RESUMO
Contextualização: Na pós-modernidade, é fundamental questionar se o aperfeiçoamento do corpo, com o auxílio da ciência e da tecnologia (por meio da biotecnologia, da nanotecnologia e neurotecnologia), seria um direito humano e da personalidade, sobretudo se o corpo com aplicações tecnológicas, o corpo proteico e o ciborgue poderiam receber proteção personalíssima, fundamentada na dignidade, conceito que tem por base ideais humanos.
Objetivo: O presente artigo tem por objetivo analisar técnicas como o biohacking e o ciborguismo como possibilidade de melhoramento humano à luz dos direitos da personalidade, especialmente sob o prisma da dignidade da pessoa humana. Esta obra está licenciada sob uma licença Creative Commons Atribuição - Não comercial - Compartilhar igual 4.0 Internacional.
Metodologia: A pesquisa utilizou o método hipotético-dedutivo, fundamentado em pesquisa e revisão bibliográfica de obras, artigos de períodos, legislação e doutrina aplicável à temática do artigo.
Resultados: O aperfeiçoamento do corpo com o auxílio da tecnologia é um direito humano e da personalidade, sobretudo diante de enfermidades e condições crônicas que causam dor e sofrimento e que podem ser evitadas com aplicações fundamentadas no corpo pós-humano, no corpo proteico e no ciborguismo, conceitos que também merecem proteção personalíssima. Contudo, é fundamental que esta discussão seja permeada pelas implicações bioéticas e jurídicas que envolvem práticas eugênicas e de discriminação e dominação, tendo em vista a possibilidade de coisificação do ser humano, de servibilidade do corpo e da mente humana diante da máquina.
Palavras-chave: Ciborgue, direitos da personalidade, inteligência artificial.
ABSTRACT
Background: In postmodernity it is fundamental to question whether the improvement of the body, with the science and technology (through biotechnology, nanotechnology) would be a human and personality right, especially if the body with technological applications, the proteic body and the cyborg could receive the protection of the personality rights, based on dignity, a concept that is reasoned on human ideals.
Objective: This article aims to analyze thecniques as the biohacking and the cyborguism as a possibility for human improvement in the light of personality rights, especially the human dignity.
Method: The research used the hypothetical-deductive method, based on research and bibliographic review of books, articles from periods, legislation and doctrine applicable to the subject of the article.
Results: As a result, it was found that the improvement of the body with the help of technology is a human and personality right, especially in the face of chronic diseases and conditions that cause pain and suffering and that can be avoided with applications based on the post-human body, in the protean body and in cyborgism, concepts that also deserve protection by the personality rights. However, it is essential that this discussion is permeated by bioethical and legal implications involving eugenic practices and discrimination and domination, considering the possibility of reification of the human being, of the serviceability of the body and mind in front of the machine.
Keywords: Cyborg, personality rights, artificial intelligence.
RESUMEN
Contextualización: Em la posmodernidad es fundamental cuestionar si la mejora del corpo, com la ayuda de la ciência y la tecnologia (através de la biotecnologia, la nanotecnologia y la neurotecnología) sería um derecho humano y de la personalidad, especialmente si el cuerpo con aplicaciones tecnológicas, el cuerpo proteico y el cyborg podrían recibir protección por los derechos de la personalidad, basados em la dignidad, un concepto basado en ideales humanos.
Objetivo: Este artículo tiene como objetivo analizar técnicas como el biohacking e el ciborgismo como posibilidad de mejora humana a la luz de los derechos de la personalidad, especialmente la dignidad humana.
Método: La investigación utilizó el método hipotético-deductivo, basado en la investigación y revisión bibliográfica de trabajos, artículos de época, legislación y doctrina aplicable a la temática del artículo.
Resultados: La mejora del cuerpo con la ayuda de la tecnología es un derecho humano y de la personalidad, especialmente frente a enfermedades y afecciones crónicas que causan dolor y sufrimiento y que pueden evitarse con aplicaciones basadas en el cuerpo post-humano, en el cuerpo proteico y en el ciborgismo, conceptos que también merecen una protección muy personal. Sin embargo, es fundamental que esta discusión esté permeada por implicaciones bioéticas y legales que involucran prácticas eugenésicas y discriminación y dominación, considerando la posibilidad de cosificación del ser humano, de la utilidad del cuerpo y la mente humanos frente a la máquina.
Palabras clave: Cyborg, derechos de la personalidad, inteligencia artificial.
Artigos
BIOHACKING E CIBORGUISMO: O MELHORAMENTO HUMANO À LUZ DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
BIOHACKING AND CIBORGUISM: HUMAN IMPROVEMENT IN LIGHT OF PERSONALITY RIGHTS
BIOHACKING Y CIBORGUISMO: LA MEJORA HUMANA A LA LUZ DE LOS DERECHOS DA PERSONALIDAD
Recepção: 24 Agosto 2021
Aprovação: 28 Junho 2022
O presente artigo tem por objetivo analisar técnicas como o biohacking e o ciborguismo como formas de aprimoramento humano à luz dos direitos da personalidade, tendo em vista a eventual possibilidade de utilização de aplicações tecnológicas para superar doenças incuráveis e deficiências, assim como para aumentar a expectativa de vida e a longevidade humana.
O cerne da discussão é se o aprimoramento humano seria um direito humano e se os corpos híbridos teriam direitos da personalidade. Assim, é essencial investigar se, com a perda de elementos humanos e com a incorporação de elementos tecnológicos, o ser humano também não perderia sua humanidade e nuances da personalidade. Além disso, pontuam-se como necessário contemplar os eventuais limites éticos deste “melhoramento” humano à luz da eugenia e de práticas discriminatórias e preconceituosas. A pesquisa também aborda de forma breve técnicas de biotecnologia, especialmente a CRISPR1, uma vez que também tem por objetivo a superação de doenças e limitações corporais.
Tal perspectiva, analisada sob o ponto de vista do transhumanismo e do ciborguismo, comporta a análise jurídica e bioética acerca da proteção do corpo proteico e pós-moderno, especialmente considerando que as concepções atuais de dignidade humana, direitos humanos e direitos da personalidade estão fundamentadas no fator humano e, portanto, limitado, falível e dócil, de modo que é necessário examinar se esses corpos híbridos merecem a proteção atual concedida por tais institutos ou se estes devem também evoluir, alargando o campo de proteção, para tutelar direitos e solucionar problemáticas levantadas a partir da utilização da inteligência artificial e de algoritmos, próteses, membros biônicos, chips etc.
