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O Antirracismo como estratégia de marca: o posicionamento do Carrefour em confronto com a prática cotidiana
Anti-racism as a brand strategy: The positioning of Carrefour in confront with everyday practice
El antirracismo como estrategia de marca: el posicionamiento de Carrefour frente a la práctica cotidiana
Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 21, núm. 46, pp. 54-75, 2023
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Dossiê


Recepción: 03 Mayo 2023

Aprobación: 19 Junio 2023

DOI: https://doi.org/10.5212/RIF.v.21.i46.0003

Resumo: Nos dias de hoje, marcas têm adotado causas sociais em posicionamentos, estratégias e ações. Por mais que seja um conceito questionado, a publicidade de causa se apresenta como um meio de divulgação em defesa de causas e posturas socialmente responsáveis por parte das empresas. A própria noção de publicidade antirracista emerge daí, visto que muitas empresas se identificam assim. Discutimos aqui a publicidade em meio a esse contexto, buscando referências em relação à raça, racismo e antirracismo. Fazemos isso a fim de perceber como a marca global Carrefour tem se posicionado em relação ao tema no Brasil, bem como em relação a situações em que é confrontada com sua própria postura pública antirracista, notadamente em uma conjuntura neoliberal que se espalha rapidamente sobre pontos de contato entre marcas e sociedade.

Palavras-chave: Marca, Antirracismo, Publicidade de causa, Neoliberalismo, Carrefour.

Abstract: Nowadays, brands repeatedly adopt social causes within their stances, strategies, and actions. As much as it is a concept called into question, cause marketing presents itself as a mean of advertising in defense of socially responsible causes and postures, which are to be held by companies. The very notion of anti-racist advertising emerges from that, as many companies identify themselves as such. Herein we discuss advertising amidst this context, reaching for points made in relation to race, racism and anti-racism. We do so in order to realize how the global retailer brand Carrefour has adopted a stance regarding the theme in Brazil, as well as regarding situations in which it has been confronted with its own anti-racist public attitude, remarkably within a neoliberal juncture that spreads swiftly over where brands and society touch each other.

Keywords: Brand, Antiracism, Cause advertising, Neoliberalism, Carrefour.

Resumen: Hoy en día, las marcas han adoptado causas sociales en sus posiciones, estrategias y acciones. Por más que sea un concepto cuestionado, la publicidad con causas se presenta como un medio de difusión en defensa de las causas y de las posturas socialmente responsables por parte de las empresas. De ahí surge la noción misma de publicidad antirracista, ya que muchas empresas se identifican como tales. Discutimos aquí la publicidad en medio de este contexto, buscando referentes con relación a la raza, el racismo y el antirracismo. Hacemos esto para comprender cómo la marca global Carrefour se ha posicionado en relación con el tema en Brasil, así como en relación con situaciones en las que se enfrenta a su propia postura pública antirracista, especialmente en un contexto neoliberal que se propaga rápidamente a través de los puntos de contacto entre las marcas y la sociedad.

Palabras clave: Marca, Antirracismo, Publicidad con causas, Neoliberalismo, Carrefour.

Introdução

Aos dezessete dias de junho de 2020, a tradicional marca de produtos de limpeza Bombril retirava um produto de circulação. Não se tratava de algo que perdia a utilidade, tampouco que tivesse má performance em métricas mercadológicas, as razões passavam ao largo de questões mais objetivas do mundo dos negócios. O que motivava a decisão da marca era uma repercussão ruidosa em torno da hashtag #BomBrilRacista, que passou o dia todo como um dos dez assuntos mais comentados no Brasil, em decorrência de a empresa ter lançado a esponja de aço Krespinha no mercado. Talvez nem fosse preciso explicar a nítida associação entre o formato e a aparência da esponja com um cabelo crespo, traço fenotípico associado à população negra, o que chocou muitas pessoas que desconheciam a existência da esponja.

A preocupação seria, em outros tempos, mais concernente às pessoas do que às marcas. No entanto, em um contexto em que essas se humanizam cada vez mais, tal comportamento é esperado com alguma naturalidade. A expectativa por parte dos consumidores pode não ser compartilhada por todo o mercado, ainda assim, com tantas plataformas para a intervenção do público, nem o mercado consegue ficar alheio às pressões exercidas pelas comunidades consumidoras.

A publicidade e o consumo acabam por ser fenômenos que não apenas participam desse movimento bem como interferem nessa dinâmica. Isso nos motiva a refletir, neste artigo, sobre o papel da publicidade na defesa de causas sociais, especificamente, no combate ao racismo e em uma perspectiva antirracista. Para tanto, procederemos levantamento exploratório sobre recentes acontecimentos envolvendo a marca Carrefour, empresa multinacional francesa especializada em varejo e que atua em vários países, no intuito de refletir e discutir o papel a publicidade de causa e seus caminhos.

Marcas, publicidade e causas sociais

A aproximação com o contexto político, social e econômico que nos envolve é significativa para que possamos compreender o fenômeno que leva marcas adotarem causas sociais e sobre elas atuarem. A questão racial que se reflete no exemplo introdutório desse texto não foi coincidentemente escolhida, mas premeditada para desvelar um assunto sensível que, com forte frequência, tem aparecido nos embates entre consumidores e marcas.

Muito do que se vê, nesse sentido, vem na esteira do que Dardot e Laval (2016) definiram como uma razão de mundo neoliberal. Mais do que um sistema econômico, uma orientação que rege uma série de aspectos da vida cotidiana e que, em grande parte do tempo, é pouco perceptível aos olhos mais desatentos.

O neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 17)

Compreendemos o neoliberalismo para além de um sistema político pois, como bem lembra Fraser (2019), os tentáculos neoliberais abraçaram programas políticos reacionários e progressistas, de direita e de esquerda, em alguma medida. Por outro viés, também vamos além da noção de um sistema econômico como faz Brown (2019) ao apontar as ramificações de políticas neoliberais que, mesmo quando parte de premissas financeiras, se revestem de outros aspectos como os morais e religiosos. De tal maneira, a ideia de uma razão de mundo nos parece explicar a forma que o neoliberalismo assumiu em meio à sociedade contemporânea, regendo desde os aspectos mais frugais da vida cotidiana até as mais robustas políticas públicas:

Quando o neoliberalismo é reduzido a uma política ou racionalidade econômica, ficamos cegos a três deslocamentos tectônicos na organização e consciência do espaço que tanto estimulam certas reações políticas hoje quanto organizam o teatro no qual elas ocorrem. O primeiro deles é o horizonte perdido do Estado-nação em consequência da globalização. [...] O segundo deslocamento espacial envolve a destruição do social [...]. O terceiro deslocamento espacial é pertinente à ascensão do capitalismo financeiro e da mobilidade de valor que ele introduz no mundo. (BROWN, 2019, p. 223-224)

Ao demonstrar tais deslocamentos no espaço, Brown (2019) aponta para uma imbricação do neoliberalismo na vida cotidiana que o faz diluir em ações corriqueiras coletivas e individuais que perpassam os mais variados aspectos da estrutura social. Esta presença pode ser vista nos aspectos morais e na tentativa de conservar valores já estabelecidos como os privilégios brancos e heteronormativos, por exemplo, ou favorecendo uma pretensa liberdade individual (por vezes, inerente ao direito de consumir) em sobreposição à coletiva.

A influência do modo neoliberal de governança é nítida na contemporaneidade e isso faz com que seja parte importante da atual fase do capitalismo. O capitalismo financeiro ou rentista faz com que marcas se dobrem aos desejos e anseios do mercado, visto como uma entidade que, se não tem uma cara definida, tem um programa que constrói um sistema vigoroso, deixando menos margem para que grandes empresas fujam de sua forma de operar.

Aqui inserimos o papel da publicidade em meio a tal panorama. Pompeu e Perez (2020, p.279), ao abordarem aspectos epistemológicos do campo na atualidade, identificam bem a forma atual da atividade:

Publicidade é comunicação, é conteúdo, é linguagem, é imagem – é indiscutível que tenha, portanto, participação fundamental na vida contemporânea. Comunicação que informe, esclareça, questione, toque, sensibilize, integre; conteúdos que despertem, preencham, complementem; linguagem inteligente, sofisticada, estimulante; imagens representativas, emancipatórias, sensibilizadoras.

Mais do que recuperar conceitos definidores, nos interessa compreender a atividade em meio a um ambiente cambiante e repleto de novos atores e ferramentas, sobretudo possibilitados pelas tecnologias digitais e pela abertura significativa à participação do público. Tudo isso aponta para uma prática que ganha a simpatia desse, a publicidade de causa, terreno ainda movediço pelo qual marcas, agências de publicidade, consumidores, pesquisadores e professores parecem ainda pouco seguros em caminhar. Santaella, Perez e Pompeu (2021, p.5-6) a definem como:

toda ação comunicacional inserida na ecologia publicitária que, podendo ter objetivos mercadológicos mais ou menos evidentes, expressa o posicionamento ou a ação do anunciante (empresa ou marca) em relação a alguma questão social. Peças publicitárias de todos os tipos, textos-manifesto, ações promocionais, patrocínios, parcerias institucionais e campanhas de engajamento que defendam a diversidade de gênero, a igualdade racial, o acesso à água e o empoderamento feminino são exemplos de “publicidade de causa”. Sempre que uma peça publicitária, assinada por uma marca ou por uma empresa, falar de determinada causa, divulgar suas ações nesse sentido ou defender certa posição, estaremos diante de casos dessa natureza.

O termo já vem sendo estudado por vários autores brasileiros como Covaleski (2016), que ressalta que, no sentido da comunicação publicitária, as causas sociais podem ser entendidas como aquelas que propiciam a transformação de uma realidade social, partindo daquela vivenciada para a construção de uma outra, a desejada. Martinelli, Xavier da Silva e Zanforlin (2018), ao analisarem a defesa da migração como um direito, ressaltam que a defesa de causas há muito aparece no discurso publicitário, mas que a característica mais contemporânea desse movimento reside no fato de que essas ações constituem, comumente, o que chamamos de conteúdo de marca (branded content). O capitalismo agencia para si a mediação desses conflitos, quase como um valor universal “se coloca como o terreno onde a mudança social de fato tem possibilidade de acontecer, e no qual essas mobilizações podem ser convertidas, por meio das estratégias de circulação do capital” (MARTINELLI et al., 2018, p. 484) em um diálogo com o indivíduo que elimina a intermediação de instituições outras de ação coletiva, política ou solidária.

Apesar da contribuição desse tipo de publicidade para redução de desigualdades sociais, não podemos nos esquecer que o que pauta tais iniciativas, de qualquer modo, é o viés do capital. Pompeu e Perez (2020, p.275) adotam tom pouco moderado ao denunciar que “ao fingirmos que acreditamos que o propósito de uma empresa é outro, que não alcançar o lucro, simplesmente impedimos a crítica ao seu modelo ou os questionamentos mais objetivos sobre suas práticas”.

