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O SPOOFING NO MERCADO DE CAPITAIS BRASILEIRO: UMA PERSPECTIVA DE DIREITO E ECONOMIA
SPOOFING IN THE BRAZILIAN CAPITAL MARKETS: A LAW AND ECONOMIC PERSPECTIVE
SPOOFING EN EL MERCADO DE CAPITALES BRASILEÑO: UNA PERSPECTIVA JURÍDICA Y ECONÓMICA
O SPOOFING NO MERCADO DE CAPITAIS BRASILEIRO: UMA PERSPECTIVA DE DIREITO E ECONOMIA
Revista Opinião Jurídica, vol. 20, núm. 34, pp. 142-163, 2022
Centro Universitário Christus
Recepção: 08 Julho 2021
Aprovação: 23 Novembro 2021
RESUMO
Contexto: O presente artigo analisa a primeira condenação de spoofing no Brasil pela CVM no Processo Administrativo Sancionador nº 19957.005977/2016-18. O spoofing é uma forma de manipulação do preço de valores mobiliários no Mercado de Capitais, caracterizada pela inserção de ordens artificiais de compra e venda, que são canceladas após milésimos de segundos e alteram o preço de negociação. Entretanto, a dificuldade de caracterização da conduta e as especificidades das negociações em alta frequência apontam para o risco de não se obter uma imposição (enforcement) adequada pela CVM.
Objetivo e Metodologia: Nesse contexto, a partir do método dedutivo e de revisão bibliográfica, avalia-se a estrutura do mercado de capitais brasileiro a partir da disseminação das negociações de alta frequência sob a perspectiva da literatura econômica que trata da Microestrutura de Mercado. Assim, será possível fazer uma análise inicial da atuação da CVM na dissuasão do spoofing. A literatura de Law and Economics será utilizada para determinar se o padrão de punição pela CVM, no caso, é capaz de gerar a dissuasão da conduta e, de forma geral, ganhos efetivos para o mercado de capitais brasileiro.
Conclusão: Observa-se a necessidade de desenvolvimento da matéria no Brasil para proporcionar o devido poder de dissuasão.
Palavras-chave: Mercado de capitais+ microestrutura+ spoofing; manipulação de preços+ análise econômica do direito.
ABSTRACT
Context: This article analyzes the first spoofing conviction issued by CVM through Administrative Proceeding no 19957.005977/2016-18. Spoofing is a new form of manipulation of the price of securities in the Capital Market characterized by the insertion of artificial purchase and sale orders, which are cancelled after thousandths of a second, but which change the trading price. However, the difficulty in characterizing the conduct and the specificities of high-frequency trading point to the risk of not obtaining adequate enforcement by CVM.
Objective and Methodology: In this context, based on the deductive method and bibliographic review, the structure of the capital market is evaluated from the dissemination of high-frequency trading under the perspective of the literature about Market Microstructure. Thus, it will be possible to analyze the CVM's ability to deter spoofing. The Law and Economics literature will be used to determine if the standard of punishment by CVM in the case is capable of generating deterrent conduct and, in general, effective gains for the Brazilian capital market.
Conclusion: There is a need for development of the subject in Brazil to provide the necessary deterrent power.
Keywords: Capital markets, microstructure, spoofing, price manipulation, law & economics.
RESUMEN
Contexto: Este artículo analiza la primera condena por spoofing en Brasil por parte de la CVM en el Procedimiento Administrativo Sancionador nº 19957.005977/2016-18. El spoofing es una forma de manipulación del precio de los valores en el Mercado de Capitales, que se caracteriza por la inserción de órdenes de compra y venta artificiales, que se cancelan después de milisegundos, pero que modifican el precio de negociación. Sin embargo, la dificultad para caracterizar la conducta y las especificidades de la negociación de alta frecuencia apuntan al riesgo de no obtener una adecuada ejecución por parte de la CVM.
Objetivo y Metodología: En este contexto, a partir del método deductivo y revisión bibliográfica, se evalúa la estructura del mercado de capitales brasileño a partir de la difusión de la negociación de alta frecuencia desde la perspectiva de la literatura económica que se ocupa de la Microestructura de Mercado. Por lo tanto, será posible analizar la capacidad de la CVM para disuadir la suplantación de identidad. Se utilizará la literatura de Derecho y Economía para determinar si el patrón de castigo de la CVM en este caso es capaz de generar conductas disuasorias y, en general, ganancias efectivas para el mercado de capitales brasileño.
Conclusión: Es necesario desarrollar el tema en Brasil para proporcionar el poder disuasorio necesario.
Palabras clave: Mercados de capitales, microestructura, spoofing, manipulación de precios, análisis económico del derecho.
1 INTRODUÇÃO
A atual estrutura jurídica e institucional do mercado de capitais no Brasil tem sua origem na Lei n° 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (BRASIL, 1964), que propôs uma reforma bancária, criou o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. No ano seguinte, foi criada a primeira Lei de Mercado de Capitais n° 4.728/651, a qual determinou que os mercados financeiros e de capitais fossem disciplinados e fiscalizados por essas instituições.
Por sua vez, a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) recebeu esse título em 1967, quando surgiram as Sociedades Corretoras e os operadores de pregão, pessoas que realizavam as operações, a partir das ordens dadas pelas Sociedades Corretoras (EIZIRIK et al., 2008, p. 228).
