Artigos e Ensaios

Recepción: 29 Noviembre 2022
Aprobación: 15 Mayo 2023
DOI: https://doi.org/10.5212/RIF.v.21.i46.0011
Resumo: O caráter de exceção que dominou o cotidiano de todo o planeta em função da pandemia de Covid-19 ao longo do ano de 2020 estabeleceu novos parâmetros de convivência, tendo como uma das premissas para a contenção do contágio o isolamento ou distanciamento social. Diante de um cenário de impossibilidade de contatos presenciais, em praticamente todas as esferas de relacionamento social e interpessoal (familiar, profissional, educacional), as soluções tecnológicas, midiáticas e digitais assumiram definitivamente o protagonismo nos processos comunicacionais. O presente artigo discute essa agenda de aceleração tecnológica a partir de um contraponto essencial à sua efetivação no nosso país: 18% da dos domicílios brasileiros não tem acesso à internet, segundo dados da pesquisa TIC-2021. Isso corresponde a 35,5 milhões de pessoas que não estão conectadas à rede mundial de computadores e para os quais a barreira é o valor elevado que as operadoras cobram pelo serviço. Os problemas estruturais da “vida real” se espelharam nitidamente na “vida virtual”, potencializando desigualdades e reforçando a exclusão digital dos cidadãos que já vivem um processo de disjunção social. Ao resgatar a teoria ator-rede, de Bruno Latour, que discorre sobre o espaço-rede e sua transformação a partir das relações entre humanos e não-humanos, o que se pretende é dialogar com o conceito da Folkcomunicação a partir das concepções de ativista midiático trazido por Osvaldo Trigueiro, de modo a entender de que maneira este último pode ser um caminho alternativo para algum tipo de acesso a essa massa “desconectada” da população brasileira.
Palavras-chave: Mídia, Tecnologia, Processos comunicacionais, Ator-rede, Folkcomunicação.
Abstract: The exception character that ruled the everyday life of the entire planet because of the Covid-19 pandemic during the year of 2020 set new coexistence parameters, one of the premises to the contagion containment being isolation and social distancing. Facing the impossibility of face to face contact, in practically every social and interpersonal relationship (family, professionally, educationally), the technologic, midia and digital solutions definietly took the main role on communication processes. This article discusses this agenda of technological acceleration from an essential counterpoint to it's implementation in our country: 18% of brazilian households do not have internet access, according to the research TIC-2021 data. This corresponds to 35,5 million people who are not connected to the global computer network and to for which the obstacle is the elevated prices that carriers charge for the service. The "real life" structural problems clearly mirror the "virtual life", increasing and inequality and reinforcing the digital exclusion of the citizens that that already live in a social disjunction process. When rescuing the actor-network theory, from Bruno Latour, that discusses about the space-network and its transformation from the relation between humans and non-humans, what is intended is to dialogue with the concept of Folkcommunication from the activist media conceptions brought by Osvaldo Trigueiro, in order to understand how this last one may be an alternative way for some kind of access to this "disconnected" mass of brazilian population.
Keywords: Media, Technology, Communication processes, Actor-network, Folkcommunication.
Resumen: El carácter de excepción que dominó la vida cotidiana de todo el planeta debido a la pandemia de Covid-19 a lo largo del año 2020 estableció nuevos parámetros de convivencia, con el aislamiento o distanciamiento social como una de las premisas para la contención del contágio. Ante un escenario de imposibilidad de contactos cara a cara, en prácticamente todos los ámbitos de las relaciones sociales e interpersonales (familiar, profesional, educativo), las soluciones tecnológicas, mediáticas y digitales han tomado definitivamente la delantera en los procesos de comunicación. Este artículo discute esta agenda de aceleración tecnológica a partir de un contrapunto esencial para su efectividad en nuestro país: el 18% de los hogares brasileños no tiene acceso a Internet, según datos de la encuesta TIC-2021. Esta cifra corresponde a 35,5 millones de personas que no están conectadas a la red mundial y para las que la barrera es el elevado precio que los operadores cobran por el servicio. Los problemas estructurales de la "vida real" se reflejan claramente en la "vida virtual", aumentando las desigualdades y reforzando la exclusión digital de los ciudadanos que ya viven un proceso de disyunción social. Al rescatar la teoría del actor-red, de Bruno Latour, que discute el espacio-red y su transformación a partir de las relaciones entre humanos y nos humanos, lo que se pretende es dialogar con el concepto de Folkcomunicación a partir de las concepciones de activismo mediático traídas por Osvaldo Trigueiro, para entender cómo este último puede ser una vía alternativa para algún tipo de acceso a esta masa "desconectada" de la población brasileña.
