Dossiê

Princesas e rainhas pretas na literatura de cordel: expressões da negritude contra a invisibilidade de um protagonismo negro

Black princesses and queens: movement of blackness expressions in cordel literature

Princesas y reinas negras: expresiones de la negritud en la literatura de cordel

Alberto Magno Perdigão 1
Universidade de Fortaleza , Brasil

Princesas e rainhas pretas na literatura de cordel: expressões da negritude contra a invisibilidade de um protagonismo negro

Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 21, núm. 46, pp. 34-53, 2023

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepción: 17 Abril 2023

Aprobación: 13 Junio 2023

Resumo: O artigo apresenta aspectos conceituais sobre a negritude e sobre o folheto informativo da literatura de cordel, para, a seguir, analisar o conteúdo de narrativas sobre o suposto protagonismo de mulheres negras na luta por liberdade e direitos. A amostra é constituída por oito folhetos que abordam a trajetória de mulheres que viveram no Brasil, no período da escravidão, e que são apresentadas como princesas ou como rainhas. Pergunta-se que qualidades são atribuídas às personagens tratadas como altezas nas narrativas analisadas, tendo como hipótese que tais atributos reivindicam visibilidade e agregação de valor simbólico positivo às personagens.

Palavras-chave: Literatura de cordel, Folheto informativo, Mídia alternativa, Negritude.

Abstract: The article presents conceptual aspects about movement of blackness and about the cordel literature information leaflet, to then analyze the content of narratives about the supposed protagonism of black women in the struggle for freedom and rights. The sample consists of eight leaflets that address the trajectory of women who lived in Brazil during the period of slavery, and who are presented as princesses or queens. It asks what qualities are attributed to the characters treated as highnesses in the analyzed narratives, with the hypothesis that such attributes claim visibility and aggregation of positive symbolic value to the characters.

Keywords: Cordel literature, Information leaflet, Alternative media, Movement of blackness.

Resumen: El artículo presenta aspectos conceptuales sobre la negritud y sobre el folleto informativo de la literatura de cordel, para luego analizar el contenido de las narrativas sobre el supuesto protagonismo de las mujeres negras en la lucha por la libertad y los derechos. La muestra consta de ocho folletos que abordan la trayectoria de mujeres que vivieron en Brasil durante el período de la esclavitud, y que se presentan como princesas o reinas. Se pregunta qué cualidades se atribuyen a los personajes tratados como altezas en las narrativas analizadas, con la hipótesis de que tales atributos reclaman visibilidad y agregación de valor simbólico positivo a los personajes.

Palabras clave: Literatura de cordel, Folleto de información, Medios alternativos, Negritud.

Introdução

O artigo que se segue acolhe a literatura de cordel como um modo de folkcomunicação amplamente praticado no Brasil por segmentos subalternizados, primeiramente de forma oral e, a partir do último quartel do século XIX, de forma impressa, por meio de folhetos de forma e de conteúdo populares, escritos, impressos, vendidos e lidos e/ou ouvidos por populares.

Acolhe também o folheto de política da literatura de cordel como uma mídia informativa alternativa, popular e contra-hegemônica, a qual se faz, em grande medida, um lugar de fala para a disputa de narrativas que se estabelece entre a negritude, de um lado, e, em oposição, a mídia informativa tradicional e o livro didático.

Considera-se, ainda, como mídia informativa o folheto de não-ficção - aquele que não se enquadra nem entre os folhetos de ficção nem entre os de pelejas -, que ora se apresenta como folheto de circunstância (o mesmo que de acontecidos ou de ocasião), este de caráter factual, ora se mostra temático, de conteúdo documental ou formativo.

A referida mídia é alternativa, popular e contra-hegemônica pela capacidade que apresenta, respectivamente, de funcionar como um outro veículo informativo, que não de notícias; de ser elaborado na sua forma ou conteúdo, pelos/para/com os extratos de uma não-elite - além de que também são vendidos, comercializados e consumidos mais comumente em territórios mais empobrecidos e desempoderados do Brasil; e de apresentar narrativas que representam um modo particular de ver e de interpretar, de pensar e de sentir a realidade, de forma descolada e muitas vezes contraposta aos dispositivos das mídias tradicionais impressa e livro (PERDIGÃO, 2022).

