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Estratégias folkmidiáticas para a propagação da identidade cultural negra
Folkmedia strategies for the propagation of black cultural identity
Estrategias folkmidiaticas para la propagación de la identidad cultural negra
Revista Internacional de Folkcomunicação, vol. 21, núm. 46, pp. 76-91, 2023
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Dossiê


Recepción: 29 Abril 2023

Aprobación: 12 Junio 2023

DOI: https://doi.org/10.5212/RIF.v.21.i46.0004

Resumo: Diversos trabalhos buscam apresentar como a indústria cultural se apropria da cultura popular para a transformação de seus conteúdos em mercadoria. Este trabalho visa refletir sobre situações inversas, ou seja, como agentes folkmidiáticos se apropriam dos meios de comunicação de massa para propagar a cultura negra. Para tanto, discorre sobre compositores e cantores negros, relacionados com o movimento hip hop, que buscaram diferentes estratégias para a inserção da identidade cultural negra nos produtos midiáticos brasileiros e estadunidenses. Como metodologia, utiliza a pesquisa bibliográfica e descrição de cunho analítico para o exame de produtos midiáticos que foram selecionados a partir de suas diferentes estratégias para inserção na indústria cultural. Assim, o artigo apresenta as formas como os artistas populares Beyoncé, Emicida e MV Bill encontraram para propagar a identidade cultural negra nos meios massivos. Cabe salientar que a identidade cultural corresponde aos Estudos Culturais. As identidades surgem como conceitos estratégicos e posicionais para resistir e enfrentar os discursos hegemônicos.

Palavras-chave: Folkcomunicação, Mídia Massiva, Indentidade cultural, Cultura negra.

Abstract: Various works seek to present how the cultural industry appropriates popular culture to transform its contents into merchandise. This work aims to reflect on inverse situations, that is, how folkmedia agents appropriate the mass media to propagate black culture. To do so, it talks about black composers and singers, related to the hip hop movement, who sought different strategies for the insertion of black cultural identity in Brazilian and American media products. As a methodology, it uses bibliographical research and analytical description to examine media products that were selected based on their different strategies for insertion in the cultural industry. Thus, the article presents the forms that were found by popular artists Beyoncé, Emicida and MV Bill to propagate black cultural identity in the mass media. It should be noted that cultural identity corresponds to Cultural Studies. Identities emerge as strategic and positional concepts to resist and confront hegemonic discourses.

Keywords: Popular communication, Mass Media, Cultural identity, Black culture.

Resumen: Varios trabajos buscan presentar cómo la industria cultural se apropia de la cultura popular para transformar sus contenidos en mercancías. Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre situaciones inversas, es decir, cómo los agentes de los medios populares se apropian de los medios masivos para propagar la cultura negra. Para ello, habla de compositores y cantantes negros, relacionados con el movimiento hip hop, que buscaron diferentes estrategias para la inserción de la identidad cultural negra en productos mediáticos brasileños y estadounidenses. Como metodología, utiliza la investigación bibliográfica y la descripción analítica para examinar productos mediáticos que fueron seleccionados en función de sus diferentes estrategias de inserción en la industria cultural. Así, el artículo presenta las formas encontradas por los artistas populares Beyoncé, Emicida y MV Bill para propagar la identidad cultural negra en los medios de comunicación. Cabe destacar que la identidad cultural corresponde a los Estudios Culturales. Las identidades emergen como conceptos estratégicos y posicionales para resistir y confrontar los discursos hegemónicos.

Palabras clave: Folkcomunicacion, Medios de comunicación en masa, Identidad cultural, Cultura negra.

Introdução

Este trabalho tem como objetivo geral refletir sobre como as culturas populares se apropriam dos meios de comunicação de massa. Para tanto, inicia as reflexões utilizando como base teórica os Estudos Culturais, a partir de Stuart Hall (2009) e Kathryn Woodward (2009), para entender a cultura popular e as identidades culturais expressas por meio de suas manifestações. Também utiliza o conceito de comunicação popular que, segundo Cecilia Peruzzo (1995), se refere as produções populares que possuem intenção comunicacional.