Não assumimos postura tão drástica como Bauman (2008), Marcuse (2012) ou Krenak (2019) que enxergam pouca ou quase nenhuma serventia na publicidade (ou no seu fim, o consumo), que não a destruição de tudo, corrupção das virtudes morais e deterioração do meio ambiente. No entanto, não podemos negar que tais autores não deixam de ter alguma razão. A publicidade de causa, como hoje tem se apresentado, “não tem demonstrado efetivas contribuições para a solução dos problemas que a suscitam” para Pompeu e Perez (2020, p. 278) por, justamente, confundir as lógicas de consumo e social, sugerindo um caminho de solução em que é a marca a mediadora e não o estado, os movimentos sociais, a coletividade. Entretanto, os mesmos autores acabam deixando uma pista de que “defender ou ter uma causa é querer no mesmo palanque, no mesmo lado da história, a maior quantidade possível de pessoas e entidades” (POMPEU e PEREZ, 2020, p. 277). Como já refletimos antes, acerca da adoção das causas por marcas:

[...] parece-nos mais uma estratégia comercial para angariar a simpatia do público que pensa como a marca que um posicionamento para mostrar a todos os públicos quais são os valores, crenças e pensamentos da quanto à temática. Agindo dessa forma, passam-nos a impressão de que não se expõem, não se arriscam e acabam não defendendo causas a que se propõem e como o público interessado gostaria. (RESENDE; COVALESKI, 2020, p.218)

Adiante, ao analisarmos a marca Carrefour e seu posicionamento pretensamente antirracista, conjugado a uma série de atitudes e casos complexos que envolvem violência, preconceitos, assédios e más práticas, talvez nos afastemos de uma publicidade de causa contributiva para a superação de mazelas e questões estruturais que permeiam nossa sociedade. O próprio debate, não obstante, já é um avanço para pensarmos em alternativas viáveis para a utilização de causas sociais por parte da publicidade.

Racismo, antirracismo e publicidade

Não há como desvincular a publicidade do entorno ao qual ela faz parte, ou seja, da esfera social em que naturalmente um processo comunicacional tem lugar. Isso equivale dizer que não há escapatória para a atividade quanto a reforçar, incentivar, reproduzir ou não estereótipos racistas. Mais do que isso, impõe-se a ela pensar em novos contextos em que seu papel possa não apenas deixar de exercer práticas discriminatórias e preconceituosas em relação a raça, que progrida no sentido de participar de um movimento que faça coro aos anseios de parcela da sociedade por uma estrutura que lute contra o racismo, que não o tolere e que veementemente o combata. É daí que se começa a vislumbrar uma publicidade antirracista, como diversos autores vão sugerir em Leite e Batista (2019) e que o próprio mercado formal, seja através de empresas de eixos variados ou do mercado publicitário em si, começa a contemplar em iniciativas das mais sortidas.

Não se pode esquecer que o sistema publicitário tem sido, por muito tempo, um grande vetor para a solidificação de estereótipos nocivos aos chamados grupos minoritários e que essa realidade só vem sofrendo mudanças de pouco tempo para cá, ainda que timidamente. Registros de como a publicidade contribuiu para a manutenção de um racismo enraizado e normatizado vêm desde muito. Freyre (2010) catalogou anúncios de jornais que, no início do século XIX, expunham escravos como bens materiais, detalhando suas qualidades e defeitos, identificando atributos que os coisificavam, relegando a planos inferiores ou ocultos a humanidade daquelas pessoas.

Desse modo, podemos inferir que a relação da publicidade com a exploração comercial dos negros ao longo da história está inscrita no próprio estabelecimento do capitalismo como sistema dominante em nível mundial. A escravidão enquanto motor para o sistema foi demonstrada por Williams (2012), defendendo a tese de que a Grã-Bretanha se desenvolveu industrialmente a partir da exploração dos escravos negros e que a Revolução Industrial, naquele país, teve fundamentalmente o tráfico negreiro como fornecedores e financiadores para construção de seu capital. Prado Jr. (2011), em perspectiva análoga, identificava a relevância das economias das regiões tropicais do Novo Mundo para a constituição do capitalismo europeu, com a escravidão negra tendo inegável carga.

Talvez, por historicamente as questões raciais estarem ligadas a noções políticas, econômicas e de poder, o capital acabou tendo preponderância em relação ao modo de fazer publicitário. Durante a fase em que a escravidão era a tônica, os anúncios impulsionavam o comércio de escravos. Posteriormente, publicidades de produtos de beleza exaltavam os padrões embranquecidos da sociedade e estereotipavam os negros em funções menos nobres, enquadrados corriqueiramente como subalternos ou apenas como mão de obra braçal e pesada. Ao descrever determinada fase da publicidade no Brasil, Arruda (2015, p. 107-108) analisa texto de uma publicidade do sabonete Palmolive da década de 1950:

Tomemos um exemplo: “Provam os médicos, 2 entre 3 mulheres podem ter cútis linda em 14 dias! Você também pode obter em 14 dias estes benefícios para a sua pele! Menos gordurosa... poros mais finos...cor mais sadia... mais macia... menos sarda... menos seca... mais jovem e mais clara. Palmolive embeleza da cabeça aos pés!”. [...] Nesse texto, a concepção de beleza tem como fundamento a existência de uma boa saúde. Daí o apelo ao médico como legitimador das qualidades presumíveis do sabonete. [...] O resultado é “uma pele mais jovem e mais clara”, o que encerra todos os outros qualificativos. Vale dizer que beleza e juventude, sinônimos de um organismo saudável, estão associados à cor (“mais clara”), configurando um padrão estético, embora preconceituoso.