O primeiro capítulo do desenvolvimento tem por objetivo analisar o biohacking como forma de aprimoramento do ser humano à luz da inteligência artificial. Serão analisadas também a biologia DIY e a técnica CRISPR, conceitos que também têm por objetivo superar limitações e dar ao corpo humano maior funcionalidade. O segundo capítulo abordará as nuances do corpo pós-humano e do ciborguismo, considerando a implementação tecnológica que abre espaço para os corpos híbridos, proteicos e a indagação acerca da proteção destes em razão da perda do fator humano e de sua essencialidade.
Já o último capítulo do desenvolvimento avaliará este “melhoramento” à luz dos direitos da personalidade, analisando a proteção presente e as perspectivas futuras de tutela de corpos híbridos e de modulações da personalidade virtual/digital, bem como os neuro-direitos, já que, cada vez mais, vislumbra-se que a tecnologia pode coletar dados que possam contribuir para a criação de perfis comportamentais e a análise de previsões por meio de algoritmos e da inteligência artificial.
A solução para contornar limitações e aprimorar o ser humano parece ser por meio do controle de suas funções cerebrais e de seu sistema nervoso. Assim, também é fundamental discutir a eventualidade de ampliação do rol de direitos humanos para contemplar os neurodireitos, tendo em vista a eventual possibilidade de controle e alteração da mente e da consciência cognitiva. Para tanto, o presente artigo utilizou o método hipotético-dedutivo, fundamentado em pesquisa e revisão bibliográfica de obras, artigos de periódicos, notícias, legislação e doutrina aplicável.
Diante da evolução tecnológica dos últimos anos, sobretudo advindas da utilização da inteligência artificial, muitas atividades cotidianas foram facilitadas e otimizadas. Contudo, o corpo humano não deixou de ser limitado, bem como a capacidade de utilização da mente e da consciência. Para aproveitar todas as benesses da vida e da natureza, assim como as proporcionadas pela tecnologia, o indivíduo precisa de mais tempo, saúde e consciência.
Há também uma constante demanda por maior produtividade e melhores resultados, que tem levado as pessoas ao esgotamento deste corpo e mente falíveis. A promessa do biohacking é tornar o ser humano mais forte e inteligente mediante a otimização de habilidades, com auxílio da suplementação e/ou tecnologia. O objetivo é dar ao indivíduo mais saúde, consciência e produtividade, e, para apresentar melhores resultados, é fundamental ampliar a consciência corporal e mental: gerenciar pensamentos, aumentar a qualidade do sono e da alimentação, mudar o ambiente e ter melhores relacionamentos interpessoais.
O biohacking é, portanto, a junção da engenharia cibernética com a engenharia biológica. É a utilização da biologia com técnicas nutricionais, médicas e eletrônicas, que tem por objetivo aumentar a capacidade física e mental do ser humano, sendo um meio de autodeterminação da vontade, e que pode resultar no transhumanismo e no ciborguismo (COVARRUBIAS, 2020, p. 89). Por meio dessa técnica, também seria possível superar doenças incuráveis e deficiências, bem como diminuir limitações funcionais (VILAÇA; DIAS, 2014), superando os limites e a dimensão biológica: material, genética e celular (LUCA; BOSCO, 2020). O biohacking, aos poucos, se populariza em sua vertente mais branda e acessível, voltada à performance, que tem como cerne práticas as quais envolvem regimes e controle de sono, medições de ações, cafeína e alimentos ingeridos (KAWANISHI; LOURENÇÃO, 2019).
Tais técnicas agiriam sobre o corpo do ser humano e seu sistema biológico, com o escopo de potencializar capacidades físicas e cognitivas, mediante aplicações tecnocientíficas que poderiam ser implantadas pelo próprio indivíduo ou por meio de acompanhamento médico e/ou de grandes laboratórios (KAWANISHI; LOURENÇÃO, 2019, p. 659-660).
Os termos garage biology2 e citizen biology3 também são expressões que descrevem um movimento emergente de amadores que conduzem ciência fora dos laboratórios universitários ou corporativos. Entre os grupos de biólogos amadores, destaca-se o DIYbio4, uma organização criada em Boston, em 2008, e composta por vários grupos de pesquisa nos Estados Unidos e na Europa5. O objetivo da rede é fornecer um ambiente coletivo para ferramentas e protocolos de pesquisas biológicas, que podem ser realizados em garagens ou cozinhas. Embora, até o presente momento, nenhuma grande inovação tecnológica tenha surgido da citizen biology, sua prática levanta questionamentos acerca da abertura da democratização da produção científica e do conhecimento, de seus eventuais perigos à saúde pública e dos dilemas éticos que envolvem o engajamento público com a ciência (DELFANTI, 2012).
Os membros do DIYBio possuem relacionamento direto com o movimento hacker, o ambiente do empreendedorismo e startups e empresas de ciência aberta (DELFANTI, 2012). Há grupos focados em fazer experimentos para encontrar soluções, desenvolver e baratear equipamentos e montar laboratórios coletivos que possibilitem experimentos e uma vertente interessada em modificações corporais tecnológicas. Nesta última, destaca-se a implantação de chips e ímãs sobre a pele e a experimentação com substâncias e circuitos eletrônicos pelo corpo (MORI, 2017).
Conforme Furtado (2017, p. 236):
O conceito de tratamento implica na limitação de esforços médicos, à correção de disfunções orgânicas. Para tanto, toma-se como referência um padrão de normalidade, do qual o sujeito enfermo será novamente restituído. Por sua vez, o melhoramento busca ir além da restituição da saúde, conferindo novas capacidades aos indivíduos, através de procedimentos diversos, tais como: edição genética, medicações, interfaces cérebro-máquina, biopróteses, nanotecnologia, entre outros. Os objetos destas intervenções seriam a cognição e os estados de humor, a performance física, a longevidade e a reprodução.
Sob o ponto de vista jurídico e bioético, há que se definir as noções de “disfunções orgânicas” e “padrão de normalidade”. A edição genética e as intervenções na reprodução e na longevidade ainda são muito questionadas pela comunidade científica, sendo proibidas em muitos países porque podem ser utilizadas para fins de controle social, eugenia (negativa ou positiva), objetificação do ser humano e de sua existência para fins arbitrários, egoístas e comerciais. As intervenções cognitivas e de estados de humor levantam questionamentos acerca da capacidade de manipulação das mentes, mas parecem ser o investimento do presente e a realidade de um eventual futuro, pelo menos levando em consideração experimentos com inteligência artificial e biotecnologia realizados por startups e pelo mercado tecnológico.
