Entrevista


Nascido em 1º de maio de 1938, no sítio Riacho da Boa Vista, no município de São José de Piranhas, Paraíba, Pedro Bandeira construiu uma sólida carreira como cantador, conquistando fama nacional por seus inúmeros trabalhos com a cantoria, percorrendo todo o país ao lado de outros cantadores. Além de poeta repentista — sua principal atividade — Pedro Bandeira também se destacou como cordelista, escritor, radialista e apresentador de TV, registrando e fixando canções e poemas improvisados no imaginário coletivo.4 Ultrapassando sua formação empírica no seio da cultura popular, Pedro licenciou-se em Letras, pela Faculdade de Filosofia do Crato (atual Universidade Regional do Cariri), e bacharelou em Direito, na mesma universidade, e em Teologia, pela Universidade Vale do Acaraú.
Sua história, marcada por ativismo artístico em favor da profissionalização dos cantadores, foi e é reconhecida e homenageada de diversas maneiras, ântumas e póstumas.5 Em sua carreira, apresentou-se para personalidades políticas, como os presidentes Castelo Branco, Costa e Silva, João Figueiredo, José Sarney e Fernando Collor de Melo; líderes religiosos, como o Papa João Paulo II, em ocasião da sua visita ao Brasil no ano de 1980, e Frei Damião (de quem guardava uma carta escrita a punho pelo próprio frei)6; esportistas, como Pelé7; além de músicos famosos, como Luiz Gonzaga, com quem deu início à missa do vaqueiro, celebração ainda realizada anualmente no estado de Pernambuco8.
Em 2018, Pedro foi condecorado com o título de Tesouro Vivo da Cultura pela Secretaria de Estado da Cultura do Ceará e, no ano seguinte, com a Comenda Patativa do Assaré, concedido às figuras que se destacaram e ainda se destacam na região do cariri cearense por seus relevantes trabalhos que contribuem para a difusão da cultura popular tradicional.
Em uma entrevista concedida ao escritor Franco Barbosa, Pedro Bandeira explicou como adquiriu o título de Príncipe dos Poetas Populares no ano de 1974:
A ideia nasceu de Rodolfo Coelho Cavalcante. Ele fez uma pesquisa em todo o Brasil e no Exterior, e recebeu o aval de Jorge Amado, Ariano Suassuna e Câmara Cascudo. Feito de maneira diferente, todos os títulos são dados soltos e o meu foi documentado, a votação feita voto a voto. Eu tenho as cédulas da votação todas guardadas ainda. A festa foi muito bonita, feita por Humberto Bezerra, que era [Vice] Governador [estado do Ceará] na época, governador em exercício. (BARBOSA, 2012, p. 105).
Seu nome volta a reverberar num momento em que o Repente passa a ser reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, sendo inserido no Livro de Registro das Formas de Expressão, onde se encontram outros patrimônios culturais e imateriais, como a capoeira, o carimbó e a literatura de cordel.
Nessa entrevista, Pedro nos falou sobre o início de sua carreira e sua relação com Manuel Galdino Bandeira, seu avô e importante repentista da história brasileira; os seus sonhos e sua opinião sobre a inserção da poesia popular nas escolas, ponto muito defendido por ele. Falou também sobre as principais características da nova geração de repentistas com os repentistas do seu tempo, bem como sobre os problemas de saúde e as “implicações” que estas geraram no seu trabalho.
[Primeira parte da entrevista: 31/10/2016]
Rodolfo Rodrigues e Samuel Gomes de Melo: Como e quando o repente entrou, de fato, na sua vida? Foi através de seu avô Manoel Galdino Bandeira?