“Se historicamente a negritude é, sem dúvida, uma reação racial negra a uma agressão racial branca, não poderíamos entendê-la e cercá-la sem aproximá-la do racismo do qual é consequência e resultado”, alerta Kabengele Munanga (2019, on-line). O autor afirma:

A negritude e/ou a identidade negra se referem à história comum que liga de uma maneira ou de outra todos os grupos humanos que o olhar do mundo ocidental “branco” reuniu sobre o nome de negros. A negritude não se refere somente à cultura dos povos portadores da pele negra que de fato são todos culturalmente diferentes. Na realidade, o que esses grupos humanos têm fundamentalmente em comum não é como parece indicar, o termo negritude à cor da pele, mas sim o fato de terem sido na história vítimas das piores tentativas de desumanização e de terem sido suas culturas não apenas objeto de política sistemáticas de destruição, mas, mais do que isso, de ter sido simplesmente negada a existência dessas culturas. (MUNANGA, 2019, on-line).

Dois aspectos auxiliam compreender o tema em que o artigo se situa. O primeiro é a de que não se sabe ao certo quantos folhetos já foram dedicados a questões relacionadas ao negro e que temáticas contemplaram. O Brasil não tem o registro oficial dos folhetos já editados - diferentemente dos jornais ou dos livros -, mesmo depois de quase um século e meio da existência de uma literatura de cordel impressa no país.

O segundo, decorrente do primeiro e não obstante as informações de capa, é que nem sempre se sabe o lugar ou a data em que os folhetos foram impressos, reimpressos e com que tiragem, de forma que é impossível elaborar uma cartografia precisa para a literatura de cordel e, portanto, para o folheto de política.

Acrescente-se que não há dados confiáveis sobre quem são os poetas-repórteres, no que concerne ao gênero, à idade, à escolaridade, à renda, às orientações de ordem política, religiosa ou de raça que apresentam, impossibilitando visualizar com precisão quem são os autores que falariam da/pela negritude.

Acrescente-se ainda que são desconhecidos por que ou para que escrevem, quem ou o que os influencia no tocante aos temas e às argumentações; quem os lê ou escuta; ou em que medida tais narrativas alternativas levariam um segmento de público negro, em alguma proporção, a se reconhecer e a se colocar no mundo como tal, a se posicionar na esfera pública das discussões políticas e a atuar como sujeito da história.

O presente artigo tem como objeto de estudo o conteúdo de narrativas da literatura de cordel sobre o suposto protagonismo de mulheres negras na luta por liberdade e direitos. A amostra é constituída por oito folhetos que abordam a trajetória de mulheres que viveram no Brasil, no período da escravidão, e que são apresentadas como princesas ou como rainhas.

Sete dos exemplares são de autoria da cordelista negra Jarid Arraes, autora da série pioneira Heroínas Negras do Brasil, composta por 20 folhetos e publicada na segunda metade da década de 2010 - 15 das personagens da série compõem capítulos do livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, publicado pela autora em 2017 (São Paulo, editora Pólen).

O tema era relativamente inexplorado até então, diferentemente do protagonismo de negros por liberdade e direitos, como se vê nos inúmeros folhetos dedicados a personagens considerados guerreiros e heróis, como Zumbi dos Palmares, Dragão do Mar, entre outros, os quais demandam uma investigação complementar à parte.

Pergunta-se na investigação que qualidades são atribuídas às personagens tratadas como altezas nas narrativas analisadas. E tem-se como hipótese que tais atributos são recursos de linguagem da negritude, que reivindicam visibilidade e agregação de valor simbólico positivo às personagens.

Os dados oferecidos pelas poesias são observados por dois critérios de análise, as palavras princesa e rainha - ou palavras e expressões correlatas. O artigo se inicia com uma discussão em torno de alguns aspectos conceituais do folheto informativo da literatura de cordel onde se insere a amostra.