Na Europa, o biohacking e os experimentos de conexão com máquinas existem pelo menos desde a década de 1990, por meio de startups vinculadas a laboratórios de universidades, como a Cambridge, a Karolinska em Estocolmo e a Freiburg, na Alemanha (MARINHO, 2020).
A empresa BIOS tem por objetivo utilizar implantes para devolver a atividade cerebral em casos de doenças ocasionadas pela falha de comunicação entre o cérebro e outros órgãos, por meio de implantes que extraem dados cerebrais. Em 2018, uma parceria com a Nvidia Corporations foi estabelecida para desenvolver interfaces neurais que possibilitariam que dispositivos externos se comunicassem diretamente com o sistema nervoso. Como explicam seus fundadores, a tecnologia seria como uma “porta USB” para captar o código neural de cada pessoa. Com a inteligência artificial e as técnicas de big data, seria possível encontrar linguagens subjacentes (MARINHO, 2020).
A startup alemã CereGate, fundada em 2019, obteve investimentos após primeiros resultados com mais de 15 pacientes acerca de estimulação cerebral profunda, mediante a implantação de um hardware no cérebro e na medula espinhal. A empresa também possui um software que é capaz de enviar impulsos elétricos, interpretando a atividade neural e “escrevendo” informações no cérebro do paciente (MARINHO, 2020).
A promessa para o futuro da empresa Neuralink é, em termos gerais, conectar cérebros humanos com computadores e curar, por meio de estímulos elétricos, doenças, como a perda de memória, visão ou movimentos, audição, dores crônicas, convulsões, depressão, insônia, ansiedade e vícios. Contudo, os resultados apresentados foram tímidos, com respostas sensoriais apenas em porcos, em comparação com o grande investimento até o presente momento (DUARTE, 2020).
Conforme Gangadharbatla (2020), dispositivos tecnológicos incorporados ao corpo humano são diferentes das tecnologias vestíveis6, sobretudo em razão do maior risco associado à adoção e à utilização de implantes. A tecnologia incorporada envolve uma interação mais profunda com o corpo humano, que pode se dar por meio cirúrgico ou mediante implantes com chips sob a pele, e tem a capacidade de coletar mais dados pessoais do que smartwatches, tecidos inteligentes e smartphones, o que também pode representar maior risco em relação a questões quanto à privacidade. Na Suécia, por exemplo, algumas empresas já utilizam a implementação de chips em funcionários para substituir cartões, abrir portas, operar máquinas etc. Por meio desses dispositivos, também é possível auferir dados sobre a produtividade (POR..., 2017; PETERSÉN, 2019).
Com a possibilidade de acesso ao sistema nervoso e à mente, a necessidade de proteção de dados é ainda mais evidente e complexa, especialmente diante do eventual manuseio de estímulos humanos e respostas cognitivas pré-reflexivas, que fogem do âmbito da ação e do resultado e ampliam o terreno do que se compreende como privacidade, intimidade e autodeterminação informativa7.
Na área da biotecnologia, também se discute o aprimoramento humano por meio da reprodução humana assistida e da técnica CRISPR Cas, que tem gerado enorme progresso nos últimos anos e pesquisas. Espera-se que, no futuro, esta técnica permita a cura de doenças raras ou catastróficas como câncer, anemia congênita, diabetes, entre outras. A aplicação desse sistema também permitirá avanços na área da saúde quanto ao combate de doenças, como HIV, malária, Zika vírus, dengue e SARS-CoV, sendo possível interromper o avanço da resistência bacteriana a antibióticos, diminuir a virulência e infecções (GONZALEZ-AVILA et al., 2021).
Por mais revolucionárias que as inovações da área da biotecnologia possam ser e os avanços que podem representar no futuro, atualmente, os resultados ainda são iniciais e balizados por previsões futuras. A possibilidade de edição do genoma humano ainda é muito questionada, incerta e pode representar riscos genéticos tanto para os indivíduos envolvidos nas pesquisas como para seus descendentes.
Em 25 novembro de 2018, chocou o mundo a revelação do cientista He Jiankui de que havia utilizado repetições palíndrômicas curtas agrupadas regularmente intercaladas (CRISPR) para editar o genoma de duas meninas gêmeas, nascidas naquele período, por meio da edição de embriões humanos, que foram transferidos para o útero. O experimento tinha por objetivo evitar que as gêmeas contraíssem o vírus HIV (GREELY, 2019). A grande problemática é que a edição genética de embriões é proibida pela legislação da maior parte dos países do mundo, incluindo o Brasil8, 9 e o Reino Unido10.
O experimento foi considerado temerário pela comunidade científica internacional em razão de que, por mais que a edição de genes poderia, em tese, evitar a transmissão de doenças hereditárias ou modificar conjuntos de genes problemáticos, as modificações do genoma de embriões podem causar problemas não só ao indivíduo em questão, mas também aos seus descendentes, tendo em vista a grande imprecisão acerca da segurança e da garantia da utilização da técnica (ROBERTS, 2018).
A popularização de técnicas, como o biohacking e os avanços da área da biotecnologia, abrem espaço para a discussão acerca do futuro da humanidade sob o ponto de vista do melhoramento humano, sob a perspectiva do direito à diferença, da aceitação da diversidade e do princípio da não discriminação, pode parecer uma prática antiética.
Com o auxílio da tecnologia, o corpo humano pode transcender limitações e se aproximar da dualidade homem-máquina, previsão de um futuro nem tão distante, tendo em vista perspectivas de hiperconexão, vigilância excessiva, utilização de wearables e implantação de próteses, membros biônicos e chips, cenário que se aproxima, ao menos teoricamente, dos corpos híbridos, pós-humano e do ciborguismo.
Uma vez que o ser humano passe a “melhorar” o seu corpo e otimizar a sua mente por meio da implantação de objetos tecnológicos, este se torna híbrido, podendo ser considerado um ciborgue. O corpo pós-humano superaria limitações, doenças, alcança a longevidade e uma saúde indestrutível, mas, ao mesmo tempo, perderia elementos e características humanas, sendo importante analisar a sua condição jurídica e os direitos que o circundam.