Palabras clave: Medios, Tecnología, Procesos de Comunicación, Actor-red, Folkcomunicación.
Introdução
O cenário de um novo paradigma comunicacional em construção, a partir de modelos informativos permeados pela tecnologia e nos quais as estruturas comunicativas não se dariam mais de maneira horizontalizada, já era uma realidade em curso mesmo antes da instalação da pandemia do Novo Corona Vírus, anunciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de maço de 2020. Esboçada pelo Relatório MacBride nos anos 1980, essa nova perspectiva lança os indivíduos ao patamar de sócios do processo comunicacional e sinaliza com a tão sonhada democratização da comunicação, na medida em que “aumenta constantemente a variedade de mensagens intercambiadas (...) e aumenta também o grau e a qualidade da representação social na comunicação ou na participação”. (UNESCO, 1980, p. 277).
O protagonismo tecnológico nas interações mediadas, ou seja, aquelas que permitem que uma informação ou um conteúdo possam ser transmitidos para indivíduos situados remotamente no espaço, no tempo ou em ambos (THOMPSON, 2002 p.78), vinha se apresentando em uma curva crescente vertiginosa. Com as condições estabelecidas pela pandemia de Covid-19, como a restrição de contato social em todas as esferas – profissional, familiar e educacional -, a dependência dos meios digitais e do acesso à internet se transmutou em necessidade básica para grande parte da população.
Os aplicativos de mensagens, as redes sociais virtuais e as novas ferramentas de comunicação online se transformaram na única mediação possível, em tempos de isolamento, seja para profissionais seguirem com suas atividades, alunos não perderem seus anos letivos ou familiares trocarem notícias. A avalanche de lives escorreu pelos monitores de todo o mundo, nos mais variados formatos: entrevistas, apresentações musicais, debates, aulas e até espetáculos de teatro. Esse tipo de transmissão, online e ao vivo, foi um dos recursos mais utilizados e amplificados durante o período de isolamento, especialmente pela classe artística musical – que viu nesse modelo a oportunidade de reunir virtualmente seus fãs. Em outra frente de atuação, e também para atender a um grupo específico e com necessidades urgentes, a “solução” digital para a educação foi a implementação das aulas na modalidade online. Tanto na iniciativa privada quanto na pública, as aulas passaram a ser ministradas à distância, de maneira síncrona (ao vivo) ou assíncrona (gravadas), em plataformas específicas para essa finalidade. Vale pontuar, ainda nesse período, a ampliação do uso de aplicativos de mensagens para manter contato com familiares e amigos: pesquisa realizada pelo Núcleo de Marketing e Consumer Insights (NUMA), da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), revelou que 73% das pessoas que utilizaram o WhatsApp nesse período tinha como objetivo “conversar com a família e com os amigos”3.
É fato e consenso que novos processos comunicativos foram desencadeados a partir da pandemia e, não se pode ignorar, até a mídia tradicional precisou se reinventar a partir dessa situação. O uso de todos os recursos descritos anteriormente, como lives e entrevistas virtuais, bem como novos padrões de captação e edição de informações, têm sido uma constante nas redações de todo o mundo. Além disso, a migração maciça de uma série de profissionais para os meios digitais, a fim de divulgar seus serviços ou veicular seus conteúdos, trouxe uma série de outras questões ligadas à responsabilidade sobre a informação e os critérios nos processos de comunicação. Retomando a ideia mais básica de Castells, pode-se imaginar que finalmente chegamos ao status de sociedade em rede, aquela “cuja estrutura social é construída em torno de redes ativadas por tecnologias de comunicação e de informação processadas digitalmente e baseadas na microeletrônica” (CASTELLS, 2015, p.70).
A questão que esse artigo se propõe a jogar luz, no entanto, está à margem de toda essa aceleração digital: a parcela da população que não tem acesso à internet e que, portanto, tem sua participação inviabilizada em atividades essenciais durante a pandemia. Neste momento, a exclusão digital aparece como reflexo cristalino da exclusão social. O relatório da Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros (TIC 2019) informava que um a cada quatro brasileiros não usava internet e, embora tenha havido um avanço significativo no mesmo estudo divulgado em 2021, ainda o país ainda conta com 35,5 milhões de brasileiros4 não usuários de internet. Posto dessa maneira, pode parecer pouco, mas, ao se considerar a população total e o que essa proporção representa, temos uma grande massa de excluídos digitais: uma fatia de cerca 15% de pessoas que ainda não têm acesso à internet no país. Esse contingente segue concentrado nas classes C, D e E, um claro “indicativo da estreita relação entre desigualdades digitais e sociais no país”. (TIC 2019, p. 23).