Após abordar as questões sobre cultura popular, comunicação popular e identidade cultural, apresenta as considerações de Luiz Beltrão (1980) acerca da folkcomunicação, teoria que se debruça sobre os estudos da comunicação dos marginalizados. Nessas discussões, incluí Osvaldo Trigueiro (2008) que discorre sobre como a folkcomunicação tem apresentado novos desdobramentos decorrentes do uso das produções populares pelos meios massivos, bem como a utilização desses canais pelos chamados agentes folkmidiáticos. O artigo apresenta o hip hop como comunicação popular, uma vez que objetiva discursar, refletir e conscientizar sobre problemas sociais enfrentados por grupos socialmente marginalizados, sobretudo, o negro.

A partir dessas discussões, analisa-se três cantores/compositores que estão envolvidos com o hip hop, elemento da cultura negra, sendo dois brasileiros, Emicida e MV Bill, e uma artista estadunidense, a Beyoncé. Os hip-hoppers foram selecionados por meio de observações prévias sobre as diferentes formas de apresentar discursos de resistência na mídia dominante, independentemente de localização.

Como metodologia, utiliza a pesquisa bibliográfica e descrição de cunho analítico para o exame de produtos midiáticos tais como letras de música, videoclipes e apresentações musicais, que foram selecionados a partir de suas diferentes estratégias para inserção na indústria cultural. Pretende-se, com este trabalho, contribuir para os desdobramentos dos estudos da Folkcomunicação, entendendo como os artistas selecionados fazem uso de diferentes estratégias para veicular, na mídia dominante, conteúdos contra hegemônicos.

Identidade cultural Negra

De acordo com os Estudos Culturais, as identidades culturais surgem quando há conflito entre grupos sociais. Stuart Hall (2009) ressalta que as identidades culturais devem ser entendidas como conceitos estratégicos e posicionais, isso porque visam resistir frente aos discursos proscritos que, segundo Arce (1997, p. 162), são “aquelas formas de identificação rejeitadas pelos setores dominantes, nas quais os membros dos grupos ou das redes simbólicas prescritas são objeto de caracterizações pejorativas, muitas vezes, persecutórias”.

As identidades proscritas do negro, sobretudo em países que passaram pelo processo de colonização e escravização, foram construídas por textos generalistas e racistas sustentados cientificamente até meados da primeira metade do século XX (SKIDMORE, 1989). Esses textos ressoaram com força até o final desse século, por meio das produções midiáticas veiculadas pelo cinema (CARVALHO, 2003), televisão (de FARIA, & FERNANDES, 2007) e conteúdos jornalísticos (ALBUQUERQUE, 2016) que ofereciam textos ideológicos e reforçavam o lugar subalterno do negro nessas sociedades, por meio de representações racistas.

Como resposta política aos textos dominantes, pessoas negras criam mecanismos de defesa e luta a partir de discursos contra hegemônicos que visam posicionar e comunicar a identidade cultural a qual pertencem. Woodward ressalta que (2009, p. 34), “a política de identidade concentra-se em afirmar a identidade cultural das pessoas que pertencem a um determinado grupo oprimido ou marginalizado. Essa identidade torna-se, assim, um fator importante de mobilização política”.

A partir da colocação de Woodward (2009), torna-se possível compreender que as identidades políticas surgem nas manifestações populares oriundas dos grupos marginalizados. Como lembra Hall (2009), a cultura popular é o local onde se manifestam os prazeres, os anseios, as lutas do povo. O autor vê a cultura popular como a arena na qual se estabelece a luta contra os discursos dominantes. No entanto, cabe sempre lembrar que Peruzzo (1995) chama a atenção para o fato de que não se deve generalizar que a cultura popular é sinônimo de luta, pois são conteúdos diversos que nem sempre objetivam transformações sociais. Assim, a autora apresenta o termo comunicação popular que, segundo sua colocação, é a produção da cultura popular voltada para os discursos de resistência frente às produções dominantes.