Pedro Bandeira: Foi. É verdade. Acontece que eu comecei a cantar com 17 anos, quer dizer, comecei a viajar com 17 anos. Eu botei a viola nas costas e rasguei o sertão de pé, a cavalo, a burro, a jegue, a carro de feira, num parei mais, de 17 anos para cá num parei mais. Mas a minha veia poética vem do meu avô… veio pra minha mãe, e da minha mãe veio pra mim. Minha mãe se chamava Maria Bandeira de França, homenagem à minha avó, que era Francisca, ela botou França, e Manoel Galdino Bandeira, cantador, é meu avô9, minha veia poética vem dele, quer dizer, da família de Manoel Galdino muitos cantadores vieram, eu tenho mais três irmãos que cantam, a minha irmã também cantava, é falecida. Outro que morou em São Paulo, Antônio, também cantava, mas hoje é falecido também. E... aí eu comecei, quando eu comecei foi muito bom pra mim, porque no ano que eu comecei foi o ano que meu avô faleceu, daí peguei as estradas abertas, o povo me recebia bem, eu era muito bem recebido, por esse intermédio que eu era bem recebido, um grande cidadão, de honras, e o maior cantador que as terras deu, antes, no tempo e depois. Num é por eu ser o neto dele que eu digo isso não, é os apologistas que ainda existem do tempo dele, e a intelectualidade, os pesquisadores, todo esse povo grande que sabe o que é cantoria dizia: Manoel Galdino Bandeira é o cantador maior de todos os tempos. Ele leu a bíblia 50 vezes, cantava de tudo que você pedisse: ciência, geografia, botânica, corpo humano, coisa que ninguém sabia naquele tempo ele já sabia. Era curioso, ele lia sem parar. Aí eu comecei.
Depois vim embora pro Juazeiro (do Norte), cheguei aqui em 1961, comecei cantando no Crato (Ceará), na Rádio Educadora do Crato, passei um quarto de século lá, 25 anos na Rádio Educadora do Crato, que botava longe naquela época, eram ondas curtas, médias e hertzianas, era a onda que pegava no fim do mundo. Aí fixei residência aqui em Juazeiro do Norte e desse tempo pra cá num parei de cantar e de escrever. Tenho vários cordéis publicados, centenas de cordéis, tenho 13 livros, e uma felicidade de ser citado por muitos homens intelectuais e muitos escritores famosos, mas sou apenas um repentista simples e modesto, sincero, e o que eu gosto é de cantar, apesar de ter feito os cursos superiores que eu fiz: letras, direito e teologia, três formações acadêmicas, e isso pra melhorar mais, pra cantar, porque o vocabulário “enlarguece” mais... quem lê, né, uma palavra, ajuda aqui, e pá...
R.R. e S.G.M.: Então já são mais de meio século como profissional repentista, não é?
P.B.: É, eu tô com 78 anos (2016) e comecei com 17. Quer dizer, faz 61, né? 61 anos de cantoria, repente, viola nas costas, andando de pé, montado de avião, de jegue, de jipe, do jeito que der certo. E sou o mesmo cantador de quando comecei, pra mim estou começando agora.
R.R. e S.G.M.: E todo esse tempo com muitas histórias…
P.B.: Ah é, história é muito longa, porque eu fui muito persistente, fui e sou persistente, perseverante, humilde, cantei para o papa, cantei para todos os presidentes do meu tempo, presidente da república, e isso num é por ser o melhor não, porque eu não sou o melhor, sou um dos que se esforçam muito. Eu acho muito bom quando um cantador faz uma coisa muito bela, eu admiro bastante, porque o importante do repentista é ele cantar na hora e ter também seus preparos e atender seu público de acordo com que ele seja. É isso que eu tenho a lhe dizer da minha vida.
R.R. e S.G.M.: O senhor cantou com muitos repentistas ao longo de sua vida. Você vê alguma diferença entre os repentistas da nova geração com os repentistas do seu tempo?
