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O I Congresso de Espiritismo de Umbanda (1941) e o discurso de desafricanização da umbanda: a gramática da repressão1
Valquiria Barros
Valquiria Barros
O I Congresso de Espiritismo de Umbanda (1941) e o discurso de desafricanização da umbanda: a gramática da repressão1
The I Congress of Umbanda Spiritualism (1941) and the discourse of deafricanization of Umbanda: the grammar of repression
El I Congreso de Espiritualismo Umbanda (1941) y el discurso de la desafricanización de Umbanda: la gramática de la represión
Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 21, núm. 46, pp. 167-189, 2023
Universidade Estadual de Ponta Grossa
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Resumo: O objetivo deste estudo é compreender de que forma o movimento umbandista do início do século XX, no estado do Rio de Janeiro, ancorado na anunciação da umbanda pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, em 15 de novembro de 1908, delineou um ethos religioso com nítido contorno racista. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com abordagem exploratória e análise discursiva. Buscou-se, a partir da análise da construção discursiva do I Congresso de Espiritismo de Umbanda (1941), elucidar conceitos que pudessem relacionar a construção do ethos religioso ao processo de branqueamento da religião. Os resultados da investigação indicaram que a desafricanização da religião foi uma estratégia intencional de “limpeza” da religião articulada pela classe média branca para amalgamar o processo de legitimação da religião na sociedade urbana.

Palavras-chave: Umbanda, Desafricanização, Discurso religioso.

Abstract: The objective of this study is to understand how the Umbanda movement of the beginning of the 20th century, in the state of Rio de Janeiro, anchored in the announcement of Umbanda by the Caboclo das Sete Encruzilhadas, on November 15, 1908, outlined a religious ethos with a clear racist outline. This is a qualitative research with an exploratory approach and discourse analysis. Based on the analysis of the discursive construction of the I Congress of Umbanda Spiritism (1941), we sought to elucidate concepts that could relate the construction of the religious ethos to the process of whitening the religion. The results of the research indicated that the de-Africanization of religion was an intentional strategy of "cleansing" of religion articulated by the white middle class to amalgamate the process of legitimating religion in urban society.

Keywords: Umbanda, Deafricaning, Religious discourse.

Resumen: El objetivo de este estudio es comprender cómo el movimiento umbandista de principios del siglo XX, en el estado de Río de Janeiro, anclado en el anuncio de Umbanda por Caboclo das Sete Encruzilhadas el 15 de noviembre de 1908, esbozó un ethos religioso con claras connotaciones racistas. Se trata de una investigación cualitativa con enfoque exploratorio y análisis del discurso. A partir del análisis de la construcción discursiva del I Congreso del Espiritismo Umbanda (1941), se buscó dilucidar conceptos que pudieran relacionar la construcción del ethos religioso con el proceso de blanqueamiento de la religión. Los resultados de la investigación indicaron que la desafricanización de la religión fue una estrategia intencional de "limpieza" articulada por la clase media blanca para amalgamar el proceso de legitimación de la religión en la sociedad urbana.

Palabras clave: Umbanda, Desafricanización, Discurso religioso.

Carátula del artículo

Dossiê

O I Congresso de Espiritismo de Umbanda (1941) e o discurso de desafricanização da umbanda: a gramática da repressão1

The I Congress of Umbanda Spiritualism (1941) and the discourse of deafricanization of Umbanda: the grammar of repression

El I Congreso de Espiritualismo Umbanda (1941) y el discurso de la desafricanización de Umbanda: la gramática de la represión

Valquiria Barros2
Universidade do Grande Rio, Brasil
Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 21, núm. 46, pp. 167-189, 2023
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepción: 15 Mayo 2023

Aprobación: 20 Junio 2023

Introdução

A religiosidade umbandista é marcada por intensas disputas discursivas desde os inícios de seu delineamento enquanto religião organizada no espaço urbano no estado Rio de Janeiro. O recorte proposto analisa a vertente umbandista delineada a partir da anunciação da religião pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, em 15 de novembro de 1908. No contexto das religiões da diáspora no Brasil, esse evento constitui-se um objeto importante para compreender a formação da identidade religiosa, pois foi responsável pela construção de um ideário de religião brasileira fortemente atrelado aos pressupostos políticos de construção da identidade nacional.

Nesse sentido, o objetivo deste estudo é compreender de que forma o movimento umbandista do início do século XX, no estado do Rio de Janeiro, delineou um ethos religioso embranquecido com nítido contorno racista. Do ponto de vista teórico-metodológico, trata-se de uma pesquisa qualitativa (MINAYO, 2006), com abordagem exploratória (GIL, 2002) e análise discursiva (FOUCAULT, 1996) que buscou, a partir da revisão da literatura especializada, elucidar conceitos que pudessem relacionar a construção discursiva divulgada no I Congresso de Espiritismo de Umbanda, realizado em 1941, na cidade do Rio de Janeiro, ao processo de desafricanização das práticas da diáspora e a construção do ethos religioso umbandista marcadamente racista.

Para compreender de que forma a formação histórico-social brasileira influenciou na construção da identidade religiosidade brasileira, favorecendo o delineamento das bases da vertente religiosa analisada, tomamos o conceito de situação colonial de Léo Carrer Nogueira (2017) que, segundo o autor é um conjunto de situações justapostas desde o período colonial o brasileiro que forjou processos culturais que favoreceram modificações e trocas culturais no âmbito social marcadas pela desigualdade entre as forças e os atores sociais.

