Resumo: Os Conselhos de Direitos Municipais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente inserem- -se no quadro de reordenamento institucional e mudanças de gestão de políticas públicas sociais, vivenciado no Brasil após a Constituição Federal de 1988, cujos principais eixos norteadores foram os princípios da descentralização político-administrativa e a participação popular, culminando com a ênfase na municipalização do atendimento à população infanto-juvenil. Nesse intento, compete ao município protagonizar grande parte de políticas e ações voltadas ao segmento, convocando administradores públicos e sociedade civil organizada numa ação conjunta, na perspectiva de uma democracia participativa. O presente artigo intenta identificar como e por que a atuação desses Conselhos, na prática, não é compatível com a consolidação deste modelo democrático, distanciando-se dos padrões jurídico-políticos aspirados teoricamente desde o mo- mento da Assembleia Constituinte, restando intactos os velhos arranjos estatais institucionais e procedimentais, mediante a permanência de um patrimonialismo arraigado na cultura política brasileira e da concentração de poder nas mãos do chefe do Executivo.
Palavras-chave: Estatuto da Criança e do Adolescente, Conselhos de Direitos Municipais, Políticas Públicas Sociais, Participação Popular.
Abstract: The Municipal Councils of Rights, projected in the Statute of the Child and Adolescent, are inserted in the framework of institutional reorganization and changes in the management of public social policies, experienced in Brazil after the Constitution of 1988, whose main guidelines were the principles of political decentralization and of popular participation, culminating with the emphasis on the municipalization of care for the child and adolescent population. In this endeavor, it is the responsibility of the municipality to play a large part in policies and actions aimed at the segment, inviting public administrators and organized civil society in a joint action, with a view to participatory democracy. The present article tries to identify how and why the performance of these Councils, in practice, is not compatible with the consolidation of this democratic model and diverges from the legal and political standards that were set as aspirations – in theory, at least – from the time of the Constituent Assembly, thus leaving intact the old institutional and procedural arrangements, by maintaining a patrimonialism rooted in the Brazilian political culture and the concentration of power in the hands of the Mayors.
Keywords: Brazilian Statute of the Child and Adolescent, Municipal Councils of Rights, Social Public Policies, Popular participation.
Resumen: Los Consejos de Derechos Municipales, previstos en el Estatuto del Niño e del Adolescente, se inserten en el cuadro de reordenamiento institucional y cambios de gestión de políticas públicas sociales, vivenciado en Brasil después de la Constitución Federal de 1988, cuyos principales ejes orientadores fueron los principios de la descentralización político-administrativa y la participación popular, culminando con el énfasis de la municipalización del atendimiento a la población infanto-juvenil. En ese intento, compete al municipio protagonizar grande parte de las políticas y acciones en el segmento, convocando administradores públicos y sociedad civil organizada en una acción conjunta, en la perspectiva de una democracia participativa. El presente artigo intenta identificar cómo y por qué la actuación de eses Consejos, en la práctica, no es compatible con la consolidación de este modelo democrático, distanciándose de los padrones jurídico-políticos a los cuales se aspira – en teoría, al menos – desde el momento de la Asamblea Constituyente, quedando intactas las viejas órdenes estatales institucionales y procedimentales, mediante la permanencia de un patrimonialismo arraigado en la cultura política brasileña y la concentración de poder en las manos del Jefe del Ejecutivo municipal.
Palabras clave: Estatuto del Niño y del Adolescente, Consejos de Derechos Municipales, Políticas Públicas Sociales, Participación Popular.
OS CONSELHOS DE DIREITOS MUNICIPAIS, AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE E A PERMANÊNCIA DAS VELHAS ESTRUTURAS DE PODER: UM DESAFIO À CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NO BRASIL
THE MUNICIPAL COUNCILS OF RIGHTS, THE PUBLIC POLICIES FOR THE PROTECTION OF CHILDREN AND ADOLESCENTS AND THE PERMANENCE OF OLD POWER STRUCTURES: A CHALLENGE TO THE CONSOLIDATION OF PARTICIPATORY DEMOCRACY IN BRAZIL
LOS CONSEJOS DE DERECHOS MUNICIPALES, LAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTECCIÓN AL NIÑO Y AL ADOLESCENTE Y LA PERMANENCIA DE LAS VIEJAS ESTRUCTURAS DE PODER: UN DESAFÍO A LA CONSOLIDACIÓN DE LA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA EN BRASIL
Recepção: 21 Junho 2017
Aprovação: 22 Setembro 2017
1 Introdução. 2 Teoria da Proteção Integral e o Direito da Criança e do Adolescente. 3 Políticas Públicas de Proteção à Criança e ao Adolescente e Municipalização do Atendimento. 4 Conselhos de Direitos Municipais na perspectiva da Democracia Participativa. 5 Conclusão. Referências.
A Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente trouxeram inúmeras inovações na área de políticas públicas de proteção à população infanto-juvenil, considerando a infância e a juventude como prioridade absoluta, merecedoras de proteção integral por parte da família, sociedade e do Estado. Para o atendimento dessas diretrizes, encontram-se previstas competências partilhadas entre União, Estados e Municípios, bem como, em observância aos princípios da descentralização político-administrativa e da participação popular, exsurge uma ênfase na municipalização do atendimento. Nesse intento, o município deverá protagonizar grande parte de políticas e ações voltadas ao segmento, convocando administradores públicos e sociedade civil organizada para uma ação conjunta, na perspectiva da democracia participativa.
O sucesso dessas políticas públicas depende da operacionalidade dos mencionados princípios fundantes que concretizam um novo modelo jurídico, consubstanciado no Direito da Criança e do Adolescente, concebido a fim de dar efetividade à Doutrina da Proteção Integral, adotada no Brasil durante o processo de redemocratização, como forma de rompimento e superação social do Direito do Menor até então vigente. Contudo, embora tenha havido a propalada descentralização político-administrativa e o empoderamento dos municípios – enquanto entes responsáveis pela formulação de um plano de atendimento à criança e ao adolescente, que conjugue políticas sociais básicas de prevenção atinentes à saúde, à educação, à assistência social e à proteção especial –, a participação popular não tem cumprido o seu papel.
Na prática, a atuação da sociedade na formulação, reinvindicação e no controle das políticas públicas que consolidam o direito infanto-juvenil tem sido periférica, não havendo, de fato, a tomada de decisões a partir de um amplo e democrático debate, no âmbito dos Conselhos Municipais dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, que acabam por se tornar mais um instrumento de atuação do Poder Executivo municipal. É sobre essa ineficácia da ação política do cidadão que se pretende desenvolver o presente trabalho, no contexto de uma permanência de padrões de comportamento político, que refletem arranjos institucionais e procedimentais incompatíveis com as mudanças advindas do fortalecimento dos compromissos sociais e consequente reconhecimento dos direitos de participação social e de controle social na esfera política, advindos com a Constituição Federal de 1988.
Para tanto, faz-se uso do método dialético, utilizando, principalmente, o material bibliográfico, visto que a pesquisa teve por base a investigação da tese contida nos textos legais e em boa parte da doutrina sobre o tema e a sua antítese vislumbrada em pesquisas empíricas realizadas por diversos autores, chegando-se, a partir da análise de suas relações e interpretações, a uma nova compreensão da realidade.