Considerando que ações essenciais, como acesso à educação e mesmo ao programa de Auxílio Emergencial do Governo Federal, pressupõem uma situação de dependência da conexão entre o indivíduo a rede mundial de computadores, essa parcela da população “desconectada” foi impedida de ter contato com informações importantes e até de participar de iniciativas de apoio educacional e financeiro propostos pelo poder público.
Voltando ao pensamento de Castells (2015, p. 18), ele mesmo reforça que a sociedade é que formata a tecnologia, a partir de seus valores, de seus interesses e, principalmente, de suas necessidades. Partindo desse pressuposto, e jogando luz especialmente a um dos componentes do tripé descrito pelo autor como formatadores das estruturas tecnológicas utilizadas pela sociedade, entende-se que há interesse nessa grande massa de excluídos digitais. Os abismos de desigualdade se mantêm, à medida em que reforçam valores (outra parte do tripé de formatação) de dominação e exclusão. Nas palavras de Mattelart (2009):
A realidade das relações de força – de classe, de gênero, de raça ou de etnia – naturalizou uma forma de institucionalização das maneiras de se produzir a vontade geral e garantir o consenso, que legitimou a hegemonia de uma classe em particular, de seus interesses, de sua visão de mundo e de seus processos comunicacionais como sendo únicos possíveis. (MATTELART, 2009, p.37)
Ao trazer a teoria ator-rede para essa discussão, o que se pretende é alargar o olhar sobre as noções de espaço e lugar, ao considerarmos que o social é o que emerge das associações – e que esse tende a ser o caminho possível para reduzir o abismo de acesso à informação entre aqueles que não acessam as mídias digitais.
O uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros
A pesquisa TIC Domicílios é realizada todos os anos e, desde sua primeira edição, em 2005, tem como objetivo a coleta de dados da população brasileira sobre o acesso à internet e à posse de telefone móvel celular para uso pessoal5. Desde então, a pesquisa aponta sempre para índices crescentes de utilização das tecnologias de informação e comunicação, seja no âmbito familiar, seja no âmbito pessoal. O relatório publicado no início de 2020 trouxe dados captados ao longo do ano anterior – por isso, é importante ressaltar que ainda não existia uma pandemia em curso quando essas informações foram coletadas. De todo modo, a curva ascendente se manteve, apontando um aumento de 11 milhões de domicílios com acesso à internet, no comparativo com a pesquisa anterior.
Esse aumento se deu sem que, no entanto, houvesse mais computadores conectados à rede. O que a pesquisa revelou foi que a principal fonte de conexão digital, por parte dos usuários, foi a telefonia móvel: cerca de 99% dos entrevistados afirmaram que fez uso da internet através do aparelho celular (combinado com outros dispositivos, como computador ou aparelho de TV). Ao colocar uma lupa nesse número, é possível descobrir que a utilização exclusiva pelo telefone celular chega a 58% - e isso não é necessariamente positivo:
O uso da Internet exclusivamente por celular, por exemplo, está associado a um menor aproveitamento de oportunidades on-line, incluindo atividades culturais, pesquisas escolares, cursos à distância, trabalho remoto e utilização de governo eletrônico. (CGI, 2019, p. 23)
Quando o assunto é o acesso por domicílios, o aumento registrado em comparação ao ano anterior (cerca de 5 milhões de lares a mais conectados à internet) foi diretamente relacionado às classes C, D e E. Até porque, quando olhamos para esse mesmo dado nas classes A e B, não há muito mais para onde crescer: em ambas, as taxas de acesso são próximas de 95%. Ainda assim, a pesquisa revelou que cerca de 20 milhões de lares não estavam conectados à rede mundial de computadores e, novamente, o número foi alavancado pelas classes com menores rendas (D e E). Voltando às palavras de Castells (2015), o avanço a segmentação em níveis globais da sociedade em rede, a contrapartida é uma necessidade cada vez menor de algumas parcelas da população – o que o autor chama de ‘irrelevância estrutural’.