Outro conceito igualmente importante para compreendermos de que forma as manifestações religiosas se configuraram no Brasil é o hibridismo que, de acordo com Nestor Canclini (1992), se refere aos “modos culturais ou partes desses modos [que] se separam de seus contextos de origem e se recombinam com outros modos ou partes de modos de outra origem, configurando, no processo, novas práticas” (CANCLINI, 1992, p. 264). Sobre esse conceito, Stuart Hall (2000) complementa nosso estudo, pois, segundo o autor, o hibridismo cultural não se refere apenas à composição racial mista de uma população e está relacionado com “a combinação de elementos culturais heterogêneos em uma nova síntese, por exemplo, a “crioulização” e a “transculturação” (HALL, 2000, p. 93).

No que se refere à religião umbandista é importante ressaltar que o hibridismo religioso se desenvolveu em torno de outro conceito relevante e que se trata da diáspora africana, pois é ela que fornece os contornos da identidade religiosa umbandista no Brasil. A experiência da diáspora é um dos conceitos chave para compreendermos as transformações culturais que ocorreram durante o período colonialista e imerso nas definições da situação colonial no Brasil. A diáspora, conforme Stuart Hall (1996), pode ser compreendida como a resultante dos hibridismos e a reelaboração cujo resultado não pode ser conceituado como puramente africano, mas algo totalmente novo ou “o que a África se tornou no novo mundo, ou que nós fizemos da “África”” (HALL, 1996, p. 73).

Assim, podemos assumir com Nogueira (2014) que a partir das experiencias no ambiente colonial foram gestadas as identidades e especialmente a identidade umbandista que é “uma religião que não existiria sem o processo colonial e todas as relações estabelecidas entre os jogos de identidades” (NOGUEIRA, 2014, p. 118). Cotejamos o conceito de identidade cultural a partir de Stuart Hall (1996) considerando que as identidades são frutos dos inúmeros contatos em constante disputa que ocorreram desde o espaço colonial e se reproduziram no espaço social no âmbito da cultura, fornecendo as bases histórico-sociais para a fundamentação da vertente umbandista em questão marcadamente racista.

Com base nos pressupostos teóricos apresentados, analisamos os discursos proferidos no I Congresso de Espiritismo de Umbanda, realizado em 1941, na cidade do Rio de Janeiro. Os discursos foram publicados pelo Jornal Diário do Comércio na mesma cidade. O congresso visava estruturar uma história oficial para a umbanda, a elaboração de seus princípios filosóficos e a codificação das práticas rituais homogeneizadas e normas de conduta e postura de adeptos e frequentadores, imprimindo um ethos umbandista ao público desafricanizado e marcadamente branqueado.

Esse texto se tornou nosso corpus textual nesta investigação e foi escolhido por estar repleto de construções ideológicas e racistas explicitadas, direta ou indiretamente e forneceram substratos para o delineamento da umbanda em visível consonância com o ideário das políticas de estado na época em questão. Para problematizar o conteúdo de alguns discursos presentes no documento partimos da perspectiva de Michel Foucault (1996) sobre a ordem das coisas. Consideramos com o autor que “onde houver discurso, as representações expõem-se e justapõem-se; as coisas se assemelham e se articulam” (FOUCAULT, 1996, p. 405) e “através da soberania das palavras” (FOUCAULT, 1996, p. 405) apreendemos os sentidos enunciados. Intentamos com este esforço evidenciar de que forma a propaganda umbandista corroborou com o delineamento de uma vertente religiosa responsável pelo deslocamento da África como centro de origem das religiosidades da diáspora.

Negociações identitárias afro-brasileiras na constituição da umbanda

A sociedade brasileira foi profundamente marcada pela experiência colonial e seus reflexos podem ser vistos especialmente no âmbito religioso (NOGUEIRA, 2014). A religiosidade brasileira, nesses termos, se desenvolveu no bojo do colonialismo, contextualizada sob as influências Situação Colonial, conceito chave desenvolvido por Balandier (1993) e que se define como:

Seja qual for a doutrina adotada, as relações de dominação e de submissão existentes entre a sociedade colonial e a sociedade colonizada caracterizam a situação colonial. E os autores que concentraram sua atenção sobre este aspecto mostram que a dominação política é acompanhada de uma dominação cultural. Um deles pensa que “o problema cultural está intimamente ligado ao problema geral da evolução política e econômica”, que “a influência das culturas europeias” teve como resultado “a opressão do fundo cultural” autóctone (BALANDIER, 1993, p. 114).

A Situação Colonial forjou processos culturais que favoreceram modificações e trocas culturais, ao que alguns autores chamam de “hibridismo”, um conceito importante para compreendermos de que forma as manifestações religiosas se configuraram no Brasil (NOGUEIRA, 2017). Desse modo, o hibridismo neste texto é tomado como um termo que se refere às transformações sofridas pelas expressões religiosas a partir do contato, das trocas e das disputas no espaço social.

Optamos pelo conceito de hibridismo para falar das interseções entre as manifestações religiosas no período em referência e o tomamos de Nestor Canclini (1992) que se refere ao hibridismo como “modos culturais ou partes desses modos se separam de seus contextos de origem e se recombinam com outros modos ou partes de modos de outra origem, configurando, no processo, novas práticas” (CANCLINI, 1992, p. 264). Nesse sentido, Stuart Hall (2000) complementa nosso estudo, pois, segundo o autor, o hibridismo cultural não se refere apenas à composição racial mista de uma população e está relacionado com “a combinação de elementos culturais heterogêneos em uma nova síntese, por exemplo, a “crioulização” e a “transculturação” (HALL, 2000, p. 93).

