Dossiê

Recepción: 06 Abril 2023
Aprobación: 12 Junio 2023
DOI: https://doi.org/10.5212/RIF.v.21.i46.0005
Resumo: A união entre europeus e africanos modelou um corpo-samba de características ímpares impregnado na imaginação brasileira. A ideia é provar que o samba, produto marginalizado pelas elites, passou a ser símbolo de brasilidade - identidade Nacional. Num primeiro momento são traçados breves contextos históricos, sociais e políticos das décadas de 1910 a 1940 em relação a história e evolução do samba no Brasil. Em breve trazemos a construção do corpo pelo samba. A teoria dos estudos culturais foi usada como base para a investigação histórica. Tal estudo foi realizado através de análises sócio-históricas em artigos e livros, que possibilitassem a interpretação das representações construídas em torno da passagem do significado do samba, de sua música e dança de cunho popular para uma representação da cultura brasileira.
Palavras-chave: Afrodescendência, Corpo-samba, Estudo cultural, Samba.
Abstract: The union between Europeans and Africans modeled a samba-body of unique characteristics impregnated in the Brazilian imagination. The idea is to prove that samba, a product marginalized by the elites, has become a symbol of Brazilianness - National identity. At first, brief historical, social and political contexts are traced from the 1910s to the 1940s in relation to the history and evolution of samba in Brazil. Soon we will bring the construction of the body through samba. Cultural studies theory was used as a basis for historical investigation. Such a study was carried out through socio-historical analyzes in articles and books, which would allow the interpretation of the representations built around the passage of the meaning of samba, its music and dance of a popular nature to a representation of Brazilian culture.
Keywords: African descent, Body-samba, Cultural study, Samba.
Resumen: La unión entre europeos y africanos modeló un samba-cuerpo de características únicas impregnadas en el imaginario brasileño. La idea es demostrar que la samba, un producto marginado por las élites, se ha convertido en un símbolo de brasilidad - Identidad nacional. Al principio, se rastrean breves contextos históricos, sociales y políticos desde la década de 1910 hasta la de 1940 en relación con la historia y la evolución de la samba en Brasil. Próximamente traeremos la construcción del cuerpo a través de la samba. La teoría de los estudios culturales se utilizó como base para la investigación histórica. Este estudio se realizó a través de análisis sociohistóricos en artículos y libros, lo que permitiría la interpretación de las representaciones construidas en torno al paso del significado de la samba, su música y baile popular para una representación de la cultura brasileña.
Palabras clave: Ascendencia africana, Cuerpo-samba, Estudio cultural, Samba.
Introdução
No início do século XX, logo após a 1ª Guerra Mundial, o samba emerge dos morros e redutos negros para tornar-se uma identidade social nas Elites Brasileiras - evoluindo a um símbolo de nacionalidade. Esta pesquisa procura realizar um acompanhamento no processo de origem cultural, estético, histórico e social do surgimento e das transformações do samba em seus mais diferenciados contextos, levantando fatores inspiradores e estilos de vida de uma classe periférica, a qual trouxe um estilo de música e dança peculiares às suas origens (SIMÕES, 2006, p 9).
A teoria dos estudos culturais (E.C.) foi usada como base metodológica qualitativa para a investigação histórica. Tal estudo foi realizado através de análises sócio-históricas em artigos e livros, pesquisados e baixados, que possibilitassem a interpretação das representações construídas em torno da passagem do significado do samba, de sua música e dança de cunho popular para uma representação da cultura brasileira – suas peculiaridades (EDGAR, SEDGWICK, 2003, p 116).
Em um primeiro momento são traçados breves contextos históricos, sociais e políticos das décadas de 1910 a 1940 em relação a história e evolução do samba no Brasil. Nele, são contextualizados alguns conceitos que proporcionam um melhor entendimento da leitura da pesquisa, o meio social em que viviam os afrodescendentes e as representações da identidade nacional. Num segundo momento trazemos a construção do corpo pelo samba. Esse "corpo-samba" que viveu nos palmares, nas senzalas, nos terreiros e nos salões de festa mais variados. A união entre europeus e africanos modelou um corpo-samba de características ímpares impregnado na imaginação brasileira. A ideia é provar que o samba, produto marginalizado pelas elites, passou a ser símbolo de brasilidade, uma identidade Nacional.