A construção de identidades culturais ocorre por meio do simbólico e se caracteriza, em muitos casos, a partir de reivindicações sobre os problemas enfrentados pelo grupo social, apelo a antecedentes históricos, personalidades que marcaram a resistência e elementos culturais específicos de um determinado grupo (WOODWARD, 2009), - e outros que não necessariamente pertencem ao grupo. Assim, novas identidades são criadas, sobretudo, por agentes transformadores que buscam comunicar a cultura de seu grupo por meio de manifestações que se caracterizam como a comunicação popular apresentada por Peruzzo (1995).

Para Hall (2003), as vozes das margens são hoje as responsáveis pelas mudanças da vida cultural, sendo a cultura popular negra a protagonista dessas transformações. De acordo com o autor, a contranarrativa praticada, especialmente, na oralidade existente nas produções musicais, têm marcado a vida cultural da diáspora negra. Assim, pode-se entender que as produções das identidades culturais das margens ocorrem por meio de processos folkcomunicacionais. Cabe ressaltar que a folkcomunicação é o “conjunto de procedimentos de intercâmbios de informações, ideias, opiniões e atitudes dos públicos marginalizados urbanos e rurais, através de agentes e meios direta ou indiretamente ligados ao folclore” (BELTRÃO, 1980, p. 24).

Dentro da perspectiva folkcomunicacional, chamamos de Folkmídia os processos nos quais a mídia se apropria das manifestações marginalizadas/populares, adaptando-as para devolvê-las ao público massivo. Entretanto, Luyten (2002) ressalta que o intercâmbio de culturas que tem ocorrido entre as manifestações da cultura popular e os meios de comunicação de massa nos aponta para duas situações: o uso dos elementos marginalizados/populares pela mídia e o uso da cultura de massa pelos agentes populares. Isso se dá pelo fato de que, nos últimos anos, a dinâmica da globalização propiciou mudanças significativas na comunicação. De acordo com Trigueiro (2008, p. 52): “[...] as interações face a face, corpo a corpo, são agregadas de valores culturais proporcionadas pelas interações midiáticas, nesse jogo dialético de interpretações de bens culturais locais e globais emergem os produtos culturais folkmidiáticos”.

Posto assim, o termo Folkmídia contribui para a compreensão das comunicações que ocorrem em diferentes direções, tendo como protagonistas as produções midiáticas dominantes e as folkcomunicacionais. Nesse processo de intercâmbio, podemos identificar diferentes usos, sobretudo, os conteúdos folkcomunicacionais que intencionam a comunicação popular, tais como o hip hop ou outros elementos que têm a intenção de apresentar identidades culturais. Neste sentido, a comunicação popular pode ser atribuída aos líderes-comunicadores folk, ou seja, agentes formadores de opinião que se apropriam das mensagens oferecidas pelos meios de comunicação de massa e outros meios, transformando-as em uma nova mensagem adequada ao seu público (BELTRÃO, 1980).

Considerando as mudanças comunicacionais ocorridas nos últimos anos, Trigueiro (2008) nos oferece um conceito que se aproxima da ideia de líderes-comunicadores. Ao definir agentes folkmidiáticos, o autor ressalta que são protagonistas que ocupam também espaços midiáticos dominantes como programas televisivos de grande audiência, programas de rádio ao vivo, estúdios e outros meios massivos nos quais reclamam, solicitam apoio ou recolocam o seu produto cultural tradicional. Nas palavras de Marques de Melo (2008, p. 65), o agente folkmidiático é aquele “[...] cuja função pode ser bivalente, tanto interpretando os conteúdos midiáticos para o consumo do cidadão de seu entorno quanto agendando os conteúdos folkcomunicacionais no fluxo contínuo das indústrias culturais”.

Assim, podemos entender que os agentes que produzem e transmitem identidades culturais na mídia massiva, os quais interessam a este trabalho, são indivíduos que, por meio da comunicação popular e seus contatos com os meios massivos de comunicação, assumem o papel de agentes folkmidiáticos que se apropriam das mensagens, das linguagens, dos aparatos técnicos de determinados canais para a propagação da identidade cultural.

