobre o corpo como potência no comunicacional batuqueiro, acionamos Sodré (2017) quando diz que o simbolismo coletivo dos terreiros é fortalecido nos gestos, nos comportamentos e, inclusive, nas inflexões microcorporais. Assim: “os cumprimentos rituais são elementos que frisam os papéis e posições sociais, [...] reforçando os princípios de autoridade e hierarquia que compõem a estrutura do grupo” (CORRÊA, 2016, p. 116). Notamos, nesses aspectos, que a comunicação organizacional dos terreiros batuqueiros, além da complexidade com que se apresenta ao usar, amplamente, de processos orais (fecundos na sua cultura afro-centrada), é transpassada por diferentes processos, transacionando distintas significações (próprias do ser batuqueiro) na cultura organizacional.

Nesse caminho, compreendemos por comunicação organizacional os “processos de construção e disputa de sentidos no âmbito das relações organizacionais” (BALDISSERA, 2008b, p. 169). Sob os pressupostos do Paradigma da Complexidade (MORIN, 1999, 2001; dentre outros), Baldissera (2009) ratifica que ela não é limitada aos processos formais que partem da organização para os sujeitos, ilustrando que a comunicação organizacional é da qualidade do que é fluído, não está dado/fixado, está para o devir e se realiza em processos que só podem ser percebidos no seu acontecer. Assim, ela comporta “[...] todos os processos de comunicação que compreenderem a circulação/disputa de algum capital simbólico e/ou sentidos referentes à organização” (BALDISSERA, 2009, p. 07). Nessa perspectiva, é “no constante interagir entre sujeitos tensionados em processos de comunicação, que os sentidos – significados em potencial – são construídos e disputados”, uma vez que “[...] desses/nesses processos, parte dos sentidos possíveis são selecionados e inclinam-se a ter certa estabilidade assumindo a forma de teia/rede de significados, materializados em valores, crenças, padrões e rituais, dentre outras” (BALDISSERA, 2009, p. 08).

Nesses processos de construção e disputas de sentidos, observamos que, constante e diariamente, os sujeitos atualizam interações nas organizações batuqueiras, via processos comunicacionais, para manutenção e/ou transformação da sua cultura e da cultura organizacional. Sob à luz das concepções de Geertz (1989) e de Morin (2001), neste estudo, “a cultura organizacional é compreendida/explicada como teias de significação do subsistema organização, (re)tecida por sujeitos que, ao (re)tecê-la, prendem-se a ela (complexus[7])” (BALDISSERA, 2011, p. 57).

Ressaltamos, com base no exposto, que a cultura organizacional é (re)tecida a partir de interações comunicacionais que os sujeitos estabelecem nas organizações, haja vista que nesses processos de (re)tecimentos, no qual ‘costuram-se’ e ‘desatam-se’ significados, alguns possuem mais poder de influência que os demais, como é o caso dos pais e mães de santo, líderes na comunidade batuqueira. Portanto, a comunicação e a cultura se manifestam/materializam em relação de interdependência, pois que a “cultura organizacional marca e regenera a comunicação organizacional, manifestando-se nela e através dela e, pela comunicação, os conteúdos são ‘descolados/transportados’ para regenerar a própria cultura” das organizações e dos sujeitos (BALDISSERA, 2011, p. 61). Admitimos, assim, que os processos do comunicacional batuqueiro (com suas diferentes significações), no âmbito da comunicação organizacional, são basilares na estruturação, conformação, manutenção e/ou transformação da cultura organizacional batuqueira, pois é por meio de processos comunicacionais que ela se estrutura como rede de significação (tecida com influências dos mitos, dos ritos, das lendas e dos simbolismos, bem como nas interações próprias dos batuqueiros).

Aqui, importa, ainda, acionarmos as reflexões de Schein (2009, p. 23), quando afirma que, em processo de tensionamento descritivo e estrutural, a cultura de um determinado grupo/organização “pode ser analisada em vários níveis diferentes”. O autor destaca três diferentes níveis para analisar a cultura organizacional: dos “artefatos”, das “crenças e valores” e das “suposições básicas”. O nível dos artefatos “inclui todos os fenômenos que alguém vê, ouve e sente quando encontra um novo grupo com uma cultura não familiar” (SCHEIN, 2009, p. 24). Segundo o autor, o clima e comportamento do grupo/organização são os artefatos mais nítidos desse nível. No segundo nível, das crenças e valores, inclui-se as filosofias, as estratégias etc., sendo que “certos valores são confirmados apenas pela experiência social compartilhada de um grupo” (SCHEIN, 2009, p. 27). Enfatizando a interdependência desses níveis, Schein (2009, p. 27) sinaliza que as crenças e valores do grupo “predirão grande parte do comportamento que pode ser observado no nível dos artefatos”; porém, somente os aspectos mais visíveis do segundo nível, depois de serem testados e se tornarem contínuos, irão ser repaginados como suposições básicas do grupo (SCHEIN, 2009).