O folheto informativo

Parece oportuno propor aqui quatro premissas que contextualizam o objeto em análise. (1) A literatura de cordel não foi abolicionista, nos seus primeiros anos daquele final de século XIX. Nenhum de seus pioneiros se dedicou à temática da Abolição, o que suscita pensar que o cordel, esta mídia originalmente não-negra, foi conivente e, desta forma, relativamente favorável à escravidão. À época, libertar ou não os escravizados era um tema quase que exclusivo das elites econômica e intelectual, cujo pensamento já estava expressos nos jornais abolicionistas ou não, mas sempre das elites (SODRÉ, 2011). E, de fato, não obstante a luta abolicionista, a Abolição foi uma decisão, ou uma permissão, da elite escravocrata (GOMES, 2022).

(2) A literatura de cordel, os chamados poetas da primeira geração (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, on-line), não se posicionou contra o descaso dos poderes da Primeira República com a população negra recém-liberta ou com as expressões de invisibilização, preconceito e violências com que o Estado, o mercado e a sociedade seguiram tratando aquele segmento de brasileiros e imigrantes africanos, desta forma, não incorporado ao projeto de nação livre e soberana de então (GOMES, 2022). É o que permite afirmar que o cordel, ao posicionar-se à margem da questão, foi favorável, se não conivente, com práticas hoje compreendidas como criminosas e que, só hoje se avalia, foram desastrosas para o futuro da nação.

(3) A literatura de cordel, muito claramente o folheto informativo de política, na sua característica de ser o espelho e objeto das discussões populares, passou a incluir temas relacionados à negritude, somente a partir de alguns deslocamentos políticos ocorridos no final dos anos 1980, como a promulgação da Constituição Federal “cidadã” e, mais frequentemente, a partir a eclosão dos movimentos sociais de minorizados e excluídos, nos anos 1990, em seguida a partir da instituição de políticas inclusivas e compensatórias para negros, nos anos 2000. Foi quando o folheto se fez mídia de minorizados pretos, passando, assim, a ser lugar de fala da negritude.

Finalmente (4), o folheto informativo de política da literatura de cordel que acolhe a negritude como temática não se apresenta como panfletária, no sentido da propaganda política, ou faz proselitismo, no sentido da propaganda religiosa, ou seja, não está ligada a partidos ou igrejas. Também não é racista em relação ao branco, não prega a inversão do sentido das violências perpetradas contra a cultura e os corpos pretos. É, antes, uma literatura informativa/formativa que se movimenta em quatro direções: da visibilidade do negro - e da negritude -, da agregação de valor político às questões que lhe dizem respeito, de reivindicar o fim das violências que sofrem e de se fazer reconhecer o direito de ser e de ser um igual.

Princesas

As narrativas analisadas a seguir são de caráter temático. Foram produzidas no primeiro quartel do século XXI. Ou seja, não há na amostra folhetos que tenham sido escritos a partir de um fato, durante os quatro séculos de uso da mão de obra escravizada no Brasil ou durante os primeiros 100 anos da República. É possível, embora pouco provável, que algum trovador tenha cantado pela igualdade e liberdade da população escravizada, num período em que a literatura de cordel era apenas oral e em que escravizar era normalizado e normatizado entre os não-negros brasileiros. Os registros impressos desse gênero, que só apareceriam no final do século XIX, no Rio de Janeiro, a capital do Império e da escravidão, não trataram da abolição.

O canto negro por liberdade, este sim pode ter sido mais comum do que se pensa, mas esta expressão, impedida ou invisibilizada, não era literatura de cordel. Se assim o fosse, haveria, talvez, um lugar para o protagonismo de mulheres negras que lutaram por liberdade e direitos, entre os quais o direito de ser, de existir. A mais antiga história reportada nos folhetos é a de Zacimba Gaba, uma “princesa” da nação Cabinda, em Angola, que teria sido capturada e escravizada, em 1690, num confronto com com invasores portugues, e vendida, no mesmo ano, no litoral do Espírito Santo. A escrava teria sido encarcerada, torturada e estuprada pelo seu senhor, até a oportunidade de envenená-lo e de fugir do cativeiro (ARRAES, 2017; MIRANDA, 2015; MACÊDO, 2016).