Temos, assim, a maior das contradições: quanto mais desenvolvemos a elevada produtividade, os sistemas de inovação da produção e da organização social, menos precisamos de uma parte substancial de população marginal, e mais difícil se torna para esta população acompanhar esse desenvolvimento. (CASTELLS, 2015, p.28)
A versão mais recente da pesquisa, divulgada em junho de 2022, trouxe números atualizados e apontou crescimento no acesso: no estudo atualizado, são indicados 82% dos domicílios com acesso à internet, estratificados da seguinte maneira, por área, região e classe social:

Tal qual um reflexo em águas turvas das desigualdades sociais, as desigualdades digitais não ficam restritas apenas à questão operacional, como a falta de acesso ou de equipamentos, mas, também ao aporte intelectual necessário para domínio de ferramentas e linguagens. Os números de não usuários6 de internet no país apontam para 35,5 milhões de pessoas sem nenhum tipo de conexão com essa parte do universo digital. Para ficar mais claro e se ter uma ideia do real impacto desses números, estamos falando de um grupo composto, em sua maioria, por brasileiros com nível de escolaridade mínimo, ou seja, que possuem até o Ensino Fundamental.

A facilidade na oferta de acesso seria o caminho simplório para um trabalho de inclusão digital direcionado a essa parcela da população, porém, é necessário mais do que uma rede 3, 4 ou 5G: os pilares de uma política pública séria e sobre os quais a democratização do uso das tecnologias da informação precisa se assentar requer um trabalho amplo e multidisciplinar de gestão do conhecimento, com foco na educação e na infraestrutura.
A rede e os espaços do social
Dizer que a sociedade ainda não está em rede, como posto no título do presente artigo, claramente faz uma alusão ao acesso às novas tecnologias da informação e ao uso de dispositivos ligados à rede mundial de computadores. A vida online ainda não é uma realidade para grande parte dos brasileiros e os desafios se escancaram diariamente, à medida em que tarefas essenciais deixam de ser realizadas por conta da exclusão digital.
Porém, um passo antes de voltarmos às questões essencialmente digitais, vale resgatar a teoria ator-rede (TAR) e de que maneira as associações dão condições de emergir o que Bruno Latour (1994) e os demais pensadores dessa linha de pensamento preferem não chamar de sociedade. Dentro dessa perspectiva, como explica André Lemos (2013), a ideia de sociedade como um todo não existe, mas, sim “composições e agenciamentos, nos quais as relações não são obrigatórias ou essencialmente determinadas, mas, contingentes” (p. 58). A rede é, porém, o fruto da relação entre humanos e não-humanos, sob esse ponto de vista.
O que Lemos conceitua como “espaço-rede” leva em consideração o dinamismo das relações estabelecidas entre atores (humanos e não-humanos) e se configura a partir da própria noção de um espaço relacional. Em outras palavras, ele se constrói e se desconstrói a partir das associações: “O espaço pode ser entendido para além da ideia de uma infraestrutura por onde passam coisas e ser apreendido em sua dinâmica móvel e associativa” (LEMOS, 2013, p. 57).
Considerando que a interação é o traço essencial dessa base teórica, tudo deriva da ação. A rede, portanto, não é um produto pronto e acabado em si, que apenas absorve novos atores. Ao contrário, a rede é “metáfora, discurso, contexto, mediador, intermediário, dependendo em qual ação os agentes estão envolvidos” (RIFIOTIS, 2012, p. 575). Em um contexto de amplificação de redes, de criações e dissociações simultâneas, a transposição desta ideia de mundo social para o universo digital podemos relacionar ambos os espaços de associação em intersecção para formação de novos espaços e conexões.
O que o novo paradigma atende são os movimentos pelos quais um dado coletivo estende seu tecido social a outras entidades. Primeiro, há a tradução, sentido pelo qual nós inscrevemos recursos em um material diferente de nossa [própria] ordem social; em seguida, a passagem, que consiste na troca de propriedades entre os não humanos; em terceiro lugar, a inscrição através da qual um não humano é seduzido, manipulado, ou induzido no coletivo; em quarto lugar, a mobilização dos não humanos dentro do coletivo, que adiciona recursos inesperados, resultando novos híbridos estranhos; e, por fim, deslocamento, a direção que o coletivo toma quando [sua] forma, extensão e composição tenham sido alteradas. (LATOUR, 1994, p. 46)
Ao romper com a condição de que o lugar é dependente do contexto e que a ligação entre espaços e tempos diferenciados, as redes, sejam elas cibernéticas ou reais, semeiam campo fértil para as trocas entre os universos não conectados digitalmente. Como explica Santaella (2015, p. 180), em artigo sobre o conceito de mediação técnica nas teorias de Bruno Latour, “a rede de um organismo social é constituída pelo potencial prévio (hábitos, costumes, normas), mas, também pela mudança de hábito, adquirida durante as interações dos sistemas, que se adaptam e criam novas formas de organização”.