Embora não seja o objetivo da autora se debruçar sobre o flagrante racismo do anúncio, um passado não tão distante nos evidencia como a publicidade construía de forma acintosa uma relação entre saúde, beleza e a cor da pele. Ao utilizar a autoridade médica para atestar o quão saudável os atributos levantados poderiam ser, a marca deixa o entendimento de que a ciência chancela esse ato de preconceito. Malfadadamente, exemplos como esses não foram raros na história da publicidade brasileira com os argumentos e com a retórica se modificando, mas pouco em relação ao sentido. Culpar exclusivamente a publicidade pelo que aqui denunciamos seria alijá-la da estrutura social. Pompeu e Perez (2020) alertam que a publicidade não salvará a humanidade, apesar disso, não é desejável que seja parte da engrenagem que a destrói incansavelmente.

O racismo, aqui visto por uma perspectiva brasileira, não é um conceito fácil de se explicar. A dificuldade já parte do conceito de raça, que ao longo do tempo foi predominância de campos distintos do saber (medicina, biologia, direito, sociologia, antropologia, dentre outros). Guimarães (2009, p. 11) defende a tese de que raça “é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural”. Em sentido oposto, denota uma forma de classificação social, ancorada em uma atitude negativa com respeito a determinados grupos sociais, atestada por uma condição específica de natureza, algo endodeterminado. Para o autor é o mundo social que molda a realidade das raças. É sabido que a biologia contemporânea tende a negar a existência de raças humanas, mas as ciências sociais enfatizam a urgência em “demonstrar o caráter específico de um subconjunto de práticas e crenças discriminatórias” (GUIMARÃES, 2009, p. 22). E por fim, para aqueles que vivenciam em sua rotina diária os efeitos do racismo, é preciso reconstruir as bases dessa mesma ideologia de forma crítica, buscando respostas para o enfrentamento das opressões sofridas.

Em ângulo similar, Almeida (2020) lembra que o conceito de raça não é estático e está ligado ao momento histórico que tomamos como base para analisar, defendendo que a história das raças está associada à constituição econômica e política da sociedade. Daí é possível partimos para o conceito de racismo, não sem antes distingui-lo, minimamente, das ideias de preconceito e discriminação (embora haja ligação entre os conceitos). O preconceito racial diz respeito ao juízo de valor que se constrói acerca de indivíduos pertencentes a determinado grupo racial, reforçados por meio dos estereótipos e que podem gerar discriminação racial ou não. Essa, por sua vez, trata-se da atitude de dar tratamento diferenciado a indivíduos após identificá-los como membros de determinado grupo racial. Pode-se até falar em discriminação racial positiva, em casos de ações afirmativas que visem corrigir, compensar ou mitigar efeitos de práticas históricas que prejudicaram o desenvolvimento de grupos específicos (ALMEIDA, 2020).

A discriminação racial acaba por materializar o racismo e este, diferente dessa, caracteriza-se por seu feitio sistêmico, o que o afasta de um ato isolado ou até mesmo de um conjunto de atos, se referindo a “um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas” (ALMEIDA, 2020, p. 34). A composição do racismo, como podemos notar, é repleta de pontos de contato que só fazem complexifica-lo. Frequentemente, o argumento que evoca a noção biológica da não existência do conceito de raças humanas é trazido à tona por aqueles que buscam negar o racismo sistêmico. Ora, se não existem raças, como pode se materializar o racismo? Contra esse argumento, Guimarães (2009, p. 67) é preciso ao afirmar que:

é justo aí que aparece a necessidade de teorizar as “raças” como elas são, ou seja, construtos sociais, formas de identidades baseadas numa ideia biológica errônea, mas socialmente eficaz para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios. Se as raças não existem num sentido estrito e realista de ciência, ou seja, se não são um fato do mundo físico, elas existem, contudo, de modo pleno, no mundo social, produtos de formas de classificar e de identificar que orientam as ações humanas.

Essa acepção aproxima-se do que Almeida (2020) classifica como racismo estrutural, perpetuado, naturalizado e conformado a partir de práticas econômicas, políticas e sociais. Ora, ao considerarmos raça como um construto firme e pleno no mundo social, estamos assumindo que o conceito opera pelas mais diversas vias e em sentidos processuais e estruturais que permitem-nos ultrapassar a responsabilização individual pelas práticas racistas (como pretende o neoliberalismo), frisando a dimensão do poder no entrelaçamento das relações raciais.

Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição. (ALMEIDA, 2020, p. 50)

Pensar o racismo dessa maneira, estruturalmente, é o que nos permite adentrar à percepção do conceito de antirracismo. Quando os neoliberais imputam o racismo a uma atitude individual, uma escolha, o afastam de um esforço coletivo e simulam a ideia de que toda prática racista é explícita e facilmente caracterizada. O cenário que aponta para a interpretação estrutural, em outra visada, exige reflexão sobre mudanças profundas que devem ser empreendidas nas relações sociais, econômicas e políticas, sem deixar de lado o combate ao racismo individual e institucional. Tais transformações, para muitos autores (GUIMARÃES, 2009; BONNET, 2000; LEITE, 2019; RIBEIRO, 2019) pressupõe, justamente, a necessidade de que a sociedade se constitua de indivíduos antirracistas.