A religião umbandista se desenvolveu em torno de outro conceito relevante e que se trata da diáspora africana, pois é ela que fornece os contornos da identidade religiosa umbandista no Brasil. A experiência da diáspora é um dos conceitos chave para compreendermos as transformações culturais que ocorreram durante o período colonialista. A diáspora, conforme Stuart Hall (1996), pode ser compreendida como a resultante dos hibridismos e a reelaboração cujo resultado não pode ser conceituado como puramente africano, mas algo totalmente novo ou “o que a África se tornou no novo mundo, ou que nós fizemos da “África”” (HALL, 1996, p. 73).

Para Nogueira (2014), a diáspora é a primeira presença, é “aquela que fornece a matriz cultural que será retrabalhada e transformada no processo diaspórico: a presença africana” (NOGUEIRA, 2014, p. 118). Essa presença colonial africana é submetida a outra presença que estabelece relações de poder que hierarquizam e subjugam à transformação e ressignificação dos sentidos de ser africano e trata-se da presença europeia como força excludente (HALL, 1996). Assim, podemos assumir com Nogueira (2014) que o poder colonial foi responsável pela constituição das identidades e especialmente da identidade umbandista que é “uma religião que não existiria sem o processo colonial e todas as relações estabelecidas entre os jogos de identidades” (NOGUEIRA, 2014, p. 118).

Para que possamos dar prosseguimento às nossas análises, tomamos o conceito de identidade cultural a partir de Stuart Hall (1996), considerando que as identidades são frutos dos inúmeros contatos e trocas que ocorreram no espaço colonial e assumimos com o autor que

as identidades culturais provem de alguma parte, tem histórias. Mas, como tudo o que é histórico, sofrem transformação constante. Longe de fixas eternamente em algum passado essencializado, estão sujeitas ao contínuo “jogo” da história, da cultura e do poder (HALL, 1996, p. 69).

Logo, as identidades religiosas em questão são reflexo da presença do africano, sob o jugo da presença do europeu no Novo Mundo em uma relação de forças desigual. Portanto todas essas relações somente foram possíveis pela presença da diáspora como elemento que forneceu a diversidade em constante transformação no espaço colonial. Nesse contexto, de acordo com a perspectiva de Stuart Hall (1996),

A experiência da diáspora, como aqui a pretendo, não é definida por pureza ou essência, mas pelo reconhecimento de uma diversidade e heterogeneidade necessárias; por uma concepção de “identidade” que vive com e através, não a despeito, da diferença; por hibridação. Identidades de diáspora são as que estão constantemente produzindo-se e reproduzindo-se novas, através da transformação e da diferença (HALL, 1996, p. 75).

As trocas entres os grupos e o resultado hibridizado de suas práticas delineou novas identidades ao longo do processo colonial, resultando em personagens específicos que estarão presentes no panteão umbandista nos períodos da República e do Estado Novo, período em que a identidade umbandista foi forjada a partir do mito da anunciação da umbanda pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas. Dessa constante troca, surgiram as religiões que são classificadas por Dulce Santoro Mendes e Claudio São Thiago Cavas (2017) como

religiões brasileiras de matrizes africanas [que] são produtos de contribuições das várias naturezas, origens, intensidades e principalmente, do meio natural e social em que se desenvolveram, além disso, não se pode atestar “pureza” e “autenticidade” como únicos atributos possíveis presentes (MENDES; CAVAS, 2017, p. 158).

As manifestações de matrizes africanas se constituíram desde o Período Colonial subjugadas pela presença europeia que construiu discursos de intolerância religiosa promovidos pelo racismo religioso e calcados na demonização das divindades africanas e que será abordado posteriormente. Sobre o processo racista instado pelos discursos sociais e reproduzidos no âmbito da cultura, consideramos com Sidnei Nogueira (2020) que

O preconceito, a discriminação, a intolerância religiosa e, no caso das tradições culturais e religiosas de origem africana, o racismo se caracteriza pelas formas perversas de julgamentos que estigmatizam um grupo e exaltam outro, valorizam e conferem prestígio e hegemonia a um determinado “eu” em detrimento de “outrem” (NOGUEIRA, 2020, p. 35).

A umbanda, no contexto das religiões brasileiras ditas de matrizes africanas, constituiu-se como uma vertente religiosa repleta de atravessamentos e herdeira da hibridização cultural, que expressa desde o seu início as marcas da diversidade étnica que circulou no território brasileiro desde os tempos em que o Brasil se encontrava em situação colonial, onde conviviam a pajelança indígena, o catolicismo popular e as práticas religiosas da diáspora africana.

Entretanto, o contorno das identidades umbandistas foi estabelecido negociando a permanência e a exclusão de modelos e de elementos africanos no delineamento da religião. Desde o início do século XX as novas práticas religiosas ditas umbandistas foram marcadas por novos modelos fortemente influenciados pelas relações de poder que forjaram a identidade dos atores sociais no interior da religião, evidenciando a submissão a um modelo racionalizado de religião.

A umbanda que se desenvolveu no início do século XX parece evidenciar aspectos discursivos responsáveis pelo delineamento de uma identidade religiosa bem particular no estado do Rio de Janeiro. Trata-se da umbanda que chamaremos, ao longo deste trabalho, de “branca”, herdeira de Zélio Fernandino de Moraes, médium do Caboclo das Sete Encruzilhadas, considerado pelos adeptos o anunciador da umbanda em 15 de novembro de 1908 e fundador da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade (TENSP).