História cultural negra e do samba
O Rio de Janeiro foi território indígena (atualmente a Aldeia Maracanã ainda resiste e sobrevive), foi terra que abrigou a família real de Portugal, entre outros povos europeus, foi à capital do Brasil e circuito diaspórico no período escravocrata com o comércio negro.
Cunha (2004, p. 32) comenta que desde a Abolição da Escravatura até o início da República houve muitas modificações no contexto social Brasileiro. No final do século XIX até as primeiras décadas do século XX, algumas questões sobre a identidade do Brasil eram levantadas por intelectuais e políticos. Segundo eles, a identidade brasileira estava sendo “comprometida” devido ao nosso país possuir uma grande heterogeneidade racial, agravando-se com a existência de elementos afro-americanos. Desta forma, o ‘mestiço’ acabou se transformando em ‘bode expiatório’ do atraso brasileiro, o que fez com que as manifestações culturais africanas fossem vistas com desprezo. O Rio de Janeiro a cada dia ia se tornando um centro político, social e cultural do país, atraindo milhares de pessoas de diversas localidades (SP, MG, BH, PE), mesclando conflitos étnicos, sanitários, religiosos e socioculturais (CUNHA, 2004, p. 32).
Canclini, (1995, p 70) em seus estudos aborda o entrecruzamento da cultura urbana, culturas populares e a hibridação cultural gerada pela heterogeneidade multitemporal. Para o pesquisador, o processo de hibridação cultural da América Latina acontece através da falta de uma política reguladora baseada em princípios da modernidade, cujos processos socioculturais existiam separados e combinam-se formando o hibridismo com novas estruturas, cultos, objetos e práticas. Esse hibridismo marcou o século XX nas mais diferentes áreas, possibilitando desdobramentos, produtividade e poder criativo distinto das mesclas interculturais já existentes na América latina. Há um entrecruzamento com meios massivos de comunicação, tradições dos setores políticos, educacionais e religiosos de origem ibérica com as tradições culturais e linguísticas de grupos autóctones. Apesar das tentativas da elite de conferir à sua cultura um perfil moderno, restringindo a difusão da cultura indígena e colonial entre os setores populares, a mestiçagem interclassista decorrente desses inter-relacionamentos teria, segundo Canclini, gerado formações híbridas em todos os estratos sociais latino-americanos (CANCLINI, 1995, p.70-1; GANGLIETTE, 2007, p.3).
Sem criar um processo de inclusão dos escravos após a lei da Abolição, havia uma marginalização socioeconômica do negro, pois estes eram excluídos, devido ao desastroso processo de substituição do trabalho escravo pelo assalariado. Sem uma política de inclusão social, os ex-escravos sofriam além do preconceito da cor uma ideologia racista.
Após a Primeira Guerra Mundial, a música tornou-se um símbolo de alegria aos afros-descendentes e causou conflitos com a elite do Brasil, que pretendia ter todos os costumes europeus, para assim não ser um país do atraso criando uma campanha de civilização da população é fortemente planejada pelo Governo:
Era preciso “civilizar” a capital federal, deixar no passado as feições coloniais materializadas nas pequenas ruelas, no saneamento precário, nos “batuques”3 africanos pelas ruas, nas doenças endêmicas, nos cortiços e, claro, na sujeira generalizada que relegava à coadjuvação a bela tríade da natureza tropical: mar-floresta-montanha. Assim pensava grande parte da elite da época, sempre tomando como paradigma a Europa (DINIZ, 2012, p17).
A esse respeito, Gomes (2013) concorda com Diniz (2012) quando diz que os negros foram retirados do Centro da Cidade todos os traços de pobreza, miséria, negros e mestiços judeus de várias partes do mundo, enfim toda sorte de pessoas que não participava da vida social da capital – empurrados para a margem da cidade como favelas e subúrbios. A região ficou conhecida como “Pequena África”4 onde seria a principal matriz na formação de uma cultura popular urbana no Rio de Janeiro (GOMES, 2013, p.178).
A percepção de povo e nação evidentemente alterou-se profundamente possibilitando que as manifestações culturais advindas dos grupos de mestiços e negros pudessem, paulatinamente, passar por um processo de valorização pela elite intelectual e política brasileira (GOMES, 2013, p.178).
