Resumo: O artigo pretende demonstrar as diferenças e semelhanças existentes na comunicação interna dos movimentos sociais negros de Santa Catarina, comparando as gerações anteriores ao advento e popularização da Internet com as gerações contemporâneas a essa ferramenta. Entrevistamos três pessoas de diferentes gerações para que, a partir dos seus relatos e memórias, observamos se de fato houve mudanças. Nosso objeto de estudo foi o Núcleo de Estudos Negros (NEN), organização do movimento negro, situado na cidade de Florianópolis, Santa Catarina. Além da comunicação, abordamos brevemente a memória da militância negra e o seu acesso a aparelhos tecnológicos. Com esse estudo pudemos verificar a velocidade e a sensação de proximidade permitida com o acesso à Internet, ao mesmo tempo que a ferramenta também gera preocupação da militância contemporânea com as problemáticas da perda da identificação e do pertencimento junto à comunidade e da noção de territorialidade.
Palavras-chave: Comunicação, Internet, Redes sociais, Movimentos Sociais Negros, Santa Catarina.
Abstract: The article intends to demonstrate the existing differences and similarities in the internal communication of the black social movements of Santa Catarina comparing the generations previous to the advent and popularization of the Internet with the contemporary generations to this tool. We interviewed three people from different generations so that, based on their reports and memories, we could observe whether there were indeed changes. Our object of study was the Núcleo de Estudos Negros (NEN), an organization of the black movement, located in the city of Florianópolis, Santa Catarina. In addition to communication, we briefly address the memory of black militancy and its access to technological devices. With this study, we were able to verify the speed and the feeling of proximity allowed with Internet access, at the same time that the tool also generates concern in contemporary militancy with the problems of losing identification and belonging to the community and the notion of territoriality.
Keywords: Communication, Internet, Social Networks, Black Social Movements, Santa Catarina.
Resumen: El artículo pretende demostrar las diferencias y similitudes existentes en la comunicación interna de los movimientos sociales negros de Santa Catarina comparando las generaciones anteriores al advenimiento y popularización de Internet con las generaciones contemporáneas a esta herramienta. Entrevistamos a tres personas de diferentes generaciones para que, en base a sus relatos y recuerdos, pudiéramos observar si efectivamente hubo cambios. Nuestro objeto de estudio fue el Núcleo de Estudos Negros (NEN), una organización del movimiento negro, ubicada en la ciudad de Florianópolis, Santa Catarina. Además de la comunicación, abordamos brevemente la memoria de la militancia negra y su acceso a los dispositivos tecnológicos. Con este estudio pudimos comprobar la rapidez y la sensación de proximidad que permite el acceso a Internet, al mismo tiempo que la herramienta también genera preocupación en la militancia contemporánea con los problemas de pérdida de identificación y pertinência a la comunidad y la noción de territorialidad.
Palabras clave: Comunicación, Internet, Redes sociales, Movimientos Sociales Negros, Santa Catarina.
Dossiê
A alteração da dinâmica comunicacional dos movimentos sociais com o advento da Internet: uma breve análise de alguns movimentos negros de Santa Catarina1
Changing the communicational dynamics of social movements with the advent of the Internet: a brief analysis of some black movements in Santa Catarina
Cambiando la dinámica comunicacional de los movimientos sociales con el advenimiento de Internet: un breve análisis de algunos movimientos negros en Santa Catarina

Recepción: 05 Mayo 2023
Aprobación: 14 Junio 2023
A luta do Movimento Negro brasileiro é histórica e seu início pode ser considerado desde que o primeiro navio negreiro aportou no Brasil. Muitas revoltas ocorreram durante os quase quatro séculos de escravidão. Além disso, foram muitas fugas e surgimentos de espaços de resistência, os quilombos, que garantiram a sobrevivência e o livramento das condições precárias e de exploração das pessoas escravizadas.
Desde aquele período, para a organização dessas revoltas e fugas, era necessário, além de bom planejamento, uma comunicação assertiva para garantir o êxito das ações propostas. Os signos combinados, um bilhete, uma cantoria, um gesto, uma dança, entre outros, poderia servir de aviso sobre algo ou apenas significar uma ligação com o passado, ou para tornar o pesado trabalho forçado em algo menos doloroso. Segundo Barbosa (2016, p. 9):
São os argumentos dos escravos como atores sociais do século XIX (seus gestos, suas escritas, suas imagens, os discursos produzidos sobre eles, etc.) que produzem “provas” de sua existência, do mundo em que estavam imersos, e é isso que permite a interpretação desses signos esparsos e seus modos de vida.