O recorte de Liana Trindade (1991) a seguir nos permite observar a intenção de difusão da nova religião e expansão da uma doutrina baseada em uma sessão de estudos e de desenvolvimento, apontando para a missão que a religião assumiu com o progresso aos moldes do espiritismo moderno cientificista:

Transcritos os anos entre 1917 e 1918, o Caboclo das Sete Encruzilhadas recebeu ordens e assumiu o comando para a fundação de mais sete Tendas, que seriam uma espécie de Núcleos Centrais, de onde se propagaria a umbanda para todos os lados. Oportunamente, numa sessão de desenvolvimento e estudos, o Caboclo das Sete Encruzilhadas escolheu sete médiuns para fundarem os novos Templos (TRINDADE, 1991, p. 67).

Esse ponto é importante porque, a partir da organização da umbanda proposta por Zélio e seu caboclo foram criadas instituições, como a Federação Espiritista de Umbanda, que, ao longo da primeira metade dos anos de 1900, objetivaram padronizar a religião e os ritos, com viés marcadamente racista e branqueador. Segundo Lísias Negrão (1996), o objetivo principal da instituição era “unificar as práticas rituais a partir de uma doutrina mínima e discutir meios para descriminalizar a umbanda que foi perseguida pelo Estado a partir de 1931” (NEGRÃO, 1996, p. 70).

A construção identitária dos umbandistas e de suas entidades foi delineada e amalgamada pelos intercâmbios discursivos divulgados pelo I Congresso de Espiritismo de Umbanda (1941) e pelas revistas umbandistas, responsáveis por delinear o ethos umbandista. A religião do Caboclo das Sete Encruzilhadas dirigida por Zélio Fernandino de Moraes buscou legitimidade social a partir da construção de uma identidade umbandista “limpa” que a distanciasse das macumbas populares.

Nesse sentido, o nascimento da umbanda como religião organizada, em um contexto branco da classe média intelectualizada e urbana parece ter representado um alívio das tensões no campo religioso ao passo que fornecia a esse público uma alternativa aos “serviços” das macumbas clandestinas. Nossa consideração sobre a desafricanização da nova umbanda pode ser observada nos comentários de Nogueira (2017) que seguem reproduzidos abaixo:

Nesta história não há qualquer referência aos negros de outrora que praticavam as macumbas e os candomblés. No nascimento “oficial” da umbanda, estes elementos inexistem, provavelmente como forma de afastar dela tudo o que era considerado “atrasado” e sinal de “barbárie” naquele período (NOGUEIRA, 2017, p. 206).

Desse modo, evidencia-se a contemporaneidade das buscas por legitimação da religião umbandista. Os discursos enfatizados pelo movimento umbandista que se delineia nesse percurso dá destaque ao “amor ao próximo” e à “caridade” ancorados na noção de “serviço” ou trabalho. A estratégia de distanciar a religião umbandista das práticas africanas ancorou-se na aproximação dos propósitos explicitados pelo espiritismo kardecista, o que pode ser evidenciado ao compararmos a semelhança entre as legendas das religiões. No movimento espírita kardecista o mote que define a religião é “fora da caridade não há salvação”, e na religião umbandista, o Caboclo das Sete Encruzilhadas conclamou os adeptos à “manifestação do espírito para a caridade”.

Nessa medida, fica estabelecida a proximidade moralizante entre as religiões e a nítida intenção de distanciamento das práticas mágicas realizadas pelas macumbas populares. A aproximação moral entre as religiões foi construída a partir de discursos que enfatizam aspectos deslocados do continente africano com nítido interesse de desafricanizar a religião umbandista, evidenciando um nítido contorno racista na construção da identidade umbandista que se delineava.

Na próxima seção, analisaremos os discursos construídos pelo movimento umbandista com a finalidade de evidenciar as estratégias que possivelmente corroboraram com a construção de um ethos religioso umbandista marcadamente desafricanizado e embranquecido.

O I Congresso de Espiritismo de Umbanda (1941) e o discurso de desafricanização da umbanda

A União Espiritista de Umbanda do Brasil (UEUB) foi responsável pela organização dos três primeiros congressos de espiritismo de umbanda no Rio de Janeiro (1941; 1961; 1973). O primeiro congresso realizado em 1941 foi publicado no Jornal do Comércio da mesma cidade e que será abordado mais à frente, quando falaremos sobre a construção discursiva que norteou o movimento umbandista no Rio de Janeiro na construção da identidade da religião. Segundo Marcos Paulo A. dos Santos (2016),

o congresso teria sido organizado a partir da primeira associação de espiritismo de umbanda que data de 1939. Cinco tendas (conforme são chamadas no texto) foram convidadas a compor a comissão organizadora, sendo seus delegados médiuns vinculados a elas” (SANTOS, 2016, p. 157).

Para compreender de que forma os discursos trabalharam fortemente a desvinculação da Umbanda das práticas e cultos africanos da diáspora, visitaremos a cotejaremos os discursos das publicações umbandistas com base na bibliografia especializada, com o propósito de evidenciar de que forma as identidades na Umbanda foram atreladas às políticas de Estado nos anos de 1930, prosseguindo pelos próximos vinte anos.

Para tanto, tomamos a análise do discurso como método a partir da perspectiva de Michel Foucault (1996) sobre a ordem das coisas, considerando com o autor que “onde houver discurso, as representações expõem-se e justapõem-se; as coisas se assemelham e se articulam” (FOUCAULT, 1996, p. 405) e “através da soberania das palavras” (FOUCAULT, 1996, p. 405) apreendemos os sentidos enunciados. Essa análise será retomada mais a frente quando trataremos da concepção das entidades na umbanda.

Tomamos o I Congresso de Espiritismo de Umbanda, realizado no Rio de Janeiro em 1941 e posteriormente publicado pelo Jornal Diário do Comércio na mesma cidade, para problematizar alguns discursos presentes no documento. Esse texto foi escolhido por estar repleto de construções ideológicas diretas ou indiretas, explicitadas no discurso.