Afirmando ser o nível mais profundo da cultura organizacional, Schein (2009) diz que as suposições básicas do grupo são aspectos minimamente debatidos e, por essa razão, dificilmente mudam/são transformados. Ao se legitimarem, “as suposições básicas compartilhadas que formam a cultura de um grupo podem ser imaginadas no plano individual e do grupo, como mecanismos de defesa cognitivos e psicológicos que permitem ao grupo continuar a funcionar” (SCHEIN, 2009, p. 30). Compreendemos, assim, que o poder da cultura organizacional batuqueira, que impacta direta e indiretamente a comunidade batuqueira, emerge em razão das suposições básicas do grupo circularem via processos do comunicacional batuqueiro, sendo mutuamente reforçadas/compartilhadas pelos sujeitos batuqueiros. Em sua perspectiva, Schein (2009, p. 16) afirma que a cultura organizacional é, portanto,

Um padrão de suposições básicas compartilhadas, que foi aprendido por um grupo à medida que solucionada seus problemas de adaptação externa e de integração interna. Esse padrão tem funcionado bem o suficiente para ser considerado válido, e por conseguinte, para ser ensinado aos novos membros como modo correto de perceber, pensar e sentir-se em relação a esses problemas.

Por fim, ainda consoante o autor (2009, p. 34), destacamos a centralidade que o “líder” assume na cultura organizacional, sendo ele a “fonte das crenças e valores que levam um grupo a lidar com seus problemas internos e externos”. Ao propor ideias assertivas e que funcionam, o que antes eram pressupostos subjetivos do líder, acabam se tornam suposições básicas do grupo (SCHEIN, 2009). Tanto o poder simbólico[8] que é atribuído ao líder como a protagonização como porta-voz autorizado, reafirmam a importância que esses sujeitos possuem na cultura organizacional, haja vista que “sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato [...]” (BOURDIEU, 2008, p. 89). Portanto, o poder dos líderes é obstinado, segundo Schein (2009, p. 34), a “[...] influenciar os níveis mais profundos da cultura”.

É no contexto dos processos do comunicacional batuqueiro, que ao proporcionar que sentidos sejam construídos e disputados por diferentes sujeitos acaba, conjuntamente, incidindo na rede de significação da cultura organizacional batuqueira (o todo), bem como na cultura subjetiva dos sujeitos batuqueiros (as partes), que estimamos refletir sobre os aspectos do comunicacional batuqueiro no rito de “axé de fala” como rito de passagem que legitima estatuto. Até porque, retomando a perspectiva folkcomunicacional, é por meio “[...] dos pressupostos civilizatórios presentes nas festas, nos cantos e nos mitos religiosos” que os sujeitos batuqueiros concebem, comunicam e compartilham seus “[...] códigos de morais e de conduta e reproduzirão a vida em sociedade” (HOHLFELDT; KROPIDLOSKI, 2021, p. 33). Destarte, a seguir, discorremos sobre conceituações de rito de passagem e do rito de “axé de fala”.

Rito de passagem: o rito de “axé de fala” como processo comunicacional batuqueiro

Conforme Rivière (1996), a vida cotidiana sofre atravessamentos de inúmeros tipos de rituais (profanos e/ou sagrados), desde os microrrituais que acontecem na infância até os ritos que emergem na vida profissional, acadêmica, religiosa etc. Para o autor, os ritos são:

[...] considerados como conjunto de condutas individuais ou coletivas, relativamente codificadas, com um suporte corporal (verbal, gestual, ou de postura), com caráter mais ou menos repetitivo e forte carga simbólica para seus atores e, habitualmente, para suas testemunhas, baseadas em uma adesão mental, eventualmente não conscientizada, a valores relativos a escolhas sociais julgadas importantes e cuja eficácia esperada não depende de uma lógica puramente empírica que se esgotaria na instrumentalidade técnica do elo causa-efeito (RIVIÈRE, 1996, p. 30).