De acordo e adaptada com seu tempo, a comunicação sempre serviu de ferramenta e foi utilizada para a organização e reorganização do Movimento Negro no Brasil.
Nos séculos XIX e XX, a imprensa negra ganhou corpo e força, por meio de alguns jornais e folhetins em que o objetivo era voltado em manter as pessoas negras informadas, por dentro dos seus direitos, promovendo, conjuntamente, o destaque do protagonismo negro. No século XIX, serviu como instrumento para a luta abolicionista, como exemplos os autores Luiz Gama e José do Patrocínio, que “são recorrentes nas discussões da negritude, por também terem atuado como jornalistas/escritores e assim proporem narrativas negras sobre a luta contra a escravidão no Brasil” (ARAÚJO, 2019, p. 214).
Foi no início do século XX, após a Abolição da Escravatura, que se estruturou de melhor forma no país alguns movimentos políticos negros que passaram a provocar debates sobre as desigualdades sofridas pelas pessoas negras, a negar a tese da democracia racial e a pautar algumas demandas urgentes desse segmento. Como destaque, vale ressaltar a Frente Negra Brasileira (OLIVEIRA, 2022) (1931-1937), que chegou a reunir milhares de filiados em todo o país durante seu período de existência. Esse movimento político contou com amplo apoio de jornais negros, o que contribuiu para o seu grande alcance nacional.
Na segunda metade do século XX, ainda sob a ditadura civil-militar, voltam a surgir com mais intensidade movimentos sociais políticos negros4 no Brasil. Nesse período, é possível destacar o Movimento Negro Unificado (DOMINGUES, 2007), que surge a partir da histórica manifestação, no dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal, em São Paulo, reunindo cerca de duas mil pessoas.
É a partir desse momento histórico que pretendemos começar a nos debruçar e pesquisar, voltando nosso olhar para a Região Sul do país, mais precisamente para o estado de Santa Catarina, onde existiam alguns grupos contemporâneos que debatiam a respeito da temática racial. Mas como eram feitos e organizados esses debates? Como eram combinadas as reuniões e eventos? Quais eram os canais e os meios de comunicação que utilizavam para se comunicar, informar e formar? Esses são alguns dos questionamentos que vamos buscar responder para fazermos uma ligação do passado com o presente e tentar identificar se e como a popularização da Internet alterou a dinâmica da comunicação entre os movimentos negros catarinenses.
Santa Catarina, localizada na Região Sul do Brasil, foi um dos estados destinados a receber a mão de obra europeia de forma massiva durante os séculos XIX e XX, com o intuito de colocar em prática, no país, a ideia de branqueamento de seus moradores, muito além de apenas conseguir mão de obra barata de maneira abundante, pois se analisarmos criticamente, havia muitos negros escravizados que poderiam servir para o trabalho industrial que começava a despontar no país. Mas o racismo científico que afirmava que a culpa do atraso econômico, político e social brasileiro se originava da grande presença de negros e indígenas, também afirmava que esses segmentos da sociedade brasileira eram inaptos e inábeis no manuseio de maquinários e outras atividades correlatas a indústria (ROSA, 2006). Resumidamente, tinham, em tese, apenas a força física, mas não o intelecto necessário para atuar em tais funções, o que levava a solução óbvia para resolver essa questão: tornar o país mais branco, ou seja, mais preparado cultural e intelectualmente para o progresso que se almejava.
Ancorados em ideias eugênicas que também estavam em constante desenvolvimento, a dúvida que pairava nas cabeças de políticos e intelectuais brasileiros antes da Abolição da Escravatura era “o que fazer com os negros?”. Desse questionamento nenhuma pessoa negra conseguiu escapar e enfrenta até hoje as consequências das respostas dadas para solucionar tamanha preocupação.
Aqueles que durante quase quatro séculos queimaram como carvão, garantindo a acumulação primitiva do capital brasileiro, agora eram dispensados para se transformarem na base da classe social esquecida, servindo de exército de reserva (CARVALHO, 2006), sendo destinado a esse público a marginalidade, a criminalidade, a vagabundagem, a demência, entre outros estereótipos que serviram para a estruturação do controle social da população negra. Os piores locais de moradia, trabalho e renda (quando tinham), as cadeias e os manicômios eram os espaços reservados a essas pessoas no Brasil que começava a se modernizar. Como já citado, Santa Catarina não ficou de fora desse processo.