Assim, na seção 2, empreende-se o estudo do contexto político, jurídico e social da ruptura paradigmática promovida pela adoção da Teoria da Proteção Integral, descrevendo-se as regras, os princípios e os métodos para sua instrumentalização. Na seção 3, faz-se a abordagem das políticas públicas de proteção à criança e ao adolescente no contexto da participação popular e da descentralização político-administrativa, enquanto princípios fundamentais previstos para a concretização do Direito da Criança e do Adolescente. E, na seção 4, parte-se para o estudo do funcionamento dos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente no contexto atual, utilizando-se, para tanto, de pesquisas empíricas realizadas nessa área. A partir dos dados coletados, é possível verificar que, na prática, há uma vinculação maior desses conselhos gestores com o governo – na forma de uma atuação complementar e manipulada – e não com a sociedade civil, mantendo-se as velhas estruturas de poder concentrado na figura do chefe do Poder Executivo, o que embasa a conclusão contida na seção 5, no sentido de que há um problema estrutural na sistemática constitucional brasileira, cuja superação demanda uma harmonização interna entre a parte dos direito se a parte orgânica da Constituição, em prol de uma verdadeira democracia participativa.
Durante quase setenta anos, o ordenamento jurídico brasileiro dispensou às crianças e aos adolescentes um tratamento estigmatizante vinculado ao conceito de “menor”, que os qualificava e, ao mesmo tempo, coisificava, trazendo consigo as ideias de situação irregular e institucionalização, a partir da previsão de políticas de controle social.
Desde o advento do Código de Menores de 1927, com a posterior criação do Serviço de Assistência aos menores, em 1941, e da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, em 1964, até o Código de Menores do regime militar, de 1979, manteve-se o mesmo modelo de controle disciplinar, vigilância e repressão, em que o destinatário primordial era o “menor em situação irregular”, isto é, em situação de patologia social (pobre, abandonado, delinquente, infrator), que deveria ser submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção previstas em lei. Já, no Código de Menores, o Estado incorporou o debate sobre a “salvação da criança” e sobre a “regeneração social”, alçando a criança a alvo das ações públicas, o que culminou com a promulgação do Código “[que] incorporou tanto a visão higienista de proteção do meio e do indivíduo como a visão jurídica repressiva a moralista.” ( PEREZ; PASSONE, 2010, p. 655).
Nesse período, vislumbra-se como características do Direito do Menor então em vigor, atrelado à doutrina jurídica da situação irregular, consubstanciada no conteúdo dos Códigos de Menores de 1927 e 1979, uma visão estigmatizada da infância por intermédio da construção do conceito de “menoridade”, sendo esta objeto de políticas de controle social, por intermédio de uma atuação estatal direcionada para a violação e restrição dos direitos humanos ( CUSTÓDIO, 2007). Segundo Maurício Gonçalves Saliba, podem ser descritos como princípios dessa doutrina:
A divisão da categoria infância em criança-adolescente e menores, sendo os menores entendidos como os excluídos da escola, de saúde e da família; a criminalização da pobreza, tendo como consequência as internações, como privações de liberdade, pelo motivo de carência de recursos materiais e financeiros; não observância dos princípios básicos do direito e até mesmo constitucionais; tendência a patologizar as situações de natureza estrutural e econômicas; extrema centralização de poder na figura do ‘juiz de menores’, possibilitando um poder discricional; considerar a infância como objeto de proteção ( SALIBA, 2006, p. 24).
Nesse contexto, restava legitimada uma atuação judicial sobre as crianças pobres, em detrimento das políticas sociais, por meio de soluções individuais, havendo uma tendência geral à institucionalização e à adoção, e, não se concebendo, de forma alguma, a manifestação de vontade das crianças e dos adolescentes, que não eram considerados sujeitos de direitos ( SALIBA, 2006, p. 24).
De acordo com André Viana Custódio, essa doutrina da situação irregular era peculiar ao caso do Brasil e se diferenciava das demais escolas existentes na experiência Ibero-Americana dos anos setenta, em que, além da “doutrina brasileira”, reconhecia-se a Doutrina da Proteção Integral, embasada nas diretrizes da ONU, no sentido da satisfação de todas as necessidades das pessoas de menor idade, nos seus aspectos gerais, incluindo-se os pertinentes à saúde, à educação, à recreação, à profissionalização etc.; e a Doutrina do Direito Penal do Menor, cujo objeto era somente o menor que praticasse ato de delinquência ( CUSTÓDIO, 2008 p. 24).
A mencionada Doutrina da Proteção Integral, por sua vez, representa uma quebra de paradigma às doutrinas do Direito Penal do Menor e da Situação Irregular e teve suas bases lançadas na Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1959, considerando que a criança, em decorrência de sua imaturidade física e mental, precisa de proteção e cuidados especiais, inclusive de proteção legal apropriada, antes e depois do nascimento. Essa necessidade de proteção foi enunciada na Declaração dos Direitos da Criança em Genebra 1, de 1924, e reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos 2 e nos estatutos das agências especializadas e organizações internacionais interessadas no seu bem-estar. Além disso, a humanidade deve à criança o melhor de seus esforços. O Preâmbulo da Declaração dos Direitos da Criança dita o seguinte:
A Assembleia Geral proclama esta Declaração dos Direitos da Criança, visando que a criança tenha uma infância feliz e possa gozar, em seu próprio benefício e no da sociedade, os direitos e as liberdades aqui enunciados e apela a que os pais, os homens e as mulheres em sua qualidade de indivíduos, e as organizações voluntárias, as autoridades locais e os Governos nacionais reconheçam estes direitos e se empenhem pela sua observância mediante medidas legislativas e de outra natureza, progressivamente instituídas [...]. ( ASSEMBLÉIA DAS NAÇÕES UNIDAS , 1959, online).
Nesse diapasão, o documento traz, como parâmetro, dez princípios fundamentais afetos a todas as crianças, quais sejam:
a)o reconhecimento de direitos sem distinção ou discriminação;
b)o direito à proteção especial e o interesse superior da criança;
c)o direito à identidade e à nacionalidade;
d)a proteção à saúde e à maternidade;
e)o direito ao tratamento e a cuidados especiais para crianças incapacitadas física, mental ou socialmente;
f)o direito ao desenvolvimento sadio e harmonioso, com amor e compreensão, no seu seio familiar ou sob a responsabilidade da sociedade e das autoridades públicas;
g)a primazia de socorro e proteção;
h)a proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração e;
i)a proteção contra atos de discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza.
No entanto, “o marco discursivo das declarações somente ganhará força a partir instituição de um Grupo de Trabalho na Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 1979, com a finalidade de iniciar os estudos visando à construção de uma proposta de Convenção Internacional dos Direitos da Criança.” ( CUSTÓDIO, 2007, p. 5). Esse grupo de trabalho desenvolveu suas atividades durante toda a década de oitenta, no mesmo período em que aconteciam os processos de abertura democrática no Brasil e da respectiva reforma constitucional.
Na sociedade brasileira do final da década de 1970 e início dos anos de 1980, em contraposição às práticas assistencialistas que se apoiavam na Doutrina da Situação Irregular, movimentos sociais de diversos setores articularam-se em prol da efetivação de práticas de defesa da criança e do adolescente, fundamentadas na referida Doutrina da Proteção Integral - prevista na Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959 ( PINHEIRO, 2004, p. 345).