A partir da Lei nº 6.385 (BRASIL, 1976) o Mercado de Capitais passou a ser regulado pela então criada Comissão de Valores Mobiliários (CVM), com o objetivo de fiscalizar, normatizar, disciplinar e desenvolver o mercado de valores mobiliários no Brasil, sendo uma entidade autárquica em regime especial, vinculada ao Ministério da Economia.
A intensificação do uso da tecnologia no mercado de capitais brasileiro ocorreu a partir da década de 1990, de forma concomitante ao aumento significativo da participação dos investidores estrangeiros. Um dos marcos do avanço para um sistema automatizado foi a implantação do sistema de negociações automáticas NSC (Mega Bolsa), um sistema de negociação eletrônica adquirido da Bolsa de Paris, que teve como resultado um crescimento acelerado nas operações e maior agilidade na disponibilidade de informações, sendo substituído, em 2013, pelo sistema de negociação da Plataforma Unificado de Multi Ativos (Puma), produzido em parceria com o CME Group (Bolsa de Chicago) (PARANÁ, 2018, p. 15).
Em 1999, teve-se um marco na história do Mercado de Capitais brasileiro com a implementação de dois novos serviços para que o investidor tivesse a oportunidade de participar de suas negociações diretamente: o Home Broker e o After Market. O primeiro foi desenvolvido por cada corretora e disponibilizado aos seus clientes para que transmitissem suas negociações direto ao Sistema da Bolsa. Já o After Market permitia a negociação eletrônica além do horário regular do pregão. Passaram a existir, então, duas formas eletrônicas de negociação: o Mega Bolsa, sistema eletrônico utilizado pelas corretoras; e o Home Broker, utilizado diretamente pelos investidores (EIZIRIK et al., 2008, p. 228). No âmbito institucional, a principal mudança no período foi a criação do Novo Mercado e dos níveis de governança em dezembro de 2000, o que, somado com as mudanças tecnológicas permitiu que a Bovespa atingisse padrões equivalentes aos demais mercados de capitais globais.
A Bovespa abandonou de vez o antigo Pregão Viva Voz em 2005, passando a operar totalmente eletronicamente, e, em 2008, fundiu-se com a Bolsa de Mercadorias e Futuros - BM&F, tornando-se a BM&FBovespa e posteriormente adquiriu a câmara depositária de títulos Cetip, em 2016, formando a B32 .
Junto ao avanço das operações computadorizadas, surgiram os robôs traders, programados para efetuar operações de forma automatizada em milésimos de segundos por meio de ferramentas tecnológicas avançadas e algoritmos, denominada HighFrequency Trading (HFT). Neste contexto, como o valor do ativo é definido pela variação de sua oferta e demanda, os operadores tem a possibilidade de manipular os preços por meio de inserções e cancelamentos artificiais de milhares de ordens no sistema, através de robôs, a fim de atingir o preço desejado, garantindo lucro ou evitando prejuízo (REIS, 2019, p.1).
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) divulgou no Relatório Anual de 2013 dados das operações HFT no Brasil. Segundo o relatório, os primeiros registros de negociações de alta frequência no país surgiram em 2010, representando 2,5% do total de negócios da bolsa, enquanto, em 2013 esse número saltou para 36,5% (CVM, 2014, p. 33).
O uso crescente de algoritmos e HFT não é ilícito, mas pode facilitar a práticas de manipulação de mercado, abrangendo tanto o âmbito administrativo como o penal3, caso sejam utilizados de forma inadequada e abusiva, descumprindo os limites estipulados pelo órgão regulador do mercado financeiro. A diferença não está necessariamente restrita à forma pela qual a manipulação de mercado é executada, mas sim a novas possíveis infrações que podem vir a demandar novas respostas das entidades de fiscalização do mercado, como será debatido no presente artigo.
Entre as novas práticas de manipulação de mercado, destaca-se neste artigo, o spoofing4, que já gerou respostas dos reguladores do mercado de capitais nos Estados Unidos e na Europa.5 No Brasil, entretanto, não houve a produção de norma legal ou infralegal específica sobre a prática, sendo aplicada, nesses casos, a regulamentação existente sobre condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, manipulação de preço, operações fraudulentas e práticas não equitativas6 .
Além disso, pode-se verificar a partir das consultas processuais7 que não existe ainda nenhum caso de spoofing encerrado no Brasil, apenas Processos Administrativos no poder da CVM em fase de recurso. Considerando a ausência de regulamentação específica, de um parâmetro bem delimitado e a inexistência de um caso concreto, as autoridades têm se baseado na doutrina internacional nos julgamentos dos casos do cybercrime em questão, gerando incerteza para as decisões sancionatórias.
Nesse contexto, este trabalho tem como objetivo apresentar o conceito de spoofing na regulamentação atual do mercado de capitais no Brasil, avaliando a adequação das normas utilizadas pela CVM para o tratamento do spoofing e a necessidade de produção de regulamentação específica. Adota-se uma perspectiva interdisciplinar, utilizando-se a literatura sobre Microestrutura de Mercado, dentre as teorias econômicas disponíveis, para analisar o papel do HFT e do avanço da tecnologia no mercado de capitais, que permitirá identificar de que forma a regulação das transações de alta frequência se relaciona com as características institucionais do mercado. Além disso, a regulamentação do mercado de capitais brasileiro será analisada sob uma perspectiva de Law and Economics, na tentativa de averiguar se o padrão de punição pela CVM, no caso, é capaz de gerar a dissuasão da conduta e, de forma geral, os ganhos efetivos para o mercado de capitais brasileiro.