O texto em relevo apresenta apontamentos racistas como justificativas para a depuração da umbanda, calcados em uma suposta “limpeza” da religião. Ao longo do texto, pode-se conferir destaques dados aos aspectos das manifestações africanas, considerados atrasados, impuros e demoníacos. No documento também pode-se perceber, explicitamente, referenciações ao pensamento kardecista como subsídio para categorizar os espíritos quanto à sua natureza atrasada ou adiantada, tomando como pressuposto sua origem étnica. Esses apontamentos serão detalhados nos próximos parágrafos.

Primeiramente, para compreender de que forma essa mentalidade foi desenvolvida, faremos a seguir, um breve retrospecto sobre o ambiente político e social que parece ter influenciado o delineamento da proposta umbandista divulgada no congresso. Retomamos o contexto político da anunciação da religião umbandista para tecer algumas relações entre política e religião no âmbito da construção da discursividade sobre as identidades de adeptos e das entidades que formam o panteão da religião.

Como vimos, a umbanda do Caboclo das Sete Encruzilhadas nasceu em 1908, dezenove anos após a Proclamação da República (1889). Esse período é compreendido por Maria Resende (2003, p. 91) como “liberalismo oligárquico”, regime que funcionava atrelando ideias liberais difundidas no século XVIII e XIX com controle oligárquico, uma combinação adaptada à realidade brasileira. A abolição do regime de escravidão e a Proclamação da República, acrescidas pela circulação de ideias positivistas, “impulsionaram a separação do Estado e da Igreja”, propiciando, segundo Jacqueline Hermann (2003) a difusão de “novas correntes religiosas, de cunho popular” (HERMANN, 2003, p. 123-135). Nesse bojo, a perseguição da Igreja a manifestações populares aumentou e, nesse contexto, na esteira do espiritismo francês, a umbanda também foi acusada “de misticismo e atração de clientes em torno de ritos e superstições” (HERMANN, 2003, p. 138-145).

Segundo Renato Ortiz (2011), o projeto de legitimação da umbanda seguiu os passos da empreitada de afirmação da identidade nacional promovida pelo Estado, “projeto inculcado na sociedade da época devido às mudanças políticas e sociais ocorridas naquele período” (ORTIZ, 2011, p. 48). Fabíola Amaral Tomé de Souza (2017) aponta que as trocas entre intelectuais umbandistas e espíritas resultou na “busca pelo saber dos intelectuais umbandistas [que] teria sido o resultado de diálogos que envolviam o ocultismo europeu, o espiritismo kardecista e ciências através de seus teóricos (SOUZA, 2017, p. 12). Para a autora, os “teóricos umbandistas se esforçam em apresentar a Umbanda como única religião nacional, verdadeiramente brasileira” (SOUZA, 2017, p. 12), investindo em produções bibliográficas sobre a religião.

Dos esforços dos intelectuais umbandistas, resultou o livro O Culto de Umbanda em Face da Lei e que “foi entregue pela Federação ao então presidente Getúlio Vargas, em 1944, no qual apresentava os anseios e direitos da comunidade religiosa perante a Constituição e a sociedade brasileira” (CUMINO, 2010, p. 155). Desse movimento surgiu “o Jornal de Umbanda que circulou de 1949 a 1969 e trazia vários artigos sobre a história da umbanda e seus princípios filosóficos, codificação das práticas rituais e normas de conduta e postura de adeptos e frequentadores” (TOMÉ, 2017, p. 09)

A literatura umbandista seguiu os contornos das mudanças sociais, baseada na noção de modernidade, na primeira metade do século XX. Nesse contexto de acelerada transformação, intensificou-se o projeto de destradicionalização das sociedades, baseado na comparação entre passado e presente. A mentalidade que se difundia no “presente” era de progresso e de acelerada transformação em conformidade com os ideais positivistas. A tradição foi gradativamente sendo substituída pelos “novos” ideais de desenvolvimento e progresso, deixando de ser fonte estruturante dos indivíduos, que procuravam no futuro o sentido da vida. Foi nesse contexto de intensas transformações que a umbanda construiu sua identidade, o que é evidenciado por Renato Ortiz (2011) no trecho a seguir:

[...] a formação da umbanda segue as linhas traçadas pelas mudanças sociais. Ao movimento de desagregação social corresponde um desenvolvimento larvar da religião, enquanto ao da nova ordem social corresponde a organização da nova religião [...]. O nascimento da umbanda deve ser apreendido nesse movimento de transformação global da cidade (ORTIZ, 2011, p. 32).

Os percursos assumidos pela umbanda nessa fase estão em estreita relação com as concepções positivistas, pois, se o nascimento da religião coincide com a consolidação de uma sociedade urbano-industrial e de classes, “É claro que, como o sistema atua no comportamento, tem uma influência na própria hierarquização e estratificação social mais ampla” (MAGGIE, 1992, p. 200). Esse viés assumido pela umbanda conferiu à religião uma identidade integrada aos movimentos de transformação da sociedade da época. Essa perspectiva pode ser conferida na primeira página do jornal A Noite, publicado em 1953 que parece indicar que a umbanda estaria seguindo passos rumos à civilização e se afastando das práticas atrasadas das macumbas africanas. No recorte a seguir, podemos conferir essa indicação:

Mistérios da outra vida – I

Codificado o ritual de Umbanda

“Não houve reforma, nem qualquer alteração substancial, mas apenas uma atualização adequada à evolução do século...” (A NOITE. 06 de abril de 1953. Ed. 14.638: 1 e 7) [grifo nosso].