Queremos chegar ao ponto em que estar ou não conectado à rede mundial de computadores ou ter posse de um aparelho celular de última tecnologia não deve significar a completa e absoluta exclusão da rede de relações sociais estabelecidas. Ao contrário, esses agenciamentos, como são chamados na TAR, devem ser encarados como forma de ampliação de associações e oportunidades de amplificação das redes.
O caso da internet, entendida tanto como cultura participativa, quanto como tecnologia de processamento distribuído em sistemas de computação em rede, parece ser um paradigma do social neste sentido de hibridismo promovido pela TAR. O técnico e o humano não são opostos e a linha de fronteira se perde quando as ações na web são sempre compartilhadas, são sempre interativas. Não se trata de uma infraestrutura de servidores, computadores, tablets, celulares, pontos de acesso móvel, e serviços de transmissão de dados. (SANTAELLA, 2015, p.181).
Aqui, volta-se à questão dos excluídos digitais e de que maneira eles, mesmo desprovidos de acesso às tecnologias e à possibilidade de tráfego online, podem continuar fazendo parte das mediações sociais. O revés no processo de abandono midiático dessa parcela da população encontra uma sinalização na figura de atores sociais que operam mediações entre os diferentes grupos da sociedade.
A Folkcomunicação e o ativista midiático
As mediações sociais, sejam em ambientes virtuais, sejam em ambientes reais, ecoam as vozes de interlocutores que compartilham de propósitos, ideias e valores, além do alto grau de negociação que envolvem. A interatividade presente nos processos comunicacionais modernos, especialmente os mediados pela tecnologia, não deixam à parte de suas bases a visível transformação no que se refere à produção da comunicação.
O autor e o leitor, produtor e o consumidor, a fonte e o receptor, entre muitos outros sujeitos integrados no processo comunicativo começaram a trocar de papéis e lugares de forma efetiva, assim como os sistemas e as mídias se alteraram, agregando novas possibilidades e diferentes graus de interatividade. (GOBBI e BERNARIDINI, 2013, p. 47)
Se, por um lado, o conceito de mediar é multifacetado, por outro, a amplitude de trocas que esse processo desencadeia é inegável. Consideremos, para efeito do presente artigo e como forma de seguir a linha teórica que embasa o conceito de ativista midiático, a ideia simplificada de que a mediação se constitui a partir da negociação entre as partes de um processo comunicativo.
Um dos primeiros estudiosos dos processos de comunicação popular no Brasil, Luiz Beltrão (2013), ao elaborar a Teoria da Folkcomunicação na década de 1960, levanta a questão do acesso à informação, bem como sua construção e circulação, em um país de dimensões tão extensas quanto o Brasil. Não apenas pelos meios tradicionais, como o rádio, a televisão, o cinema e o jornal, que em países como o nosso (de elevado índice de analfabetos e com uma grande massa de excluídos sociais) que a massa se comunica e a opinião pública se manifesta. E é justamente sob a mirada da Folkcomunicação que uma nova figura se apresenta como portador de práticas comunicativas de intersecção, no cruzamento das associações e com potencial integrativo.
O ativista midiático, dentro do sistema folkcomunicacional, é um agente comunicador que estabelece a conexão entre a produção midiática, seja dos meios massivos de comunicação, seja das fontes online de produção de conteúdo, e consegue realizar o intercâmbio entre essas informações e os grupos sociais de sua referência no âmbito local. Nas palavras de Trigueiro:
Quando a população brasileira passou a ter maior acesso aos meios de comunicação social – mídias – os constituintes da sua audiência passaram a realizar diferentes estratégias de leitura das suas narrativas (bens simbólicos) e táticas de uso dos seus produtos (bens materiais), que geram conflitos inerentes nas negociações entre campos socioculturais de interesses opostos entre o local e o global. (TRIGUEIRO, 2006)
Sãos os ativistas midiáticos, sob esta ótica, os influenciadores de uma comunidade local, referências de prestígio e confiança, que possuem a habilidade de traduzir os principais acontecimentos repercutidos nas mídias para uma população sem acesso ou sem repertório construído sobre determinados assuntos. Como descreveu Martín-Barbero (1997), assumem o papel de agentes estratégicos inseridos nos contextos de suas localidades – e, estabelecem dessa maneira, o papel de interlocutores daqueles que conseguem dar voz às suas necessidades.