Como aponta Ângela de Alencar Araripe Pinheiro, esse movimento de defesa dos direitos da criança e do adolescente que se firmou no Brasil nos anos 80, a partir da atuação de novos atores políticos, empenhados na construção da cidadania desses sujeitos sociais, foi favorecido, à época, em razão das precárias condições de vida da maioria das crianças e dos adolescentes e das contundentes críticas às diretrizes e ao conjunto de práticas governa- mentais de assistência. Além disso, também houve influência do acirramento das discussões sobre direitos dessa parcela da população, posteriormente, formalizadas na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989, bem como do contexto sociopolítico propício à reivindicação e reconhecimento legal de direitos e da articulação de setores da sociedade civil ( PINHEIRO, 2004, p. 346-347).
Segundo a autora, iniciativas de afirmação de direitos também emergiram no espaço governamental, por exemplo, a campanha Criança e Constituinte, desencadeada pelo Ministério da Educação e Cultura em 1986, presente na Assembleia Nacional Constituinte, por intermédio das possibilidades de participação de que dispunham outros atores sociais, além dos Parlamentares. Como resultado dessa campanha, tomou forma uma Emenda Popular também denominada Criança e Constituinte, que reivindicava direitos básicos para a criança e o adolescente, tendo sido a recordista absoluta em número de assinaturas, 3 ao atribuir destaque à “participação da população em geral na questão da criança e do adolescente, através de entidades representativas, no processo constituinte.” ( PINHEIRO, 2004, p. 346).
Na Assembleia Nacional Constituinte, a temática referente à criança e ao adolescente foi atribuída à Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, tendo havido cerca de seis Emendas Populares atinentes ao tema, das quais duas vieram a subsidiar em definitivo o texto constitucional, a “Direitos da Criança e do Adolescente e a Criança Prioridade Nacional” ( PINHEIRO, 2004, p. 348). Destarte, em 1988, promulga-se a nova Constituição da República Federativa do Brasil, que, adotando a Doutrina da Proteção Integral, em seu art. 227, prevê:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. ( BRASIL, 1988, online).
No ano seguinte, o Grupo de Trabalho instituído na Comissão de Direitos Humanos da ONU encerra as suas atividades e apresenta o texto da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Essa Convenção, considerada como o dispositivo central da Doutrina da Proteção Integral ( SALIBA, 2006, p. 26) foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990 e incorporada no ordenamento jurídico brasileiro em 21 de novembro de 1990, por meio do Decreto n.º 99.710. Antes disso, contudo, já havia sido promulgada a Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990, que aprovou o Estatuto da Criança e do Ado- lescente 4 (ECA), substituindo integralmente o Código de Menores de 1979 e rompendo definitivamente com a Doutrina da Situação Irregular:
Ao definir em seus primeiros artigos que “toda criança e todo adolescente têm direito à proteção integral, considerando-os como sujeito de direitos individuais e coletivos, cuja responsabilidade é da família, da sociedade e do Estado”(BRASIL, 1990), o país baniu a categoria “menor” do arcabouço conceitual e jurídico, introduzindo a moderna noção de adolescência e incorporando os preceitos da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989 ( PEREZ; PASSONE, 2010, p. 666).
Esse novo paradigma promove o reconhecimento universal de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, enquanto titulares de direitos fundamentais, detentores da possibilidade concreta e objetiva de exigir a sua efetivação ( CUSTÓDIO, 2007, p. 6). E, como acentua Lima ( 2001, p. 89), tem como fundamentos o valor intrínseco da criança e do adolescente como pessoas humanas em desenvolvimento; o valor prospectivo da criança e do adolescente, o que os torna portadores da continuidade do seu povo e da espécie humana; e a vulnerabilidade especial a que crianças e adolescentes em geral estão expostos na vida social. Nas palavras do autor:
‘Proteção Integral’ significa que devemos garantir em favor de crianças e adolescentes em geral o gozo ou pleno exercício dos Direitos Fundamentais comuns a toda pessoa humana, dos seus Direitos especiais, bem como o mais adequado atendimento às suas Necessidades Básicas, de modo que lhe sejam asseguradas, em todos os contextos e situações sociais, as melhores condições para o seu desenvolvimento integral (físico, mental, moral, espiritual e social), em condições de liberdade e dignidade ( LIMA, 2001, p. 89).
Esse processo de transição paradigmática contou com a colaboração indispensável dos movimentos sociais em defesa dos direitos da infância, em um ambiente que almejava a superação do autoritarismo estatal, a partir da democratização e do pleno gozo de direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Nessa toada, a Constituição Federal de 1988 e suas respectivas garantias fundamentais constituíram a base do Direito da Criança e do Adolescente, alicerçado nos princípios e nas diretrizes da teoria da proteção integral, o que “por consequência provocou um reordenamento jurídico, político e institucional sobre todos os planos, programas, projetos, ações e atitudes por parte do Estado, em estreita colaboração com a sociedade civil, nos quais os reflexos se (re)produzem sobre o contexto sóciohistórico brasileiro.” ( CUSTÓDIO, 2008, p. 27).
A nova teoria jurídica infanto-juvenil, que surge em contraposição ao Direito do Menor, traz, em seu bojo, novas regras, novos princípios e métodos de instrumentalização para a efetiva proteção dos valores sociais democraticamente estabelecidos, pertinentes à infância e à juventude, oferecendo “procedimentos e medidas distintas por suas necessidades e especificidades no tratamento de novas emergências humanas e sociais.” ( RAMIDOFF, 2007, p. 202). Assim, o Direito da Criança e do Adolescente é concebido a partir de um sistema de garantias dos direitos fundamentais para a concretização da cidadania infanto-juvenil ( LIMA, 2001, p. 80), constituído com base na diretriz da proteção integral, sob a perspectiva de redes com responsabilidades compartilhadas entre família, sociedade e Estado. Como aponta Custódio:
A construção do Direito da Criança e do Adolescente proporcionou significativo processo de reordenamento institucional, com a desjudicialização das práticas de caráter administrativo; com mudanças de conteúdo, método e gestão, bem como, a integração dos princípios constitucionais da descentralização político-administrativa e da democratização na efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente que, a partir daí, têm reconhecido seu status de sujeito de direitos, garantindo o irrestrito, amplo e privilegiado acesso à justiça ( CUSTÓDIO, 2008, p. 31).
O Estatuto da Criança e do Adolescente se estrutura a partir de três grandes sistemas de garantia, harmônicos entre si, fundamentados no Princípio da Prioridade Absoluta, dis- posto no art. 227 da CF/88 e no art. 4° do ECA: o Sistema Primário, o Sistema Secundário e o Sistema Terciário. O primeiro trata das políticas públicas 5 de atendimento a crianças e aos adolescentes, previstas especialmente nos arts. 4º e 86 a 88 do Estatuto. O segundo versa sobre as medidas de proteção dirigidas a crianças e aos adolescentes em situação de risco pessoal ou social, dispostas nos arts. 98 e 101. O terceiro dispõe sobre as medidas socioeducativas, a serem impostas aos adolescentes em conflito com a lei, autores de atos infracionais, elencadas nos arts. 103 e 112. Destarte, quando a criança ou adolescente escapam do plano primário de proteção, aciona-se o secundário, que fica a encargo, essencialmente, do Conselho Tutelar. E, nos casos em que o adolescente se encontra em conflito com a lei, é acionado o terceiro sistema, denominado “sistema de justiça”, operacionalizado por meio de medidas socioeducativas ( SARAIVA, 2003, p. 84-86).