Com a crescente utilização de dispositivos tecnológicos na área da saúde e da biotecnologia, é possível formar um organismo antropomórfico híbrido, com partes orgânicas e partes tecnológicas, o ciborgue, para o movimento transhumanista. Atualmente, para além do universo futurista e da ficção científica, fenômenos, como o biohacking, impõem um sério debate acerca dos impactos do avanço tecnológico e seus diversos usos, sobretudo diante da possibilidade de modificação do corpo humano que ultrapassa seus limites naturais (HERNÁNDEZ, 2021).
Fornasier e Knebel (2020, p. 53) afirmam que o termo pós-humanismo denomina o momento histórico de superação do humanismo moderno centrado no ser humano, isto é, no antropocentrismo, em razão do surgimento de tecnologias transhumanistas e do ciborguismo. Assim, o pós-humanismo, como teoria crítica, tem por objetivo conceber parâmetros éticos para a “contemplação dos corpos em suas múltiplas formas, sob o legado do anti-humanismo, que aponta(va) a restrição do conceito de humanidade da modernidade capitalismo e seu potencial de criação de diferenças negativas que só causam exclusão e exploração.”
Conforme Raiol e Alencar (2020, p. 108):
O aperfeiçoamento de tecnologias assistivas e de equipamentos de reabilitação, como exoesqueletos, próteses e membros biônicos, implicam no surgimento de um hibridismo entre homem e máquina em um patamar nunca antes percebido. Esse panorama cria e insere no espaço social a figura do ciborgue, que se trata de um ser orgânico com traços de tecnologia cibernética e perfeita sincronia, fato este que evidencia a gênese do denominado sujeito pós-humano.
Um caso de ciborguismo moderno é Neil Harbisson, britânico acometido por uma forma de daltonismo que não o permitia enxergar nenhum tipo de cor e implantou em seu crânio um eyeborg, uma antena que capta a frequência das cores dos objetos que Harbisson vê e as traduz em som. Com formação na área musical, o britânico decorou o som que cada cor reproduzia e relacionou com os nomes que as pessoas as quais enxergam dão a cada cor (SATURNO, 2018). Já Chris Dancy foi considerado o homem mais conectado do mundo, tendo em vista que, há mais de uma década, possui todos os seus movimentos, temperatura corporal, peso, pressão arterial e oxigênio digitalizados. O americano monitora a qualidade do ar que respira, o volume de sua voz, os alimentos que ingere, a temperatura, o ambiente, entre outras coisas. Iniciou com a criação de sistemas computacionais para empresas de software e, aos poucos, percebeu que poderia utilizar suas habilidades para melhorar sua qualidade de vida e saúde. Dancy possui onze dispositivos inseridos em seu corpo e centenas de aparatos em sua casa em Brentwood, no Tennessee (EUA) (BLASCO, 2017).
Em razão do desenvolvimento da tecnologia, cresce a “apologia das novas tecnologias”, isto é, o ser humano se torna refém de aplicações tecnológicas que proporcionam melhoramento corporal, já que as enxerga apenas como novas aliadas. A tecnodependência deixou de ser algo “lateral, e a vida moderna impõe um uso irrestrito, imoderado, exaltado e tecnofílico de todo o aparato técnico que suporta a integração das novas tecnologias e a expansão dos novos instrumentos técnicos” (BITTAR, 2019, p. 941).
Como pontua Bittar (2019, p. 946), o corpo humano é o último nicho da natureza que ainda “resta a ser ‘substituído’ e ‘superado’ pelo mundo moderno, no extremo de sua fronteira tecnológica. Por isso, ele deve ser ‘escrutinado’, ‘investigado’, ‘observado’ para ser ‘substituído’, ‘reformado’ e, no limite, ‘superado’”. Com a era digital, é declarada a obsolescência desse corpo humano e inaugurada a emergência do pós-humano, transhumano e pós-orgânico. Conforme Santaella (2003, p. 31), a expressão “pós-humano” pode soar perturbadora para muitos, especialmente porque ela pode suscitar na mente das pessoas que o humano está ultrapassado e perdeu-se em um golpe de acontecimentos. Contudo, o termo pós-humano vem sendo utilizado por teóricos da arte e da cultura, bem como por artistas, desde a década de 1990, para sinalizar:
[...] as grandes transformações que as novas tecnologias da comunicação estão trazendo para tudo o que diz respeito à vida humana, tanto no nível psíquico quanto social e antropológico. Há alguns autores que até defendem a idéia de que se trata de um passo evolutivo da espécie. Uso a expressão deliberada e estrategicamente para chamar atenção para o fato de que não podemos nos furtar à reflexão sobre as modificações porque o ser humano vem passando, modificações não apenas mentais, mas também corporais, moleculares (SANTAELLA, 2003, p. 31).
Embora seja a previsão de um passo evolutivo, o avanço tecnológico que leva ao cenário pós-humano, sendo humanamente controlável e hodiernamente estimulado, demonstra que é necessário pensar se a humanidade, seus valores e suas limitações são elementos que precisam ser protegidos do que também pode ser considerada ditadura da produtividade, positividade e desempenho, assim como otimização, nuances de um capitalismo neoliberal11.
Indaga-se se haveria na humanidade uma “negatividade incontrolável e de outra ordem, imune ao progresso tecnocientífico”12 (TRISKA, 2019). É importante visualizar que as concepções humanas de “humanidade, a empatia, a paciência e a sabedoria são fundamentadas na aceitação das limitações” (LILLEY, 2013, p. 37, tradução nossa).
Para aqueles que acreditam que existe um propósito divino por trás da criação e da preservação da biologia humana, o transhumanismo poderia ser entendido como uma vontade contrária à da divindade. Já para os que acreditam que os seres humanos são criaturas capazes de se desenvolver em novas formas, o transhumanismo pode ser entendido apenas como mais uma etapa do desenvolvimento, do mesmo caminho (LILLEY, 2013, p. 39, tradução nossa).