Desse modo, o presente artigo além desta introdução e da conclusão, está dividido em quatro seções. A primeira fará uma leitura do mercado de capitais e das HFTs a partir da Microestrutura de Mercado. Na seção seguinte, serão apresentadas as experiências internacionais quanto ao spoofing. Assim, será possível apresentar e analisar criticamente a primeira punição por spoofing no Brasil constante no Processo Administrativo Sancionador nº 19957.005977/2016-18 na quarta seção. Por fim, na quinta seção, serão discutidas as alternativas de regulamentação e punição do spoofing a partir da perspectiva de Law and Economics.
2 O MERCADO DE CAPITAIS E AS NEGOCIAÇÕES DE ALTA FREQUÊNCIA NA PERSPECTIVA DA SUA MICROESTRUTURA
Da mesma forma que os mercados financeiros e de capitais evoluíram com o passar do tempo, além do desenvolvimento de regulamentações, também se fez necessário o desenvolvimento de teorias que estudassem e explicassem o comportamento de tais mercados. A principal preocupação dos investigadores no assunto era encontrar e demonstrar de que forma se dava o equilíbrio dos mercados.
A teoria microeconômica, ao analisar os elementos que afetam o mercado de capitais, tem como principal abordagem teórica a Hipótese dos Mercados Eficientes (HME), cuja construção é atribuída ao artigo seminal de Eugene Fama8 publicado em 1970, que formalizou a hipótese segundo a qual os mercados refletem toda a informação disponível (FAMA, 1970, p. 384). Apesar de ser possível encontrar modelos em que a eficiência dos mercados era pressuposta ou atingida mesmo antes de 1970, a enunciação da HME com os seus pressupostos e as suas assertivas centrais foi feita por Eugene Fama. A HME é um dos principais pilares da Teoria de Finanças até os dias atuais, mesmo com o avanço das finanças comportamentais, e serve de embasamento para diversos modelos de precificação de ativos. Como os pressupostos da HME são fortes, Fama diferenciou as três nuances de eficiência do mercado, como: Fraca, Semiforte e Forte (FAMA, 1970, p. 383).
Na versão fraca, o preço incorpora as informações passadas sobre os ativos; na forma semiforte, o mercado é eficiente utilizando-se das informações públicas, em que não são possíveis retornos anormais pelo fato de que qualquer nova informação publicamente disponível seria rapidamente incorporada ao preço do ativo; enquanto, na forma forte, o mercado é eficiente quando engloba todas as informações do ativo, as informações históricas, as públicas e as privadas, mesmo que estas sejam de conhecimento de apenas um investidor, não seriam possíveis retornos anormais, pois o mercado e o preço do ativo se ajustariam à essa informação inicialmente privada9 . O próprio Fama afirma que a versão forte não tem correspondência com a realidade, mas é importante o benchmark para as suas análises (FAMA, 1991, p. 1575). Entretanto, a HME, mesmo que nas versões fracas e semi-forte tem pressupostas informações rígidas, como a disponibilidade das informações de forma comum e a capacidade de compreensão dessas informações também por todos os participantes do mercado.
Contudo, mais recentemente, a teoria microeconômica mesmo no seu mainstream, tem incorporado questões, como a incerteza, a assimetria das informações e a racionalidade limitada. Esses pontos promoveram uma revolução paradigmática na teoria econômica10, em especial na microeconomia. Eugene Fama produziu uma versão da HME que incorpora a existência de custos de transação positivos, dessa forma os preços de mercado refletem a informação disponível até o ponto em que os lucros que a informação gera não excedem os custos marginais com a sua obtenção (FAMA, 1991, p. 1575). O crescimento das finanças comportamentais que não parte da hipótese de racionalidade perfeita, no caso da HME, se manifesta na compreensão das informações acerca dos ativos, também é resultado dessa revolução informacional.
Nesse contexto de superação das premissas informacionais da HME surgem os primeiros modelos de Microestrutura de Mercado, que incorporam a informação assimétrica e permitem explicar a formação e variação dos preços ao longo do tempo em diferentes ambientes de negociação. De forma mais precisa, microestrutura de mercado é o nome que se dá ao estudo do processo de formação de preços no Mercado de Capitais, a partir da análise dos diversos mecanismos de negociação que podem influenciar sua alteração (BIAIS; GLOSTEN; SPATT, 2005, p. 218). O principal objetivo dessa teoria é analisar o funcionamento em conjunto das instituições e das regras que orientam as negociações de títulos no mercado financeiro; a evolução de sua rentabilidade; e o processo pelo qual o mercado define o preço de um determinado ativo. Assim, a preocupação é incorporar na teoria das finanças os aspectos institucionais das transações, por exemplo, por meio da construção de modelos em que os custos de transação decorrentes dos diferentes modelos de regulação do mercado de capitais desempenham um papel relevante. Assim, o papel central da informação na HME cede espaço para outros fatores, como liquidez, velocidade, volume, procedimentos e custos de transação.
O desenvolvimento dessa teoria e o aprofundamento no seu estudo se devem às rápidas mudanças e evoluções da tecnologia e às regulamentações que podem afetar o mercado de capitais no mundo. Afinal, a estrutura de mercado, ou seja, os delineamentos institucionais e procedimentos, está intimamente interessada nos preços dos ativos e no seu comportamento, que por sua vez, influenciam as decisões de investimentos e financiamentos pelos agentes (MADHAVAN, 2000, p. 207).