Devido à proibição da entrada de africanos no Brasil a partir de 1850, por meio da Lei Eusébio de Queirós, aproveitando-se da alta demanda por mão de obra na região Sudeste, juntamente com a expectativa de branquear o estado, Santa Catarina passa a realizar o tráfico interno de pessoas negras escravizadas.
Robert Conrad e Robert Slenes defendem que a partir de 1850 o centro econômico mais dinâmico, a lavoura cafeeira no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, passou a importar os cativos de outras regiões do Brasil. A decadência da produção de açúcar, com a queda dos preços internacionais, somada à expansão da lavoura de café, teriam incentivado a transferência de milhares de escravos para a região Sudeste (SCHEFFER, 2006, p. 17).
Essa ação contribuiu para a diminuição da presença da população negra no estado (SCHEFFER, 2006) e para o aumento, fortalecimento e propagação das culturas europeias, tornando as narrativas criadas em imaginários que perduram até os dias de hoje e são reforçados cotidianamente seja por eventos culturais, meios de comunicação, monumentos históricos e educação formal.
Notamos, com essa movimentação histórico-cultural e política, que as consequências para as populações não-brancas são a invisibilidade e o não lugar na historiografia oficial do estado, dificultando o processo para recontar e remontar a presença e importância das populações negras e indígenas para a formação de Santa Catarina. Esses apagamentos dificultam até mesmo a escrita do presente artigo para encontrar a memória da resistência negra no estado. Temos alguns lapsos de memórias, fragmentados, muitas vezes não muito aprofundados, devido à falta de incentivo ou de olhares atentos para esses segmentos. O que temos, na maioria das vezes, são produções organizadas pelos próprios militantes do Movimento Negro, de maneira independente, ou em trabalhos acadêmicos, quando ingressam no curso superior ou pós-graduação, bem como pessoas não-negras interessadas ou compromissadas por essa temática. Nos últimos anos, vemos a tentativa do avanço dessas recuperações mais intensamente, com o trabalho de rememoração e destaque de personalidades negras catarinenses como Ildefonso Juvenal da Silva e Antonieta de Barros (GARCIA, 2019; ROMÃO, 2021).
Lima (2016, p. 5) listou brevemente algumas entidades e movimentos negros catarinenses que existiram em diferentes períodos em Santa Catarina, baseado no que havia encontrado em documentos do próprio Movimento Negro ou na imprensa local.
No levantamento que realizamos, encontram-se em todas as regiões do estado marcas da presença negra, de sua organização em vários momentos da história de Santa Catarina. Têm-se, nas respectivas mesorregiões, algumas das seguintes entidades: Norte Catarinense: Kênia Clube (1960), Grupo Unitivo do Negro Catarinense (?), Agentes de Pastorais Negros - APNS (1983), Grupo Consciência Negra de Joinville (1986); Vale do Itajaí: União Catarinense dos Homens de Cor - UCHC (1962); Agentes de Pastorais Negros; Sul do Estado: Sociedade Recreativa União Operária (1937); Agentes de Pastorais Negros de Criciúma (1983); Associação de Etnia Negra (1989); Grupo Étnico Iakekere (1993); Anarquistas Contra o Racismo (1993); Entidade Negra Bastiana (1993); Pastoral AfroBrasileira de Tubarão (?); Movimento Cultural de Conscientização Negra Tubaronense (1997); Clube de Regata Cruz e Sousa (1920); Humaitá Futebol Clube (1920); Sociedade Recreativa São Sebastião Lucas (1952); Movimento Negro Tio Marco (1990); Oeste: Pastoral do Negro de Chapecó (?); Serrana Catarinense: Centro Cívico Cruz e Sousa (1918); Agentes de Pastorais Negros de Lages (1986), entre outras.
Mais adiante, o autor destaca que existem outras entidades e movimentos espalhados pelo estado e ressalta que “faz-se necessário um mergulho mais profundo nos arquivos espalhados por todo o estado de Santa Catarina” (LIMA, 2016, p. 5). Mas somente analisando sua lista, podemos notar uma maior presença de organizações negras durante a segunda metade do século XX, a presença considerável, nesse mesmo período, de entidades e movimentos ligados à Igreja Católica e a presença de Clubes e Centro Cívico na primeira metade do século. Essa rápida constatação, permite-nos fazer algumas reflexões que nos remetem a própria formação sociocultural do estado catarinense em que, por exemplo, não permitia a presença de pessoas negras em determinados espaços, mesmo após a Abolição da Escravatura, fazendo-nos observar uma espécie de racismo físico e direto, demarcando lugar do negro e o lugar do branco na sociedade, por isso, podemos notar a necessidade da população negra em criar seus próprios espaços de confraternização e convivência nesse período.