Ao trazer essa figura como uma possibilidade de ampliação na participação dos excluídos digitais, faz-se necessário reforçar, ainda, a visibilidade necessária para atuação em comunidades com pouco ou nenhum acesso ao universo digital. Através dos ativistas midiáticos, notícias são “traduzidas”, campanhas importantes para o bem-estar e a saúde de uma comunidade são estabelecidas e redes de solidariedade em tempos de grandes dificuldades econômicas são construídas.
Como coloca Trigueiro (2006), são “atores sociais que operam dispositivos de comunicação das redes de cooperação e solidariedade entre pessoas, grupos e comunidades de convivência [...] encontrando na rede de solidariedade uma alternativa de sobrevivência social”.
Considerações finais
O estabelecimento de uma sociedade mediada pelos recursos tecnológicos vinha em curso avançado até a chegada de uma pandemia, no ano de 2020. A centralidade do uso de recursos digitais e online como principal forma de prosseguimento de atividades relacionadas ao âmbito profissional, educacional e pessoal, escancarou uma realidade até então pouco discutida: a exclusão digital. Com uma grande parte dos brasileiros sem acesso à internet, conforme apontado pela pesquisa TIC/2019 e reforçada, dois anos depois, pela edição 2021, o que a pandemia também trouxe foi o escancaramento das questões estruturais problemáticas no país.
Sem acesso à internet, muitos brasileiros não tiveram como acessar serviços básicos oferecidos pelo governo, como a continuidade das aulas de maneira remota, ou a solicitação de auxílio financeiro oferecido pelo Estado – ação que deveria ser realizada através de aplicativo ou pelo site indicado pelo Governo Federal.
No final da década de 1990, a criação do Comitê Gestor da Internet no Brasil trazia consigo a missão de implementar Telecentros7 por todo o país, expressando a “importância estratégica para o país tornar a Internet disponível a toda Sociedade, com vistas à inserção do Brasil na Era da Informação”8. No Portal Brasileiro de Dados abertos (dados.gov.br) é possível acessar um arquivo com informações sobre kits de Telecentros9 instalados no Brasil, bem como o município de instalação, data de instalação e nome do ponto. No total, o documento lista 12.005 Pontos de Inclusão Digital (PID), sem fins lucrativos, com acesso público e gratuito, de acordo com o estabelecido pelo Ministério das Comunicações, que reforça seu objetivo de “promover o desenvolvimento social e econômico das comunidades atendidas, reduzindo a exclusão social e criando oportunidades de inclusão digital aos cidadãos”. No entanto, a última Pesquisa TIC Centros Públicos de Acesso, realizada em 2019, revelou que, desta base, “3.596 eram telecentros classificados como ativos pelo ministério, 666 como inativos e 7.738 não possuíam situação cadastral atualizada”. Após a etapa inicial de contato e coleta de informações, a pesquisa chegou ao número estimado de 5.568 Telecentros em funcionamento no Brasil, dos quais 80% possuem monitores, orientadores ou agentes de inclusão digital que auxiliam o público na utilização dos computadores e no acesso à internet. Desse montante, apenas 64% dos monitores receberam treinamento para exercer as atividades nessas centrais de acesso.
A partir do diálogo entre as teorias de ator-rede e da conceituação de ativista midiático traçada nos estudos de Folkcomunicação, observa-se um caminho de mediação possível entre a população desassistida do acesso às tecnologias digitais e do contato via rede mundial de computadores. A proposta leva em consideração a ampliação do espaço-rede, estabelecendo o cruzamento entre as diferentes localidades apresentadas (o real e o virtual) e como determinados atores podem contribuir com a mediação de informações que circulam nestes espaços.
Para além disso, reforça-se a necessidade de um planejamento ampliado de acesso, que não inclua apenas a distribuição de pontos de internet para a massa desassistida: é necessário investir em educação para o conhecimento e a utilização do ferramental digital e midiático disponível na atualidade.
Referências
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Notas
Notas de autor