Nesse sentido, na última década, a tecnologia e a velocidade de informação computadorizada delinearam a estrutura e o comportamento do mercado. Atividades de Alta Frequência - ou High-Frequency Trading (HFT) - são realizadas por computadores em velocidades extremamente rápidas, programados pelos “traders de alta frequência”, que processam milhares de pedidos de compra e de venda por segundo na Bolsa, por meio de um complexo mecanismo de negociação dinâmica. Partindo desse pressuposto, o uso de HFT nos leva a uma reflexão da teoria de microestrutura. De forma geral, a leitura de informação é uma das principais características dos seus modelos, em que existem os traders informados, os quais possuem informação privada buscando liquidez; e os não informados, que se baseiam apenas em dados disponíveis no mercado, como volume de pedidos, preço, boas e más notícias do mercado, operando por especulação. A microestrutura leva em consideração o tipo de informação, a forma e a facilidade que os diferentes tipos de traders as visualizam (O’HARA, 2015, p. 263).
Outro fator complicador de extrema influência e relevância no estudo do mercado em sua microestrutura é o tempo. As informações de transações de HFT permitem que muitas hipóteses sobre a microestrutura de mercado sejam testadas, porém o estudo do comportamento dos investidores tem sido uma tarefa difícil, levando em consideração os pequenos e irregulares intervalos de tempo das transaçõese o fato de que os métodos econométricos tradicionais utilizam dados de intervalos de tempo iguais (PACURAR, 2006, p. 46).
Como debatido por O’Hara (2015), levando em consideração a questão da informação, os modelos de microestrutura retratam informações privadas como um sinal de verdadeiro valor do ativo. Entretanto, quando se trata de operações de HFT, não se pode mais afirmar com clareza que as negociações estejam relacionadas às informações fundamentais, devido à dimensão do tempo das negociações de alta frequência.
O que quer dizer que um trader de alta frequência, mesmo sem posse de nenhuma informação, pode causar danos ao mercado simplesmente por ter conhecimento de sua própria estratégia de negociação. Ainda, algumas estratégias de alta frequência podem atravessar a linha para um comportamento antiético, algoritmos predatórios podem manipular preços, lançando ofertas contra si próprios, nos dois lados do livro - compra e venda -, gerando lucros imediatos. Essa estratégia predatória é chamada spoofing e foi proibida nos Estados Unidos pela “Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act” de 2010.
Por outro lado, a mera colocação de ordens simultâneas de compra e venda pode ser uma estratégia lícita e racional em termos de estratégia de atuação já que vai permitir que o trader lucre com base na volatilidade do mercado, porém, em uma perspectiva do mercado de capitais como um todo, a sua atuação é benéfica ao fornecer liquidez (LEE; EOM; PARK, 2013, p. 229).
Assim, estabelece-se a complexidade da regulamentação da infração de spoofing, que visa a aplicar punições às situações que representem manipulações de mercado, mas sem que sejam afetadas operações de negociações legítimas que, inclusive, são saudáveis para o mercado.
Afinal, usualmente a diferenciação entre a manipulação e as estratégias lícitas pode ser acessada basicamente por duas linhas de atuação: a prova da intenção do agente durante a negociação ou a análise da racionalidade da estratégia de atuação em si. Em ambos os casos, a dificuldade de prova é significativa, o que pode levar à punição de poucos casos e, por consequência, à ausência de dissuasão da prática. Na HFT, o uso de robôs e algoritmos traz um nível adicional de complexidade para a tarefa de comprovação da intenção do agente e a dificuldade da HME de explicar decisões que se baseiam em ganhos de curtíssimo prazo na velocidade da transação e não nos fundamentos econômicos do ativo. Assim, os desafios da caracterização da manipulação de mercado são imensos.
Nesse sentido, O’Hara (2015, p. 259) afirma que, além da dificuldade de regulamentação e fiscalização, os modelos de microestrutura existentes não podem mais se basear no quesito informação, pois as operações de HFT não permitem diferenciar as intenções dos traders negociantes e a qualidade da informação que possuem, já que comprovadamente mais de 98% do total das ordens lançadas em negociação na bolsa são canceladas e não executadas.
Portanto, se a informação não é um dado relevante em operações de HFT, mas sim a velocidade, a liquidez e o volume, são problemáticas apenas as definições jurídicas tradicionais de manipulação de mercado que costumam envolver um elemento subjetivo11, como também a teoria apta a explicar a sua racionalidade não pode ser a HME, que se baseia no fato de que o valor do ativo reflete as informações disponíveis ao mercado. Assim, faz-se necessária a busca por abordagens adequadas a operações de HFT, sendo a abordagem da microestrutura de mercados uma alternativa promissora para os novos regulamentos e para as novas práticas de mercado, que está permanentemente em evolução.
3 EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL
A prática de spoofing12 já é bastante debatida nos Estados Unidos e na Europa que, diferentemente do Brasil, possuem regulamentação específica para a prática. Na Europa, a representação das operações de HFT no total das negociações do mercado de ações foi de zero, em 2005, para 40% em 2010; e, nos Estados Unidos, as transações HFT já representavam 20% das negociações do mercado em 2005, atingindo um pico de 60% do mercado em 2009 (KAYA, 2016, p. 4).
Em 21 de julho de 2010, Barack Obama, o então Presidente dos Estados Unidos, assinou a alteração da Lei “Dodd-Frank Act”, a qual regula o spoofing na Seção 747:
Dodd Frank Act Section 747. ANTIDISRUPTIVE PRACTICES AUTHORITY.