Também é possível destacar a presença da Igreja Católica nessa luta, por meio das pastorais, já na segunda metade do século passado, conduzindo e aglutinando o debate racial para si, fazendo-nos ligar essa influência com o grande números de adeptos ao cristianismo em Santa Catarina, mas também ao processo de redemocratização no qual o Brasil passava e a responsabilidade que parte da Igreja Católica teve nesse período para a organização e reorganização de alguns setores e segmentos sociais e políticos brasileiros (CICONELLO, 2007), mas que não representa, atualmente, a mesma força e relevância como anteriormente. Esse mesmo processo de redemocratização nos leva a crer que foi o papel fundamental para o surgimento e o retorno de mais entidades e movimentos sociais negros, uma vez que passaram, antes, por duas ditaduras (1937-1945; 1964-1985), impossibilitando a continuidade da formação, organização, consciência e luta do Movimento Negro.
Tratando exclusivamente da Grande Florianópolis, Lima (2016) destaca que a capital catarinense foi responsável por concentrar a maior parte das organizações do Movimento Negro a partir da década de 1980. Ele rememora também, antes desse período, a existência da Irmandade Nossa Senhora do Rosário (1840), dos clubes sociais, das escolas de samba e dos terreiros, além da Sociedade Cultural Antonieta de Barros que, segundo o autor, “apesar do seu curto período de existência este grupo registra a realização do primeiro ato de rua na capital catarinense, denunciando as péssimas condições de vida da população negra, a violência policial e a exclusão escolar, em pleno período de opressão” (LIMA, 2006, p. 6). Já focado na segunda metade do século XX, Lima (2016) relembra do grupo do qual fez parte, o União e Consciência Negra, que reuniu universitários, agentes comunitários e que contava com muita influência de religiosos católicos e prepara uma lista com entidades e movimentos negros da Grande Florianópolis que atuaram e ainda atuam na luta antirracista.
Em seguida, de maneira geral, podem-se relacionar os seguintes grupos, que de uma maneira ou de outra contribuíram e, alguns ainda contribuem, para a superação da discriminação racial (SCHERER-WARREN, 1999): Núcleo de Estudos Negros (NEN), Fundação Cruz e Souza, Bloco Jamaica, Grupo Resistência, Movimento Negro Unificado (MNU), Bloco Liberdade, União de Negros Pela Igualdade (UNEGRO), Grupo de Mulheres Negras Cor de Nação, União Brasileira dos Homens de Cor, Grupo de Capoeira Ajagunã de Palmares, entre outros (LIMA, 2016, p. 6).
É possível observar uma mudança na composição dos novos movimentos sociais negros que surgiram a partir da segunda metade do século XX, principalmente a partir das décadas de 1980, em Santa Catarina. Grupos mais voltados a perspectiva do campo político, preocupando-se com a atuação e participação na política institucional, da ação partidária e sindical, de maneira independente. Diferentemente das organizações precursoras do Movimento Negro Catarinense, que eram mais voltadas para uma espécie de associativismo cultural e recreativo e que buscavam o reconhecimento identitário da população negra por meio da cultura e do fortalecimento da integração e confraternização. “No entanto, salienta-se serem faces de um mesmo processo de discussão as relações raciais” (LIMA, 2016, p. 7). Diante dessa nova lógica e dinâmica dos movimentos sociais negros contemporâneos, surgidos a partir da década de 1980, que iremos focar, atentando exclusiva e especialmente para o Núcleo de Estudos Negros (NEN), de Florianópolis, lançando um olhar sobre sua comunicação interna, seu processo organizativo e o entendimento do que mudou ao longo de sua existência com o advento e a popularização da Internet. Para isso, analisaremos, por meio de entrevistas semiestruturadas e realizadas virtualmente, as memórias (MATOS e SENNA, 2011) de duas ex-integrantes e uma atual militante do NEN, de diferentes gerações, para notar suas percepções a respeito das alterações dessas dinâmicas comunicacionais de acordo com as suas respectivas presenças e envolvimento na organização.
Fundado no ano de 1986, na cidade de Florianópolis, o Núcleo de Estudos Negros é uma organização que visa estar a serviço dos movimentos negros de Santa Catarina. Reuniu e reúne até os dias atuais estudantes universitários e militantes da luta antirracista com o intuito de estudar e produzir conhecimento a respeito das questões raciais, além de políticas públicas que promovam a igualdade de oportunidades para a população negra.