P.B.: É, hoje é mais refinado. Tem novos cantadores muito bons. Quando começaram, começaram logo bom, cantando com lirismo, teluricamente falando da terra deles, cantando a vida, cantando o mundo, cantando a política, cantando os acontecimentos da atualidade, têm muitas duplas boas cantando. No meu tempo eram menos duplas boas. No tempo do meu avô houve cantador do tamanho dele, cantando também com ele, como Pinto do Monteiro, Lourival Batista, Antônio Marinho, Tinha Os Batistas… Otacílio… e antes deles vieram muitos, Os Batistas de Patos, da Paraíba, da Serra do Teixeira, do Zumbi, tem outro... Manoel Leopoldino de Mendonça Serrador… Manoel Leopoldino de Mendonça Serrador foi um dos maiores cantadores do tempo de meu avô, cantou muito com ele. E nós estamos aqui pra dar isso, pra cantar, aprender, e chegar no céu cantando.
R.R. e S.G.M.: Na sua visão, já que tanto tem defendido esta pauta, qual seria a importância de se levar o repente e o cordel para as escolas?
P.B.: Muitas escolas já estão levando, já levaram. Muitas escolas hoje tem já como uma cadeira… parece que a URCA (Universidade Regional do Cariri) tem uma cadeira de literatura de cordel, salvo engano, foi criado uma cadeira de literatura de cordel lá na URCA. A Universidade Federal do Ceará eu num sei se tem, mas muitas escolas… ensino básico... Mas no ensino básico, no estudo básico, têm muitas escolas que já levaram, mas precisa de muitas outras levarem com mais afeto, com mais carinho, com mais vontade, com mais impulso, mais ânimo. Mostrando que através da poesia se aprende a ler mais fácil, SE APRENDE A LER MAIS FÁCIL10. A poesia é linda, como esse soneto que fiz para Chico Xavier quando ele completou 90 anos, grande médium Chico Xavier. Eu disse: HALO DE ESTRELAS. Você sabe o que é, né? Se não souber não tem problema não, ninguém é obrigado a saber de tudo, nem… Aqui significa aquele raio como arco íris que de vez aparece dentro duma lagoa, em cores. 7 cores, como dizem que o arco íris é sete cores. Ali chama-se halo. HALO DE ESTRELAS, Pedro Bandeira com Chico Xavier. Eu disse assim... Quer que eu grave o soneto?
R.R. e S.G.M.: Por favor.
P.B.:
Chico Xavier, espírito vidente, Fonte inesgotável de perseverança, Seguidor de Cristo, dócil e paciente, Com noventa anos é uma criança Recebe mensagens, transcreve, não cansa Vê todos os mundos com os olhos da mente. Seu halo de estrelas aos céus alcança, Seu corpo é escravo de um dom transluzente. Conversa com outros espíritos de luz, Entrega-se ao tempo, evoca Jesus, Em seu apanágio não fere ninguém. Com 90 anos ainda está lúcido, Porque no espírito é sempre translúcido Nos páramos eternos da vida do além.
R.R. e S.G.M.: Muito bom!
P.B.: Muito obrigado!
R.R. e S.G.M.: Pedro Bandeira ainda tem um sonho para realizar?
P.B.: Eu tenho. Meu sonho é eterno, né? Meu sonho é agradecer a Deus e a natureza por ter nascido poeta, em ser cantador. E meu sonho maior é procurar cantar melhor do que já cantei e cantar até na hora da morte.
[Segunda parte da entrevista: 12/04/2018]
R.R. e S.G.M.: O senhor tem ideia de quantos trabalhos já publicou?
P.B.: Ah, é uma ferramenta muito intensa, um trabalho muito sério que nós fazemos. Desde que nós começamos a escrever literatura de cordel, nós já temos na faixa de mais de mil cordéis, entre versos, poemas, folhas soltas, folhas volantes – que é aquele tipo de poema que escreve uma folhinha e distribui – folha corrida, chama também. E o cordel, romance, livros… eu tenho 13 livros de minha autoria e tenho mais de seis ou sete livros, salvo engano, de famosos escritores brasileiros que escreveram sobre mim. Então eu acho muito farta, tem essa extensa… essa nossa luta cultural, essa nossa luta de cantador de viola e escritor de repente, escritor de poemas, porque o repente não é escrito, é improvisado na hora, repente é improvisado na hora, quem não é bom repentista não se sai bem, mas, quem é, não tem problema, é isso.