(5) DISRUPTIVE PRACTICES - It shall be unlawful for any person to engage in any trading, practice, or conduct on or subject to the rules of a registered entity that - (C) is, is of the character of, or is commonly known to the trade as, ‘spoofing’ (bidding or offering with the intent to cancel the bid or offer before execution). (ESTADOS UNIDOS DA AMPERICA, 2010, p. 364).
Já no âmbito europeu, o termo spoofing foi definido a partir do “Final Report - ESMA´s (European Securities and Markets Authority) technical advice on possible delegated acts concerning the Market Abuse Regulation13 ”, de fevereiro de 2015. O documento disserta na Seção 2.3, pág. 14, “Technical advice”, item 10.e, sobre a prática de spoofing:
10. The following practices could relevantly clarify Indicator A(e) of Annex I of MAR (the extent to which orders to trade given or transactions undertaken are concentrated within a short time span in the trading session and lead to a price change which is subsequently reversed): e. Submitting multiple or large orders to trade often away from the touch on one side of the order book in order to execute a trade on the other side of the order book. Once the trade has taken place, the orders with no intention to be executed will be removed - usually known as layering and spoofing. This practice may also be illustrated the following additional indicator of market manipulation (EUROPA, 2015, p. 15).
Como visto, na Europa e nos EUA, a prática de spoofing é considerada manipulação de mercado e é abordada tanto em contexto civil quanto criminal.
Após a reforma da Dodd-Frank Act em 2010, duas pessoas foram acusadas criminalmente por spoofing em 2015 e 2016. Navinder Sarao, um trader britânico foi condenado pela Corte Federal dos EUA e preso em Londres em abril de 2015. Michael Coscia, operador de commodities, foi condenado a três anos de prisão em julho de 2016. Em janeiro de 2017, o Banco americano Citigroup sofreu a maior multa já aplicada a um banco, por spoofing, no valor de U$25 milhões (LEISING, 2017). Em 2018, Deutsche Bank, UBS Investment Bank e HSBC Bank pagaram juntas aproximadamente U$ 47 milhões pela acusação de alguns de seus traders por spoofing, em negociações de metais preciosos, ainda que os bancos tenham colaborado com as investigações dos indicados (MOYER, 2018).
Peter J. Henning, em uma matéria do New York Times, publicada em maio de 2018, aponta a dificuldade de a promotoria provar e condenar acusados por spoofing coloca em dúvida a capacidade do governo de apresentar novos casos. A matéria se baseia no caso de Andre Flotron, um operador de metais precioso do UBS, que foi absolvido por um júri em Connecticut em abril de 2018. Flotron foi acusado por conspiração, em cometer fraude com operações commodities, no entanto suas ordens foram inseridas manualmente no sistema e mantidas por quase um minuto.
O fato de não existir a presença de algoritmo ou negociação automatizada dificultou a comprovação de manipulação. Henning (2018) descreve um estudo da Securities and Exchange Commission de 2013, que diz que menos de 5% dos pedidos feitos em bolsas de valores são executados, ou seja, o mero cancelamento dos pedidos e a utilidade ou não de algoritmo nas operações não servem de parâmetro de avaliação quanto à aplicação de fraude. Deve-se avaliar o padrão de cancelamentos de ordens, quantidade de ordens e preços e o tempo de duração, para que seja enquadrado como ato ilícito.
Nos mercados europeus, o número de condenações pela prática de spoofing também não é elevado, o que pode ser creditado à menor difusão da conduta14 ou à dificuldade de detecção e punição. De qualquer forma, o cenário apresentado é de poucas decisões condenatórias e de uma ausência de critérios consolidados para a caracterização da infração de spoofing.
Portanto, reforça-se que o grande problema é a dificuldade de delimitação dos parâmetros para definir o spoofing, uma vez que a utilização de algoritmo e os cancelamentos em segundos são permitidos, bem como o uso por si só de HFT não pode ser visto como um comportamento ilícito. Ademais, uma parcela da literatura aponta para os benefícios do HFT ao trazer liquidez para o mercado15 . Passa-se, então, ao cenário brasileiro.
4 A REGULAÇÃO DO SPOOFING PELA CVM
O primeiro caso em que agentes do mercado foram acusados de spoofing no Brasil se deu por meio de uma acusação feita pela BM&FBovespa Supervisão de Mercados (BSM), em 2016, contra a Planner Corretora de Valores S.A. e Cláudio Henrique Sangar16 . Na acusação, constaram ainda mais duas corretoras envolvidas, a Um Investimentos S.A e a OCTO S.A. A partir da acusação, a Superintendência de Relações com o Mercado e Intermediários (SMI) abriu Processo Administrativo17 na CVM contra a Paiffer Management Ltda. e seu administrador José Joaquim Paiffer, que teriam cometido o crime de spoofing por meio daquelas corretoras. O Relator do processo, Henrique Balduino, descreve:
A acusação seria pelo descumprimento do Inciso I c/c item II, “b”, da Instrução CVM nº 8/791, em razão da prática de manipulação de preços por meio da inserção de ordens artificiais de compra e venda, na modalidade spoofing, no período de 06.03.2013 a 08.07.2015, envolvendo contratos futuros de dólar e de Índice Bovespa e opções da Vale S.A e Petróleo Brasileiro S.A - Petrobras (CVM, 2018, p. 1).