É fundamental debater o papel do capitalismo na perpetuação do racismo. Por exemplo, uma marca de luxo pode fazer uma coleção de moda inspirada em elementos da cultura negra, porém só contratar modelos brancas para o desfile – essas peças chegam ao consumidor já destituídas de sentido. O debate, dessa forma, precisa ser estrutural, não individual. (RIBEIRO, 2019, p. 72)

O antirracismo é uma criação do século XX, segundo Alastair Bonnet (2000), ainda que identifique ações antirracistas antes disso, como no caso da formação de Quilombos no Brasil para lutar pela liberdade dos negros escravizados. O autor lembra que a questão não pode ser percebida como o inverso do racismo, tão somente, como também acredita Leite (2019).

Guimarães (2009) percorre o conceito histórico de antirracismo traçando paralelos entre a situação nos Estados Unidos, África do Sul e Brasil. Naqueles dois países, os dois sistemas de racismo de Estado sobreviventes à Segunda Grande Guerra (segregação racial no primeiro, apartheid no segundo) foram os grandes alvos dos programas antirracistas, ao passo que no Brasil isso reforçava a ideia de que vivíamos uma democracia racial. No momento em que a segregação racial é desmantelada nos Estados Unidos, por obra do Movimento dos Direitos Civis, começa a cair por terra esse mito brasileiro, aproximando os racismos brasileiro e estadunidense. A queda das regras de segregação racial nos EUA fez emergir a percepção de que as desigualdades raciais pertenciam a uma ordem mais sofisticada de mecanismos sociais – a organização familiar, a pobreza, a educação escolar, a seletividade do mercado de trabalho, por exemplo (GUIMARÃES, 2009).

A propícia comparação entre o uso do termo nos EUA e no Brasil se deve ao fato de que nossa sociedade, tal qual muitas outras, é fortemente influenciada pelo conteúdo midiático e cultural que daquele país emerge. Vejamos a constatação de Fraser (2019, p. 74-75) sobre o movimento antirracista e seus pretensos ganhos nas últimas décadas:

Algo semelhante vale para o antirracismo. O movimento pelos direitos civis alcançou algumas importantes vitórias legais, mas o que foi conquistado foram os direitos no papel, que não se traduziram em nada remotamente próximo à igualdade social. Os negros nos Estados Unidos ainda enfrentam enormes assimetrias (na verdade, crescentes!) no que diz respeito ao sistema de justiça criminal, empregos, moradias, exposição a inundações e água contaminada, e muito mais. A realidade é que o neoliberalismo progressista não produziu muitos ganhos materiais reais para a esmagadora maioria das pessoas que suas correntes progressistas afirmam representar. E como poderia, dado que as vitórias legais coincidiram com um ataque maciço aos direitos trabalhistas e às condições de vida da classe trabalhadora? Não há como negar que o neoliberalismo progressista beneficiou os níveis mais altos das classes profissional gerenciais, e esse é um estrato grande e influente. Mulheres e/ou negros naquele estrato, como seus colegas brancos, se saíram muito bem. Mas não, não estou muito convencida em relação aos avanços para todos os outros.

Ora, se omitirmos a referência aos Estados Unidos, facilmente podemos crer que a realidade apontada reproduz a brasileira. Por aqui, de modo similar, vivemos a contradição de tempos em que crescem os movimentos em favor de igualdade de tratamento para as minorias ao passo que, na esfera política, institucional, jurídica, intensifica-se o ataque aos trabalhadores que, em sua parcela majoritária, é representada por essas mesmas minorias.

Por tudo isso é tão complexo falar em antirracismo, especialmente no Brasil. Mais ainda quando fazemos o caminho de pensar a publicidade como uma atividade que se proponha, em tempos como os de hoje, antirracista. Diversos autores denunciaram e continuam a expor os malefícios da publicidade para o mundo, desde o estímulo ao consumo excessivo (BAUMAN, 2008) até a tentativa de construção de uma noção de neutralidade (MARCUSE, 2012) e por isso, talvez, a atividade vem buscando alternativas. A publicidade social (SALDANHA, 2021), a defesa de causas e o apelo à responsabilidade social (COVALESKI, 2016; POMPEU E PEREZ, 2020) são alguns desses artifícios.

O caso que apresentamos em sequência, trazendo diversas passagens sobre a marca de comércio varejista Carrefour, é uma mistura de muitas dessas alternativas, na tentativa de mostrar-se como uma marca engajada e conectada às demandas de nossos tempos. Ocorre que, por vezes, a imagem que se tenta passar colide com a prática e essa, nem sempre, reflete as palavras que compõem os anúncios publicitários, tampouco os posicionamentos definidos pelos mais altos escalões gerenciais da organização.

A marca Carrefour: o antirracismo entre as ações de marca e a prática

É bastante característico de nosso tempo que os aspectos da vida humana sejam associados aos do cotidiano de uma empresa. Assim, as organizações com fins lucrativos tentam se aproximar dos consumidores em um sentido inverso, humanizando suas marcas (COVALESKI e COSTA, 2014; CARRERA, 2018) e tentando mostrar que se constituem como organismos vivos na sociedade, capazes de partilhar das dores e alegrias de sua comunidade de consumo. Desse modo, posicionam-se sobre os mais variados temas e incluem em sua rotina administrativa práticas que ensejam a contribuição para o avanço de problemas estruturais da sociedade à qual fazem parte.