Nos territórios marginalizados existentes nos grandes centros urbanos, o hip hop é uma manifestação popular que se apresenta como comunicação popular. Cabe ressaltar que se trata de um movimento cultural que envolve elementos diversos, tais como dança, grafite, DJ, MC e conhecimento. Desses elementos, cabe destacar o conhecimento, que é a chave para a produção do hip hop, pois o movimento tem como lema a “Paz, Amor, União e Diversão”, ou seja, a prática cultural consciente e transformadora no lugar da violência (POSTALI, 2011).

Posto assim, hip hoppers e demais indivíduos envolvidos com o movimento assumem o papel de agentes folkmidiáticos, pois buscam, por meio dos elementos culturais que envolvem o hip hop, produzir contranarrativas aos discursos dominantes, criando também as identidades culturais.

No ocidente, é comum que as produções de hip hop abordem temas da cultura negra. Letras de rap fazem referência a elementos da cultura africana como a religiosidade, mitologia e personagens, além das pessoas que marcaram a luta do grupo negro nos países que ainda sofrem com os prejuízos da colonização e sistema escravagista, tais como Zumbi dos Palmares, Martin Luther King Jr., Malcolm X, entre outros.

Por possuir conteúdos que contradizem as identidades proscritas representadas pela mídia dominante, dificilmente vemos essas manifestações nos maiores veículos de comunicação. As manifestações políticas, geralmente, permanecem silenciadas, entretanto, lideranças passam a buscar estratégias alternativas para a sua disseminação. Na contemporaneidade, ainda não é comum a presença de rappers que assumem a filosofia do hip hop na comunicação dominante, e quando surgem, apresentam conteúdos corroborados à dinâmica da indústria cultural. A comunicação popular é trocada pela cultura de massa, cujo teor busca falar a todos e a ninguém. Ou seja, tratam de temas genéricos, comuns a todos os grupos e classes sociais, tais como o amor e a violência. Nas palavras de Morin (2009, p. 35), os conteúdos para a massa “se dirigem efetivamente a todos e a ninguém, às diferentes idades, aos dois sexos, às diversas classes da sociedade, isto é, ao conjunto de um público nacional e, eventualmente, ao público mundial”. Por outro lado, Douglas Kellner lembra que a cultura de mídia também veicula textos progressistas e que, por isso, se deve evitar a romantização do público ou o extremo de “[...] reduzi-lo a uma massa homogênea incapaz de pensar ou agir criticamente. [...] A mídia é uma força tremendamente poderosa, e subestimar seu poder não traz benefícios aos projetos críticos de transformação social” (2001, p. 142).

Assim, propõe-se refletir sobre as estratégias de três agentes folkmidiáticos envolvidos com a cultura hip hop, para a propagação da identidade cultural negra na mídia dominante.

Emicida, Beyoncé e MV Bill

Alguns poucos rappers brasileiros como Emicida alcançaram a indústria cultural brasileira ao produzirem conteúdos convergentes aos temas valorizados pelos meios de comunicação de massa, sobretudo, situações que discorrem sobre relacionamentos amorosos. Cabe ressaltar que não se entende essa atitude como um problema de apropriação - como sugerem alguns textos oriundos da academia, ou como uma traição - como entende parte do grupo ao qual pertence o rapper. Aliás, o olhar a partir do sentimento de traição existe desde que os bluesmen começaram a tocar jazz para chegar à indústria da música (POSTALI, 2011).

Na contramão desses discursos, este trabalho entende que a exposição dos artistas, mesmo com um conteúdo mais adequado aos padrões industriais, propicia que um público maior tenha conhecimento sobre a sua existência e, a partir do interesse, busque mais do seu trabalho nas plataformas digitais que permitem um pouco mais de liberdade de conteúdo.