A grande problemática seria a “superoperação, uma aspiração prometeica de remodelar a natureza, incluindo a natureza humana, para servir aos nossos propósitos e satisfazer os nossos desejos” (SANDEL, 2013, p. 40) de otimização e desempenho. Sandel (2013) também levanta a questão da eugenia positiva, com a criação de designer babys de acordo com os interesses questionáveis dos idealizadores do projeto parental ou do melhoramento corporal de atletas de alta performance. Para o autor, a diferença entre curar e melhorar teria cunho moral. Assim, discussões éticas e bioéticas seriam necessárias sempre que a ciência avançasse mais depressa do que a compreensão moral, na tentativa de articulação de um eventual mal-estar entre conceitos como justiça, direitos humanos e autonomia, isto é, os verdadeiros questionamentos a respeito da possibilidade de controle e manuseio do genoma humano são extra científicos: sociais, geopolíticos e éticos (SÁNCHEZ-VILLA, 2021, p. 29).
Tal contexto, segundo Bittar (2019, p. 935-937), demonstra a importância da discussão acerca de eventuais processos de desumanização que podem surgir diante da valorização excessiva da máquina, da mitificação de processos tecnológicos, relacionados à ideologia da cibercultura. É possível que, no futuro, o corpo-máquina seja reduzido à coisa/mercadoria e a servidão do ser humano à máquina, o que pode ocasionar exclusão, dominação, bem como ampliar a violência cibernética e a lógica eugênica.
Desta forma, o papel do Direito na era digital é definir regras e parâmetros para o desenvolvimento tecnocientífico desenfreado, em um cenário em que a condição humana é constantemente ressignificada e as formas de sociabilidade redefinidas (BITTAR, 2019, p. 935-937). Como pontuam Kawanishi e Lourenção (2019, p. 675-676):
O movimento trans-humanista ganha força e, com ele, a noção de que o nosso futuro está depositado nas mãos das tecnologias, junto a todo um incentivo à constituição de um sujeito mais produtivo, de um corpo mais útil e, consequentemente, menos político. Noções como a de pós-humano crítico nos dão base para acompanhar as reflexões sobre as próximas etapas do humano, porém de um modo que seja mais acolhedor e menos idealizado. Preocupado com os diferentes sujeitos, o pós-humano crítico legitima os sujeitos excluídos pelas antigas dicotomias e pelas dinâmicas do capital. E, dentro de uma analítica do capitalismo, importa saber o que e como estão se dando os processos de adaptação dos humanos aos novos modos de produção cujo foco é justamente a produção de novos humanos.
De acordo com Fornasier e Knebel (2020, p. 63), o “potencial emancipatório da metáfora ciborgue13 jamais se realizou, sendo cooptado pelo controle biopolítico do capitalismo” e pelo “avanço tecnológico das máquinas que servem e são os corpos aliados ao aperfeiçoamento pessoal individualista e diretamente relacionado com os dualismos opressores como o gênero e a raça”. Dessa forma, prevaleceram as tecnologias de si, que seriam dignas do ciborguismo, a exemplo do transhumanismo que promete o aperfeiçoamento humano mediante a tecnologia.
Sob o ponto de vista da bioética, surge a preocupação com a instrumentalização da vida humana diante da evolução tecnológica, sobretudo diante do afastamento da identificação ética com a espécie, tendo em vista a ruptura com a ideia de “homem” e de ser humano que fundamentou até agora o estudo dos direitos humanos14 (FORNASIER; KNEBEL, 2020, p. 64-65). Conforme Fornasier e Knebel (2020, p. 66), “expondo os limites do aperfeiçoamento humano quando ligado a pautas eugenistas e segregatórias, o ciborguismo pode contemplar a evolução do corpo ao aperfeiçoar sua representação, transformando-a em simulação”.
Para Silva e Silva (2021, p. 56644), a manipulação do genoma e do corpo humano em nome do avanço científico-tecnológico é frequentemente coberta por ideais eugênicos e “mais patrocinada pelas corporações biotecnológicas altamente lucrativas – que desafiam as concepções clássicas de direitos humanos baseadas no princípio da dignidade humana enquanto fato gerador do direito a ter direitos”.
Conforme Pona e Fachin (2014, p. 95):
não se pretende transformar o direito em entrave e conformar a dignidade da pessoa humana como um empecilho ao desenvolvimento e aperfeiçoamento das condições de vida. O progresso que visa à melhoria das condições de vida do indivíduo, fazendo o bem, invariavelmente, representa uma ode à sua dignidade de ser humano, de pessoa. O que o respeita, respeita sua dignidade. Todavia, sob o estandarte dos benefícios para o ser humano não se pode cominuir a natureza da espécie e, portanto, desprezar a dignidade.
Na visão de Pona e Fachin (2014, p. 96), somente com “o reconhecimento de alguma identidade entre todos os cidadãos do mundo é que se pode pensar na existência de organizações políticas sustentáveis”. Se houve “mudança gradativa na noção de que o indivíduo era considerado pessoa ao longo da história da humanidade, nos tempos atuais, um imperativo que impede o retrocesso condiciona o reconhecimento de todo e qualquer indivíduo como pessoa”, sujeito de “direitos humanos internacionalmente reconhecidos e portador, portanto, de dignidade”. Para Rama (2012, p. 72), as “aproximações do androide em direção a um corpo quase humano, e deslocamentos do ciborgue na direção de um corpo mecânico, muito mais que discussões sobre realidade e ficção”, indicam “ambiguidades e incerteza da própria concepção do que é um ser humano. As suspeitas que acompanham estas figuras pós-humanas dão testemunho disso”.
Conforme Paulich e Cardin (2020), a inteligência artificial está em constante expansão, bem como a sua capacidade de processamento e conhecimento. Destaca-se que a engenharia desse conhecimento artificial depende da análise de fatos e regras, para que sejam criados padrões e sistemas inteligentes.
Sob o ponto de vista da Bioética, conforme o art. 13 da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e da Dignidade do Ser Humano, acerca das aplicações da Biologia e da Medicina (Convenção de Oviedo – Convenio de Oviedo), de 1997, intervenções que tenham por objetivo modificar o genoma humano só podem ser realizadas por razões preventivas, de diagnóstico ou terapêuticas e somente se não tiverem por finalidade introduzir modificações no genoma da descendência (CONSELHO DA EUROPA, 1997).
Analisando as disposições da Convenção de Oviedo e o Regulamento 2017/74 do Parlamento Europeu e do Conselho, que representa um marco quanto às disposições gerais para os dispositivos tecnológicos implantáveis no corpo humano, Hernández (2021) pontua que, no caso dos ciborgues, o modelo de aquisição de dispositivos e produtos que tenham por objetivo aperfeiçoar o corpo humano e expandir de forma excessiva sua capacidade não é legítimo. Para o autor, seria necessário priorizar produtos que tivessem por base propósitos sociais de equalizar as capacidades humanas que estão diminuídas ou deterioradas, como funções vitais do corpo e proibir a aquisição de dispositivos tecnológicos para fins não terapêuticos ou subsidiar fins particulares a esse fim social.