R.R. e S.G.M.: Quais escritores escreveram sobre você?
P.B.: Rodolfo Coelho Cavalcante, Lucinda Azevedo, da IMEP (editora em Fortaleza), Aquino Neto me pesquisou durante 35 anos… Aquino Neto mora em Natal, é escritor, vereador, apresentador de rádio e televisão, grande cidadão. Também Pe. Antônio Vieira me prefaciou. Pe. Antônio Vieira de Várzea Alegre, um dos homens mais famosos e mais importantes que nasceram no Cariri. E muita gente boa escreveu sobre mim. Fui citado por muitos jornalistas famosos, tive a sorte de ter sido lembrado por Luís da Câmara Cascudo, o maior folclorista do Brasil até hoje. Por Jorge Amado, não precisa falar dele porque todo mundo que tem cultura sabe quem foi e quem continua sendo a história de Jorge Amado, e assim por diante.
R.R. e S.G.M.: E entre tantas citações, quem é, verdadeiramente, Pedro Bandeira?
P.B.: Um cantador nordestino de todo e qualquer momento. Ainda sou o mesmo cantador que comecei, montado, correndo, atravessando, rasgando o Nordeste a casco de burro, depois passei a jipe, depois passei a fusca, foi interessante minha vida... depois viajei muito de avião cantando até fora do Brasil. Fui a Portugal… juntamente com Geraldo Amâncio fizemos uma rede de amizades lá muito boa e nós temos muito o que agradecer a Deus e ao povo por esse retorno que a gente tem, e fica muito alegre quando encontra uma pessoa alegre como vocês, igual a vocês, que sabem o que é cantoria, procuram entender e aprender cada vez mais o chavetar do verso, a criação do trabalho poético e o esforço mental do cantador.
R.R. e S.G.M.: Teria alguma consideração?
P.B.: Somente agradecer a vocês, que se inspirem nessa história, que continuem escrevendo sobre os cantadores, sobre os cordelistas, sobre os cantadores de feira, do palácio do governo, da TV Câmara, da TV senado, de outras televisões do Cariri, do Ceará, do Nordeste e do Brasil. Tem cantador bom no Brasil, muita gente boa cantando, gente nova começando agora, bem esforçada, temos uma turma agora muito boa. O que eu lhes recomendo é que vocês tenham paciência também com os cantadores, que nem todos sabem essa grandiosidade que vocês estão fazendo, mas são bons poetas. E sejam felizes vocês e os que participarem desse projeto.
[Terceira parte da entrevista: 30/08/2018]
R.R. e S.G.M.: Como foi que o senhor recebeu e como foi lidar com a notícia de que estava com esse problema de saúde, o Parkinson, e como o senhor se relacionou com isso dentro do universo do seu trabalho?
P.B.: Minha vida foi uma vida pautada em trabalho e sacrifício e responsabilidade, me desculpe eu me expressar assim, mas comecei a trabalhar muito novo. Com seis anos de idade eu já trabalhava na roça com meu pai pastorando passarinho. O que é pastorar passarinho? É plantar o arroz, o milho e o feijão, e ficar esperando que chova e a terra molhe para nascer os grãos, e o passarinho não arrancar, porque o passarinho arranca. Hoje em dia tem menos passarinho por causa do agrotóxico que matou os passarinhos do mundo... uma desgraça! Um crime! Mas no meu tempo tinha muito passarinho. Então com seis anos de idade eu já corria ao redor das lagoas de arroz, das baixas de arroz, da plantação de milho, de feijão. Então minha vida foi uma vida pautada de trabalho, de seis anos a oitenta anos de idade… quer dizer, completei agora em maio de 2018. Fui muito sadio, muito tempo eu não tive problema nenhum e nem tenho para me deixar calado. Eu cantei e já tô com oitenta (anos) e dois meses de idade, e sessenta e três (anos) e dois meses de cantoria, eu comecei a cantar com 17 anos. Então minha vida foi sempre enriquecida por bons caminhos. Eu comecei pelos rastros do meu avô, Manuel Galdino Bandeira, foi o maior cantador do tempo dele, e antes dele e depois dele eu acho que… é até censurado eu dizer isso porque sou neto, mas eu tô dizendo o que os outros dizem, o que os apologistas dizem e os cantadores antigos, como Pinto do Monteiro, como Rogaciano Leite, como cego Aderaldo, como outros cantadores do tempo dele dizia que ele era o maior cantador que o Brasil conheceu.