Formas e constâncias musicais como o Lundu, a Modinha e a Sincopação já faziam parte da colônia, com o advento da República, a música popular urbana, com grandes influências da música folclórica e erudita, começa a arraigar-se em meio a tensões sociais e lutas culturais. Mais tarde, ao longo do século XIX, verificou-se a fixação das danças dramáticas, como os reisados, as cheganças, congos e congados, caboclinhos e outras manifestações folclóricas (NAPOLITANO, 2002).
Neste mesmo momento ocorre a Revolução Comercial onde se defini claramente dois grupos: A Elite (parcela que detém poder econômico, exerce dominação cultural e o controle político) e os Grupos Não-Organizados (massa urbana ou rural – de baixa renda, excluída da cultura erudita e das atividades políticas) (BELTRÃO, 1980).
Luiz Beltrão reflete:
De um lado, as camadas da população que têm acesso ao livro, quer como leitores, autores ou editores, cuja situação econômica lhes permite educar-se em escolas e universidades, participando ativamente do processo civilizatório, mediante o recolhimento e debate de ideias e projetos que visariam conquista, consolidação e manutenção do poder e dos privilégios que sua capacidade política lhes conferira. Do outro, as camadas sem condições de integrar-se em tal contexto, caracterizadas, no que nos interessa, pela impossibilidade de acesso ao livro, sequer na primeira categoria – a de leitor. Analfabetas, sem admissão ou frequência à educação do sistema, preocupadas unicamente em subsistir à falta de recursos econômicos, permanecem marginalizadas da gente erudita, refugiando-se, por isso, em seus próprios guetos culturais (BELTRÃO, 1980, p.2).
A partir deste momento, iniciou-se uma grande diferença entre o linguajar dos meios de comunicação. Inventou-se um rico linguajar recheado de provérbios, contos, mitos e lendas; compôs cantorias, desafios e repentes; desenvolveu folguedos, autos e cirandas; imaginou o mutirão e “chegou ao paroxismo nos enredos fantásticos das escolas de samba” (BORDENAVE, 1988; 1995).
Beltrão (1980, p.17) começa a refletir sobre a maneira que essa comunicação em nível popular ganha espaços: “A nossa elite, inclusive a elite intelectual, tem o folk-way das classes trabalhadoras da cidade e do campo apenas como objeto de curiosidade, de análise mais ou menos romântica e literária”, o que impossibilitaria a comunicação e comunhão entre governo e povo, elite e massa.
Nasce assim a teoria da Folkcomunicação – estabelece estreita relação entre folclore e comunicação popular, desbravar uma nova área de estudos da Comunicação no Brasil, apontando as classes populares ou marginalizadas como produtoras de bens noticiosos simbólicos a partir de canais não formais de comunicação. Para Beltrão, “as classes populares têm meios próprios de expressão e somente através deles é que podem entender e fazer-se entender”.
O samba desenvolveu-se no Rio de Janeiro a partir de redutos negros, nos terreiros da Cidade Nova havia algumas casas conhecidas como “Casas das Tias Baianas” (grupos imigrados da Bahia) que eram ao mesmo tempo moradia, local de culto e de lazer, e funcionavam como esteio tanto para o desenvolvimento do samba quanto do próprio candomblé5 (GOMES, 2013, p.180).
As Tias Baianas foram as figuras centrais para a permanência das tradições afro-brasileiras, especialmente Tia Ciata, Tia Carmem, Tia Amélia, Tia Perciliana. Consideradas por muitos como ‘matriarcas do samba’, eram influentes e poderosas, tinham situação econômica privilegiada, a posição central na casa, na comunidade e nas práticas religiosas, de modo que nos terreiros ou eram mães-de-santo6 ou ocupavam os principais cargos subsequentes. Nas festas familiares, tocava-se e dançava-se o samba em seus diversos estilos, para o divertimento dos presentes (SODRÉ, 1998, p. 35; DINIZ, 2012, p. 27).