Com as autoras, Zacimba deu fuga a outros escravizados, instalou um quilombo e dedicou a vida em liberdade a acolher negros fugidos e a resgatar negros recém-chegados de embarcações negreiras, na costa do Espírito Santo, até ser assassina em um dos assaltos. Dados como estes, relativamente vagos e parcialmente imprecisos, povoam ambientes da negritude na Internet e o senso comum. Não obstante a riqueza da história e o suposto protagonismo de uma escravizada no Brasil na luta por liberdade, até março de 2023, não havia qualquer registro da vida e da obra da princesa-guerreira nos sítios eletrônicos do Ministério da Igualdade Racial e da Fundação Palmares, ambos institutos do Poder Executivo brasileiro.

Baseados naquelas informações, pelo menos dois folhetos da literatura de cordel narram a história de Zacimba. Em Zacimba Gaba: a princesa guerreira (30 estrofes em septilhas), Evaristo Geraldo acrescenta um perfil amoroso à personagem, assim descrita:



Zacimba Gaba era a jovem, Moça de rara beleza. Seu pai um rei angolano, Ela, estimada princesa. A moça foi raptada, No Brasil escravizada, Sem ter direito à defesa. (...) Zacimba Gaba fugiu Com seus irmãos angolanos. Ela se embrenhou nas matas Sem temer riscos ou danos E em um longínquo local Fundaram um arraial, Distante dos vis tiranos. (...) A princesa em seu Quilombo Com amor sempre acolhia Todo nativo africano Que por lá aparecia. Os escravos foragidos Eram por ela acolhidos Sempre com grande alegria.

Fuente: (GERALDO, 2017, p. 2; 8).

Em Zacimba Gaba (26 estrofes em sextilhas), Jarid Arraes, que se identifica negra e se declara poeta engajada à negritude, afirma ter “orgulho” da princesa, cujo perfil assim descreve:



No quilombo de Zacimba Ela era celebrada A princesa de Cabinda Por seu povo admirada Acolhia os que viessem Era assim bem respeitada. Com coragem e ousadia Os navios ela atacava Ia com os seus guerreiros E da escuridão pulava Libertando os cativos Que pro quilombo levava. (...) Tenho orgulho de Zacimba De ser parte de sua gente Meu cabelo e minha pele O meu sangue aqui corrente É herança da princesa De bravura coerente.

Fuente: (ARRAES, s/d, p. 5;7).

O folheto de Jarid é um dos 20 que compõem a série Heroínas Negras do Brasil, de sua autoria. O conjunto também contempla o protagonismo de Luisa Mahin, Esperança Garcia, Acotirene, Carolina Maria de Jesus, Maria Felipa, Nã Agontimé, Mariana Crioula, Maria Aranha, Eva Maria do Bonsucesso, Aqualtune, Maria Firmina dos Reis, Tereza de Benguela, Anastácia, Tia Simoa, Dandara dos Palmares, Laudelina de Campos, Zeferina, Tia Ciata e Antonieta de Barros. Os folhetos foram escritos por volta de 2017, quando a autora publicou o livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis (São Paulo, editora Pólen), sendo estas partes das protagonistas retratadas nos folhetos de cordel da escritora.

Da lista de folhetos de Jarid, constam, de acordo com as narrativas da poeta, três princesas, Zacimba Gaba - já citada -, Aqualtune e Luísa Mahin, e quatro rainhas, Tereza de Benguela, Nã Agontimé, Zeferina e Mariana Crioula. Não importa, aqui, saber se, efetivamente, tais mulheres integraram a realeza em suas nações de origem, mas sim o coroamento destas protagonistas feito pela autora. Aqualtune é talvez o melhor exemplo de uma princesa imaginada pela tradição, pelo volume de informações que se tem de sua vida e obra e pela riqueza de detalhes construídos. As informações remontam ao ano de 1665, quando Aqualtune teria liderado um exército de 10 mil guerreiros de sua nação, no Congo, num confronto em que saiu derrotada, sendo, então, presa e vendida como escrava para portugueses e, depois, revendida no Brasil (ARRAES, 2017; MACÊDO, 2016).