Esse posicionamento da umbanda a partir da construção de uma identidade associada às noções de civilização e progresso parece ter promovido certa visibilidade da religião no Rio de Janeiro, favorecendo a adesão da classe média. Portanto, a desafricanização e o embranquecimento da religião umbandista podem ser considerados estratégias que realocaram socialmente a religião e permitiram que ela borrasse as fronteiras estabelecidas para as macumbas, em função do racismo religioso. Podemos conferir essa perspectiva com Diana Brown (1987), na passagem que segue:

[...] a importância da Umbanda reside no fato de que, num momento histórico particular, membros da classe média voltaram-se para religiões afro-brasileiras como uma forma de expressar seus próprios interesses de classe, suas ideias sociais e políticas, seus valores e ideais civilizadores (BROWN, 1987, p.10).

O movimento umbandista seguiu investindo na propaganda discursiva calcada na depuração das práticas africanas. Essa empreitada foi consciente e capitaneada pela divulgação de diversas reportagens publicadas em jornais direcionados para seu público e baseadas nas discussões suscitadas pelo I Congresso de Espiritismo de Umbanda (1941).

O movimento investiu na criação de um jornal impresso, o Jornal de Umbanda, para a divulgação de discursos que objetivavam a doutrinação dos umbandistas e informar as decisões da Federação. As matérias publicadas também visavam a orientações para a vida cotidiana dos adeptos, imprimindo um ethos umbandista ao público. O movimento também contou com a colaboração do A Noite, jornal de circulação estadual, que “no período estudado, também, trazia artigos e reportagens com esclarecimentos sobre a umbanda, com informações de normas de conduta, liturgias e princípios filosóficos aos umbandistas e demais seguidores do vespertino” (TOMÉ, 2017, p. 18), investindo em uma verdadeira “catequização” dos adeptos e simpatizantes. A seguir, percorreremos por recortes das publicações em referência para conduzir nossas análises.

Ao percorrer o texto do congresso, podemos perceber explicitadas ideias kardecistas utilizadas para hierarquizar os espíritos e diferenciar as práticas umbandistas do candomblé, uma preocupação flagrante, dada a citação do candomblé como algo atrasado, alocado no campo da barbárie. No texto, podemos conferir uma declaração do congressita Diamantino Coelho Trindade que explicita as diferenças entre as duas religiões, estabelecendo noções que as diferenciam em termos de valor e de progresso. A fala de Diamantino oculta uma compreensão de civilização particular dos franceses entre o fim do século XIX e início do XX. A seguir, podemos conferir, nas palavras no congressista, um apelo à classificação das religiões, tomando como pressuposto as noções universalistas ocidentais de civilização:

Daí o ritual semi-bárbaro sob o qual foi a Umbanda conhecida entre nós, e por muitos considerada magia negra ou candomblé. É preciso considerar, porém, o fenômeno meselógico peculiar às nações africanas donde procederam os negros escravos, a ausência completa de qualquer forma rudimentar de cultura entre eles, para chegarmos à evidência de que a Umbanda não pode ter sido originada no Continente Negro, mas ali existente e praticada sob um ritual que pode ser tido como a degradação de suas velhas formas iniciáticas (FERNANDES, Diamantino Coelho In: I Congresso do Espiritismo de Umbanda, 1942, p. 20).

A fala de Diamantino prossegue repleta de construções ideológicas sobre o continente africano, na tentativa de desqualificar e justificar o que ele julga atraso civilizacional. Parece intencional a localização da umbanda em um continente “supostamente perdido” para substituir o continente africano e a origem africana dos cultos umbandistas. A fala de Diamantino expressa um profundo racismo religioso expresso na tentativa discursiva de alocar a umbanda fora da África, mesmo que seja em um continente imaginário. No recorte que trazemos a seguir, podemos conferir esse aspecto:

Sabendo-se que os antigos povos africanos tiveram sua época de dominação além-mar, tendo ocupado durante séculos, uma grande parte do Oceano Índico, onde uma lenda nos diz que existiu o continente perdido da Lemúria, do qual a Austrália, a Australásia e as ilhas do Pacífico constituem as porções sobreviventes, — fácil nos será concluir que a Umbanda foi por eles trazida do seu contato com os povos hindus, com os quais a aprenderam e praticaram durante séculos (FERNANDES, Diamantino Coelho In: I Congresso do Espiritismo de Umbanda, 1942, p. 20).

Para justificar a importância e a necessidade do diálogo com o espiritismo francês, e com o intuito de promover a evolução da religião umbandista, Diamantino investe no desmerecimento da África. Na fala do congressista, na continuação do texto, parece esta ocultada a ideia de que a África “merece” seu “atraso” por uma suposta postura “prepotente” em um passado distante. Ele justifica a superioridade da “raça” branca e, com isso, parece implícita a necessidade de branquear a umbanda, moldá-la ao espiritismo francês para que ela seja digna dos adeptos brancos da classe média. A seguir, podemos conferir a reprodução da fala de Diamantino:

Morta, porém, a antiga civilização africana, após o cataclismo que destruiu a Lemúria, empobrecida e desprestigiada a raça negra, — segundo algumas opiniões, devido à sua desmedida prepotência no passado, em que chegou a escravizar uma boa parte da raça branca — os vários cultos e pompas religiosas daqueles povos sofreram então os efeitos do embrutecimento da raça, vindo, de degrau em degrau, até ao nível em que a Umbanda se nos tornou conhecida (FERNANDES, Diamantino Coelho In: I Congresso do Espiritismo de Umbanda, 1942, p. 20).