Em 2015, o rapper Emicida lançou o álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa... que inclui a canção Passarinhos2, gravada em parceria com a cantora e compositora Vanessa da Mata. A canção traz um discurso sobre problemas comuns enfrentados por inúmeras pessoas, sem referência direta a um grupo social específico. A música foi amplamente veiculada na grande mídia, incluindo diversas emissoras de rádio. Por outro lado, a canção Baiana – gravada em parceria com Caetano Veloso -, que faz parte do mesmo álbum e aborda de forma explícita elementos da identidade cultural negra, não teve o mesmo espaço na mídia dominante. Na canção, o rapper se refere à “cor nagô” da baiana, fazendo referência à origem de muitos negros brasileiros; cita elementos da mitologia iorubá tais como os orixás, o axé, o banho de pipoca e os colares de conchinhas. Com relação às personalidades, menciona a cantora Clementina de Jesus e o pintor baiano Raimundo de Oliveira. Cabe ressaltar que a canção deixa evidente a intenção de promover a identidade cultural - com marcação na diferença – quando menciona que Iemanjá pode ter qualidades distintas a depender da cultura. “[...] 2 de fevereiro, dia da Rainha, que pra uns é branca, pra nóiz é pretinha”.

Ainda que a música mais veiculada seja Passarinhos, ao se inserir na mídia, Emicida possibilita um acesso mais amplificado de seu trabalho ao se utilizar de plataformas digitais com outros conteúdos possíveis de serem acessados. Neste sentido, vê-se no trabalho de Emicida uma estratégia folkmidiática. As levar a sua identidade à mídia dominante considerando os limites por ela impostos, o cantor promove a comunicação popular nos meios massivos, administrando, assim, a sua inserção e permanência na mídia mainstream.

Outro caso que merece destaque é a estratégia de MV Bill. No ano de 2003, o rapper foi convidado para participar ao vivo no Domingão do Faustão, um dos programas de entretenimento com maior audiência da Rede Globo na época, emissora mais visualizada no país. MV Bill cantou a música Só Deus pode me julgar, do disco Declaração de Guerra, além de fazer referência à canção Respeito é para quem tem, do álbum Rap é Compromisso do rapper Sabotage (1973 - 2003), um dos nomes mais expressivos do hip hop nacional.

Só Deus pode me julgar discorre sobre os problemas dos negros brasileiros, a corrupção, a negligência do governo com relação aos pobres e à influência dos meios de comunicação dominantes na cultura e na alienação do brasileiro, ou seja, trata-se da comunicação popular. Quando o rapper iniciou o discurso sobre a TV, o apresentador Fausto Silva começou a interrompê-lo, dizendo frases em cima de sua rima que diz “[...] só tem paquita loira/ aqui não tem preta como apresentadora/novela de escravo a emissora gosta/ e nossos pretos chibatados pelas costas/ faz confusão [...]”. A partir dessa frase o apresentador fala em cima de sua apresentação, com o som de seu microfone mais alto que o do rapper3.

A atitude de MV Bill está de acordo com o objetivo do movimento hip hop; por outro lado, a nosso ver, impede a infiltração da comunicação popular, especialmente, do rap, nos meios de comunicação dominantes. Nesse sentido, MV Bill leva a música/comunicação popular a mídia massiva, mas não consegue estabelecer uma relação com a emissora, pois o seu conteúdo ataca explicitamente o veículo em seu conteúdo, além de não atender as exigências da indústria cultural no que se refere, também, aos padrões técnicos: sua exposição musical durou, em média, seis minutos, o equivalente ao dobro de tempo do padrão. Observa-se, portanto, a interrupção da possibilidade de estabelecer, nesse momento, uma proximidade com o veículo massivo. A cultura de massa buscou se apropriar da cultura popular negra, mas esta, por sua vez, não cedeu às suas exigências. MV Bill, enquanto líder-comunicador folk, claramente optou pela estratégia de combate e não diálogo com a mídia hegemônica.

Cabe ressaltar que é incomum vermos a comunicação popular do hip hop nos grandes veículos de comunicação, exceto quando é adequada aos moldes da indústria cultural. Nos Estados Unidos, os rappers mais presentes na mídia dominante discorrem sobre questões amorosas e, sobretudo, violência, mas não a violência do Estado exercida contra os negros estadunidenses, e sim o poder das gangues, conteúdo também explorado por outras narrativas midiáticas. Essa postura pró-criminalidade é mal vista pelo fundador do hip hop, Afrika Bambaataa, que a partir da apropriação do movimento pelas gangues, resolveu criar o quinto elemento “conhecimento”, como apresentou-se anteriormente. No Brasil, o conjunto de manifestações oriundas do hip hop contemplam a filosofia do movimento que tem como intenção diminuir a criminalidade e incentivar a paz, união e diversão, o que faz com que Bambaataa prefira as produções brasileiras às estadunidenses (POSTALI, 2011).