Rivière (1996, p. 165-166) também diz que “a natureza do rito é utilizar códigos de comunicação para exprimir uma emoção, influenciar o público e produzir uma catarse que é o efeito simbólico procurado por aqueles que, inconscientemente, hipervalorizam a socialidade [...]”. Baldissera (2000, p. 87) salienta que, para Gennep (1978), o papel do rito “[...] é de ser um metacomentário social”, haja vista que “[...] pelo fato de se revestir de um caráter coletivo e de carga afetiva contida nos símbolos, o rito, como processo, comporta duração e variabilidade”. Assim, compreendemos que os ritos, dentre outros aspectos, se revelam enquanto processos do comunicacional batuqueiro, formulados, principalmente, via oralidade e a partir de ações simbólicas e repetitivas. Pontuamos que, apesar de reconhecemos as especificidades do rito de “axé de fala” em prol do sagrado (pois que é voltado ao orixá, e não ao ser batuqueiro, como veremos a seguir), apresentamos, aqui, algumas teorizações que tomam por base outros modelos, mas somam às nossas reflexões.

Dentre os ritos, refletiremos especialmente sobre os ritos de passagem que, ao demarcarem passagens de um tempo/espaço para outro, só podem obter "[...] sentido se modifica um estatuto e se a passagem é irreversível [...]” (RIVIÈRE, 1996, p. 131). Em Baldissera (2000, p. 81) observou-se que, segundo Gennep (1978), os ritos de passagem, que compreendem três fases (a preliminar, a liminar, e a pós-liminar), são permeados por “sequências cerimoniais” e são “[...] caracterizados por serem celebrações que põem em relevo as mudanças de um estado a outro”. Na primeira fase (a preliminar), Rivière (1996, p. 42) entende que há “[...] separação e ruptura em relação ao mundo profano”. Sabemos também que nesse momento inicial há “ritos de separação”, contexto no qual tem-se “[...] uma ruptura em relação à situação ou estado que a pessoa se encontrava, transformando-a em uma pessoa ‘fora da norma’, inserida em um tempo [...] fora do normal” (BALDISSERA, 2000, p. 81-82).

Por sua vez, na segunda fase (a liminar) ocorre uma “marginalização em um espaço sagrado e formação para uma nova maneira de ser” (RIVIÉRE, 1996, p. 43). Nessa fase intermediária, os sujeitos “são colocados à parte, perdem suas especificidades - seu nome, seu passado - e ainda não estão integrados a um outro grupo” (RIVIÉRE, 1996, p. 135). Também sob a nomenclatura de “rito de margem”, neste momento o sujeito é afastado do seu grupo e é posto em uma espécie de liminaridade social, a fim de receber “instruções especiais”, sendo que esse momento se caracteriza pela “[...] ambiguidade, pois os liminares não se situam nem aqui nem lá” (BALDISSERA, 2000, p. 82).

Por fim, na última fase (a pós-liminar) temos a “ressurreição simbólica e agregação solene na comunidade, com um estatuto superior” (RIVIÈRE, 1996, p. 42). Segundo o autor (1996, p. 43), após passar pela “morte simbólica” que institui uma separação com o passado, o sujeito é recolocado na estrutura social portando um novo estatuto. Contudo, frisamos que para que a passagem realmente ocorra, é fundamental que o sujeito “[...] supere todas as ‘provações’ às quais é submetido” (BALDISSERA, 2000, p. 85). Nesta etapa, Baldissera (2000, p. 85) afirma que, segundo Gennep (1978), são os “ritos de agregação/pós-liminares” que constituem a etapa na qual “ocorre a integração ou reintegração do indivíduo no grupo”, portando “um estado estável que lhe imputa determinados direitos e obrigações”. Assim, se pensarmos no âmbito organizacional dos terreiros, o sujeito ritualizado passa a ocupar um diferente lugar (no caso do sujeito que é iniciado, por exemplo, e começa a portar, de alguma forma, um posto na hierarquia da organização batuqueira em que está filiado), sendo que só pode portar o novo estatuto por ter passado, exitosamente, pelo rito de iniciação (cumprindo todos os seus processos e preceitos que orientam sua nação). Portanto, “a ideia contida nos ritos de passagens é a de que a pessoa, de alguma maneira, sai de um mundo anterior para entrar em um mundo novo” (BALDISSERA, 2000, p. 85).