O discurso que deu o tom do congresso parece evidenciar o interesse das lideranças umbandistas em negar qualquer proximidade com o continente africano e construir pontes que aproximassem sua origem de religiões orientais, com intensa inserção no espiritismo kardecista. O discurso que garantiu o afastamento das práticas africanas estava calcado na noção de atraso material e intelectual das populações africanas, aspecto devidamente reforçado pela suposta “prepotência” africana.

A questão da recusa da presença de aspectos de origem étnica, tanto negra, quanto indígena, foi tema intensamente trabalhado ao longo dos anos pela literatura umbandista, com o objetivo de diferenciar as práticas umbandistas de quaisquer manifestações consideradas bárbaras. Nesse caminho, a codificação dos ritos umbandistas foi intensamente divulgada pelo presidente da União Espiritista de Umbanda (antiga Federação Espírita de Umbanda), Jaime Madruga, com a intenção de amalgamar a identidade umbandista.

A divulgação do ordenamento dos ritos contou com a colaboração do jornal A Noite, que, em 1953, publicou três reportagens dispostas em duas páginas cada, sobre a codificação dos ritos e das crenças umbandistas. A reportagem foi uma entrevista com o presidente da Federação, em que ele declara que:

Há que compreender que a Umbanda nem sempre é bem compreendida fora ou mesmo dentro das organizações umbandistas. O problema é complexo, difícil, mas com o esforço e boa vontade de todos será possível ir escolmando os defeitos e excessos até que se possa eliminar completamente as influências do Candomblé, do omolocô, da magia negra (A NOITE. 1953. Ed. 14.368, p. 01 e 07).

Em sua fala, o presidente utiliza o verbo “escolmar” que significa tirar o “escolmo”, que a palha colocada sobre os telhados para cobrir os espaços entre as telhas. Nesse processo, são escolhidas as palhas boas em detrimento das ruins, essa ação de escolher entre a palha que presta e aquela a ser descartada dá-se o nome de escolmar. Portanto, quando Madruga fala em escolmar a umbanda, ele este se referindo às más influências do candomblé e outros (TOMÉ, 2017, p.19).

Nesse trabalho de limpeza da umbanda, vários aspectos foram depurados e, dentre eles, a magia foi tema de vários embates entre os adeptos, o que podemos conferir em uma reportagem publicada pelo Jornal de Umbanda em março de 1953. O artigo intitulava-se “Como entendemos a umbanda” e foi escrito por J. A. de Oliveira. Segundo o autor, o objetivo do artigo era explicar sobre a umbanda aos seus leitores. O artigo, na verdade, é uma produção intencionalmente racista, que investe no branqueamento da prática da magia, com nítido propósito de desvincular “magia” de um senso generalista que atribui a prática aos negros na forma de “magia negra”. Reproduzimos um recorte do artigo a seguir:

Magia Espiritual – A magia branca (forças positivas), de que se servem os Espíritos que trabalham na Umbanda, está assim interpretada por Waldemar Bento, em seu livro “A Magia no Brasil”, no capítulo referente à Magia de Umbanda – “O que chamamos de “Magia” é a resultante dos trabalhos executados por falanges de entidades do “astral”, que por sua vez pertencem a vários planos diferentes”. Essas falanges conjugam “continuamente” seus esforços no sentido de atenuar e anular as descargas negativas que a cada momento se precipitam sobre o planeta, projetadas ou atraídas pela maldade e materialidade dos seus habitantes. (...) Entendemos que o fetichismo africanista não tenha relação com a Umbanda. E não vemos razões para supostas heranças, tão pouco que a Umbanda seja o resultado de evolução prematura através do africanismo. O pulo teria sido realmente muito grande, mas como a natureza não dá saltos... (JORNAL DE UMBANDA. 1953. Ed. 029: 2).

Na esteira da “limpeza” racial da umbanda, o Jornal de Umbanda também publicou um outro artigo de J. A. de Oliveira, cuja temática central era estabelecer parâmetros que confrontaram as manifestações africanas e a umbanda com a intenção de promover diferenças entre práticas das religiões mediúnicas, amparando a umbanda no código kardecista de “caridade”. Na reprodução da matéria abaixo, podemos conferir:

Umbanda é caridade em ação – Uma corrente espiritualista de luz e verdade. Uma religião com seu ritual, liturgia, magia e espiritismo; onde se estuda e se faz escola. O evangelho de Jesus é o roteiro para todos indistintamente. O Africanismo são práticas materializadas onde entra o mediunismo, os elementos da natureza são ali usados pelas entidades para trabalhos de defesa: o punhal, a pólvora, o cabrito, o frango prêto, a galinha, pombos etc., etc. Uniformes coloridos de acôrdo com a “linha”, “bamboleio” (danças), cânticos, instrumentos de música etc., etc. O Candomblé segue mais ou menos os mesmos processos (JORNAL DE UMBANDA. 1953. Ed. 030: 2).

A empreitada da intelectualidade umbandista prosseguiu investindo no projeto de “limpeza” da religião, excluindo elementos associados às tradições africanas. Foram excluídos dos rituais o sacrifício de animais, e a iniciação à religião foi simplificada e pacificada, tornando-se um evento público, com batismo de iniciados aos moldes católicos. Foram excluídos dialetos, substituídos pela linguagem vernáculas. A mediunidade passou a ser associada à noção de “desenvolvimento”, tributária do kardecismo. Os orixás foram simplificados e sincretizados por santos católicos, que passaram a ser cultuados de acordo com o calendário católico.