É o que demonstra Farias (2020, p. 859-860), cuja pesquisa verificou a utilidade do biohacking como alternativa para a formulação de políticas públicas para a educação especial. Com base em estudos sobre Epigenética, Neurociência e Psicologia Comportamental, é possível adequar o ambiente escolar (ex.: com a redução da intensidade de estímulos luminosos e sonoros) para contribuir para a melhoria do ambiente escolar e a educação inclusiva, beneficiando estudantes com manifestações clínicas de “comportamentos sensoriais incomuns”.
A discussão que permeia o corpo pós-humano e o ciborguismo deve, portanto, abranger as noções de dignidade, humanidade, bem como concepções e limites éticos e jurídicos quanto ao melhoramento humano e à “superação de limitações”. Apesar das ressalvas, ao ser humano deve ser garantido o direito à modificação de seu corpo para a superação de doenças, limitações físicas e psíquicas. Certamente o caminho a ser percorrido é considerar se a negatividade, as limitações e a falibilidade não são características fundamentais para a preservação da humanidade e se esta quer no futuro se despir de sua essencialidade em nome do aprimoramento e da perfeição, enfrentando dilemas também extra-humanos.
O saudável e livre desenvolvimento da personalidade exige a proteção da dignidade humana, de sua autonomia e autodeterminação, bem como o respeito à liberdade individual e direitos, como a privacidade, a intimidade, a honra, o nome, a sexualidade, a convivência familiar, a livre expressão de opinião e a manifestação de pensamento e crença.
Para que a personalidade se desenvolva, também é fundamental o acesso à educação, à saúde, a oportunidades de trabalho e a participação cidadã. Portanto, neste tópico, inicialmente, destaca-se que a atual conceituação acerca da personalidade e do que seriam direitos da personalidade é fundamentada e ambientada na era dos corpos limitados e das relações humanas expostas à negatividade e às limitações.
A personalidade, de acordo com Szaniawski (2002, p. 35), corresponde ao conjunto de características únicas do indivíduo e inerentes à pessoa humana. “Trata-se de um bem, no sentido jurídico, sendo o primeiro bem pertencente à pessoa, sua primeira utilidade”. É por meio da personalidade que a pessoa poderá adquirir e defender seus bens e direitos, entre eles, a vida, a honra, a liberdade etc. Os direitos da personalidade são mencionados em capítulo próprio no Código Civil de 200215 (arts. 11 ao 21), contudo muitos autores, como Szaniawski (2002) e Moraes (2008), compreendem que este rol não é taxativo, de modo que outros direitos não contemplados pelo Código também são fundamentais para o desenvolvimento da personalidade humana16, especialmente tendo em vista a constante evolução social e a dificuldade de o Direito acompanhar e regular todas as esferas e temáticas da ordem social ao tempo que estas são identificadas e reconhecidas17.
Parte da doutrina também compreende que a dignidade18 da pessoa humana, prevista no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), anunciada como um dos fundamentos da República, seria uma cláusula geral de proteção da personalidade, assegurando o ser em sua totalidade, diante de toda e qualquer situação que implicasse ofensa ao que o ser humano teria de mais caro, a sua individualidade e, consequentemente, personalidade (SZANIAWSKI, 2002). Em relação à análise do melhoramento humano à luz dos direitos da personalidade, Bittar (2019, p. 948) sublinha que a faceta da modernidade em expansão é desvinculada e não reconciliada com a natureza, sendo a expressão da razão instrumental, circunstância que faz com que possua cunho dialeticamente destrutivo, revelando-se, assim, como mais um projeto de dominação.
Ao longo da história da humanidade, o aprimoramento humano envolveu diversas técnicas e a constante indagação entre limites, como a “a normalidade e a aberração, a terapia e a mutação, a licitude e a ilicitude, a liberdade científica e ética, a saúde e a doença, isto é, tangencia alguns dos aspectos mais essenciais que compõem o itinerário civilizatório”. Dessa forma, é tema que necessita de abordagem e investigação interdisciplinar, bem como conhecimentos bioéticos, científicos, jurídicos, entre outros (SARLET, 2019, p. 96).
Para Bittar (2019, p. 950-951), são riscos concretos:
i.) o risco da eugenia e o controle de um mercado de seleção genética da vida, como face macabra do nanopoder; ii.) os riscos decorrentes das aplicações das novas tecnologias na guerra, considerando-se os avanços da robótica militar e, inclusive, a possibilidade de refundar a competição em escala global por estes novos armamentos; iii.) o risco da superação do homem pela máquina, diante de uma crescente atitude de desmoralização do corpo em prol da vitória técnica; iv.) o risco da escravidão de seres humanos criados laboratorialmente, pela manipulação genética da vida, conservando-se a propriedade jurídica sob o condicionamento de empresas; v.) o risco da coisificação da vida humana; vi.) o risco da construção de uma hierarquização entre seres ‘hiper-humanos’, corporalmente modificados, que sejam tornado superiores em capacidades e habilidades, e seres ‘humanos’, corporalmente inalterados, e, portanto, inferiores em capacidades e habilidades.19
É um jogo de perdas e ganhos. O que este trabalho questiona é se ainda há possibilidade de escolha por este futuro ou se ele já representa um caminho incontornável, que não mais comporta autodeterminação, inconformismo ou modulação. Conforme Fornasier e Knebel (2020, p. 62), na perspectiva dos direitos humanos da era digital, em tese, pode ser concebida uma quarta dimensão, que representaria a tecnologia da informação e a regulação da engenharia genética.