A Instrução CVM 8, de 08/10/1979, de que trata a acusação, dispõe sobre condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, manipulação de preço, operações fraudulentas e práticas não equitativa (Publicada no DOU de 15.10.79) diz:
▪ I - É vedada aos administradores e acionistas de companhias abertas, aos intermediários e aos demais participantes do mercado de valores mobiliários, a criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, a manipulação de preço, a realização de operações fraudulentas e o uso de práticas não equitativas;
▪ II - Para os efeitos desta Instrução conceitua-se como: b) manipulação de preços no mercado de valores mobiliários, a utilização de qualquer processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo, terceiros à sua compra e venda (CVM, 1979, p. 1).
Esse Processo Administrativo relativo ao primeiro caso do país se encontra em fase de recurso na CVM, fato que demonstra que não existe nenhum caso de spoofing encerrado no Brasil. Tampouco existe o termo na legislação pátria. Contudo, apesar de constar recurso pendente de julgamento, a decisão foi no sentido de estar “caracterizada a manipulação de preços de que trata o inciso I c/c item II, ´b´, da Instrução CVM nº 8/79, modalidade spoofing.”.
Nesse sentido, para que a ação seja enquadrada como spoofing, o Parecer da Superintendência de Acompanhamento de Mercado nº 61/2016 considera como estratégia de spoofing todas as ocorrências que apresentaram a seguinte cronologia: i) posicionamento de oferta em um dos lados do livro para a execução de negócio; ii) registro de oferta expressiva no lado oposto do livro; iii) cancelamento da oferta expressiva imediatamente após a execução de negócio mencionado no 1º item.
Além disso, foram consideradas artificiais as ofertas que constavam no lado oposto do livro até o 5º nível de preço no momento em que foi executado negócio em nome do cliente e que atendiam simultaneamente às seguintes características: i) ofertas de tamanho pelo menos 1,8 vezes maior que a soma de todas as outras ofertas constantes no mesmo lado do livro do ativo, até o 3º nível de preço; ii) ofertas 6 vezes maiores que o tamanho médio praticado pelo mercado nos 3 pregões que antecederam o negócio; e iii) que tenham permanecido menos de 10 segundos no livro do ativo.
A partir do enquadramento nos itens acima das operações realizadas pelos acusados, por unanimidade, José Joaquim Paifer foi condenado à multa no valor de R$ 684.000,00, e a Paiffer Management Ltda. foi condenada à multa no valor de R$ 1.710.000,00, valores correspondentes a duas vezes o valor da vantagem econômica obtida18 .
Todavia, os acusados apresentaram Recurso à condenação, que se encontra em análise pela esfera administrativa. Ademais, a Procuradoria Federal Especializada - PFE da CVM se posicionou favoravelmente à condenação e solicitou que a denúncia fosse encaminhada ao Ministério Público Federal, uma vez que a infração cometida se enquadra também no âmbito penal como “Manipulação de Mercado”, como diz o art. 27-C da Lei Nº 6.385/7619 .
Nesse sentido, segundo Eizirik et al. (2008, p. 510):
Um dos objetivos essenciais da regulação do mercado de capitais é o de propiciar eficiência na determinação do valor dos títulos nele negociados. (...) A ocorrência da manipulação caracteriza um processo de formação de preços artificiais, um “falso mercado”, agredindo, consequentemente, o funcionamento regular do mercado de capitais. A manipulação não se confunde com a especulação, a qual, numa economia de mercado, é tida, em princípio, como aceitável. Consiste na especulação na realização de operações comerciais ou financeiras voltadas para a realização de lucros decorrentes da variação de preços.
Um dos pontos destacados pela defesa foi o de que há uma divergência de entendimento acerca da definição de spoofing entre a BSM e a CVM. Enquanto a BSM afirma que spoofing é modalidade de infração administrativa tipificada como “criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários” - descrição que se enquadraria na Instrução CVM 08/79 item I c/c II, “a” -, a CVM classificou a prática como sendo a infração de “manipulação de preço no mercado de valores mobiliários” - inciso II, “b”, da Instrução CVM 8/79.
Quanto a essa divergência, o Relator do PAS esclarece que os tipos administrativos constantes em ambas as interpretações representam modalidades semelhantes de manipulação de mercado e, ainda que, nas normas nacionais, não exista um texto especificamente para a prática de spoofing, é possível enquadrar as características da fraude no texto já vigente, apenas valendo-se do termo estrangeiro como forma de equiparação às normas internacionais, que já possuem regulamentação específica sobre o tema.
Outro caso iniciado por acusação de spoofing pela Superintendência de Relações com o Mercado e Intermediários (SMI) na CVM foi contra o Banco BTG Pactual S.A e a Garde Asset Management Gestão de Recursos Ltda. em junho de 201720 . Nesse caso, as empresas aceitaram o pagamento de multa à CVM mediante Termo de Compromisso para o encerramento do processo. Ambas foram acusadas de infringir o item I c/c item II, letra “b”, da Instrução CVM 8/79 - mesmos dispositivos aplicados no caso analisado anteriormente. Garde Asset pagou o equivalente a R$ 439.687,50 e o BTG, R$ 2.250.312,50, valores correspondentes a 2,5 vezes a vantagem financeira obtida pelos acusados.
Portanto, a ausência de norma específica acerca do spoofing não tem impedido que a CVM investigue e analise as condutas dos agentes sob a ótica da infração de manipulação de mercado prevista no art. 27-C da Lei Nº 6.385/76. A questão a ser investigada diz respeito à adequação da utilização desse tipo administrativo para a caracterização da prática de spoofing e os eventuais desafios a serem superados na sua aplicação. Para um aprofundamento nessa questão, será utilizado o instrumental desenvolvido no movimento de Law and Economics ou como ficou mais conhecido no Brasil, Análise Econômica do Direito - AED.