Como ressalta o autor, quanto mais bem-sucedidas as políticas públicas de prevenção, no primeiro plano, menores serão as intervenções do Conselho Tutelar e do Sistema Socioeducativo ( SARAIVA, 2003, p. 86). É partindo dessa premissa que se passa à abordagem das políticas públicas de proteção à criança e ao adolescente no contexto da participação popular e da descentralização político-administrativa, enquanto princípios fundamentais para a concretização do Direito da Criança e do Adolescente.
Partindo dos ensinamentos de Canotilho acerca da identificação e classificação dos Princípios Constitucionais, Lima concebe os Princípios Fundamentais do Direito da Criança e do Adolescente em dois grandes grupos: princípios estruturantes e princípios concretizantes. Os primeiros constituiriam as “travessas-mestras” jurídico-positivas, de caráter formal e material deste ramo do direito, enquanto diretrizes metodológicas, indispensáveis para a manutenção da organicidade, unidade e coerência desse sistema jurídico. Os segundos, por sua vez, seriam considerados como funcionalmente realizadores ou densificadores dos princípios estruturantes, havendo entre eles uma relação de “subordinação-interativa-de- -participação.” ( LIMA, 2001, p. 156-161).
No entendimento do autor, seriam princípios estruturantes o da vinculação à Doutrina Sócio-Jurídica da Proteção Integral, das Nações Unidas; da Universalização; do Caráter Jurídico Garantista; e o do Interesse Superior da Criança e do Adolescente. E, princípios concretizantes, o da Prioridade ou Primazia Absoluta; da Participação Popular; da Descentralização Político-Administrativa; da Desjurisdicionalização; da Despolicialização; da Humanização; e o da Politização ou Ênfase nas Políticas Sociais Básicas (LIMA, 2001, p. 7).
É a operacionalidade dos princípios estruturantes que permite ao Direito da Criança e do Adolescente materializar-se tanto formal quanto materialmente, como um novo modelo jurídico diferenciado do Direito do Menor, promovendo a ruptura paradigmática mencionada no tópico anterior. Nesse sentido, afirma Lima:
Os princípios estruturantes do Direito da Criança e do Adolescente representam o testemunho normativo e teórico da revogação jurídica e da superação social, em sentido amplo, do Sistema Menorista, instituindo uma nova concepção jurídica, para uma nova concepção de Sociedade e de Estado no Brasil, instituindo, ademais, uma nova Ideologia Jurídica na área dos direitos de infanto-juvenis( LIMA, 2001, p. 160).
Os princípios concretizantes se subordinam e completam os princípios estruturantes e é a partir do exame de três deles – considerados os mais importantes do conjunto normativo do Direito da Criança e do Adolescente para o desenvolvimento do presente trabalho, cujo objetivo epistemológico básico é analisar a atuação dos Conselhos Municipais dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CMDCA) –, que se desenvolverá o presente tópico, quais sejam: Princípio da Descentralização Político-Administrativa, Princípio da Participação Popular e Princípio da Ênfase nas Políticas Sociais Básicas.
O parágrafo 7° do já citado art. 227 da CF/1988 ( BRASIL, 1988, online) prevê que “no atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se-á em consideração o disposto no art. 204”, isto é, “a descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal” e a “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.” No mesmo diapasão, dispõe o art. 86 do ECA que “a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.” ( BRASIL, 1990, online).
Esse conjunto de órgãos, agentes, autoridades e entidades governamentais e não governamentais que, com base na Política de Atendimento prevista no ECA, articulam-se e se organizam para promover a efetivação do Direito da Criança e do Adolescente, asseguram a instituição e o correto funcionamento de uma “rede de proteção”, baseada na descentralização político-administrativa e na participação popular. Esses dois princípios são os grandes eixos norteadores da Lei n.º 8.069/1990 ( BRASIL, 1990), devendo o primeiro resultar numa melhor divisão de tarefas entre a União, os Estados e os Municípios, no cumprimento dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. O segundo, por sua vez, deve importar numa atuação sempre progressiva e constante da sociedade na formulação, reivindicação e no controle das políticas públicas que edificam o direito infanto-juvenil ( VERONESE, 2013, p. 50).
Nessa toada, pode-se aferir que um dos aspectos relevantes desse novo modelo é o fato de intentar uma profunda redefinição da forma de gerir a Política de Atendimento à infância e à juventude no Brasil ( LIMA, 2001, p. 264). Desta feita, estabelece o art. 88 do ECA como diretrizes da referida política a municipalização do atendimento, a criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, enquanto órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, e a criação e manutenção de programas específicos – de acordo com as linhas de ação da política de atendimento previstas no art. 88 do ECA 6 - , observada a descentralização político-administrativa.
Os dispositivos legais acima mencionados fornecem um panorama geral da política de atendimento à criança e ao adolescente, evidenciando a ruptura total com o modelo anterior, bem como demonstrando que a atual sistemática dá ênfase à implementação, em nível municipal, de políticas públicas intersetoriais que tenham foco prioritário na população infanto-juvenil, contando com a participação da sociedade civil organizada no seu processo de elaboração ( DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2013, p. 96).
A municipalização se dá a partir da descentralização da política de atendimento e tem por escopo permitir que as necessidades específicas das crianças e dos adolescentes sejam atendidas junto a sua família e com a colaboração da comunidade local. Assim, embora a União e os Estados sejam corresponsáveis pela plena efetivação dos direitos que lhes são assegurados no ECA e na CF/1988, suas atribuições principais são dar o suporte técnico e financeiro para que os municípios criem e mantenham as estruturas necessárias ao atendi- mento de crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, ou seja, não cabe ao Município arcar sozinho com ônus da implementação de toda estrutura necessária ao atendimento de sua população infanto-juvenil, devendo sim articular-se, mediante ações e programas, com o Estado e a União. A municipalização significa que:
O Município não apenas deve promover a adaptação de seus órgãos e programas às necessidades específicas de sua população infanto-juvenil, conforme determina o art. 259, par. Único, do ECA, como também deve discutir os seus problemas e deficiências e definir estratégias locais para sua solução. O Município deve, enfim, por intermédio do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, definir a sua política de atendimento aos direitos infanto-juvenis, de modo a desenvolver ações, programas e serviços especializados em sua base territorial, permitindo assim o atendimento das crianças e adolescentes junto à sua família e com o apoio da comunidade local (conforme previstos nos arts.4°, caput; 88, inciso VI e 100, caput, do ECA). ( DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO,2013, p. 96).
A propalada participação da sociedade civil organizada opera-se via Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, órgão existente nos três níveis político-administrativos da Federação (Conselho Nacional, Conselhos Estaduais, Conselhos Municipais) e detém a prerrogativa legal e constitucional para definir quais as políticas públicas destinadas à efetivação dos direitos infanto-juvenis que deverão ser implementadas, em prol da “proteção integral”. Além de deliberar sobre a política de atendimento à criança e ao adolescente, compete ao Conselho de Direitos a fiscalização da sua efetiva implementação por parte do Poder Executivo, com observância, em especial, ao princípio da prioridade absoluta. 7
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) teve advento com a Lei n.º 8.242, de 12 de outubro de 1991, 8 sendo integrado, conforme prevê o art. 3º:
Por representantes do Poder Executivo, assegurada a participação dos órgãos executores das políticas sociais básicas na área de ação social, justiça, educação, saúde, economia, trabalho e previdência social e, em igual número, por representantes de entidades não governamentais de âmbito nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente ( BRASIL, 1991, online).