Assim, observa-se que os raps nacionais que apresentam a identidade cultural do negro brasileiro são pouco abordados pelos veículos de comunicação de massa, pois grande parte dos discursos apresenta contra hegemonia, como fez MV Bill.

Na contramão das produções de hip hop que estão em evidência na mídia estadunidense, destaca-se a estratégia de Beyoncé, uma das cantoras mais premiadas e destacadas na indústria mundial de música. Por ser negra e adaptar-se às exigências da indústria cultural estadunidense, Beyoncé foi por muito tempo criticada por não incluir, em seu trabalho, as questões que assolam o seu grupo social. Como expusemos anteriormente, essas cobranças são bastante comuns, desde a propagação do jazz até o hip hop. Negros e negras que aderem aos moldes da indústria cultural, muitas vezes, são criticados por uma parcela significativa de seus grupos sociais. As críticas são ainda mais contundentes quando são dirigidas a líderes-comunicadores folk (BELTRÃO, 1980) que buscam formas de discursar sobre os problemas sociais comuns aos povos e territórios marginalizados. Do mesmo modo, pessoas consideradas brancas que se apropriam dos elementos da cultura negra são criticadas por esvaziarem o contexto e luta existentes nas identidades culturais.

No ano de 2014, Beyoncé começou a discursar sobre os problemas sociais, sobretudo, enfrentados pelas mulheres negras estadunidenses. Ao participar da premiação Video Music Awards (VMA), durante a performance da música Flawless, do disco Beyoncé (2013), exibiu no telão a palavra feminist, tornando a sua apresentação também um ato político. A canção discorre sobre o papel da mulher em sociedade e como as normas culturais patriarcais sustentam a sua inferioridade.

Em 2016, definiu a sua postura política no espetáculo esportivo de futebol americano com a maior audiência mundial, o Super Bowl. De acordo com dados da Folha de S. Paulo, a audiência desse evento chegou à média de 111, 9 milhões de espectadores (SUPER, 2017). No evento majoritariamente marcado pela ideia de masculinidade, Beyoncé abordou as questões raciais, especialmente, ocorridas nos territórios estadunidenses. Sua banda, composta totalmente por mulheres, tornou-se o ponto mais destacado das atrações, que também incluíram grandes nomes da música como Coldplay, Bruno Mars e Mark Ronson. Cabe ressaltar que a atração principal foi a banda britânica Coldplay, mas a performance de Beyoncé roubou o cenário ao tocar em temas sociais como a luta antirracista, fazendo referências ao grupo Black Panther, a Malcoml X, Michael Jackson, entre outros que fazem parte da identidade cultural negra4. Durante a apresentação, cantou trechos da música Formation, do álbum Lemonade (2016) lançada de surpresa um dia antes do evento.

A música Formation5 denuncia de forma explicita o abuso e o descaso das autoridades estadunidenses contra a população negra. Seu videoclipe inclui referências a eventos que marcaram a luta dos negros nos Estados Unidos. Destaca episódios em que crianças, rappers e outras pessoas negras foram assassinadas pelas autoridades, bem como o descaso do governo em relação às regiões mais pobres. O cenário da música é Nova Orleans, região que mais abrigou as fazendas com pessoas escravizadas, o que resultou em um território marcado pela pobreza e pelo descaso no contexto pós-escravidão.

O videoclipe aborda, também, o descaso com relação aos estragos do furacão Katrina na região de Nova Orleans e apresenta a imagem de Martin Luther King, pastor protestante e ativista político negro, que ganhou o prêmio Nobel da Paz pelo discurso de combate ao racismo sem o uso da violência. Luther King foi assassinado em 1968. Com relação aos assassinatos de negros, apresenta uma pichação que diz “parem de atirar em nós”. Também se refere aos ataques preconceituosos que a cantora sofre, respondendo às manifestações de internautas que dizem que ela deve alisar os cabelos de sua filha Blue Ivy. Como resposta, ela apresenta a sua filha com os cabelos crespos e naturais dizendo: “[...] eu gosto do cabelo da pequena herdeira/ com o cabelo de bebê e afro/ Eu gosto do meu nariz de negro com as narinas do Jackson Five [...] meu pai é do Alabama, minha mãe da Louisiana/ Você mistura esse negro com aquela crioula e faz uma garota rebelde do Texas [...]”.