5 ANÁLISE DAS ALTERNATIVAS REGULATÓRIAS NA PERSPECTIVA DE LAW AND ECONOMICS
Antes de aplicar a AED ao objeto deste artigo, deve-se fazer uma rápida apresentação das suas premissas. A AED deve ser entendida como uma metodologia para a solução de problemas jurídicos, que se funda na utilização de instrumentos econômicos para a compreensão da realidade social. No estágio atual da teoria econômica, pode-se afirmar que toda a escolha racional, o que pode englobar a quase totalidade das decisões humanas, é passível de uma análise econômica (KLEIN, 2011, p. 176-177).
Como as escolhas devem ser realizadas, os agentes econômicos ponderam os custos e os benefícios de cada alternativa, adotando a conduta que, dadas as suas condições e circunstâncias, lhes traz mais bem-estar. Afirma-se, então, que a conduta dos agentes econômicos é racional maximizadora, maximizando o seu bem-estar (GICO JUNIOR, 2011, p. 22).
Entre, as condutas que podem ser objeto da metodologia da AED, tem-se a decisão de cometer um ilícito penal e/ou administrativo, como o spoofing. A aplicação da AED ao comportamento ilícito tem como ponto de partida o estudo seminal de Becker (1968). Para Becker, os agentes criminosos migram para as atividades ilegais na esperança de que os ganhos esperados superem os custos da atividade, sendo que os custos em questão são uma função da probabilidade de detecção e da pena (BECKER, 1968, p. 207). As principais críticas quanto ao reducionismo da perspectiva da AED do crime, em especial pela ausência de um papel relevante para moral, costumam ter como foco a diferença da capacidade dissuasória da pena em cada crime21 . Mas, no âmbito do mercado de capitais, ao contrário, por exemplo, os crimes, como o estupro, o papel da motivação econômica é significativo.
Portanto, no âmbito do mercado de capitais - na visão da AED - a prática de spoofing somente deixará de ser atrativa para os traders quando os ganhos da negociação forem inferiores à pena condicionada à probabilidade de detecção, caso contrário, a pena não terá capacidade de dissuadir a prática da conduta. Ademais, é a percepção da probabilidade da capacidade de detecção e não a taxa real de detecção pela CVM que irá definir a atratividade do spoofing para um determinado agente de mercado.
O cenário apresentado nas seções anteriores com poucos casos de condenação imposta pela CVM e pelas autoridades, mesmo nos mercados de capitais mais maduros, torna razoável a assertiva de que a percepção dos agentes quanto à probabilidade de detecção deve ser baixa. Quanto à pena, no âmbito da CVM a principal punição é a multa, que tem parâmetros bem amplos, indo até um teto de R$ 50 milhões nos termos da Instrução CVM, nº 607/2019, além da inabilitação para atuar no mercado por até 20 anos, sendo possível a celebração de termo de compromisso com valores negociados entre a autarquia e os investigados. Desse modo, com uma taxa de detecção baixa, a multa proposta passa a ter um efeito dissuasório questionável em transações que permitem uma alta lucratividade para os agentes.
Nesse contexto, pode ser traçado um paralelo com a análise de Harry G. Manne, que apontou certos pontos positivos para o insider trading, conduta criminalizada em diversas jurisdições. O autor argumenta que a prática tem alguns benefícios: pode servir como uma forma de remuneração para os executivos e colaboradores que têm acesso a informações internas, sendo que o seu exercício coloca o valor dos ativos na direção correta, assim os ganhos dela decorrentes podem superar as perdas (MANNE, 2005, p. 172). Ainda, esse comportamento pode maximizar a eficiência das escolhas dos agentes econômicos e dos valores do mercado, já que permite que o administrador perceba a receptividade do mercado de ações a suas escolhas (MANNE, 2005, p. 180). Assim, deixar de contar com esses benefícios é o trade-off (ou custos de oportunidade) da decisão de punir o insider trading. Além disso, para o autor, a punição pelo órgão de supervisão do mercado de capitais poderia gerar confusão, pela incapacidade de se definir com clareza a diferença entre as situações de licitude e ilicitude, os efeitos líquidos da punição do insider trading seriam negativos, já que a prática continuaria a existir e a sociedade suportaria tanto os custos de uma estrutura ineficiente de dissuasão da conduta quanto os erros decorrentes da complexidade na identificação de situações de licitude e ilicitude.
Essa mesma problemática pode ser trazida para a punição do spoofing. Afinal, na ausência de critérios que permitam a diferenciação entre as situações de práticas lícitas de mercado e manipulações de mercado, pode-se se ter a soma de uma atuação discricionária e aleatória e uma baixa capacidade dissuasória.
Nesse contexto, como os recursos da CVM - como de qualquer agência governamental - são limitados, a dedicação ao spoofing necessariamente significará que outras infrações serão objeto de uma menor alocação de recursos materiais e humanos. Portanto, caso o aparato regulatório e a sua capacidade de imposição não estejam preparados para diferenciar a negociação por HFT da prática do spoofing, pode ser que uma análise custo-benefício similar à proposta por Henry Manne indique a legalização da prática é a melhor solução.
Afinal, a punição aleatória ou discricionária, ou seja, de algumas negociações, mas sem um parâmetro que gere previsibilidade para os agentes pode gerar uma ampla discricionariedade para o regulador e, por conseguinte, abrir espaço para práticas de rentseeking22 . Nesse caso, ter-se-ia um efeito negativo adicional consistente na busca por privilégios e favores do regulador do mercado de capitais, por exemplo, com menor intensidade de enforcement ou com menor rigor da definição da infração.