Vinculado administrativamente e financeiramente à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, o CONANDA é composto por quatorze representantes do Poder Executivo (Casa Civil da Presidência da República e Ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, da Cultura, da Educação, do Esporte, da Fazenda, da Previdência Social, da Saúde, das Relações Exteriores, do Planejamento, Orçamento e Gestão, do Trabalho e Emprego e da Justiça) e quatorze representantes de entidades não governamentais de âmbito nacional de promoção, proteção, defesa e controle social da política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, eleitos em assembleia especialmente convocada para essa finalidade por aquela Secretaria. 9 Estados e Municípios têm seus Conselhos de Direitos criados por leis próprias.
Como elucida Mário Luiz Ramidoff, as decisões tomadas pelos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, oriundas de um amplo e democrático debate, paritário e plural, constituem-se em verdadeiras “resoluções, e, não, meramente em deliberações em si, pois projetam seus efeitos para além do âmbito administrativo-funcional de tais Conselhos, vinculando, então, ações em todos os níveis”, precisamente, por estabelecerem políticas públicas que importam na prevenção, promoção e defesa dos direitos e garantias afetos à infância e à juventude, que se operam pelo conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais ( RAMIDOFF, 2007, p. 145-149).
Havendo uma resolução do Conselho de Direitos Nacional, Estadual ou Municipal, ao chefe do Poder Executivo resta apenas a obrigação de cumprir o que foi decidido, devendo, para tanto, adequar os órgãos, serviços e o orçamento público para a execução da respectiva política pública para a infância e adolescência, amplamente deliberada entre os representantes do governo e de entidades não governamentais que compõem os Conselhos.
Diante desse quadro, ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente cabe não apenas definir a política de atendimento aos direitos infanto-juvenis de acordo com as especificidades locais, como também acompanhar a correta execução dos programas de proteção e socioeducativos destinados a crianças, aos adolescentes e às suas respectivas famílias, no seu âmbito territorial, mediante o registro e controle dos programas e regimes específicos de atendimento oferecidos por entidades governamentais e não governamentais. Essas entidades de atendimento devem se adequar à política de atendimento estabelecida pelo Conselho Municipal, seguindo as diretrizes por este traçadas. Nesse sentido:
Com a análise e o registro dos programas executados tanto por entidades governamentais quanto não governamentais, o CMDCA terá condições de exercer um rígido controle sobre as estruturas de atendimento existentes no município, evitando assim o registro e funcionamento de programas que não respeitem os princípios estabelecidos pelo ECA e/ou sejam incompatíveis com a política de atendimento traçada pelo próprio Conselho de Direitos. Tal atribuição também permite uma visão global da ‘rede de proteção à criança e ao adolescente’ dispo- nível no município, facilitando assim a descoberta de suas eventuais deficiências estruturais e a articulação de ações entre os seus diversos componentes (cf. art. 86 do ECA) ( DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2013, p. 105).
O papel primordial dos Conselhos Municipais dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes é, portanto, a formulação das políticas de atendimento a essa peculiar população na sua área de abrangência, mediante a elaboração do respectivo Plano de Atendimento à Criança e ao Adolescente, a ser construído de maneira participativa, segundo diagnóstico municipal, que oriente as ações necessárias à proteção integral de crianças e adolescentes. Destarte, ao ser elaborado, deve considerar todas as políticas que compõem o sistema de garantia primário apregoado pelo ECA, devendo constar no plano, de forma integrada e prioritária, as políticas públicas básicas de prevenção atinentes à saúde, à educação, à assistência social e a proteção especial à criança e ao adolescente.
Esses Conselhos Municipais representam a essência da construção de uma nova forma de gestão da política no Brasil, inaugurada com a CF/1988, na perspectiva da democracia participativa, 10 a partir da inclusão da sociedade civil no processo de formação das políticas públicas, “numa cogestão social que se processa no interior do aparelho do Estado.” ( ESCOREL; MOREIRA, 2008, p. 996). Oportunizam eles a participação popular, em igualdade de condições, na tomada de decisões por parte do Executivo municipal, ampliando o debate quanto à implementação de políticas públicas em busca de:
Soluções concretas para os problemas que afligem crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, contribuindo não apenas para a mobilização dos mais diversos setores da sociedade em torno da causa infanto-juvenil (tal qual previsto no art. 88, inciso VII, do ECA), mas também para fazer que haja maior transparência na atuação do Conselho de Direitos ( DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2013, p. 99).
Como pontua Ramidoff, a implementação de projetos sociais que expressem os programas de governo que foram estabelecidos a partir das diretrizes e parâmetros formulados pelos Conselhos de Direito, constituídos paritariamente por entidades não governamentais e a representação governamental consolidam “políticas públicas permanentes e independentes de circunstanciais e sazonais governabilidades.” ( RAMIDOFF, 2007, p. 135). Como colaciona o autor, esses órgãos surgem para:
Romper com as antigas práticas meramente repressivo-punitivas, e, assim, consequentemente, demonstrar como é possível construir paritária e democraticamente políticas públicas que efetivamente identifiquem e atendam às necessidades vitais básicas da população infanto-juvenil que se encontre ou não em situação de risco pessoal ou social – consoante expressamente descrevem os incisos I, II e III do art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente ( RAMIDOFF, 2007, p. 136).
O CMDCA integra a estrutura administrativa do município e traz a lume um modelo baseado na relação entre soberania estatal e soberania popular, a partir da adoção do princípio participativo no Direito da Criança e do Adolescente, que exige o envolvimento permanente da sociedade civil na sua produção, afirmação, implementação e aperfeiçoamento, bem como mudanças de gestão na estrutura político-administrativa do Estado Brasileiro, a partir de medidas descentralizadoras e da desconcentração/distribuição do poder. Todavia, na prática, esse conselho ainda não se consolidou como um efetivo mecanismo de democracia direta, consoante será abordado a seguir.
O processo de redemocratização dos anos 80, marcado pela participação dos movimentos da sociedade civil organizada, na reivindicação pelo reconhecimento constitucional de direitos sociais amplos, assim como culminou a adoção da teoria da proteção integral para crianças e adolescentes na CF/1988, promoveu a ampliação dos direitos à saúde, à educação, à assistência social, aos trabalhadores etc., acarretando a reformulação das políticas públicas brasileiras. Como acentua Carlos Renato Mota, as conquistas dessa época podem ser sintetizada sem três grandes vetores, quais sejam, descentralização, participação e cidadania, que marcaram uma nova institucionalidade das políticas públicas na década de 90, “a partir das redefinições de atribuições entre os diferentes níveis da federação, das novas formas de discussão e deliberação das políticas públicas em cada uma das esferas da federação e de uma nova concepção de cidadania baseada nos direitos sociais da população.” ( MOTA,2003, p. 36).