O NEN serviu como instrumento para a formação de diversos educadores e professores sobre o debate racial e na abordagem desse assunto em sala de aula, por meio de cursos, palestras e na elaboração de cadernos específicos sobre a temática racial, distribuídos, principalmente, entre o setor da Educação. Por meio do jornal impresso “Educação Afro”, o Núcleo de Estudos Negros também se fez presente na imprensa negra catarinense sendo, inclusive, requisitado em outras localidades do país.
Sempre focado na pauta racial, o coletivo se tornou referência e obteve muitos contatos devido a sua organização e produção de conteúdo qualificados a respeito dessa temática. Organizou eventos e atividades, elaborou produções literárias e projetos de pesquisa, lançou a coletânea “Pensamento negro na Educação”, produziu revistas como a “Nação Escola”, a cartilha “Terra Negra Brasil” e o “Dossiê Contra a Violência Racial em Santa Catarina”.
Essa história está registrada em documentos digitalizados5e em materiais impressos, ainda disponíveis com alguns militantes ou em alguns órgãos públicos e universidades. Porém, boa parte desse legado está presente na memória dos e das militantes que passaram pelo Núcleo de Estudos Negros. Nesse sentido, entrevistamos (PAYER, 2005) três mulheres negras que contribuíram para a construção do NEN em diferentes períodos e puderam observar e nos ajudar a refletir sobre algumas alterações na dinâmica comunicacional interna e externa do coletivo ao qual pertenceram. São elas: Jeruse Maria Romão, Lisiane Bueno da Rosa e Azânia Mahin Romão Nogueira6.
Conhecida como Jeruse Romão pelo nome social e Jeruse de Oyá pelo nome religioso, a professora, escritora e militante histórica do movimento negro de Santa Catarina foi uma das fundadoras do Núcleo de Estudos Negros. Nascida em Florianópolis, em 1960, Jeruse Romão também é atuante no ativismo lésbico e no movimento de combate à intolerância religiosa. De sua infância, na capital de Santa Catarina, tem lembranças de pertencer a uma comunidade que denomina afrocentrada, local com a presença majoritária da população negra, antigamente conhecida como Morro da Caixa D’água e, atualmente, conhecido e chamado de Monte Serrat. Por mais que houvesse pessoas não negras residindo também no morro, foi justamente quando precisou descer do local onde morava para continuar seus estudos, a partir do quinto ano escolar, que Romão passou a ter um contato maior com a diferença, passando a se tornar a exceção e não mais a regra, transformando-se na única negra da turma ou da escola.
Formada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), foi durante as aulas de Sociologia que passou a se questionar sobre as questões raciais e percebeu que precisava entender e debater mais a respeito. Durante esse período, mais livros sobre a temática racial começaram a chegar em Florianópolis, possibilitando a ampliação da discussão e o diálogo com outros pesquisadores e militantes de outras localidades do país. Foi um evento do qual participou no Rio Grande do Sul, na década de 1980, que possibilitou Romão a conhecer pessoalmente mais nomes de intelectuais, pesquisadores e militantes negros da Educação.
Foi apenas em 1986, após uma denúncia de racismo em uma escola na qual atuava como coordenadora educacional, em Florianópolis, com ampla divulgação pela imprensa, que Romão passou a se organizar coletivamente. Ela lembra que esse evento fez com que alguns militantes se reunissem na casa de Dora Lúcia Bertulio7. Romão destaca que houve duas reuniões: a primeira, que ela foi convidada pessoalmente, contou com a presença de apenas três pessoas. Mesmo assim, decidiram seguir com a ideia e planejaram a ampliação dos convites para a participação.
O segundo encontro contou com mais pessoas, o que possibilitou a continuidade das reuniões. Em uma determinada reunião, com os encontros já consolidados, deliberou-se, então, a criação do Núcleo de Estudos Negros, cujo objetivo, inicialmente, era servir de base para estudos, pesquisas, debates e formações sobre as questões raciais. Alguns desses militantes faziam parte de outras organizações políticas e movimentos sociais negros, por isso, também, a ideia da criação de um Núcleo e não de um movimento, para que seus integrantes não precisassem abandonar a militância em outros espaços e continuassem a contribuir com o NEN. Isso garantiu grande adesão de pessoas ao coletivo e o interesse em estudar e aprender mais sobre os conteúdos da temática racial.
