Ensaio Fotográfico

Folclore Nu – Desnudando a cultura brasileira
Este projeto de experimentação artístico-poética surge no bojo de ações da iniciativa Colecionador de Sacis, que desde 2015 atua para a “divulgação folclórica” nas redes sociais. O termo, que toma emprestado o conceito já consolidado de divulgação científica, é utilizado para referenciar ações comunicativas voltadas para a promoção e valorização da cultura popular junto aos mais distintos públicos. Em resumo:
A utilização de recursos, técnicas, processos e produtos para a veiculação de informações relacionadas ao folclore - entendido como os modos de sentir, pensar e agir de um povo fundamentados pela tradição e que lhe caracterizam identidade. Estas informações são dirigidas a um público que é leigo de seus conceitos ou que ignora sua agência, e são transmitidos para criar afeto, conhecimento e reconhecimento da cultura popular. (COSTA, 2021, p. 65)
Neste contexto, já havíamos estabelecido pontes de diálogo facilmente delineadas junto a crianças em idade escolar por meio de visitas às escolas para falar de folclore, contações de história e mostras de desenhos animados ligados aos mitos brasileiros. Para o público jovem, a relação era estabelecida a partir dos trabalhos com literatura, podcast e produção de conteúdo para a web. No entanto, havia uma parcela do público que ainda ignorava a potência sensível e simbólica da cultura popular, que precisava de uma linguagem ainda mais distinta para estabelecer esta aproximação afetiva.
Assim surge Folclore Nu - Desnudando a Cultura Brasileira, um projeto que reúne fotografia e nu artístico com mitos e lendas do imaginário popular. Foram quatro ensaios, no total, cada um contendo 7 fotos. Em cada uma delas, uma legenda que explica um pouco mais sobre cada mito retratado.
O objetivo do projeto foi o de mostrar que o repertório compartilhado do folclore brasileiro pode inspirar não apenas histórias infantis, como amplamente repetido na vulgata, mas qualquer tipo de narrativa. A estética se une à informação, com a possibilidade de transmitir de maneira inovadora fatos pouco conhecidos sobre cada criatura do bestiário nacional.
A proposta dos ensaios é a de capturar a singularidade de cada mito retratado, o que foi feito a partir de pesquisa bibliográfica e do design de produção, concatenando cenários, objetos de cena e maquiagem corporal para a produção dos sentidos desejados.
Cabe ressaltar, porém, que a iniciativa foi completamente independente e precisou ser realizada de acordo com os recursos disponíveis. Todo o ensaio foi dirigido e fotografado por Andriolli Costa, com assistência de Jessika Andras. Os modelos, igualmente, eram amigos do casal que se dispuseram a participar.
Contingências do projeto incluíram as pessoas dispostas a serem fotografadas em ensaios com nudez, os horários livres dos modelos, as locações disponíveis para a construção de espaços seguros para todos os envolvidos. Houvesse recursos, seria possível ter maior diversidade de corpos, etnias e espaços.
No ensaio do Lobisomem, com Luz Dorneles de modelo, buscamos a representação da ferocidade incontida. Temos como índices de conotação as roupas rasgadas, os dentes sempre à mostra, os olhos furiosos. Suas mãos pintadas de preto remetem às garras e foram os seus próprios dedos que mancharam o rosto pelas marcas de suas unhas. Luz já tinha uma tatuagem de lua, que ajudou a compor a persona. No cenário, a criatura é vista atrás das grades de um canil, acuada entre os muros da casa, espojando-se no chão de terra.
O ensaio seguinte foi o do Boitatá, com a modelo Liara Chamun. Nele, seu corpo é coberto de olhos com pupilas fendidas: uma referência à serpente devoradora de globos oculares da qual fala Simões Lopes Neto (2012). No ensaio buscamos referência à sua forma etérea e fantasmagórica, representada pela dupla exposição. Como recurso adicional, acrescentamos a obliteração como índice de fora de campo (DUBOIS, 1993, p. 195), colocando fogo na fotografia revelada e a fotografando novamente. Nada mais coerente para uma cobra ígnea.
Posteriormente convidamos o modelo Juliano Quites para representar o Boto Cor de Rosa. A conotação foi dada tanto pela interpretação, orientada para a sensualidade, quanto pelo chapéu panamá sempre presente nas representações do mito das águas. O ensaio foi realizado em um córrego na região de Morro Reuter/RS, e construiu ainda uma dialogia com o mito de Narciso, especialmente a partir da interpretação de Caravaggio.
Por fim, encerramos a série com o Negrinho do Pastoreio, interpretado por Rômulo Ferreira. O ensaio foi realizado em um haras na cidade de Novo Hamburgo/RS, e foi o primeiro contato do modelo com um cavalo. Como referência imagética, o ensaio recorre às estátuas de Vasco Prado – produzidas na década de 1960 e que marcaram o imaginário gaúcho sobre esta lenda dos pagos. Para representar a benção de Nossa Senhora Aparecida, recorremos a uma metonímia: um pano azul celeste, cobrindo o corpo do modelo. Os mesmos das vestes da Madrinha.
Você confere abaixo uma versão resumida dos ensaios. Para ver o material na íntegra, acesse:
http://andriolliandras.myportfolio.com