A implementação de políticas públicas de caráter participativo, por intermédio de conselhos comunitários voltados para as políticas sociais locais, como é o caso dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, dos Conselhos de Saúde, dos Conselhos de Assistência Social, dos Conselhos de Educação e dos Conselhos de Emprego, é resultado da influência de um “novo gerencialismo público” adotado por vários países em desenvolvimento, inclusive o Brasil, em busca, principalmente, de eficiência, bem como de credibilidade, na concretização dos mandamentos constitucionais. Como novo formato decorrente desse modelo, a delegação das políticas públicas para instituições independentes do jogo político intenta elidir as incertezas dos ciclos eleitorais, mantendo a sua continuidade e coerência. Ademais, pressupõe-se a minimização ou mesmo a eliminação da discricionariedade dos atores políticos envolvidos ( SOUZA, 2006, p. 34-35).
Contudo, em que pese as orientações jurídicas e políticas até aqui pontuadas, na prática, existem dificuldades e desafios para a consolidação dos CMDCA – e também dos demais conselhos comunitários – enquanto instâncias de democracia participativa. Em geral, a representação da sociedade junto aos Conselhos de Direitos Municipais fica sujeita à regulamentação das leis locais, havendo uma tendência, a exemplo do que ocorre no âmbito do CONANDA, para que essa participação popular se dê unicamente por intermédio de entidades de atendimento e/ou que atuam na defesa de crianças e adolescentes, o que resulta, principalmente nos municípios menores, a ausência da necessária pluralidade, perpetuando- -se sempre os mesmos representantes no órgão. Ademais, muitas vezes, a competência para a indicação dos membros representantes da sociedade civil organizada, na composição dos Conselhos Municipais, fica a encargo do prefeito, ao invés de recair nas próprias entidades não governamentais, para a garantia de uma escolha paritária ( DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO,2013, p. 99).
João Teixeira Pires, ao empreender pesquisa empírica a fim de explorar os desafios presentes na consolidação do funcionamento dos Conselhos Municipais dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, identificou os seguintes problemas no seu funcionamento:
a)sobreposição no caráter deliberativo do CMDCA em relação ao poder executivo municipal, da mesma forma que há também com relação ao caráter de formulação de políticas públicas em relação à Câmara Municipal;
b)inexistência de critérios claros para a escolha dos conselheiros;
c)falta de homogeneização de conhecimento do sistema jurídico relativo à criança e ao adolescente por parte dos conselheiros, acarretando uma não implementação do ECA;
d)falta de realização, por parte dos Conselhos, de um diagnóstico de necessidades e prioridades do município, no que se refere à situação da criança e do adolescente, de maneira a nortear as ações do CMDCA, tornando-se constante a defesa de in- teresses pessoais ou classistas;
e)descontinuidade das ações em razão da troca de membros do Conselho conforme o estatuto próprio e;
f)definição de novas diretrizes de ação das políticas públicas para o município a cada sucessão de prefeitos ( PIRES, 2003, p. 7-8).
Na mesma toada, Jimena Cristina Gomes Aranda Oliva, ao analisar as políticas sociais públicas voltadas às crianças, aos adolescentes e às famílias nas capitais brasileiras entre 2004 e 2007, a partir de pesquisa documental sobre os Planos Plurianuais Municipais 11 referentes àquele quadriênio, com ênfase nas quatro políticas consideradas centrais, quais sejam, saúde, educação, assistência social e atendimento à criança e ao adolescente, concluiu que há grandes diferenças na aplicação do ECA em diferentes cidades e regiões brasileiras.
Segundo ela, para a efetiva existência de um PPA voltado à população infanto-juvenil, mister se faz a participação e deliberação dos CMDCA, que, enquanto conhecedores da realidade das crianças e dos adolescentes, podem reivindicar e acompanhar a formação de uma rede de atendimento ideal para a garantia da proteção integral ( OLIVA, 2008, p. 184). No entanto, restou demonstrado, a partir da análise dos PPAs, que os municípios:
No atendimento, as políticas para a infância e a juventude acabam por repetir programas criados pelo governo federal ou estadual, deixando de criar ou explicitar programas municipais que deem conta de todas as demandas existentes e das peculiaridades locais. E, apesar de o ECA determinar a priorização do segmento, criando um sistema de garantias de direitos envolvendo diversos atores sociais, trabalhando harmoniosamente e cooperando mutuamente pelo que se depreende de alguns documentos de planejamento, dentro do que o documento permite deduzir, que o sistema determinado em lei encontra-se desrespeitado em algumas localidades ( OLIVA, 2008, p. 186).
Tomando como exemplo o município de São Paulo, o mais populoso do Brasil, a partir do acompanhamento e da análise das políticas públicas de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes dessa cidade no período de 2004 a 2006, realizada pelo Observatório dos Direitos do Cidadão, vinculado ao Instituto Pólis, da PUC de São Paulo, concluiu Agnaldo dos Santos que o “CMDCA ocupou um lugar periférico no circuito decisório, no que tange à elaboração das políticas públicas, embora desempenhe funções importantes no que se refere à regulamentação e à normatização da rede existente e das parcerias entre governo e entidades.” ( SANTOS, 2007, p. 70).
Inferiu o pesquisador ser evidente que a institucionalização da participação não resultou uma maior influência da sociedade no processo de planejamento da política, em razão da completa dissociação entre os temas discutidos nas reuniões do Conselho e os programas em processo de elaboração/implementação pelo governo. Diante disso, aventa ele a hipótese de que essa dissociação, ao invés de uma distorção do processo participativo, reflete a atual divisão das funções entre governo e Conselho, já que, por diversos fatores, o Conselho assumiu essa função e parece encontrar hoje muitas dificuldades em ampliar sua influência para outras fases da política ( SANTOS, 2007, p. 71). Nas palavras de Santos:
A primeira e talvez mais importante conclusão do nosso estudo é que o nível de incidência dos conselhos varia nas diferentes fases da política. No caso do CMDCA de São Paulo, vimos que o Conselho exerce maior influência na etapa de implementação da política, e, mesmo nesse caso, sua incidência está concentrada nos subprocessos que envolvem a seleção e capacitação de agentes implementadores e ou beneficiários, e o financiamento das atividades-fim. Isso equivale a dizer que a atuação do CMDCA concentra-se na produção de decisões que visam a facilitar e a racionalizar o processo de execução da política pública. Já as decisões que antecedem a implementação da política – constituição da agenda, definição dos interesses, identificação de alternativas, definição de metas, objetivos, recursos e estratégias de ação (Perez, 1998) – passam por fora do Conselho ( SANTOS, 2007, p. 72).
Para Santos, parece haver certa acomodação na divisão de funções que não reconhece o Conselho como espaço de formulação da política, não havendo real interesse por parte dos conselheiros em desempenhar esse papel. Assim, não obstante seja uma instituição participativa, o CMDCA vem mostrando, nos últimos anos de sua história, uma vinculação muito mais forte com os governos do que com a sociedade civil, havendo uma suposição acerca da existência de uma complementaridade entre Conselho e governo no processo de produção da política pública. Como explica Santos:
A linguagem, a lógica e a dinâmica de ação do Conselho sugerem uma burocratização dessa instância, que talvez explique as dificuldades que o Conselho encontra para assumir um papel mais propositivo e inovador, mesmo na fase de implementação da política, que é onde se concentra sua capacidade de incidência ( SANTOS, 2007, p. 73).