Muitos deles arranjados na letra e na música por músicos/poetas urbanos anônimos, em contraponto com as músicas eruditas dos grandes salões. E é nesse contexto que a modinha passa dos “pianos dos salões” para os “violões das esquinas”, junto com o maxixe e o samba, dando base à formação de grupos seresteiros, aos conjuntos de chorões, aos músicos de toadas e das danças rituais. Deste ponto em diante, a música popular definiu-se com extrema rapidez e tornou-se a caracterização mais bela da nossa cultura, a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte criação de nossa raça até agora (ANDRADE, 1972, p7).
Dirá, Sandroni (2001), que nesta periferia se reuniam os futuros bambas: Ciata, Hilário Jovino [...], João da Baiana, Sinhô, Heitor dos Prazeres, Donga, Sinhô, Pixinguinha, Ismael Silva [baianos ou filhos das Tias Baianas]. Essa fase pioneira se consolida no ano de 1917, que foi o ano do lançamento da música “Pelo telefone”, considerado por todos como o marco inicial do gênero.
É a partir de então que a palavra “samba” entra no vocabulário da música popular. Assim que lançada, no ano de 1917, Ciata, João da Mata, Germano e Hilário, reclamaram a autoria deste samba, que havia sido registrado com autoria de Donga e Mauro de Almeida - fato divulgado discretamente num canto de página do Jornal do Brasil em 4 de fevereiro de 1917. Inclusive há relatos que Tia Ciata teria sido uma baiana que se dedicava também à composição, apesar de nunca ter sido assim nomeada em suas biografias e escritos sobre a história do samba (SANDRONI, 2001, p. 15).
Com todas essas repercussões o Rio de Janeiro vai se transformando e tornando-se um local promissor a esses artistas e compositores ganhando cada dia mais Centros de Diversões como cafés-cantantes, cinemas, teatros, imprensa e turismo (CUNHA, 2004).
Samba em suas mais variadas expressões
O samba sai das periferias, crescentemente se distribui e encanta os mais variados públicos. Essa popularidade que o samba vai desenvolvendo cai nas graças do governo de Getúlio Vargas e acaba sendo um instrumento utilizado para ter acesso aos “Trabalhadores” (COELHO, 2011)
Nessa década de 1930 - 1940, os menos favorecidos, principalmente os de descendência africana, tinham dificuldades em ter um trabalho assalariado. A malandragem7 passou a ser destaque na cidade e os meios de comunicação foram os principais divulgadores dessa tradição. Nasce assim o famoso “Samba Malandro”.
Este estilo musical foi rispidamente perseguido devido a seu caráter desestabilizador e contrário a ideologia trabalhista a qual estava sendo implantada. Em 1939, há criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), com o intuito de estabelecer o estímulo na produção de filmes educacionais e nacionalistas para benefício do governo, foram estabelecidas “regras e medidas de condutas para o samba e o sambista, como, por exemplo, a exaltação ao trabalho e à grandiosidade da nação como temas preferenciais a serem adotados pelos sambistas” que ganhou o nome de “Samba Exaltação” para se contrapor ao samba malandro (FENERICK, 2005, p. 53).
Munanga; Gomes (2006) esclarecem que dentre essas modificações, o samba vai se ramificando e ganhando outras formas e indagações: samba-choro, samba-canção, samba de terreiro, samba de exaltação, samba-enredo, samba de breque, sambalanço, samba de gafieira, bossa nova, samba-jazz, samba de partido alto, samba de morro, samba de quadra e samba rock.
De todas essas variações podemos dizer que o samba de partido-alto foi o que manteve com mais fidedignidade as origens dos batuques Congo-Angola e está na base do surgimento de outros gêneros musicais do século XIX, como o Lundu e o Samba Chula, Amaxixado e de Morro (DINIZ, 2012, p16).
No século XIX, de acordo com os estudos de Diniz (2012), o Lundu vira lundu-canção, sendo o primeiro gênero musical a ser gravado no Brasil (“Isto é bom”, de Xisto Bahia, na voz de Bahiano em 1902 pela Casa Edison).
O autor citado continua dizendo que a modinha, que era toda canção da época, também se popularizou pelo país. Caldas Barbosa foi o principal compositor da modinha e do lundu-canção à época de seu surgimento. Trovas improvisadas ao som das cordas de sua viola de arame, eram apreciados nos saraus literário-musicais da elite da época, ruas, tabernas e lares mais simples. À noite, instrumentistas ao violão, sozinhos ou em grupo, saíam pelas ruas e residências cantando músicas românticas - as famosas Seresta (DINIZ, 2012, p16).