De acordo com a historiografia da tradição, que é reproduzida no folheto Aqualtune (27 estrofes em sextilhas), Aqualtune teria vivido alguns anos num engenho de cana-de-açúcar, em Porto Calvo, em Pernambuco, na condição de escrava reprodutora. Teria sido estuprada seguidas vezes e gerado vários filhos que, então, foram apropriados pelo seu dono. Até que teria fugido em busca do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, onde teria sido reconhecida como princesa, guerreira; teria recebido das lideranças locais terra para fundar e liderar um dos onze mocambos do assentamento; e teria constituído uma família. Ela seria, conta-se, a mãe de Ganga Zumba e, portanto, tia-avó materna de Zumbi dos Palmares.



Junto com outras pessoas Negras de muita coragem Aqualtune fez a fuga Mesmo com toda voragem Foi parar em um quilombo E falou de sua linhagem. Todos lá reconheceram Que era ela uma princesa E por isso concederam Território e realeza Para a brava Aqualtune Coroada de firmeza. (...) Quando ela faleceu Bem idosa já estava Aqualtune sim viveu Como líder destacava Essa força feminina Que a princesa exaltava.

Fuente: (ARRAES, s/d, p. 4-5; 6).

Se não há comprovação de que Aqualtune é ascendente de Zumbi dos Palmares, é certo que Luísa Mahin é a mãe do poeta e abolicionista Luís Gama (1830-1882). Se aquela não foi princesa e, talvez, sequer tenha existido, esta teve participação ativa na Revolta dos Malês e, segundo se conta, quase se consagra “Rainha da Bahia” (GONÇALVES, 2012; AVENA, 2019; COLETIVO NARRATIVAS NEGRAS, 2022; GOMES, 2022; FUNDAÇÃO PALMARES, on-line). De acordo com os autores, Luísa Mahin nasceu na Costa da Mina, na tribo Mahi, da nação Nagô, onde foi sequestrada e trazida escravizada para o Brasil. Era uma jovem adulta, havia sido mãe do pequeno Luís havia apenas cinco anos, quando, já alforriada, participou, em janeiro de 1835, na Bahia, da maior revolta de escravos da história do Brasil.

Ainda com as fontes consultadas, Luísa escondia mensagens nos quitutes que vendia na rua, para que chegassem a outros negros cativos e, assim, ajudou a mobilizar cerca de 600 escravos que ocuparam as ruas de Salvador em protesto contra a escravidão. Os malês foram controlados. Dois anos depois, Luísa também tomaria parte em outra revolta, a Sabinada (1837 - 1839), que pregava a independência da Bahia, e que foi igualmente sufocada pela força armada do Império. Não há registro na historiografia - por ausência completa de documentos que o comprovem - de que Luísa Mahin tenha sido princesa de sua nação de origem, ou de que se autoproclamava desta forma, mas assim ela é entronizada no folheto Luísa Mahin (22 estrofes em sextilhas) de Jarid Arraes.



Vinda da Costa da Mina Afirmava ser princesa Mas vendida como escrava Teve na luta a certeza Depois de alforriada Demonstrou sua proeza. (...) Se fosse vitoriosa A revolta organizada Luísa Mahin seria De rainha coroada No Estado da Bahia Ela seria aclamada. (...) Agradeço essa Luísa E espero que hoje seja Como foi na sua África Novamente então princesa Ou melhor, uma rainha Com a chama sempre acesa.

Fuente: (ARRAES, s/d, p. 1; 3; 7).