Com base nos apontamentos desenvolvidos, podemos assumir que o ideário umbandista e os valores pregados pela religião nascente estavam em acordo com a sociedade republicana que se delineava na capital brasileira. Portanto, de acordo com Renato Ortiz (2011), o desenvolvimento do movimento umbandista se consolidou em referência ao Movimento Político da década de 1930. Podemos dizer, desse modo que, os textos do I Congresso Brasileiro de Espiritismo de Umbanda estão em acordo com os pressupostos ideológicos do Estado-Novo brasileiro. Ancoramos essa nossa consideração fazendo referência ao texto de Elizabeth Cancelli (1994), onde a autora esclarece que:

O período pós-30 apareceu ainda na história social do Brasil delineado por uma nova realidade: a presença de multidões de trabalhadores nas grandes cidades, a redefinição do espaço urbano e o projeto político de um Estado que se auto-impunha a tarefa de promover a inovação moral e política de toda a sociedade através de novas estratégias de dominação que negavam, em sua essência, os princípios políticos do liberalismo clássico, e que passaram a empregar novas formas de controle social, agora dirigidas de maneira cada vez mais centralizada à sociedade como um todo (CANCELLI, 1994, p.25).

O reconhecimento da umbanda enquanto religião organizada foi alcançado nos anos de 1960 quando a religião entrou no censo nacional, afastando-se de vez do estigma de macumba (HAAG, 2011, p. 87). A religiosidade umbandista foi reafirmada em 16 de maio de 2012 quando a presidenta Dilma Rousseff assinou a Lei 12.644 que decretou o Dia Nacional da Umbanda, comemorado anualmente no dia 15 de novembro3. A data foi escolhida em referência ao episódio da anunciação da Umbanda de Zélio Fernandino de Moraes, evidenciando, portanto, o impacto da anunciação na concepção da umbanda enquanto religião organizada vinculada ao episódio que lhe deu origem. Esse processo favoreceu o apagamento da memória da negritude da umbanda. Quando sua fundação foi associada a um homem branco, o protagonismo preto foi silenciado e branqueado.

Considerações finais

Esta pesquisa objetivou compreender de que forma o movimento umbandista do início do século XX, no estado do Rio de Janeiro, delineou um ethos religioso embranquecido com nítido contorno racista. Partimos da análise da construção discursiva de textos apresentados no I Congresso de Espiritismo de Umbanda (1941) e amplamente divulgados por periódicos religiosos e simpatizantes do movimento. O recorte proposto tomou a anunciação da umbanda pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, em 15 de novembro de 1908 como evento responsável pela construção do ideário de religião brasileira fortemente atrelado aos pressupostos políticos de construção da identidade nacional. No contexto das religiões da diáspora no Brasil, esse evento constitui-se um objeto importante para compreender a formação da identidade religiosa, pois foi responsável pela construção de um ideário de religião brasileira fortemente atrelado aos pressupostos políticos de construção da identidade nacional.

Nos intercâmbios das disputas por legitimidade no campo religioso brasileiro do início do século XX, a pressão social e a perseguição da etnicidade ritualística africana corroboraram com o branqueamento da cultura da diáspora africana na concepção da religiosidade umbandista no contexto urbano do Rio de Janeiro. Nesse processo, observamos a partir da revisão da literatura a da análise dos discursos religiosos que a classe média branca se apropriou de elementos das culturas africana e indígena, associados a elementos do espiritismo e do catolicismo para criar seu próprio culto, embranquecido e com referencialidade ancestral fora do continente africano, conferindo contornos orientais à religião.

Os resultados da investigação indicaram a ratificação de um modelo de umbanda “branca” capitaneado pela inauguração da União Espiritista de Umbanda do Brasil (UEUB) e disseminado amplamente entre os adeptos. Observamos que a discursividade produzida pelo movimento umbandista foi imprescindível para compreender as transformações ritualísticas observadas no campo umbandista ao longo das décadas. A desafricanização da religião, nesses termos, foi uma estratégia intencional de “limpeza” da religião e articulada pela classe média branca para amalgamar o processo de legitimação da religião na sociedade urbana.

A partir das considerações expostas, podemos assumir, então, que a umbanda do Caboclo das Sete Encruzilhadas, evidencia a representatividade do branqueamento dessa vertente religiosa, tendo como seus elementos fundacionais o racismo e a desafricanização como pressupostos para a legitimação da umbanda enquanto religião organizada na sociedade urbana do Rio de Janeiro. Nesse contexto, a construção discursiva, influenciou as concepções cosmológicas umbandistas do início do século XX e corroborou para a construção de um ethos umbandista com viés marcadamente racista. Desse modo, a concepção dessa vertente religiosa.

Material suplementario
Referências
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Notas
Notas
1 Este artigo é produto da pesquisa que recebeu financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
3 Disponível em: https://www.palmares.gov.br/?p=20076. Acesso em: 25 de setembro de 2022.
Notas de autor
2 Doutoranda (2019-2023) em Humanidades, Culturas e Artes pelo Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Humanidades, Culturas e Artes (PPGHCA), na Universidade do Grande Rio, com financiamento CAPES. Mestrado (2022) em Educação, Gestão e Difusão em Biociências, no Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis (IBqM/CCS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestrado (2016) em Humanidades, Culturas e Artes, Universidade do Grande Rio, com financiamento CAPES. Pós-graduada (2013) em Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduação (2022) em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduação (2003) em Comunicação Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É integrante pesquisadora do Laboratório Violência e Sociedade: políticas públicas, narrativas, subjetividades e enfrentamentos. É pesquisadora do Grupo de pesquisa Docência e Tutoria na Educação a Distância: práticas e desafios. É Participante do Laboratório de Ética em Pesquisa, Comunicação Científica e Sociedade (LECCS), do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis (IBqM), na área de Educação, Gestão e Difusão em Biociências, do Centro de Ciências das Saúde (CCS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Correio eletrônico: valquiria.vsb@gmail.com.
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