O Samba-Choro apareceu na cidade por volta de 1870, ligado ao crescente número de músicos nos segmentos da classe média baixa. Os chorões, nome que se dá aos músicos do gênero, eram um dos principais canais de divulgação da música do povo, executavam, ao sabor da cultura afro-carioca, os gêneros europeus mais em voga (DINIZ, 2012, p16).
Não podemos esquecer da Polca e do Maxixe. Diniz (2008) comenta que a Polca foi o mais eletrizante e revolucionário gênero surgido no século XIX. Originária de uma dança da Boêmia de compasso binário e melodia saltitante, caiu no gosto de todos os segmentos da sociedade brasileira, pois dançava-se de corpos colados (DINIZ, 2012, p16).
Corpo do Samba: sambar
O Corpo traz uma herança genética, vontades, desejos e o aprendizado de uma trajetória de vida. Por isso, além de construção biológica, o corpo é também um produto de construção social, cheio de representações culturais e simbólicas. De acordo com a sabedoria africana, é através do corpo que se evoca os ancestrais, pois ele é o veículo entre o mundo visível e invisível, em que os saberes fluem, se reconfiguram na memória ancestral, na vida e nos sentimentos.
Durante a diáspora forçada, os corpos negros tornaram-se receptáculos da memória de diversos povos. Impedidos de trazer consigo seus pertences, objetos sagrados ou não, seus corpos se tornaram ferramenta e linguagem, abrigo simbólico e expressivo da memória de suas danças e rituais, com objetivo de manter sua identidade cultural.
Assim, o corpo se tornou o arquivo da memória coletiva. Citando Muniz Sodré (1998), em “O terreiro e a cidade” o negro no Brasil resistiu e impediu que seu corpo fosse feito de máquina coisificada. Ao invés disso, seu corpo foi plástico, cheio de vitalidade, firmando-se nos quilombos e nas cidades e reconstruindo, aqui, uma África na palavra, no corpo, na música, no ritmo, na ancestralidade.
Seja pela religiosidade, pela dança ou pela luta, a expressão corporal negra foi instrumento de resistência e construção da identidade. O corpo é o instrumento por onde a energia passa. Muniz Sodré (1998) em “Samba: o dono do corpo”, diz que o samba é formado por uma síncopa8. Essa síncopa incita quem o ouve a preencher esse vazio com palmas, balanços, danças. Esse corpo que palmeia, que balança e dança é o mesmo corpo que a escravatura tentou coisificar e reprimir: o corpo negro.
O samba, explicitamente, preserva, na dimensão rítmica e corporal, o estilo negro. Os estudos afirmam que foram os bantu da região Congo-Angola os semeadores, aqui no Brasil, de formas musicais, padrões rítmicos, modulações vocais, instrumentos como a cuíca, o caxixi, o berimbau e modos de dançar ancorados na cintura (LOPES, 2005).
O Lundu, trazido para o Brasil pelos escravos no fim do século XVIII era cultivada por negros, mestiços e brancos. Caracterizada pela dança em que o alteamento dos braços, com o estalar dos dedos, e a umbigada – encontro dos umbigos dos homens e das mulheres – são acompanhados por palmas.
A dança do samba de roda traduz-se, principalmente, da cintura para baixo, consistindo num pequeno deslize para frente e para trás dos pés colados ao chão, com a correspondente movimentação de quadris: a umbigada. Todos dançam, mas há predominância das mulheres na dança e dos homens no toque dos instrumentos. No samba-chula, a coluna vertebral se mantém ereta, os braços ficam relaxados e soltos, descansando ao lado do corpo e o movimento do requebrar dos quadris é enfatizado pelo movimento contínuo dos pés plantados, em contato direto com o chão.
Em um passo rápido, chamado miudinho, os pés, juntinhos, acentuam o vaivém e o requebro dos quadris das sambadeiras. Segundo os sambadeiros, não há regra para o desenho das linhas de dança, mas geralmente ela é circular, sendo que o dançarino gira sobre o eixo de seu próprio corpo. Já o samba corrido é mais flexível, ficando a coluna vertebral também ereta, mas os cotovelos são semiflexionados, dando aos braços uma movimentação de ir e vir e havendo uma movimentação mais rápida dos pés no miudinho é um movimento de ombros e quadris mais intensos (THEODORO, 2009, p.234).