Capas de folhetos de cordel
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Capas de folhetos de cordel
O autor

Rainhas

É provável que os títulos de princesa ou de rainha concedidos às princesas e às rainhas do imaginário popular tenham origem na tradição oral de que a literatura de cordel é verticalmente descendente. Neste caso, como visto até aqui, o plano simbólico da literatura, da arte, sobrepõe-se ao plano concreto da história, da ciência. Desta forma, a historiografia da diáspora África-Brasil vai se confirmando como uma construção social relativamente negociada por diferentes tensões e diferentes perspectivas. O que está narrado nos folhetos do protagonismo negro, portanto, pode, em alguma medida, não ser verdade enquanto fato, mas se faz realidade enquanto discurso.

Entre as rainhas de Jarid Arraes, a mais conhecida e, talvez, a mais festejada é Tereza de Benguela. Os dados disponíveis mais ou menos confiáveis (COLETIVO NARRATIVAS NEGRAS, 2022; TELES, 2022; BRASIL/UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA, on-line) indicam que Tereza de Benguela teria nascido no Reino de Benguela (hoje um município de Angola), no começo do século XVII. Em data ainda incerta, mas ainda jovem, teria sido escravizada e vendida no Brasil. Escrava fugida, teria chefiado, no início dos anos 1750, o Quilombo do Piolho, localizado na cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, em Mato Grosso, após a morte do marido e líder do assentamento, José Piolho. Tereza teria comandado o quilombo por quase 20 anos, até sua morte, em 1770, ocorrida depois de uma investida de captura de forças armadas.

Ainda com os autores, Tereza teria sido presa e teria falecido na prisão. O corpo dela teria sido esquartejado e a cabeça exibida no quilombo desmontado. Os anos de resistência, a autonomia econômica, o modelo de defesa do território e as capacidades de gestão e de liderança de Tereza de Benguela teriam feito dela uma rainha, como é narrado no folheto Tereza de Benguela (24 estrofes em sextilhas).



Um exemplo muito grande É Tereza de Benguela A rainha de um quilombo Que mantinha uma querela Contra o branco opressor Sem aceite de tutela. (...) Zé Piolho, seu marido Acabou por falecer E Tereza de Benguela Veio pois rainha ser Liderando com firmeza Na certeza de crescer. (...) Foi por isso que Tereza Duas décadas reinou Com a força do quilombo Que com garra liderou E por isso pra história A rainha então ficou.

Fuente: (ARRAES, s/d, p. 2; 5)

A história da segunda rainha de Jarid Arraes, Nã Agontimé, é menos obscura e menos imprecisa que a de Tereza de Benguela, talvez pelos dados levantados pelo antropólogo francês que vivia na Bahia, Pierre Verger, em Benin, antigo Daomé, onde Agontimé viveu, até ser escravizada para ser vendida no Brasil (REIS, 2003; GOMES, 2022). Ela teria sido entregue aos traficantes pelo seu enteado, o rei Adanuzam, filho e sucessor do marido, o rei Agonglô de quem ficou viúva, em 1797. Nã Agontimé teria sido escrava no Maranhão, onde teria sido chamada de Maria Jesuína, nome que aparece nos documentos de fundação da Casa das Minas (templo religioso de tambor de mina, instalado na década de 1840, em São Luís, e tombado pelo Iphan, em 2002).

Seguindo com os autores, Adanuzam foi destronado pelo irmão por parte de pai, Gapê, que, com os poderes de rei, passou a procurar incessantemente a mãe, Agontimé, nas Américas, inclusive no Brasil. O esforço foi em vão. E pouco ou nada mais se sabe da vida desta rainha, narrada no folheto Na Agontimé (22 estrofes em septilhas).



Diz que foi Agontimé Quem o templo começou Era ela uma rainha Que em Daomé reinou Hoje chamado Benim Foi na África sim Que ela se consolidou. (...) Mas na terra da rainha Algo estava pra mudar Pois enquanto ela sofria O seu filho ia enfrentar A maldade que reinava Que a todos dominava Para assim os libertar. (...) Mas o fato é muito claro: Foi rainha e lutadora Coroada com bravura Ela foi conquistadora Para sempre a inspirar Na memória relembrar Como foi norteadora.