Como compreende Bittar (2019, p. 953), diante do avanço tecnológico, que desafia a vida contemporânea, as relações sociais e de trabalho, as interações sociais, o Direito tem o papel de regular os efeitos desse processo no sentido de preservação de direitos e deveres, sobretudo quanto aos direitos humanos no espaço cibernético, consolidando a quarta dimensão de direitos humanos20 – correspondente à regulação da engenharia genética – e avançar quanto a perspectivas de surgimento de uma quinta dimensão de direitos humanos – correspondente à regulação da tecnologia da informação:
[...] a exemplo do que ocorre na França, começa a despontar na legislação o tratamento dos seguintes temas, a serem traduzidos em termos de ‘novos direitos’: i.) um direito de abertura e circulação de dados (droit d´ouverture et de circulation des données); ii.) um direito ao apagamento dos dados pessoais (droit à l´effacement des données personnelles); iii.) diante das ideologias do corpo-máquina que afetam o direito ao envelhecimento, a defesa da dignidade humana na velhice; iv.) a luta contra a cibercriminalidade (la luttecontre la cybercriminalité); v.) a invasão da privacidade em face da liberdade de expressão (ménaces à la privacité en face de la liberté d´expréssion); vi.) a inovação nos métodos de participação política e a forma da democracia representativa. Estas são já algumas das possíveis perspectivas de ‘novos direitos’ em afloramento, considerada a experiência legislativa francesa. Mas, este é apenas o início de um mais longo processo - que não se pode aqui adiantar, e nem adivinhar -, considerando-se os desafios que ainda estão por vir, e que reclamarão, da Ciência do Direito e da Teoria do Direito, enormes esforços no sentido de sua reinvenção (BITTAR, 2019, p. 954-955).
São direitos que surgem diante do avanço tecnológico, que abarcam perspectivas para as quais o Direito não pode se esquivar. Para Bittar (2019, p. 952), os corpos híbridos ou ciborgues devem ser objeto de proteção legal personalíssima, no âmbito dos direitos da personalidade, tendo em vista que são apenas fruto de uma nova dimensão física do corpo “humano modificado, conhecendo-se a necessidade de cura de doenças, o uso de próteses e a liberdade estética que cada qual possui ao lidar com o seu próprio corpo físico, cujos limites ainda não se conhece por completo”, de modo que autores como David Le Breton propõem a “cidadania ciborgue” (BITTAR, 2019, p. 952).
Como destaca Barbosa (2017, p. 1476), é crescente a capacidade das máquinas e de sistemas atuais de aprender com base na experiência acumulada e de tomar decisões independentes e autônomas, de modo que o reconhecimento de uma personalidade jurídica a mecanismos, como androides e robôs já é discussão que se acentua, à medida que estes se tornam mais complexos e sofisticados. Magrani (2019) cita o caso da inteligência artificial Sophia, da Arábia Saudita, o primeiro país do mundo a conceder a cidadania a um robô, que depois teve contornos controversos e ficou famosa no mundo por afirmar em um vídeo que iria destruir a humanidade. A inteligência artificial Tay, da empresa Microsoft, também desenvolvida por meio da técnica de machine learning, foi criada para interagir na rede social Twitter e, em menos de vinte 24 horas, virou um bot de ofensas racistas e propagador de discurso do ódio.
Essas questões devem ser levantadas diante do aprendizado de máquinas e da utilização de algoritmos. Uma vez que esses sistemas inteligentes passam a operar e a interagir com dados, não se sabe ao certo como reagirão em confronto com dados diversos dos analisados durante os testes ou como aprenderão posteriormente à sua criação, sem contar a possibilidade de discriminação algorítmica, tendo em vista que os sistemas de inteligência artificial refletem as concepções, a visão de mundo, os eventuais preconceitos e os privilégios de seus idealizadores.
No entender de Bittar (2019, p. 956), a dignidade não seria atributo do ser que tivesse um corpo físico ou do seu “estatuto epocal, enquanto ‘corpo-pós-trans-tecno’”. Logo, é possível o reconhecimento da dignidade do ciborgue (uma fusão homem com a máquina), uma vez que o queer do ‘corpo’ se remodela conforme o contexto histórico-social, alterando o significado de sujeito de direito para sujeito pós-humano de direito, definido como o corpo humano alvo de modificações corporais tecnocientíficas:
a dignidade é um atributo da pessoa humana, não importando a sua qualidade física ou biológica, modificada ou não, ou ainda, a aparência estética do corpo físico. A pessoa humana é merecedora da condição de Sujeito de Direito, mesmo que o ‘corpo físico’ se hibridize à ‘máquina’, ou ainda, que as modificações impostas pela nanotecnologia, pela tecnociência e pela biomedicina venham a acarretar significativas transmutações físicocorpóreas em indivíduos. Esse mesmo status não é atribuído ao ‘robô’, às ‘invenções robotizadas’ e ‘mecanizadas’, que devem ser entendidas como Objetos do Direito, alvo de simples status de propriedade (BITTAR, 2019, p. 956).
De acordo com Fornasier e Knebel (2020, p. 68), a possiblidade de biohacking individualista, que buscasse unicamente o melhoramento humano e de sua performance e estética não sofreria oposição por parte dos direitos humanos, uma vez que o aperfeiçoamento pessoal é reconhecido como um direito humano, desde que exercido por quem pode ser considerado humano21.
Para Vilaça e Dias (2014, p. 358), é necessário refutar o “pessimismo protecionista” que tenta conservar inalterada a condição humana que sofre e sente dores que poderiam ser evitadas. Ao mesmo tempo, é importante recomendar que a discussão seja centrada em um “otimismo prudente e crítico sobre as biotecnologias”, já que não se pode subestimar a sua capacidade de produção de males “ainda maiores do que aqueles genuinamente capazes de se combater”.
Essa questão desagua novamente na discussão ética e na intenção dos que estão à frente de pesquisas e dos interessados na comercialização/disponibilização destas tecnologias. O próprio imperativo categórico kantiano é fundamentado na essência humana. Resta saber se poderia ser adaptado à dinâmica ciborgue ou do corpo pós-humano.
Para Sarlet (2019, p. 117):
é inadmissível restringir o ser humano aos confins de uma natureza débil e propensa à enfermidade quando já existem mecanismos de cura que podem aliviar o sofrimento. Para esse intento, contudo, entende-se pela reafirmação do respeito aos níveis de proteção que devem ser assegurados em todos os estágios da vida humana, particularmente em seus estágios iniciais que não podem ser expostos às novas formas de vulnerabilização oriundas do emprego desregrado das biotecnologias.
Pontuam Kawanishi e Lourenção (2019, p. 659) que, por trás da proposta revolucionária transhumana, existem questões que costumam serem deixadas de lado, entre elas: Todos os seres humanos serão aprimorados? Quem decidirá o que pode/deve ou não ser aprimorado? O controle do aprimoramento estará nas mãos das empresas de tecnologia? Implicações que devem ser levadas em consideração diante da iminência de um mercado tecnológico e financeiro voltado ao desempenho e à otimização dos corpos e da mente. Conforme Cardin e Wolowski (2021), as ciências da Psicologia assinalam que o ser humano possui, entre os vários atributos da personalidade, a sua singularidade, variável que deve ser levada em consideração em caso de substituição do ser humano pela automação.