O comportamento de marcação está presente nas levadas graves dos instrumentos de uma batucada, especialmente nas vozes do surdo de primeira e de segunda. Este comportamento remete a um caráter pendular, pela alternância de toques, com as peles de cada voz de surdo afinadas em duas alturas distintas, marcando os tempos do ciclo e criando uma sustentação rítmica (PINTO, 2001. p. 93).
A marcação é "a batida fundamental e regular que caracteriza o sobe e desce rítmico do samba”. Ela atua como um pivô da estrutura rítmica ao exercer uma força gravitacional sobre as demais levadas. Com seu caráter pendular e sonoridade grave, exerce uma força com sentido descendente - em direção ao solo - levando a um movimento de “aterramento” e criando pontos de referência fundamentais.
Essa força atua tanto na estrutura rítmica, como na estrutura física, isto é, no corpo. A marcação pode ser sentida na parte inferior da estrutura física e se relaciona diretamente à movimentação dos pés (de um músico ou dançarino). Pinto (2001) argumenta que a sustentação desta levada na estrutura rítmica é análoga à sustentação dos pés na estrutura física. Ou seja, o movimento de “sobe e desce” configura uma marcação rítmica acústico-mocional.
O corpo, então, é parte do samba. As mãos que batucam, os pés que batem no chão, os quadris que se movem fazem e são a alma do samba, pelos caminhos em que se flui a energia do som. O samba, logo, é mais do que a expressão cultural de um povo. É um instrumento de luta para a afirmação negra na sociedade brasileira. O som – nesse caso, o samba – é resultado de um processo em que um corpo busca contato com outro corpo para acionar o axé. Assim, a música e o corpo estão interligados.
A música pode ser elaborada através dos movimentos do corpo, dos pés que batem no chão em protesto, das mãos que batem no peito demonstrando força ou dos quadris e pernas que gingam mostrando agilidade; ou o corpo que dança pode dar forma, pode ser a versão visual da música. Essa relação música – corpo vai ainda mais além, sendo um meio de comunicação, afirmação e identificação social ou um ato de dramatização (ANTAN, 2020).
Considerações finais
A imposição do samba como música urbana fundadora no Brasil deve-se muito mais à capacidade do negro em proteger e afirmar seu patrimônio cultural africano do que à síntese de um encontro multiétnico colaborativo. Dessa forma, mostra, por um lado, como o samba conseguiu se manter como traço expressivo dessa comunidade, mesmo diante dos inúmeros processos de segregação e dominação sobre o negro no início do século. E, por outro, como foi a afirmação dessa voz do sambista na cultura urbana em fase de industrialização e de inserção na engrenagem do capitalismo da primeira metade do século XX. (SODRÉ, 1979)
No samba se batia pandeiro, tamborim, agogô, surdo, instrumentos tradicionais que iam se renovando, confeccionados pelos músicos ou com o que estivesse disponível: pratos de louça, panelas, raladores, latas, caixas, valorizadas pelas mãos rítmicas dos negros (VIANNA, 1988, p.103).
Mas nada de pureza africana – muito pelo contrário –, o negro se envolveu de modo a penetrar todo os poros da vida social; suportou e ainda suporta racismos, segregações à moda tropical, mas resiste a extermínios físico e cultural pelas bordas, periferias, subúrbios e enclaves empobrecidos nas áreas centrais das cidades brasileiras. Este samba, que logo se transformaria na “raiz” da cultura oficial brasileira, e que seria utilizado de forma indiscriminada como produto brasileiro de exportação e de representação da nação perante o mundo, é, portanto, termo de uma disputa que sempre esteve e permanece até hoje na agenda de debate nos meios culturais e intelectuais do país. Entre as noções de resistência ou interação, de imposição ou conciliação, ficou o sambista, fruto de uma expressão que, independentemente da sua emergência como dado histórico, serve a nós, brasileiros, como uma ancestralidade de natureza cultural (ANTAN, 2020).
Referências
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Notas
Notas de autor