Dizem que o sétimo filho, se não for batizado pelo primogênito, tem seu destino garantido: mais cedo ou mais tarde, vira lobisomem. Quando escuta o chamado do fadário, o amaldiçoado vai até um chiqueiro ou espojador, se livra das roupas e rola pela terra. Lá acontece a terrível transformação da carne. (LIMA, 1983)
Autor (2022)

Seguindo a tradição portuguesa, o lobisomem tem pouco de "lobo". Sua transformação é variável. Pode ser metade porco, cachorro, cavalo e até touro. Todos os bichos que se espojaram na terra lhe emprestam seu poder. O cachorro preto é o único que pode com o lobisomem. Os outros fogem de medo assim que ouvem o estalar de suas orelhas enormes. O lobisomem também não ladra e nem uiva, mas rosna e ronca.
Autor (2022)

Antes mesmo da chegada dos portugueses, há muito as noites já eram iluminadas pelos boitatás. O mito é um dos mais antigos do Brasil, registrado pela primeira vez já em 1560 pelo padre José de Anchieta (CASCUDO, 2012). Era tido como um fantasma que atacava e matava os indígenas nas praias do sudeste. Mais tarde, fica conhecido como protetor da natureza, atacando aquele que coloca fogo na mata indiscriminadamente.
Autor (2022)

No Rio Grande do Sul, Simões Lopes Neto conta outra versão. Diz que nos tempos antigos, a Cobra Grande (Boiaçú) sobreviveu se alimentando somente dos olhos dos animais que morreram durante o dilúvio. A luzinha que restava nos olhos de cada bicho se reuniu no corpo da Cobra Grande e a incendiou por dentro. Assim, iluminada, a Boiaçú virou a Boitatá que tanto conhecemos. Um mito da devoração.
Autor (2022)

Apesar de frequentemente tido como mito nativo, nenhum cronista registra narrativas fantásticas sobre o boto cor de rosa até o século XIX (BATES, 1864). O boto encantado emerge de origem branca e mestiça, com projeção no imaginário após o estabelecimento dos colonizadores.
Autor (2022)

A sina do boto é a da conquista. Todas as noites de festa ele aparece nas comunidades ribeirinhas, onde seduz e toma para si uma mulher diferente. Assim que consegue o que quer, abandona imediatamente sua amante. Deixa para trás, muitas vezes, uma gravidez indesejada.
Autor (2022)

Um dos momentos mais trágicos da lenda do Negrinho do Pastoreio é o ápice de seu castigo, quando é colocado desacordado – mas ainda vivo – em um formigueiro para que dele não sobrem nem os ossos. A pose foi imortalizada por Vasco Prado, em estátuas idênticas em Porto Alegre, São Francisco de Paula e outras cidades gaúchas.
Autor (2022)

Após ter sonhos terríveis com o Negrinho, o fazendeiro volta ao formigueiro ao terceiro dia. Lá, encontra-o montado em seu cavalo baio, acompanhado de sua madrinha, Nossa Senhora Aparecida. Com sua benção, ele parte correr o mundo com sua tropilha invisível, levando piedade aos que não recebem nenhuma. O egrinho traz esse mito da esperança, que mesmo diante do poder e da violência, nunca pode morrer.
Autor (2022)Referências:
BATES, Henry Walter. The naturalist on the river amazons. New York: J M Dent & Sons, 1864.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global, 2012.
COSTA, Andriolli. Divulgação folclórica - a urgência em ocupar espaço no debate público. Revista Estação Folclore. N.1, v.1. Agosto, 2021. pag. 60-66. Acesso em 04 dez. 2022. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1yGJOnru0841Iot0Q9s__SFs4MiFkgO96/view.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1993.
LIMA, Maria do Rosário de Souza Tavares. Lobisomem: assombração e realidade. São Paulo: Escola de Folclore, 1983
LOPES NETO, João Simões. Lendas do Sul. Icata: Editora Dracena, 2012.
Notas de autor