Muitos textos conferidos durante a produção deste trabalho apresentaram crítica a atitude de Beyoncé, dizendo que é uma ação performática que visa abastecer a cultura mercadológica com os assuntos que estão em pauta. Sabe-se que os textos sobre as minorias estão em evidência, no entanto, discordamos dessa visão generalizada quando consideramos a força do discurso da cantora frente as diversas produções veiculadas por outros textos midiáticos. Seu discurso não é vazio, descontextualizado, ao contrário, trata de suas experiências e a de seu grupo social.

Beyoncé não apenas aborda os assuntos sociais, mas apresenta a sua posição de maneira bastante crítica e provocativa, tanto que sua apresentação no Super Bowl 50, bem como a canção Formation, causaram repúdio em figuras políticas, como o ex-prefeito de Nova York Rudy Giuliani. Grupos passaram a buscar o boicote a Beyoncé na indústria do entretenimento e a hashtag #boycottbeyonce foi bastante disseminada nas redes sociais.

A cantora Beyoncé apresenta a identidade cultural de seu grupo social. Ao fazer referência às suas origens, às personalidades que marcaram a história da luta dos negros estadunidenses e ao frisar a sua posição em um evento de grande audiência e importância para os Estados Unidos, Beyoncé assume a sua postura reivindicativa e usa a indústria cultural para a disseminação da comunicação popular, em um momento em que a sua imagem dificilmente pode ser abalada. A cantora faz uso do processo de folkmídia, mas de modo mais estratégico: (1) se apropria significativamente de conteúdos da cultura de massa para a sua inserção na indústria cultural; (2) quando chega ao momento de sua carreira em que pode usar os canais massivos sem se preocupar em estar alinhada à cultura dominante, expressa a comunicação popular. Não à toa, uma frase foi amplamente divulgada na mídia e nas redes sociais após o evento do Super Bowl “O dia em que os Estados Unidos descobriram que Beyoncé é uma mulher negra”.

Sabemos que à indústria do entretenimento não interessa conteúdos políticos específico de grupos sociais, justamente porque a sua intenção é falar para todos e a ninguém, como coloca Morin (2009). A estratégia de Beyoncé, portanto, foi espalhar o seu novo produto antes de o público saber de seu conteúdo identitário, um produto que, apesar de pop, vai ao encontro do movimento hip hop. Beyoncé fez hip hop.

Considerações finais

Com este artigo pretendeu-se refletir como a comunicação popular, por meio de agentes folkmidiáticos, encontra estratégias para se apropriar da indústria cultural. Neste sentido, apresentou três estratégias que revelam diferentes situações. MV Bill, apesar de ser um rapper bastante reconhecido em seu meio, é pouco conhecido pele público massivo brasileiro. Deste modo, sua imagem não tem grande valor para a indústria cultural brasileira e, portanto, quando se apresenta na maior emissora do país com um discurso identitário que não interessa a comunicação dominante, faz de sua manifestação folkmidiática algo pontual, já que o seu retorno à indústria fica restrito.

Nos Estados Unidos, Beyoncé usa o maior espetáculo esportivo para apresentar a identidade cultural negra estadunidense. Uma estratégia semelhante à de MV Bill, porém, num momento de sua carreira já bastante consolidado, ou seja, a cantora pop usa o poder midiático que a própria indústria cultural a ajudou construir para revelar a comunicação popular de seu grupo social. Apesar de ter provocado desaprovação de figuras e segmentos conservadores, seu atual posto na indústria da música mundial torna difícil a ruptura; o boicote, neste caso, é ineficiente e ela passa a se apropriar da indústria cultural para propagar discursos de resistência com foco na identidade cultural negra.