Fuente: ARRAES, s/d, p. 1; 5; 8

O caldeirão da luta dos escravizados voltou a ferver em Pirajá (hoje, Parque São Bartolomeu), em Salvador, em 1826, no conflito que ficou conhecido como Revolta do Quilombo do Urubu (REIS, 2003; BARBOSA, 2015; GOMES, 2022; BRASIL/UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA, on-line). A comunidade encravada na mata reunia escravos fugitivos e índios igualmente perseguidos. Os quilombolas do Urubu acolhiam novos trabalhadores para a lavoura, os quais também serviam nas missões de proteger o território e de resgatar escravizados das fazendas da região. Na ofensiva vitoriosa de 15 de dezembro daquele ano, a liderança e bravura de Zeferina se destacaram mais uma vez. Mas a reação da força armada local logo se deu e, numa segunda batalha, os quilombolas foram vencidos. Zeferina foi presa, depois condenada a trabalhos forçados.

Os dados disponíveis foram suficientes para Jarid Arraes recontar a história da líder e guerreira quilombola Zeferina, a quem chamou de “preta furacão”. É mais uma rainha simbolicamente coroada pela autora, no folheto Zeferina (28 estrofes em sextilhas).



Dizem que ra angolana E com índio se juntou Para montar o quilombo Que com garra liderou Foi chamada de rainha E o combate estimulou. (...) Diz-se ainda sobre ela: Tinha mística influência Pois também era central Do candomblé a vivência Que no meio do quilombo Mantinha a resiliência. (...) Com o seu conhecimento Que era banto originado Zeferina foi a líder Que se tinha precisado Com valores africanos Fez seu povo acreditado.

Fuente: (ARRAES, s/d, p. 2-3)

A quarta e última rainha de Jarid Arraes é Mariana Crioula, que viveu na primeira metade do século XIX (REIS, 2003; GOMES, 2022; GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, on-line). Foi escrava fugida, quilombola e recapturada, como a rainha Zeferina, e foi líder e guerreira ao lado do marido, como a rainha Tereza de Benguela. No dia 5 de novembro de 1838, Mariana Crioula e o marido e escravizado, Manoel Congo, lideraram uma fuga de “mais de quatrocentos” escravos da fazenda Maravilha, em Paty do Alferes - e de propriedades vizinhas do Vale do Café -, no Rio de Janeiro. A insurreição chamada pela historiografia não-negra e oficial de Revolta das Vassouras desafiou a elite latifundiária e escravista do Império a recapturar e punir exemplarmente os fugitivos, a partir de seus líderes.

Com os autores, o grupo ou parte dele foi para a Serra da Mantiqueira, onde formaria um quilombo. Mas, apenas uma semana depois, o grupo, ou parte dele, foi capturado por militares. Dezesseis dos fugitivos que teriam exercido liderança entre os rebelados foram julgados. Manoel Congo, aclamado como rei, foi condenado à morte por enforcamento. Mariana Crioula, a rainha, teria negado a sua liderança, mas a versão não foi acolhida. Foi absolvida, como as demais mulheres do grupo, mas “condenada” à viuvez e a voltar a servir ao mesmo senhor e na mesma casa grande de onde fugira. O folheto Mariana Crioula (26 estrofes em sextilhas) assim narrou:



Mariana estava junto E com Manoel fez par O casal era tão forte E capazes de inspirar Que de rei e de rainha Se fizeram aclamar. (...) Veja só que interessante O desfecho dessa história Poucos foram os punidos E a rainha em sua glória Conseguiu salvar sua vida E também sua memória. (...) Sempre penso em Mariana E imagino o seu final Será que depois fugiu? Foi de novo a maioral? Qual que seja essa resposta Foi rainha sem igual.