Um último ponto diz respeito ao fato de que, ao contrário do insider trading, não há observação de informações privadas em função das operações de compra e venda no mercado e os ganhos apontados por Henry Manne não se concretizam no caso do spoofing. Aqui, deve-se observar que a mudança da estrutura do mercado de capitais no HFT, com a velocidade ocupando o espaço da informação na racionalidade da atuação dos agentes no mercado de capitais. Portanto, os benefícios do spoofing devem ser analisados a partir do seu impacto na volatilidade e na liquidez do mercado de HFT e não na perspectiva do acréscimo de informação disponível, o que não feito neste artigo, mas pode ser obtido a partir da literatura de microestrutura aqui indicada.
Por fim, deve-se observar que o uso do HFT representa uma inovação que pode ser vista como um sinal de ilicitude, sob pena de que se freie a inovação no mercado de capitais brasileiro. Por outro lado, as práticas de manipulação de mercado devem ser punidas.
6 CONCLUSÃO
Há décadas, o Brasil deu início às regulamentações do mercado de capitais, a partir da edição da Lei nº 4.728/65, com o objetivo de proteger o mercado e os investidores. Mesmo em épocas com ausência total de tecnologia, os operadores no mercado de capitais tentavam ao máximo aumentar seus lucros nas operações, e, na utilidade somente do fator humano, já cometiam irregularidades e fraudes.
O passar do tempo, a evolução e a implementação da tecnologia nas operações do mercado de capitais tornou-o um ambiente atrativo para a manipulação do mercado. Devido à agilidade das máquinas e ao aumento expressivo dos números de transações por minuto, os valores dos ativos se alteram rapidamente e até podem se alterar centenas de vezes por minuto.
Com todo esse volume e com a permissão do uso de ferramentas tecnológicas avançadas de HFT e algoritmos, a complexidade para definir para o que é lícito e o que é ilícito é bastante significativa. Já que o operador pode utilizar-se dessas ferramentas, movimentando os valores de acordo com seu objetivo, para atingir o lucro desejado, sem que incorra em comportamento ilícito, ou seja, em manipulação do mercado.
Somente alegar que uma operação foi rápida demais, ou que foi feita por robô - ou que foi cancelada, ou que foi lançada nos dois lados do livro - não é suficiente para qualquer veredito, como apresentado. O que se faz necessário é a criação de parâmetros efetivos, capazes de gerar previsibilidade, e justos para que o mercado de capitais continue a funcionar, gerando lucros, acesso a capital e à inovação financeira, sem brechas para a tentativa repetitiva de manipulação do mercado. A superação da HME e o estudo da microestrutura do mercado podem ser uma ferramenta eficiente, se combinada de forma a auxiliar as decisões de investimentos através da análise da estrutura do fator preço.
Mais especificamente, tratando-se do Brasil, ainda é necessário o desenvolvimento de uma regulamentação para cybercrimes no mercado financeiro, com parâmetros que gerem previsibilidade sobre as práticas legalmente aceitáveis nesse ambiente, incluindo-se o spoofing. Esse resultado pode ser obtido tanto por uma alteração legislativa, por meio das normas infralegais do mercado capitais, quanto por um mix da manutenção da legislação atual com instrumentos de soft law, tais como os guias de análise utilizados no Direito Concorrencial.
Para que isso ocorra, o diálogo entre Direito e Economia, mais especialmente com a literatura da microestrutura de mercado e os demais modelos aptos a incluir os custos de transação e os delineamentos institucionais do mercado de capitais brasileiro, é essencial. Essa agenda de pesquisa é essencial para que seja possível realizar uma análise custo-benefício da regulação do mercado de capitais num ambiente de HFT. Além da tecnologia, os estudos sobre o mercado e a sua formação também precisam ser aprofundados para que novos regulamentos e práticas de mercado sejam identificados e possam contribuir para um ambiente mais seguro e justo de negociação. A análise do mercado em sua microestrutura deve responder diversos questionamentos quanto à eficiência do mercado de alta frequência, a qualidade de informação que essas operações transmitem, o comportamento dos agentes baseado nas transmissões HFT e quais modelos econométricos de fato demonstram com legitimidade todas essas variáveis.
Outro ponto relevante é o desenho da regulação do HFT, a intensidade da sua imposição (enforcement), de modo que o regulador do mercado de capitais possa atuar de forma a dissuadir as condutas abusivas e gerar previsibilidade para os agentes de mercado. Nesse sentido, a perspectiva da Análise Econômica do Direito (AED) é essencial, em especial a reflexão sobre o comportamento do indivíduo, a probabilidade de execução do crime a partir da sentença esperada e o impacto que a decisão pode ter no Mercado de Capitais e na sociedade.
Pode-se avaliar que o regulador do Mercado de Capitais no Brasil ainda precisa desenvolver técnicas e regulamentos capazes de garantir um enforcement apta à dissuasão efetiva das práticas de spoofing, permitindo a detecção e a comprovação de novas práticas no âmbito do mercado de capitais, de forma a produzir resultados positivos para o mercado de capitais brasileiro, com o aumento da liquidez, acesso ao crédito e a inovação financeira. Nesse sentido, a confirmação da primeira condenação por spoofing seria um primeiro passo que deve ser acompanhado por parâmetros que garantam a previsibilidade e a capacidade de imposição desses parâmetros de forma sistemática.
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Notas