Emicida, por sua vez, realiza uma estratégia diferente da de MV Bill e Beyoncé. Alcança a indústria cultural adequando o seu discurso e formato, além de realizar parcerias com importantes nomes da música nacional. Ao ser reconhecido pela massa, inicia o processo de apresentar a sua identidade cultural, mas de modo sutil, para que não perca o espaço conquistado. Reconhecido pela massa, disponibiliza suas produções mais focadas na identidade cultural negra em canais da internet, possibilitando, assim, que pessoas que se interessem pelo seu trabalho cheguem ao seu discurso que vai ao encontro da filosofia do hip hop. Estrategicamente, o rapper se apropria dos meios massivos e consegue apresentar a comunicação popular para além de seu grupo social.

Observa-se, por meio deste trabalho, que os agentes folkmidiáticos que chegaram à indústria cultural encontraram diferentes estratégias para inserir os discursos contra hegemônicos em meio às narrativas e veículos da cultura dominante. Um ponto a se destacar, é que os artistas Beyoncé e Emicida, que permaneceram na mídia dominante, encontraram estratégias condizentes as suas possibilidades, ou seja, ambos souberam até quanto (ou quando) poderiam expressar a identidade cultural negra sem perder espaço. MV Bill, diferentemente, fez uso do acesso sem se preocupar com a sua permanência, o que não o invalida, uma vez que o episódio é ainda citado por membros de seu grupo – e não só – como um ato de resistência ao poder dominante.

Em suma, as estratégias de apropriação da indústria cultural para a disseminação de comunicações populares/ identidades culturais negras parece ser uma tendência que ocorre juntamente com a necessidade de transformações sociais. Cada agente folkmidiático cria a sua estratégia, a partir do conhecimento sobre as estruturas midiáticas dominantes e suas possibilidades enquanto membros de grupos minoritários.

Referências

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Notas

2 Despencados de voos cansativos/ Complicados e pensativos /Machucados após tantos crivos/Blindados com nossos motivos/ Amuados, reflexivos/ E dá-lhe antidepressivos/ Acanhados entre discos e livros/ Inofensivos/ Será que o sol sai pra um voo melhor?/Eu vou/ esperar, talvez na primavera/ O céu clareia, vem calor/ Vê só o que sobrou de nós e o que já era/ Em colapso o planeta gira, tanta mentira/ Aumenta a ira de quem sofre mudo/ A página vira, o são delira, então a gente pira/ E no meio disso tudo, 'tamo tipo.../ Passarinhos/ Soltos a voar dispostos/ A achar um ninho/ Nem que seja no peito um do outro / A Babilônia é cinza e neon, eu sei/ Meu melhor amigo tem sido o som, okay/ Tanto carma lembra Armagedon, orei/ Busco vida nova tipo ultrassom, achei/ Cidades são aldeias mortas, desafio nonsense/ Competição em vão que ninguém vence/ Pense num formigueiro, vai mal/ Quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus/ No pé que as coisa vão, Jão, doidera/ Daqui a pouco, resta madeira nem pros caixão/ Era neblina, hoje é poluição/ Asfalto quente queima os pé no chão/ Carros em profusão, confusão/ Água em escassez bem na nossa vez/ Assim não resta nem as barata (é memo'!)/ Injustos fazem leis e o que resta pr'ocês?/ Escolher qual veneno te mata/ Pois somos tipo.../ Passarinhos.
3 Para conferir o trecho da apresentação de MV Bill acesse https://www.youtube.com/watch?v=HUQJxIH8fg4.
4 Para conferir a apresentação de Beyoncé no Super Bowl 50 Halftime Show 2016 acesse: https://www.youtube.com/watch?v=lIX2ENPZo-8.
5 Para conferir o videoclipe de Formation acesse https://www.youtube.com/watch?v=WDZJPJV__bQ.

Notas de autor

1 Doutoranda em Multimeios pela Unicamp, Mestre em Comunicação e Cultura pela Uniso. Autora de "Blues e Hip Hop: uma perspectiva folkcomunicacional" - 2011. Correio eletrônico: thifanipostali@hotmail.com.


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