De modo a exemplificar as teorias que aqui estamos trabalhando e analisar empiricamente os desdobramentos dessa forma neoliberal de agência na dinâmica do consumo, tomaremos como corpus de pesquisa a marca Carrefour e seu posicionamento em favor da diversidade, mais especificamente, seu discurso de marca ancorado nas práticas antirracistas. Reconhecemos, de partida, que diversidade e antirracismo não são conceitos iguais. Enquanto o primeiro pressupõe a inclusão de minorias em espaços em que estão pouco representados, o segundo implica em posições efetivamente contrárias e combativas contra o racismo. Almeida (2020) reforça que, embora essencial, a trivial ocupação de espaços de poder e decisão por pessoas negras e outras minorias não é, infelizmente, capaz de garantir que uma instituição deixe de ser racista ou que seja antirracista. No entanto, é relevante frisar que percebemos, na análise que se segue, uma aparente confusão por parte da própria marca em relação à adoção do termo, o que nos leva a interpretá-lo como equivalentes no contexto específico.

Há algum tempo o Carrefour vem trabalhando, no Brasil, o discurso em prol da diversidade (sobretudo, aqui, a racial). Para tanto, a marca se integrou a iniciativas e índices de sustentabilidade que privilegiam a temática, como o Instituto Ethos e a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial. Os índices de sustentabilidade são demarcados como estratégia importante para a marca. No endereço eletrônico do grupo, em uma seção sobre os prêmios que a empresa conquistou, podemos encontrar a menção ao “Prêmio Guia Exame de Diversidade” que, em 2018, deu à empresa o título de excelência na atuação em prol da diversidade. O tema também é destaque nos relatórios de sustentabilidade da marca, tendo inclusive pautado a capa do relatório de 2019 (fig. 1).


Figura 1
Capa do relatório anual de sustentabilidade de 2019 do Carrefour
SITE DO GRUPO CARREFOUR

Outra iniciativa que apoia a percepção de que o Carrefour se vê e se anuncia como uma empresa antirracista é a participação no livro de Maurício Pestana “A empresa Antirracista”. Neste livro, o presidente do grupo no Brasil à época, Noël Prioux, quando perguntado sobre quando o Carrefour começou a trabalhar a questão da diversidade no país e os motivos que atentaram a empresa para o tema, respondeu que a marca iniciou tal perspectiva em 2012, com a elaboração de uma política de valorização da diversidade e inclusão trabalhada com todos os atores envolvidos. (PRIOUX apud PESTANA, 2020)

O mandatário ainda afirma, na mesma entrevista, que a corporação fez um diagnóstico sobre o cenário de inclusão da empresa e a partir disso estabeleceu objetivos de onde queriam chegar. Prioux (apud PESTANA, 2020, p. 51) destaca a questão racial ao dizer que desde 2012 a empresa avançou na “cultura do respeito e igualdade de oportunidade às pessoas negras” e ressalta a necessidade de treinar e capacitar funcionários para acolher a diversidade, sensibilizando assim toda a organização.

Tudo isso mostra que a marca, há algum tempo, adota e propaga a estratégia da inclusão das pessoas pertencentes a minorias e que, nesse sentido, dá atenção especial às pessoas negras, por vezes confundindo diversidade com antirracismo. Todavia, na contramão dessas estratégias, vários casos amplamente difundidos na imprensa fazem parecer que a imagem de uma empresa antirracista se encontra mais nos discursos publicitários que nas ações concretas da marca.

As polêmicas que envolvem a marca de origem francesa, no que diz respeito a problemas sociais, não são recentes. Em 2009, o técnico em eletrônica Januário Alves de Santana foi agredido por seguranças da rede no estacionamento de uma unidade do Carrefour em Osasco confundido com um ladrão ao entrar no próprio carro, segundo o próprio. A cidade também foi palco de uma outra triste história, quando a cadela Manchinha foi espancada até a morte, novamente por funcionários que faziam a segurança do supermercado, sob a alegação de que estava causando problemas na unidade e que em virtude disso, os funcionários agiram para espantá-la.

Em agosto de 2020, dois casos graves tiveram lugar em unidades da rede. Em Recife, um representante de vendas que trabalhava organizando produtos de sua empresa nas gôndolas do Carrefour faleceu e teve o corpo coberto por caixas de cervejas e guarda-sóis enquanto a operação da loja prosseguiu normalmente. Já no Rio de Janeiro, uma funcionária foi demitida após denunciar um caso de racismo que teria sofrido no trabalho. Pouca explicação em relação a esse caso foi dada, contrastando e muito com a política da marca, identificada pelo próprio presidente ao dizer que o Carrefour adotava uma postura de tolerância zero com casos de discriminação no ambiente de trabalho (PRIOUX in PESTANA, 2021).

Enquanto a marca propagava suas práticas em favor da diversidade, participando de iniciativas nacionais sobre o assunto e conquistando prêmios, os acontecimentos pareciam indicar uma contrastante falta de cuidado com a temática. Os casos de desrespeito aos direitos humanos e à vida, como um todo, se acumulavam e pareciam apontar para um cenário trágico que se materializou no dia dezenove de novembro de 2020.