Aos poucos, rememora Romão, começaram a surgir temas de estudos como Educação, Moradia, História de Santa Catarina, Política, Direito. Brevemente, o NEN se torna um grupo de ativistas, também. O estudo passa a ocorrer ao mesmo tempo da militância. À medida que o Núcleo de Estudos Negros passava a se desenvolver e se estruturar, a organização interna passava, também, por adaptações como, por exemplo, a criação de uma coordenação geral, a transformação de eixos em programas, a diminuição no número de integrantes, uma vez que se assume uma agenda política e militante cotidiana e por conta do ingresso de algumas pessoas da “primeira geração” do Núcleo nos programas de pós-graduação, mestrado ou doutorado.
Foi a partir da aprovação no edital da Fundação Ford, na década de 1990, que o NEN passa a ter recursos para pagar a locação de um espaço próprio. Romão lembra que o espaço escolhido ficava na Rua João Pinto, no edifício Joana de Gusmão, número 30, sala 303, no Centro de Florianópolis. Lá foi instalado a biblioteca, brinquedoteca, entre outros espaços que possibilitaram um maior fluxo de frequentadores, entre estudantes, pesquisadores e professores, que transitavam pelo Núcleo para pegar livros ou materiais para trabalhar nas escolas e universidades. Foi nesse período, recorda Romão, que passaram a produzir seus próprios materiais como cadernos e jornais, o que contribuiu para que o Núcleo pudesse apoiar mais estudantes universitários em seus trabalhos e pesquisas. A professora destaca que durante a década de 1990, principalmente, a biblioteca do NEN era considerada o coração da organização, era o centro de referência e era aberta ao público.
Além da comunicação direta, por meio da fala, nas reuniões e atividades, Romão destaca o fato de boa parte dos militantes do NEN terem facilidade para a escrita, o que possibilitou, desde o começo, diálogos com outras entidades e movimentos de outras cidades de Santa Catarina e de outros estados do país por meio de cartas. Essa habilidade permitiu, inclusive, que os membros tivessem mais facilidade em conseguir apoios para eventos. Foi assim que conseguiram realizar diversas formações políticas financiadas pela Fundação Ford, por meio da escrita de projetos.
Outro diferencial, apresentado por Romão, foi a presença do arquiteto Ivan Costa Lima8 que, por causa de sua atuação no programa de Educação do NEN, transforma-se em professor, em pedagogo, fazendo mestrado e doutorado em Educação, mas sua formação em Arquitetura possibilitou que sua habilidade fosse utilizada para a elaboração dos cartazes e panfletos dos eventos e de algumas ilustrações dos jornais do Núcleo de Estudos Negros. Já o jornal, intitulado Educação afro surge da demanda por leituras mais rápidas, leves e informativas e era impresso na sede do jornal Diário Catarinense. Segundo Romão, o instrumento principal para a comunicação externa era a máquina de datilografia, até a chegada do computador de mesa, que chega junto com a Internet, na sede do Núcleo, próximo da virada de século.
Quando o NEN passou a ter sede própria também se conseguiu a instalação de uma linha telefônica que possibilitou o contato com diversas pessoas. A chegada do telefone fixo na sede passou a dar mais agilidade e dinâmica ao serviço do Núcleo, pois além do contato com outras cidades de Santa Catarina, possibilitava o contato mais veloz que o envio de cartas para outros estados do país. Na década de 1990, lembra-se da chegada do celular e que entre os integrantes do Núcleo, poucos deles tinham telefone em casa. A professora acredita que o tempo e a evolução tecnológica possibilitaram essa transformação comunicacional e a possibilidade, por exemplo, da realização de uma entrevista virtual para a escrita de um artigo científico sendo feita pela tela de um celular, algo que para ela, tempos atrás, seria algo inimaginável.
Refletindo a respeito dessas mudanças nas relações sociais com a chegada da Internet, Romão afirma que antes as pessoas, principalmente as negras, costumavam se reunir e se concentrar em poucos lugares, em alguns territórios e espaços físicos, pois havia pouca diversidade de opções de escolha, como por exemplo nos sambas, em que só tinham dois, ou estava em um ou outro e, da mesma forma, no Mercado Público da capital, que hoje considera um local elitizado, mas que servia de ponto de encontros e passagens de maneira mais democrática da população florianopolitana. Também lembra dos eventos realizados nas casas, aos domingos, em grupos, às vezes nem todos os integrantes, mas sempre em coletivo, principalmente o grupo do eixo de Educação do NEN, do qual fazia parte.