Nesse sentido, ao estudar os Conselhos Gestores de Políticas Sociais 12 e os Conselhos Gestores de Programas Governamentais, 13 aponta Carlos Renato Mota que a implantação desse novo modelo de gestão de política pública, que tem como pilares a descentralização, a participação e a ampliação dos direitos sociais, cria tensões com as oligarquias locais, nos âmbito dos governos estaduais e municipais, “que tentam reproduzir as tradicionais práticas políticas clientelistas e assistencialistas, agindo contra a ideia de direitos e cidadania.” ( MOTA, 2003, p. 42).
Esclarece o autor que, em muitas localidades, os conselhos foram criados por uma obrigação legal, já que sua existência nos municípios é condição para a percepção de verbas das esferas federal e estaduais. Assim, “é possível pensar em algum grau de indução de instância do executivo e do legislativo para a criação dos conselhos sociais.” Nesse sentido, aponta Mota para a questão da manipulação dos conselhos pelos prefeitos, em termos de indicação dos representantes, cuja renovação dos mandatos, inclusive, é concomitante com a do chefe do executivo local. Ademais, alerta para o fato de os representantes governamentais que compõem os conselhos terem mais acesso à informação e a disponibilidade de tempo que os conselheiros provenientes da sociedade civil, que, muitas vezes, não recebe nada para representar determinada instituição ou grupo social ( MOTA, 2003, p. 43).
Segundo Mota, a ampliação da participação, sem um debate sobre o interesse público, ou sobre os princípios de cidadania que norteiam o tema podem fazer desse mecanismo de democracia direta “apenas um reprodutor de valores tradicionais, com novos atores e novas institucionalidades.” ( MOTA, 2003, p. 42).
Como afirma Raymundo Faoro, verificam-se, na realidade histórica brasileira, a consolidação e a permanência de uma estrutura político-social institucionalizada de dominação patrimonialista que, há seis séculos, predomina no poder e orienta o que ele chama de capitalismo político. 14 Segundo ele, há uma persistência secular da estrutura patrimonial, que se aperfeiçoa por meio da burocratização do estamento (quadro administrativo) e que governa em nome próprio, a partir de uma cúpula impermeável de comando ( FAORO, 2001, p. 819- 824). Esse estamento político de caráter não transitório que surge do patrimonialismo adota as técnicas burocráticas para dar uma aparência democrática a um contexto autocrático, mas não se converte “em governo da soberania popular, ajustando-se, no máximo, à autocracia com técnicas democráticas.” ( FAORO, 2001, p. 825) Assim:
A autonomia da esfera política, que se manifesta com objetivos próprios, organizando a nação a partir de uma unidade centralizadora, desenvolve mecanismos de controle e regulamentação específicos. O estamento burocrático comanda o ramo civil e militar da administração e, dessa base, com aparelhamento próprio, invade e dirige a esfera econômica, política e financeira. [...] Nas suas relações com a sociedade, o estamento diretor provê acerca das oportunidades de ascensão política, ora dispensando prestígio, ora reprimindo transtornos sediciosos, que buscam romper o esquema de controle. No âmbito especificamente político, interno à estrutura, o quadro de comando se centraliza, aspirando, senão à coesão monolítica, ao menos à homogeneidade de consciência, identificando-se às forças de sustentação do sistema ( FAORO, 2001, p. 826).
Klaus Frey, considerando a importância da análise e a avaliação de políticas públicas a partir da realidade empírica e, tomando como norte o contexto da realidade brasileira, em que os arranjos institucionais e os processos de negociação entre executivo, legislativo e sociedade civil são pouco formalizados, institucionalizados e consolidados, assim como ocorre em outras democracias recentes, identifica uma propensão a “reviravoltas políticas radicais”, no que concerne “não apenas à definição das prioridades técnicas e materiais, mas frequentemente também às formas de cooperação e de participação como também à maneira de colaboração e de regulação de conflitos entre executivo, legislativo e sociedade civil.” ( FREY, 2000, p. 246).
Aponta o autor que as significativas mudanças trazidas com a nova Constituição de 1988, por meio de transformações radicais nas estruturas político-administrativas não conduziram a “efeitos de maior relevância no que diz respeito aos padrões de comportamento político e às realizações materiais concretas.” ( FREY, 2000, p. 248). Desta feita, no caso brasileiro, vícios decorrentes da dominação patrimonialista arraigada nas relações políticas entre o poder local e o Estado nacional ( CARVALHO, 1997, p. 239-244), como a cooptação, o clientelismo, 15 o populismo e o corporativismo, que desconfiguram e descaracterizam os arranjos institucionais formalmente previstos, têm de ser levados em consideração no estudo das políticas públicas, já que exercem sobre a sua definição uma influência maior do que as instituições formais. Para Frey:
O agir estatal e administrativo se baseia em formas clientelistas de interação, visa mais ao caso individual, e não a soluções coletivas. A política efetiva não vem sendo produzida e implementada, ou só em proporções limitadas, dentro das instituições e de acordo com os procedimentos formalmente previstos na Constituição ou nas leis orgânicas dos municípios, e segue só de forma restrita os padrões de política aspirados teoricamente com os respectivos arranjos institucionais e procedimentos ( FREY, 2000, p. 249).
Sobre esse embate entre o velho e o novo modelo, entre prática jurídica vigente e a recém-chegada (o direito que pretende incorporar-se ao direito vigente), cabe trazer àbaila a análise crítica empreendida por Roberto Gargarella ao que denomina de “enxertoconstitucional”, realizado na tentativa de incorporar, em um modelo constitucional liberal-conservador, instituições provenientes de uma concepção de constitucionalismo social, que “requiere de um entramado institucional desafiante del orden vigente, y caracterizado por instituciones más sensibles a los reclamos populares, muy distintas de las que liberales yconservadores podíam animarse a sostener.” ( GARGARELLA, 2014, p. 256).
Como aponta Gargarella, no Brasil, assim como nos demais países da América Latina, o constitucionalismo do final do século XX foi resultado da crise política e de direitos hu- manos decorrente das ditaduras dos anos sessenta e setenta, bem como da crise econômica relacionada com a implementação dos programas de ajuste estrutural característicos da década de noventa ( GARGARELLA, 2014, p. 270).
Afirma ele que, diante da necessidade de se atender às crescentes demandas sociais, antes ignoradas, de uma classe trabalhadora cada vez mais forte e organizada, as Constituições latino-americanas começam a anexar novas preocupações sociais à velha matriz liberal-conservadora, introduzindo um novo constitucionalismo com “perfil social em matéria de derechos, pero todavia demasiado conservador em matéria de organización del poder.” ( GARGARELLA, 2014, p. 201-202).
Nesse contexto, pontua o autor argentino que as reformas constitucionais realizadas na América Latina ampliaram e aprofundaram o rol de compromissos constitucionais, fortalecendo a previsão tanto de direitos fundamentais (sociais, individuais e coletivos) como direitos de participação social e de controle social na esfera política. Porém, questiona Gargarella como esses direitos podem ser concretizados diante de previsões constitucionais que permitem uma forte concentração de poder na figura do presidente, fenômeno por ele chamado de “hiperpresidencialismo”. Segundo ele, “resulta claro que los presidentes com poderes fuertes e refozados, racionalmente, no tienden a aceptar recortes sobre su próprio poder, como los que puede sugerir uma ciudadanía autonomizada y/o com mayores poderes de decisión y control.” ( GARGARELLA, 2014, p. 309).