Às vésperas do Dia da Consciência Negra, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, foi espancado e morto por dois seguranças brancos em unidade do Carrefour em Porto Alegre. Eram funcionários terceirizados que faziam a segurança do supermercado – e esse não é um detalhe, sim uma condição, visto que faz parte de uma escalada neoliberal que depreda os direitos trabalhistas (DARDOT e LAVAL, 2016; BROWN, 2019; FRASER, 2019) e reconfigura o tempo do trabalhador (SENNETT, 2015) –, o que ajuda a explicar por que a empresa, apesar de dizer investir em treinamento para o acolhimento da diversidade, não consegue empregar essa visão em todas as suas camadas.

Em resposta ao trágico evento, o Carrefour acelerou algumas medidas que pretendia tomar. A criação de um Comitê independente, por exemplo, foi uma delas, bem como a promessa de substituição de todas as equipes de segurança terceirizadas por próprias. Ao mesmo tempo, implementou um fundo de 25 milhões de reais para apoiar projetos que atuem no combate ao racismo e na disseminação da cultura negra. Lançou também o site “Não Vamos Esquecer”, que compila as ações da marca em relação às práticas antirracistas. Nesse sentido, Corrêa, Moreno Fernandes e Francisco (2022) identificam que o grupo diferencia a comunicação de tal site por meio de uma paleta de cor totalmente diversa da marca, bem como uma aparição discreta do logotipo da empresa, tentando afastar a iniciativa de suas práticas, efetivamente.

Todas essas iniciativas são, inegavelmente, um passo importante no reconhecimento da culpa e uma postura que assume o crime que a empresa cometeu, não só contra um homem negro, mas contra toda a sociedade, principalmente a população negra. A atitude, infelizmente, ainda carece de melhores entendimentos por parte da marca e a nova entrevista do presidente Noël Prioux para o livro deixa em evidência que há arestas importantes a serem aparadas. Nela, o CEO parece se preocupar mais com impacto para a marca do que para a sociedade:

O impacto foi grande, porque foi um acontecimento gravíssimo. [...] Mas o impacto também foi enorme para o Carrefour: uma empresa não existe para matar um cliente. [...] Então, como eu disse, foi um golpe para nós, mas também uma revelação, porque achávamos que as ações que promovíamos semanalmente eram muito mais avançadas do que as de qualquer empresa. [...] Temos que fazer a gestão de alguns conflitos, porque é natural que haja conflitos. Há pessoas um pouco mais difíceis, outras que estão passando por dificuldades, e podem ser funcionários ou clientes, mas temos que aprender a acalmá-las até encontrar uma solução para o conflito. (PRIOUX in PESTANA, 2021, online)

É possível notar que a preocupação da marca acaba se voltando para si própria. Isso fica latente em outros momentos da entrevista, precisamente em mais três oportunidades, em que Prioux diz que a morte mostrou que a empresa se preocupou muito com as práticas internas e esqueceu-se, portanto, de olhar para a sociedade como um todo. Tal preocupação é de se estranhar, visto que quem praticou a ação contra o cliente foram funcionários sob a gestão da marca e nas dependências dela, o que talvez mostre que nem internamente as tais práticas antirracistas eram satisfatoriamente disseminadas.

A forma cuidadosa e estratégica com que o Carrefour lida com a chaga deixada pela morte de João Alberto fica evidente no relatório de sustentabilidade do ano de 2020. Na abertura do compêndio, o presidente cita uma série de desafios do ano em questão, os progressos da marca em sua performance de mercado, ações pela diversidade e por melhorias alimentares e só em um breve parágrafo menciona a morte de João Alberto, sem citar o nome da vítima. Somente na página 85 é que João Alberto é nomeado, para que a empresa aponte quais as providências vêm tomando, intitulando-as de “Luta Antirracista”. Por fim, o Carrefour ainda foi acusado de ameaçar com processo os autores de um livro sobre segurança privada que abordava o caso João Alberto e que seria lançado pela editora da Universidade Zumbi dos Palmares. Só recentemente, na segunda metade do ano de 2022, o livro foi aparecer na loja da editora para compra.

Em 2023 o grupo francês anunciou programa que pagará 68 milhões de reais em bolsas de estudo de graduação e pós-graduação para estudantes negros, bem como bolsas de inglês em cursos voltados para o mesmo público. No mesmo ano, entretanto, a marca conviveu com outros casos de racismo como o da professora Isabel Oliveira que ficou vestida apenas com suas roupas íntimas, em Curitiba, para protestar contra o ostensivo acompanhamento de segurança no Atacadão, supermercado da rede. Também no mesmo ano, o advogado Vinícius de Paula foi a um caixa preferencial de um Carrefour no condomínio Alphaville, em São Paulo, mas não foi atendido sob a alegação de que o caixa não era pra ele, mesmo estando vazio. Ao se dirigir a outro caixa, Vinícius presenciou uma mulher branca sendo atendida pela mesma atendente que havia lhe respondido negativamente. A marca, para se defender de ambas as acusações, desastradamente ainda afirmou que metade de seus 150 mil funcionários eram negros, argumento constantemente rebatido pelo movimento negro. Além disso, a marca disse que ia reforçar o treinamento de seus funcionários junto à Universidade Zumbi dos Palmares. Contudo, no caso de Alphaville, a medida anunciada foi o desligamento da funcionária que cometeu o ato racista, transferindo ao indivíduo a responsabilidade da instituição.