Nascida em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 1975, Lisiane Bueno da Rosa viveu durante alguns anos no sul do estado de Santa Catarina, mais precisamente em Tubarão. Por lá, teve contato com alguns movimentos sociais negros da cidade e do estado, mas sua atuação e organização de fato ocorreu em 1997, enquanto cursava a graduação em Serviço Social, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Rosa pode ser considerada pertencente da “segunda geração” do Núcleo de Estudos Negros.
Foi atraída por conta do seu interesse pelo tema da sua pesquisa na universidade, mas também em razão do nome da entidade que já estava consolidada, contando com a presença de lideranças e intelectuais que também se destacavam por causa da militância e do trabalho desenvolvido por meio do NEN. Ela começou como bolsista na organização, mas em seguida coordenou alguns programas, como o de Mulheres e Juventude. Continuou envolvida com alguns projetos do Núcleo até o ano de 2005, mas permaneceu como membra efetiva e não considera que tenha se desvinculado ou se afastado oficialmente da entidade, inclusive tendo retornado esporadicamente após essa data para participar de reuniões de planejamento e outros assuntos.
Rosa relembra de alguns materiais elaborados pelo NEN para comunicação externa e que foram produzidos no período em que participou mais ativamente: jornais, revistas temáticas, coleção dos cadernos, folders e cartazes, com conteúdo, apresentações de programas e ações. Pontua também que o Núcleo tinha um bom espaço na imprensa e reforça o relato de Romão, dizendo que tinham muitas demandas por falas em eventos e outros ambientes, além do formativo ou de estudo.
Sobre a comunicação interna, também em conformidade com o que fora comentado por Romão, Rosa afirma que a escrita teve um papel fundamental, pois, segundo ela, todos os programas eram bem escritos e que seguiam o que estava proposto no cronograma definido em reuniões, por meio de monitoramento e relatoria. Uma curiosidade trazida por Rosa é a questão dos registros fotográficos da época. Ela considera terem poucos. Muito por conta desses recursos não serem pautados e solicitados nos projetos quando escritos, por isso tinham que contar com a câmera e o filme de terceiros ou de alguém da própria entidade que tivesse os materiais, o que contribuiu para que esses arquivos, além de poucos, também ficassem espalhados.
Os computadores eram poucos, porém no período que esteve no NEN, Rosa recorda da utilização da máquina para envios de e-mails. Por serem poucos, havia uma certa organização para quem precisasse utilizar. Diferentemente do que relatou Romão, Rosa informa que era comum ligarem para a casa dos militantes do Núcleo caso precisassem entrar em contato, pois já era mais comum terem telefones residenciais. Lembra também da popularização dos telefones celulares, no início dos anos 2000, mas recorda que tinham paciência para esperar a pessoa chegar até o local no horário combinado e conseguiam conviver com o fato da falta de bateria ou se esquecessem o aparelho em casa.
Nascida em 1989, na cidade de Florianópolis, e considerada a “terceira geração” do NEN, Azânia Mahin Romão Nogueira seguiu os passos dos pais Jeruse Romão e João Carlos Nogueira e ingressou do Núcleo de Estudos Negros. Graduada em Geografia, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Durante muito tempo, Nogueira considerava apenas sua militância intelectual como forma de atuação e luta antirracista, mas devido a conjuntura política do ano de 2016 e muito influenciada pelos debates anteriores a esse período, compreendeu a necessidade da organização coletiva, o que viabilizou a sua aproximação e organização no Núcleo de Estudos Negros.
Com o entendimento da responsabilidade de não falar apenas do “eu”, mas também do “nós”, Nogueira afirma que compreendeu naquele momento que a saída para aqueles problemas apresentados se daria apenas coletivamente. Apesar de ter contato com outros coletivos e organizações políticas existentes na universidade não conseguia se identificar com nenhum deles e, ao olhar para o NEN, percebeu que o Núcleo não tinha mais a expressão que teve em outros tempos.
A partir disso, ingressou na organização e atuou no Programa de Juventude por três anos, adaptando-se ao mesmo tempo em que, segundo ela, apropriava-se do lugar, para certificar se realmente era esse espaço que gostaria de estar. Com algumas críticas a algumas decisões e medidas tomadas em períodos passados pela organização, Nogueira destaca o aparelhamento de militantes e lideranças da entidade pelo Governo Federal durante as duas primeiras décadas do século XXI o que, segundo ela, acabou por enfraquecer as bases e que não foi algo exclusivo e restrito ao NEN e, na atualidade, vê os discursos da necessidade de reconexão com a periferia como prova do erro estratégico em retirar muitos movimentos sociais e lideranças de locais cruciais para a construção política e diálogo com as comunidades.