Fuente: (ARRAES, s/d, p. 4-5; 7)

Capas de folhetos de cordel
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Capas de folhetos de cordel
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Considerações finais

O artigo que agora se conclui acolheu o folheto de política da literatura de cordel como uma mídia informativa alternativa, popular e contra-hegemônica, que se presta como um lugar de fala para as disputas de narrativa da negritude frente às mídias impressas tradicionais. E acolheu a negritude como identidade negra e como movimento político por direitos histórica e estruturalmente negados ao povo negro brasileiro.

Propôs uma discussão sobre aspectos conceituais do folheto informativo da literatura de cordel, para, a seguir, analisar o conteúdo de narrativas deste tipo de literatura sobre o suposto protagonismo de mulheres negras na luta contra a escravidão de que foram vítimas no Brasil. Oito folhetos foram considerados como amostra, tendo como critério comum o fato de apresentarem as referidas mulheres como princesas ou rainhas pelos seus respectivos autores.

Perguntou-se na investigação que qualidades são atribuídas às personagens tratadas como altezas nas narrativas analisadas, intuindo-se, como hipótese, que tais atributos se apresentam como recursos de linguagem da negritude, que reivindica visibilidade e agregação de valor simbólico positivo às personagens. Foram listadas sete protagonistas, três princesas e quatro rainhas, e extraídas de cada poesia três estrofes representativas da narrativa.

Zacimba Gaba foi objeto de dois dos folhetos. Na primeira poesia, ela é apontada como princesa duas vezes. Cinco adjetivos ou expressões são atribuídos a ela a saber: jovem, bela, estimada, amorosa e acolhedora. Na segunda poesia dedicada a Zacimba, o título de princesa aparece outras duas vezes. São atribuídos a ela os seguintes oito adjetivos: celebrada, admirada, acolhedora, respeitada, corajosa, ousada, brava e coerente.

Aqualtune é a segunda princesa da amostra. Ela é referenciada uma vez como princesa e uma vez como realeza. Quatro atributos positivos lhe são destinados: corajosa, brava, firme e forte. Luísa Mahin, a terceira princesa, é tratada de princesa uma vez e uma vez também de rainha. A ela é atribuída a qualidade de realizadora.

Entre as rainhas, Tereza de Benguela, a primeira da lista, é assim apresentada quatro vezes - em apenas três estrofes. E três qualidades lhe são atribuídas: firme, aguerrida e líder. A segunda é Nã Agontimé, que é chamada três vezes de rainha, enquanto lhe são atribuídas seis qualidades: lutadora, brava, conquistadora, inspiradora, memorável e norteadora.

A terceira rainha é Zeferina, com uma citação de nobreza. Oito qualidades lhe são apontadas: aguerrida, líder, mobilizadora, influenciadora, mística, resiliente, necessária e fiel às tradições africanas. A quarta e última rainha é Mariana Crioula, que aparece em três versos como rainha e recebe quatro adjetivos: forte, inspiradora, memorável e inigualável.

Diante dos dados colhidos e analisados, é possível aferir veracidade à hipótese inicialmente considerada de que os adjetivos listados e o entronamento das protagonistas das narrativas representam recursos de linguagem da negritude, que estão, assim, a reivindicar visibilidade e reconhecimento simbólico positivo às personagens.

Referências

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ARRAES, Jarid. Zeferina. S/d: Edição do autor, s/d.

ARRAES, Jarid. Na Agontimé. S/d: Edição do autor, s/d.

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ARRAES, Jarid. Luísa Mahin. S/d: Edição do autor, s/d.

ARRAES, Jarid. Aqualtune. S/d: Edição do autor, s/d.

ARRAES, Jarid. Zacimba Gaba. S/d: Edição do autor, s/d.

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Notas de autor

1 Jornalista, professor, mestre em Políticas Públicas e Sociedade; especialista em Comunicação Social, Publicidade e Propaganda; com aperfeiçoamento em Roteiro para Rádio e televisão. Pesquisa atual em literatura de cordel como mídia informativa em contextos de exclusão comunicacional, com ênfase nos folhetos de política. Correio eletrônico: aperdigao13@gmail.com.
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