Recorremos também, mesmo que brevemente, às proposições de Bourdieu (2008), que julga que os ritos de passagem seriam melhor definidos se considerados como “ritos de instituição”, já que operam por instituir diferenças. Melhor dizendo: “[...] qualquer rito tende a consagrar ou legitimar, isto é, fazer desconhecer como arbitrário e a reconhecer como legítimo e natural um limite arbitrário, ou melhor, a operar solenemente [...] uma transgressão dos limites constitutivos da ordem social” (BOURDIEU, 2008, p. 98). Sinalizando que a principal característica do rito é instituir uma linha entre ritualizados e não-ritualizados, característica essa que em geral passa despercebida, o autor (2008) afirmam que o rito não apenas consagra uma distinção, ele, principalmente, institui a diferença. Ao instituir essa diferenciação, o rito legitima, reconhecendo publicamente, um novo estatuto (BOURDIEU, 2008).

À luz desses pressupostos sobre os ritos como processos comunicacionais, temos que o rito de “axé de fala” é uma importante cerimônia do Batuque Gaúcho, que institui/legitima o direito do orixá, manifestado no “cavalo de santo”[9], a falar. Desde que se manifesta pela primeira vez, o orixá deve permanecer, de modo intransigível, em silêncio até que passe pelo rito, período que varia, geralmente, entre 10 e 15 anos, a fim de que o dirigente observe[10] o comportamento do orixá (CORRÊA, 2016). Para passar pelo ritual, além de cumprir satisfatoriamente o tempo de observação, o orixá deve passar por provações que são consideradas, pelos sujeitos batuqueiros, como sobre-humanas. Corrêa (1991, s/p) afirma que “tais provas são feitas em caráter secreto e o sacerdote precisa convidar outros sacerdotes da comunidade para testemunhar tal veracidade”. Realizando a passagem pelo rito, é dado ao orixá o “axé de fala”, instituindo, assim, que o orixá possa falar. Nesse sentido, Corrêa (2016, p. 217) descreve que, ao legitimar o orixá e liberar sua fala, o rito “[...] abre o mais importante canal de comunicação direta entre o mundo dos deuses e dos homens”. Sabemos também que, ao possuir orixás legitimados e reconhecidos, os terreiros adquirem mais visibilidade e prestígio na comunidade batuqueira, pois se compreende que há nessas organizações há presença, verificada, do sagrado. Para os batuqueiros é “[...] fundamental contar com orixás cuja possessão é considerada verdadeira, porque deles é que vem o poder de proteção para o grupo” (CORRÊA, 1991, s/p). Assim, o rito de “axé de fala”, enquanto processo comunicacional batuqueiro, transaciona diferentes significados na cultura organizacional dos terreiros, seja sobre a mudança de estatuto simbólico e objetivo do orixá, ou sobre a instituição e legitimação do poder falar desse orixá, gerando, na comunidade batuqueira, reconhecimento público e sacralização da organização/terreiro e, a fim de preservar a cultura batuqueira, regulando desvios nesta afro-religião/tradição (SILVA NETO, 2022).

Sabemos que a realização do rito de “axé de fala”, após a observação do comportamento do orixá ser satisfatória ao longo dos anos, ocorre, principalmente, em dois momentos. A primeira parte acontece em ambiente secreto (separado do espaço da festa), no qual participam apenas o pai ou mãe de santo, as testemunhas (que além de serem líderes de outros terreiros, podem, também, ser de outras nações) e alguns poucos orixás que já tenham “axé de fala”. As provações, necessariamente, acontecem nesse momento secreto, sendo apreciadas apenas pelos presentes (pois possuem nível hierárquico e iniciático para tal, uma vez que assim foram institucionalizados e são reconhecidos). Por seu turno, o segundo momento ocorre quando, após ter o aval das testemunhas sobre sua legitimidade, o orixá retorna ao ambiente da festa e é apresentado, como real manifestação do sagrado (tendo obtido aprovação nas provações às quais foi submetido), para os batuqueiros, situação em que “há um regozijo geral, com palmas [...] e exclamações por parte do público” (CORRÊA, 2016, p. 218). Ao validar o orixá publicamente, o fato de a organização passar a contar com a presença e proteção de mais um orixá legitimado, tende a fornecer “[...] um atestado público da competência de seu chefe” (CORRÊA, 2016, p. 218). Por fim, como ilustração, destacamos parte do relato de Corrêa (2016, p. 217-218) sobre sua experiência em presenciar o segundo momento do rito de “axé de fala”, ocasião na qual