A partir da análise das dificuldades que surgem no embate constitucional entre o presidencialismo e a maximização de direitos e mecanismos de participação popular em paíseslatino-americanos, o autor afirma que o poder forte e concentrado do presidente dilui e enfraquece os poderes de participação popular, que se encontram presos em uma série de mecanismos e entraves burocráticos promovidos pela institucionalidade estatal. A institucionalidade estatal substitui a participação cidadã ( GARGARELLA, 2014, p. 310-313).
Conclui o autor que a ideia de um compromisso sério com a participação popular requer uma direta e especial atenção à distribuição do poder vigente, consagrada na parte orgânica da Constituição, a “sala de máquinas”. Assim, entende não ser suficiente operar mudanças apenas na parte dogmática das constituições, ampliando o rol de direitos e garantias, se a parte que estabelece a organização do poder permanece inalterada. Um Executivo tradicionalmente hiperpoderoso invariavelmente intentará bloquear colocação em prática dos mecanismos de democracia direta, ameaçadores do seu próprio poder ( GARGARELLA, 2014, p. 332-335).
Ampliando-se essas constatações às demais esferas de poder estatal, pode-se aferir possíveis causas sistêmicas para o mau funcionamento do mecanismo de democracia direta consubstanciado nos conselhos comunitários dentro do esquema político-constitucional brasileiro, considerando, principalmente, a ampla autonomia financeira, administrativa e política que a CF/1988 outorgou ao Poder Executivo municipal. 16
De fato, ao que se depreende do exposto até aqui, há um desvirtuamento nessa forma de participação popular nas políticas públicas brasileiras, que, na verdade, acabam sendo mais um instrumento nas mãos de prefeitos, restando inalterados antigos comportamentos políticos no sentido da concentração do poder e do patrimonialismo estatal. Como aponta Frey, no Brasil pós CF/1988, “nem o arcabouço institucional e a rede dos relevantes atores políticos nem os padrões de conduta político-administrativa chegaram a se consolidar sob as novas condições democráticas.” ( FREY, 2000, p. 244).
A forma de participação “cogestão”, que se traduz no gerenciamento conjunto da nova política de atendimento (prevenção, promoção, defesa) dos direitos da criança e do adolescente e encontra sua base fundamental na Constituição de 1988, traz, em seu bojo, o modelo denominado Estado Social e Democrático de Direito, em que se pretende o equilíbrio entre os direitos à igualdade (direitos econômicos, sociais e culturais, bem como os direitos de fraternidade) e à liberdade (direitos civis e políticos). Assim, além de resguardar a esfera de autonomia do indivíduo, elegendo a lei como limite de atuação do Estado (princípio da legalidade), elenca deveres, diretrizes e normas programáticas a serem cumpridas pelo órgão estatal (prestações positivas) em prol da concretização dos direitos dos cidadãos, garantindo-se, para tanto, também a participação social, principalmente a nível local, me- diante o empoderamento municipal.
No que toca ao Direito da Criança e do Adolescente, a municipalização se dá a partir da descentralização da política de atendimento e tem por escopo permitir que as necessidades específicas das crianças e dos adolescentes sejam atendidas junto a sua família e com a colaboração da comunidade local. Assim, embora a União e os Estados também sejam corresponsáveis pela plena efetivação dos direitos que lhes são assegurados no ECA e na CF/1988, suas atribuições principais são dar o suporte técnico e financeiro para que os municípios criem e mantenham as estruturas necessárias ao atendimento de crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, dependendo o sucesso das respectivas políticas públicas de prevenção da participação popular.
Considerando que os poderes existentes tendem a bloquear a produção das mudanças que possam colocar em questão as suas próprias capacidades práticas e que as prerrogativas do Poder Executivo federal brasileiro estão refletidas nos demais entes da Federação em que os chefes do Executivo também são eleitos diretamente, com mandatos fixos; e o Executivo eleito nomeia e dirige a composição do Governo e tem algum Poder Legislativo no seu âmbito de atuação, chega-se à conclusão de que os mecanismos constitucionalmente e legalmente previstos no ordenamento jurídico brasileiro não são suficientes para equalizar participação social com distribuição de poder na consolidação de uma democracia participativa, assumindo o suposto poder popular uma função, no máximo, complementar a do Estado, como ocorre no âmbito dos conselhos comunitários municipais, como o CMDCA.
Há um problema estrutural que faz que o sistema constitucional vigente contribua para que se perpetue a concentração de poderes de forma vertical (e não horizontal) nas mãos de um executivo acostumado a um patrimonialismo estatal arraigado na cultura política brasileira e cuja solução perpassa pela harmonização interna entre a seção dos direitos e a “sala de máquinas” da Constituição.
I – políticas sociais básicas;
II – políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que deles necessitem;
III– serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;
IV – serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos;
V – proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente;
VI – políticas e programas destinados a prevenir ou abreviar o período de afastamento do convívio familiar e a garantir o efetivo exercício do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes;
VII – campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de guarda de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e à adoção, especificamente inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos.” ( BRASIL, 1990, online).
“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
Primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; Precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; Preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
Destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.” ( BRASIL, 1990, online).
“I - elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente);
II - zelar pela aplicação da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente;
III- dar apoio aos Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, aos órgãos estaduais, municipais e a entidades não governamentais para tornar efetivos os princípios, as diretrizes e os direitos estabelecidos na Lei nº 8.069, de 13 de junho de 1990;
IV - avaliar as políticas estadual e municipal e a atuação dos Conselhos Estaduais e Municipais da Criança e do Adolescente;
V - (Vetado)
VI - (Vetado)
VII - acompanhar o reordenamento institucional propondo, sempre que necessário, modificações nas estruturas públicas e privadas destinadas ao atendimento da criança e do adolescente;
VIII - apoiar a promoção de campanhas educativas sobre os direitos da criança e do adolescente, com a indicação das medidas a serem adotadas nos casos de atentados ou violação deles;
IX - acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária da União, indicando modificações necessárias à consecução da política formulada para a promoção dos direitos da criança e do adolescente;
X - gerir o fundo de que trata o art. 6º da lei e fixar os critérios para sua utilização, nos termos do art. 260 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990;
XI - elaborar o seu regimento interno, aprovando-o pelo voto de, no mínimo, dois terços de seus membros, nele definindo a forma de indicação do seu Presidente.” ( BRASIL, 1991, online).
“a) um volume adequado de conhecimento político estrutural e circunstancial, um estoque apropriado de informações não distorcidas e relevantes, suficientes para habilitar o cidadão a níveis adequados de compreensão de questões, argumentos, posições e matérias relativas aos negócios públicos e ao jogo político;
b)possibilidade dada aos cidadãos de acesso a debates públicos já começados e possibilidade de iniciar novos debates dessa natureza, em que a cidadania deveria exercitar a oportunidade de envolver-se em contraposições argumentativas, de desenvolver os seus argumentos, de envolver-se em procedimentos deliberativos no interior dos quais pode formar a própria opinião e decisão políticas;
c)meios e oportunidades de participação em instituições democráticas ou em grupos de pressão - mediante ações, como voto, afiliação, comparecimento a eventos políticos ou por meio de outras atividades políticas nacionais ou locais;
d)habilitação e oportunidades eficazes de comunicação da esfera civil com os seus representantes (em nível local, nacional ou internacional) e para deles cobrar explicações e prestação de conta.” ( GOMES, 2011, p. 2-3).
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