Todo esse cenário pode reforçar a ideia de que a diversidade não passa de uma oportunidade de ampliação de capital – seja econômico ou simbólico. A afirmativa, que pese ser dura, é uma constatação do que Harvey (2014) chamou de mercadificação de tudo, do que Dardot e Laval (2016) nomearam como concorrencialismo ou, bem antes deles, pode se enquadrar no entendimento que Marx (2011) concebeu como fetichismo da mercadoria.

A falta de coerência entre o programa antirracista que o Carrefour emprega em suas políticas internas e suas práticas, infelizmente, é algo comum às marcas. Talvez não seja mesmo algo a se esperar dos atores com fins lucrativos que operam na lógica neoliberal de concorrência. Moreno Fernandes (2019, p. 147) constata, ao analisar campanha da Perdigão, que a corporação, na tentativa de incluir o discurso racial “em consonância com as práticas racistas históricas na formação cultural brasileira, reproduz esses estereótipos. Assim, promove uma representatividade que reforça o lugar destinado pelos grupos dominantes às pessoas negras nos meios de comunicação brasileiros: a margem”. Entretanto o autor pontua que a audiência, por meio de suas possibilidades de interação, questiona tais representações e estabelecem zonas de contato que permitem novos modos de existência que potencializem a voz de comunidades marginalizadas. Talvez resida na capacidade dos cidadãos em incrementar suas competências midiáticas (BORGES, 2014) e na própria ideia de uma literacia publicitária (MACHADO, BURROWES e RETT, 2017) um caminho para que as marcas se atentem mais para a coerência entre suas estratégias empresariais, descritas em empolados manuais e cartilhas, e suas práticas cotidianas, aquelas às quais não conseguem fugir quando a realidade das políticas neoliberais bate à porta.

Considerações finais

Compreender o consumo é perceber significados complexos que acabam por moldar a vida em sociedade e relações das mais diversas. A publicidade, como importante parte da engrenagem que o incentiva, não é capaz de fugir dessas implicações e se portar como mera ferramenta gerencial. Daí é que se faz necessário o debate acerca das formas contemporâneas de publicidade como a de causa. Vista com desconfiança por parte do público, como oportunidade para algumas marcas, como mudança para outras e, ainda, com ceticismo por parte de muitos pesquisadores, é perceptível que essa modalidade de publicidade vem ganhando terreno nas estratégias das grandes marcas.

A análise que empreendemos pretendia mostrar o quão complexo é para as marcas assumirem posicionamentos sociais sem parecer oportunistas. As empresas que possuem recursos para assumirem protagonismo nas lutas sociais acabam por ser aquelas que atuam no mercado mundial, tendo, desta maneira, ramificações das mais diversas, o que dificulta a adoção de práticas universais e, consequentemente, o controle das ações globais.

Essas marcas respondem a um contexto em que a financeirização é a tônica e isso as leva a ter que prestar conta aos acionistas, antes de responder aos anseios da sociedade. Talvez por isso, as práticas não reflitam as políticas inclusivas abordadas nos manuais de boas práticas das empresas, geralmente, porque o imperativo de obter lucros maiores que os anos anteriores (e que a concorrência) é característica do concorrencialismo moldado pelo neoliberalismo. Isso fica claro na pouca importância que o mercado de ações deu à morte de João Alberto no supermercado Carrefour. No dia seguinte ao assassinato as ações da marca na Bolsa de Valores de São Paulo subiram 0,49% em relação ao dia anterior e encerraram o mês de novembro com valor nominal mais alto do que no dia em que João faleceu. Isso sugere que, para o mercado, a morte de um homem negro pelas mãos de funcionários da marca nada significa se a empresa segue com bons índices em seus negócios.

Ao mesmo tempo, os exemplos abordados aqui mostram como o Carrefour não se furta em explorar a causa antirracista ao fazer parte de iniciativas empresariais e índices que englobam esse tipo de conduta, bem como de se assumir antirracista em um livro sobre o tema. Mesmo com toda a mobilização dos consumidores em protestos e boicotes contra o Carrefour, a empresa teve, no 4º trimestre de 2020, quando o caso João Alberto teve lugar, 47% de aumento em seus ganhos.

É preciso avançar muito para que possamos falar em marcas e empresas antirracistas. Como vimos nesse trabalho, os posicionamentos nesse sentido esbarram em questões estruturais, políticas, econômicas, sociais muito mais complexas do que, por vezes, parecem. Os próprios conceitos de racismo e antirracismo são entrelaçados com várias outras perspectivas e intricados de tal modo que, até para serem propagandeados, precisam de muito mais cuidado. O exemplo do Carrefour nos mostra que, com o modelo neoliberal que vivemos, posicionar-se como uma marca antirracista pode ser, por enquanto, uma questão apenas de imagem de marca e não uma prática consistente e voltada para a sociedade.

Referências

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Notas

3 Disponível em: https://acesse.one/DLvyg. Acesso em 15 de abril de 2023.

Notas de autor

1 Doutorando em Comunicação (PPGCOM/UFPE), Mestre em Comunicação (PPGCOM/UFJF), professor de Publicidade (CBVZO/IFRR), membro do Grupo de Pesquisa Publicidade Híbrida e Narrativas de Consumo (PPGCOM/UFPE – CNPq). Correio eletrônico: vitor.resende@ifrr.edu.br.
2 Doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), com pós-doutoramento em Conteúdo de Marca na Universitat Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). Docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, e líder do Grupo de Pesquisa Publicidade Híbrida e Narrativas de Consumo (PPGCOM/UFPE – CNPq). Correio eletrônico: rogerio@covaleski.com.br.


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