[...] a Mãe Ester deu a fala para três orixás. Ela leva-os para o seu quarto juntamente com outros deuses, além de dois chefes, e lá permaneceram por cerca de meia hora, enquanto no salão a festa se desenrola. No ar há um clima de expectativa muito grande, comentários sobre os novos orixás. Em dado momento a Emília do Xapanã começa a distribuir pétalas de rosas pelos presentes, que procuram aproximar-se da porta por onde entrarão os orixás. A entrada destes, muito depois, é triunfal, debaixo de uma chuva de pétalas. Como em todas as vezes que alguém recebe uma grande homenagem, faz-se uma fila, as mãos de um orixá nas costas do da frente. Na ponta vêm os homenageados de hoje, seguidos pelos outros orixás, os padrinhos humanos (os chefes) e finalmente a Mãe Ester [...]. Terminada a cerimônia, a Mãe Ester apresentou os novos orixás para o público: ‘Estes são orixás confirmados! Quem quiser, da casa, fazer alguma consulta, pode vir perguntar. Esta fala que seja para o bem, e não para falar bobagens por ai!’.

Assim, instituídos pelo rito de “axé de fala”, os orixás que estavam na liminaridade assumem um novo estatuto – o de orixás com fala –, não apenas na estrutura da organização/terreiro, mas também na da comunidade batuqueira. Para isso, cerimonialmente, seu novo estatuto é comunicado e é solicitado reconhecimento do público presente. Por sua vez, dos orixás, a comunidade batuqueira espera que cumpra seu papel – em perspectiva do seu “dever de ser”, como apontou Mãe Ester, no relato exposto, ao dizer que devem usar a fala para o bem e não para falar levianamente.

Considerações finais: possíveis cruzos teóricos

Sinalizando o poder que os pais e mães de santo portam na cultura organizacional (SCHEIN, 2009), ao considerarmos que esses sujeitos possuem autonomia sobre as práticas que realizam nas suas organizações/terreiros (ambientes onde se conforma, se transforma e é propagada a cultura batuqueira), quer parecer que a necessidade da presença de testemunhas (líderes de outras organizações) para legitimidade do rito de “axé de fala” é um mecanismo de manutenção e vigilância, pois compreendemos que a oralidade, em suas nuances, possui potência para gerar lacunas/esquecimentos/alterações de significações. Desse modo, reafirmamos que a cultura batuqueira se impõe sobre à manifestação dos seus próprios processos comunicacionais, como fica sublinhado no rito de “axé de fala”, operando para manter certa unidade sem anular as suas diferenças (FAJARDO; BALDISSERA, 2021). Essas diferenciações, ao que tudo indica, podem decorrer tanto das peculiaridades dos conhecimentos das suas diferentes nações, bem como da autonomia de prática ritual, decorrente do poder hierárquico e simbólico (BOURDIEU, 2008), que é atribuída aos seus líderes.

No tocante as três fases do rito de passagem propostas por Gennep (1978), conforme Rivière (1996) e Baldissera (2000), afirmamos que: a) na primeira fase (etapa de ruptura/preliminar), o rito de “axé de fala” opera quando os orixás se manifestam no “cavalo de santo” e são separados dos demais batuqueiros, passando a serem observados pelos pais e mães de santo; b) a segunda fase (etapa de liminaridade social) compreende todo o processo liminar, ou seja, todo o amplo período de observação do orixá, no qual fica com a identidade em “suspeição”, que culmina com a cerimônia do rito de “axé de fala”. Nesse momento realizado em ambiente secreto, o orixá recebe instruções especiais e é submetido a provações que são validadas por testemunhas e por orixás que já passaram pelo ritual; e c) na terceira fase (etapa de ressureição simbólica/pós-liminar), após passar exitosamente por todas as provações que é submetido, o orixá retorna ao ambiente da festa e é apresentado aos batuqueiros, agora como orixá que pode falar, portando um novo estatuto que lhe designa direitos e obrigações.