Bem, aí eu vim na minha luta muito séria, eu comecei a cantar com 17 anos e não parei mais, sempre cantava na... viajava a cavalo no sertão, viajava a pé, a burro, a jegue, a caminhão de feira, a jipe, a fusca, então eu cantava sem parar, toda semana eu tinha duas, três, quatro cantorias, isso no sertão da Paraíba, sertão do Ceará, sertão do Pernambuco, sertão do Rio Grande do Norte. Quando eu digo “sertão” é abrangendo as grandes cidades. E assim eu vim tirando, nunca fui muito bebedor de aguardente, como os cantadores costumavam mais a beber uma “canazinha” para temperar a goela, eu tomava um “whiskynho”, um conhaque São João da Barra, mas nunca tomei para... poucas vezes eu cheguei a sentir o peso do álcool, não existia e hoje nem tomo quase mais nada. Com relação à minha saúde, foi boa, até que eu tive um infarto… até que eu tive um infarto. Infartei numa fazenda que eu comprei, ali perto de Missão Velha (Ceará). Eu chegava lá e lutava muito, ia corrigir o cercado dos animais, então isso me fez cansar e eu infartei lá, vim nesse hospital que era aqui, esse hospital Santo Inácio, defronte à minha casa, aqui passei uns dias infartado. Depois dei outro infarto mais sério, aí fui para Fortaleza, saí daqui sem ver o mundo e vim acordar em Fortaleza, de avião. As minhas meninas fretaram um avião, veio do Recife e me pegou aqui, me levou para Fortaleza. Lá eu tenho stent com o Dr. Regis Jucá, que morreu logo depois, dois ou três anos, morreu, um grande médico, um grande cardiologista.
Então, depois do infarto, me apareceu o Parkinson. O Parkinson eu comecei tremendo essa perna esquerda, não sei se era a preocupação, a responsabilidade que me fazia cantar, muito inspirado, muito responsável, às vezes eu penso que pode ser isso ou o sono que passei muito, muita noite de sono, teve anos que eu cantava… eu cantei mais de duzentas noites do ano. Teve uma época que eu passei setenta noites tocando, cantando toda noite, dormia um pouco de dia, quando dava tempo, e adormecia numa Cantoria, tava cantando e... pegava no sono e…, quando caia ficava enganchado no pescoço [risos], aí o povo me pegou e me botou numa rede, eu dormi um dia e uma noite e melhorei. Então aí me apareceu o Parkinson. A tremura começou na perna, depois veio para as mãos e já foi pior do que está hoje, hoje está quase dominado, eu tomo muitos medicamentos, tenho um médico muito bom e tenho a intenção de fazer uma operação, botar um chip, que é como um marcapasso, bota na veia da cabeça, e muita gente tá fazendo e se dando bem e eu tenho vontade de fazer e precisão de fazer, porque me preocupa. E o Parkinson é chato, quando você tá tranquilo, sem nenhuma responsabilidade, sem nenhum sobressalto, sem um impacto, sem um afobamento… todo mundo se afoba, todo mundo se enche o saco, imagine você de saco seco e vim um cara só encher o seu saco [risos]... mas isso é da vida, eu levo tudo isso com muita naturalidade, não sou de me afobar, não sou de desejar mal a ninguém, não sou de denegrir a ninguém, não sou de invejar ninguém, até porque pela minha felicidade eu não tenho de que invejar nem a ninguém na face da terra, só agradecer... invejar a natureza que é maior do que eu, eu já sou subordinado a ela. Então eu luto e lido com o Parkinson até hoje com naturalidade, eu não tenho complexo, não tenho preconceito, nem medo de tremer não, eu tremo o braço, a perna ou o corpo, mas o verso não treme, a poesia é firme, a consciência é vibrante. Graças a Deus e aos grandes espíritos eu vivo muito bem, me sinto muito feliz. Quero viver mais muitos anos e cantar muitos anos, cantar melhor do que eu já cantei e escrever melhor do que eu já escrevi.