No processo de reorganização do NEN, em 2019, após assumir a coordenação, convida alguns militantes ligados ou próximos para apresentarem o histórico e as perspectivas para o futuro do Núcleo de Estudos Negros. Nogueira considera que esse é um grande diferencial da organização e que a geração atual tem muito interesse: a reaproximação do Núcleo dos modelos e alguns métodos de seus primórdios, muito próximo ao que Romão relata sobre o que o NEN foi durante as décadas de 1980 e 1990. Nogueira afirma que existem pessoas de muitas localidades do Brasil que conhecem o Núcleo de Estudos Negros, mas ele já não é mais tão conhecido em Florianópolis, onde está localizada a sede. Atualmente, o objetivo é uma atuação local, com um planejamento voltado para o município, direcionado, principalmente, para a população negra da ilha. O eixo principal e único, até o momento (2022), é o da Educação, mas o objetivo é reestruturar outros programas e ações, como o “SOS Racismo” e oferecer orientações a quem tenha sido vítima do crime de racismo, por exemplo.
Ao relembrar das reuniões e da comunicação interna no seu período de atuação, Nogueira divide em três momentos. Inicialmente, lembra das reuniões presenciais que ocorriam na UFSC, até o início da pandemia de Covid-19, em 2020. Recorda que, nesse período, também utilizavam os espaços políticos para falarem do NEN, apresentando e fazendo chamados abertos, com o intuito de conquistar novos adeptos. A estratégia surtiu efeito, atraindo novos integrantes após a Marcha da Consciência Negra, em 2019, por exemplo. As reuniões eram semanais e, com a chegada da pandemia, no que considera o segundo momento, passaram a ser realizadas virtualmente. No terceiro momento, Nogueira explica que o NEN voltou a ter uma sede, alugada e compartilhada com outra organização, as reuniões retornaram ao modelo presencial.
Sobre a preservação da memória, Nogueira reforça que – nos anos 2020 – estão sendo feitas as atas e relatorias de todas as ações, reuniões e atividades, sendo digitadas em notebooks e armazenadas, virtualmente. Pensando, refletindo e trabalhando muito com o conceito de autonomia territorial, o NEN da “terceira geração” vem com o entendimento que a Internet é um grande território e que ao frequentar as redes sociais estão no terreno dos “outros”. Um plano é voltar a ter um jornal do Núcleo, mas agora com uma roupagem atualizada, um jornal virtual, um newsletter.
Por isso, a ideia da atual geração do NEN está ligada ao movimento “Sankofa” de retornar e buscar aquilo que ficou para trás e, para isso, Nogueira considera fundamental a luta por autonomia, não só territorial, mas também política. Ter uma sede própria, falar o que desejam sem se preocupar que o algoritmo diminua o alcance por conta de uma palavra, entre outros, são alguns dos exemplos de autonomia e de economizar energia para depositar nos lugares que fazem sentido para o coletivo.
Analisando exclusivamente o Núcleo de Estudos Negros é possível notar a preocupação comum em todas as gerações com a questão da comunicação direta, dos encontros presenciais e, principalmente, com a autonomia do próprio coletivo, optando, sempre que possível, em possuir uma sede própria para a organização e estruturação da entidade. A comunicação do NEN passou por diversos períodos de implementação de novos instrumentos tecnológicos e conseguiu possuí-los conforme a acessibilidade era permitida, porém é possível verificar que sempre houve e ainda há uma enorme preocupação com a construção da identidade e a identificação dos militantes e dos moradores de Florianópolis com o Núcleo. Muito mais do que apenas se conectar, buscam gerar a ideia de pertencimento entre os seus integrantes e, com isso, direcionar a atuação do coletivo no território onde vivem, tendo como objetivo alcançar a população negra da ilha. Durante algum período essa identificação se perdeu e a geração atual do NEN está comprometida e em processo de resgatar essa ligação.
Com isso, é possível verificar que mesmo com o advento da Internet e apesar de já ter usufruído de muitas de suas vantagens, como a facilidade e agilidade da comunicação, a “terceira geração” do NEN verificou e avaliou seus pontos negativos, optando por utilizar da ferramenta de maneira estratégica, pontual e assertiva, visando escapar da dependência gerada, pontuando que com ela, muitas vezes, perde-se a noção de territorialidade, bem como a noção de pertencimento, além da concentração e a noção de espaço e de tempo, podendo causar a busca constante pelo imediatismo, causa de muitos problemas psicológicos da atualidade.