Nas encruzilhadas teóricas aqui traçadas, partir das reflexões e tensionamentos realizados, compreendemos que a materialização do comunicacional batuqueiro no rito de “axé de fala”, considerada uma das cerimônias mais importantes do Batuque Gaúcho (CORRÊA, 2016), mostra-se como um complexo fluído e multifacetado (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 2007), composto por processos comunicacionais canhestros (BRAGA, 2017) e que, ao fazer sentidos diferentes circularem, constrói e disputa sentidos (BALDISSERA, 2004) nas organizações batuqueiras. Além disso, a um só tempo, o rito de “axé de fala” ao instituir e validar o poder falar, cumpre papel de legitimador de novo estatuto simbólico e objetivo do orixá, coloca em evidência a organização/terreiro na comunidade batuqueira e destaca as competências, sabedores e habilidades do/a pai/mãe de santo. Assim, sabendo que a rede de significação (cultura organizacional) dos terreiros batuqueiros se conforma, fundamentalmente, pela oralidade, os processos de comunicação organizacional que constituem o comunicacional batuqueiro, além de assumirem centralidade, são responsáveis por conformar, manter e/ou transformar significações que não impactam somente essas organizações, mas também refletem, positiva e negativamente, na comunidade batuqueira como um todo. Além disso, nos parece que o rito de “axé de fala” pode, também, ser interpretado como processo de Folkcomunicação (BELTRÃO, 2014), a partir de manifestações, expressões e narrativas próprias da cultura batuqueira (transacionando e decodificando códigos ao contar histórias). Por fim, partindo dos cruzos praticados aqui, enfatizamos que diferentes caminhos outros podem ser traçados ao se refletir sobre os ritos do Batuque Gaúcho, cotejando teorias outras que também podem ser relevantes para pensar o comunicacional batuqueiro. Pedindo, novamente, licença (agô) a Bará e Exu, expectamos que este estudo abra caminhos e ramifique-se em outros.

Referências

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Notas

1 Esclarecemos que este estudo parte de uma pesquisa maior, empreendida por Silva Neto (2022), e que uma versão inicial - ver Fajardo e Baldissera (2021a) - foi apresentada no 44º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Intercom 2021. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
4 Segundo Corrêa (2016), a “cosmovisão batuqueira” é um modo peculiar de olhar e interpretar os fenômenos do mundo.
5 Como exemplos das pluridimensionalidades das organizações batuqueiras, apontamos os cruzeiros, as encruzilhadas, as matas, as cachoeiras, os rios, as esquinas, os cemitérios, as ruas, as praias e o próprio corpo do sujeito batuqueiro, pois que ele também abriga o sagrado, dentre outros.
6 Baldissera (2004) afirma que os sentidos construídos e/ou disputados nesses processos emergem dos significados que os sujeitos atribuem aos objetos do mundo. A noção de disputa acionada pelo autor parte do entendimento de Foucault (1979) de que toda relação é relação de força.
7 O termo “complexus” acionado pelo autor parte da definição de Morin (2001, p. 21): “o que é tecido em conjunto”.
8 O poder simbólico, segundo Bourdieu (1989, p. 08), é um formato de “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”.
9 “Cavalo de santo” é o termo usado pelos batuqueiros para designar os sujeitos que experienciam à manifestação do seu orixá. Esclarecemos que nem todo batuqueiro possui mediunidade para que isso ocorra, pois que, de acordo com Corrêa (2016, p. 219), “[...] em média, do total de pessoa presentes em uma festa pública, (digamos 300 pessoas, o que é comum nos templos de médio porte) cerca de 10% manifestam, pelo ato, a condição de possuídos”. Além disso, e sendo esse um dos maiores segredos do Batuque, o sujeito que é cavalo de santo nunca sabe que seu orixá se manifesta, sendo, inclusive, proibido, sob fortes punições, que outras pessoas comuniquem isso para ele. Durante a manifestação do orixá, os batuqueiros acreditam que o sujeito permanece em um profundo estado de transe e que não tem consciência dos seus atos, considerando que quem está presente é o orixá.
10 Salientamos que a observação realizada pelo dirigente não se delimita apenas à análise de como o orixá se manifesta, ou sobre às suas gesticulações e ao modo como dança, mas sim, e talvez principalmente, sobre como essa divindade conduz seu filho na vida (considerando aspectos como progresso, saúde, conquistas etc.).

Notas de autor

2 Doutorando em Comunicação (UFRGS) e bolsista CAPES. Mestre em Comunicação (UFRGS). Relações-Públicas (FEEVALE). Pesquisador membro do Grupo de Pesquisa em Comunicação Organizacional, Cultura e Relações de Poder (GCCOP/UFRGS). Correio eletrônico: sfajardopoa@hotmail.com.
[3] Doutor em Comunicação Social. Mestre em Comunicação/Semiótica. Professor e pesquisador na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista produtividade do CNPq. Líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação Organizacional, Cultura e Relações de Poder (GCCOP) da UFRGS. Correio eletrônico: rudimar.badiserra@ufrgs.br.
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