R.R. e S.G.M.: Quantos anos o senhor tinha quando teve o primeiro infarto?
P.B.: Ah, eu tenho... eu tinha sessenta... sessenta e nove anos... sessenta e nove anos. Em 70, vamos dizer que fosse setenta, hoje tô com oitenta... tem 10 a 12 anos de Parkinson. Incomoda muito porque às vezes até a tocar na viola, às vezes eu me sinto incomodado, mas nada me faz deixar de cantar, deixar de palestrar, deixar de estudar, deixar de ler, deixar de ensinar, deixar de improvisar, deixar de escrever, nada me impede, até aqui, de eu fazer o meu trabalho com consciência, com boa vontade, procurando fazer o de amanhã melhor do que o de hoje, essa é minha filosofia, porque na hora que a gente esbarra ou pensa que sabe de tudo, aí dá uma ré, quem diz “eu já sei de tudo, não quero mais aprender não”... porque não tem quem saiba de tudo, quem mais sabe é quem sabe que não sabe [risos], esse sabe. Portanto o Parkinson, que é essa doença muito pesada… chama-se o mal do papa, porque o papa João Paulo II teve Parkinson, sofreu muitos anos, mas tomava tanta medicação que quase a gente não notava dele ser portador de Parkinson. Cantei para ele, ele é um dos meus guias espirituais, me inspira muito, às vezes eu estou… às vezes estou com o Parkinson acelerado e chamo por ele e melhoro, é interessante isso, né?
R.R. e S.G.M.: Então quer dizer que o senhor ainda é um estudioso nato?
P.B.: Ou inato? [risos] porque do nato pro inato tem diferença, não sei se você sabe. O inato, diz a ciência, que é mais do que o nato, diz, na maneira da gente pronunciar, que a gente ouve até um tumulto… no Rio Grande do Norte, eu cantando em Natal, cantei um mote que dizia: se no céu só entrar poeta inato / pouca gente vai ter esse direito. Quando cantei esse mote, os cantadores ficaram duvidando, um: “não, nato é que é maior”; “inato é que é maior”; “é o nato ou o inato?”, aí nós podemos dizer com consciência que o inato já vem das entranhas maternais, como eu venho, eu sou neto do meu avô materno, Manuel Galdino Bandeira. Mas me considero um poeta inato, porque com seis anos eu já fazia essa... e o nato também não deixa de ser bom… “sou um cantador nato”, não deixa de ser bom, às vezes é melhor do que o inato, porque o nato é aquele que aprende a cantar, e se ele persevera e tem cuidado e boa vontade, às vezes ele se torna maior do que o inato, que é inato mas é preguiçoso, não pensa, não imagina, não filosofa, não sabe os caminhos de engrandecer a profissão, né? Então eu me considero um poeta inato, com muita humildade e muita responsabilidade, e dizendo que o que eu quero é viver mais, e cantar mais do que eu cantei, cantar melhor do que cantei, e escrever cordel, livros, canções e poemas etc.
R.R. e S.G.M.: Você tem quantos filhos?
P.B.: Tenho duas filhas, só duas filhas, a Íria Maria e a outra é a Analica Bandeira, uma é médica e a outra é advogada. Já tenho bisnetos, tenho netos formados, três... tenho bisnetos já de treze anos, também. Estou agradecido a Deus o que ele tem feito comigo, e agradeço muito ao Padre Cícero que me inspirou, e, repito, os espíritos iluminados, o de Chico Xavier, de quem sou admirador profundo. Eu fiz um poema pra ele, um soneto que eu digo: Chico Xavier, espírito vidente / fonte inesgotável de perseverança / Seguidor de Cristo, meigo e paciente / Com noventa anos é uma criança / Recebe mensagem, escreve e não cansa… me esqueci agora.
R.R. e S.G.M.: Bem, essa é a terceira parte da nossa entrevista e a última, e eu o queria fazer essa pergunta: qual é o legado que você quer deixar para as gerações futuras? Especialmente quando citarem o nome de Pedro Bandeira?
P.B.: Quero deixar, quando eu partir daqui para a vida eterna, verdades, mansidão, educação, responsabilidade, humildade principalmente, e deixar meu nome na história da cantoria nordestina, brasileira, mundial, como um cantador que passou e deixou rastros. Não nego, quero deixar meu rastro. E já fiz muito, fiz muitos cordéis, muitos livros, cantei esse tanto de noites, e ainda vou cantar outros, e quero que, quando daqui a uns séculos, ainda se lembrem de mim, quando lerem, por exemplo, meus versos, uma existência de Deus:
Deus está nas ideias de Platão Aristóteles, Confúcio, Cicero e Dante Gutemberg, Paré, Galeno e Kant Leonardo, Beethoven e Salomão Quem afirma que Deus é ficção É nocivo, pequeno e ignorante Para o mundo é insignificante Porque Deus é a própria inteligência É a luz sublimada da ciência Transformando uma célula num gigante.
Considerações finais
O reconhecimento de “Tesouro Vivo” permanece intacto e irredutível ao tempo. Nem mesmo sua morte conseguiu diluir a produção poético-musical deixada em vida. Nesta entrevista, Pedro Bandeira reconhece a consumação da sua trajetória de repentista como uma herança de influências de muitos cantadores com quem conviveu, especialmente a do seu avô Manuel Galdino Bandeira. E assim, transportando a barreira de uma aprendizagem inata, Pedro mostrou que suas formações (acadêmicas e empíricas) foram meios importantes para a aquisição das habilidades necessárias de cantador.
Sua saúde, debilitada e afetada com os infartos que sofrera e o Parkinson com que foi obrigado a conviver, foi surpreendentemente superada pela vontade de continuar cantando e produzindo. Como ele mesmo expressou nessa entrevista: “eu tremo o braço, a perna ou o corpo, mas o verso não treme, a poesia é firme, a consciência é vibrante”. E foi com essa vontade de viver que Pedro construiu todos os anos da sua vida. Mesmo com nossa entrevista muitas vezes interrompida por tremores, afetando a fala e desviando o raciocínio, Pedro em nenhum momento se entregou e/ou pediu tréguas, mas esperava o tempo do corpo para superá-lo com a alegria da vida.
Com essa entrevista queremos deixar viva a memória de um dos maiores cantadores repentistas da história brasileira. Um cantador que soube cantar o seu tempo para os mais diferentes ouvidos e que soube dialogar com a inteligência e a verdade para arquitetar grandes obras da poesia nacional.
Referências
BARBOSA, Franco. O poeta Pedro Bandeira mostra Juazeiro ao mundo. HB Gráfica, Juazeiro do Norte - CE, 2012.
PEREIRA, Amalle Catarina Ribeiro. Vida de gado: vaqueiros entre a lida e a palavra em Serrita (PE). Tese de Doutorado. Universidade de Brasília, Brasília - DF, 2021.
RODRIGUES, Rodolfo. A música na cantoria: processos de transmissão musical na prática do cantador repentista. Dissertação (Mestrado em Música). João Pessoa - PB, 145 p, 2022.
SECULT. Mapa Cultura do Ceará. Poeta Pedro Bandeira. 2018. Disponível em: https://mapacultural.secult.ce.gov.br/agente/41135/. Acesso em: 06 de fevereiro de 2023.
Notas
Notas de autor