É necessário considerar a eventualidade da perda de nuances da personalidade humana diante do ciborguismo e do transhumanismo22: aprimorando o seu corpo dócil23 e falível e otimizando-o a sua mente o ser perderia, em tese, sua singularidade, identidade e, consequentemente, personalidade, que continua sendo única até o presente momento. Ao mesmo tempo, a incorporação da máquina e as mutações ou os novos elementos poderiam passar a ser enquadrados nessa classificação de personalidade, isto é, é possível perder a personalidade humana e encontrar a virtual, a ciborgue, com novas particularidades, agora pouco acessíveis/compreendidas/exploradas.
Astobiza et al. (2019) compreendem que é necessário alargar o quadro de direitos humanos para incluir os neurodireitos e continuar a proteger as liberdades e os direitos fundamentais diante do avanço tecnológico e da neurotecnologia. Os autores entendem que são também fundamentais maiores análises acerca das implicações neuroéticas das tecnologias emergentes que utilizam algoritmos e estratégias de design para a promoção de dispositivos e sistemas voltados ao ser humano, compreensíveis, transparentes, previsíveis e controláveis.
Ienca e Andorno (2017) defendem a criação de novos direitos humanos, os neurodireitos, uma vez que, com o avanço da neurotecnologia a liberdade humana, sua mente e/ou consciência poderiam estar sob perigo24, tendo em vista o acesso e a possibilidade de manipulação de estados mentais.
Seriam neurodireitos: a) a liberdade cognitiva – direito e decisões livres e competentes quanto ao uso de interfaces cérebro-máquina e o direito contra manipulações de estados mentais pelo Estado, pelas corporações e empresas; b) a privacidade mental – direito de proteção contra o acesso não autorizado a dados cerebrais; c) a integridade mental – inclusão do direito à não manipulação da atividade mental por neurotecnologias no âmbito de proteção da saúde mental, que também deve ser expandido; d) a continuidade da identidade pessoal e da vida mental – proteção contra alterações por terceiros na continuidade da identidade pessoal e vida mental (IENCA; ANDORNO, 2017; ASTOBIZA et al., 2019).
Observa Birnbaum (2021) que o advento de tecnologias que envolvem implantes cibernéticos e bodyhackhing depende exponencialmente da coleta de dados pessoais, o que sugere a necessidade ainda maior de proteção de dados e da privacidade desses usuários, principalmente porque tais dados estarão sob o domínio de empresas e seus fabricantes, de modo que há o risco também de que sejam coletados e utilizados sem o consentimento25 direto dos titulares.
Com os corpos híbridos e os ciborgues, a vigilância tende a ser exponencialmente ampliada, bem como as questões envolvendo a personalidade, principalmente a privacidade e a autodeterminação informativa, que, com o domínio das mentes, são visivelmente atingidas. O aprimoramento dos corpos e da mente tem um preço. E o preço da inovação é a perda do humano, mais cedo ou mais tarde e, eventualmente, a emergência dos delineamentos da personalidade nos moldes pós-humanos/virtuais, tanto benéficos como maléficos.
O presente artigo buscou analisar técnicas de melhoramento humano por meio da tecnologia e da biotecnologia, tendo em vista a emergência de dispositivos que seriam acoplados ao corpo humano e aplicações tecnocientíficas que melhorariam o seu desempenho, superando doenças incuráveis e deficiências, o que também pode acontecer por meio da edição do genoma humano.
Nessa conjuntura, o corpo humano passaria a ser pós-humano, híbrido, fruto do ciborguismo e da junção do homem com a máquina. É nesse ponto que surgem indagações acerca da proteção da personalidade, dos direitos humanos e da dignidade, uma vez que todos esses conceitos estão fundados na perspectiva de corpo humano limitado, finito, falível, sensível e submisso. Para a maioria dos autores pesquisados, o corpo pós-humano deve ser protegido pela disciplina dos direitos da personalidade e alcançado pelos direitos humanos e pela dignidade, tendo em vista ser humano, de modo que tais concepções sofrem mutações conforme o desenvolvimento social e tecnológico e devem proteger o indivíduo em sua integralidade.
Diante da possibilidade de aprimoramento humano por meio da tecnologia, tanto o biohacking como técnicas de edição do genoma humano (a exemplo da CRISPR Cas), se tiverem por objetivo tão somente evitar dor e sofrimento ou aplicação estética, devem ser garantidas dentro da perspectiva dos direitos humanos e da personalidade, já que são legítimos o aperfeiçoamento do corpo e o interesse em não mais padecer de males como doenças crônicas e/ou limitações corporais. Destaca-se que o tema comporta questionamentos bioéticos e jurídicos acerca da possibilidade da eugenia positiva, da submissão do homem à máquina, da servibilidade humana, da dominação do corpo e da mente etc., que exigem prudência e respeito à diferença e à personalidade, que é única de cada ser, discussão que deve permear a adoção de aplicações que promovam o corpo pós-humano e o ciborguismo26.
A utilização de wearables e a implantação de chips, próteses e membros biônicos tem o condão de ampliar a vigilância excessiva, e, com a promessa da superação de limitações da essência humana, a disposição de direitos tende a ser ainda mais coberta pelo viés da voluntariedade e da disposição, para posteriormente se tornar imposição diante de perspectivas pós-humanas de participação cidadã e social, como já ocorre em relação à exclusão dos que não se dobram à virtualização das atividades humanas no presente.
Progressivamente se discute o papel da mente e a possibilidade de acesso a esta para a superação de limitações, o que dá ensejo ao reconhecimento dos neurodireitos, fundamentais para, em tempos futuros, regular os limites de utilização de dados coletados e propiciar em alguma medida a autodeterminação da pessoa.
A noção atual do que é dignidade, personalidade e do que são os direitos da personalidade é fundamentada em parâmetros humanos, de modo que o estudo deve comportar adequações futuras para abarcar o que já pode ser considerado como corpo híbrido e, futuramente, pós-humano. Com a diminuição do fator humano, o corpo perde nuances da personalidade e, com a inteligência artificial e as aplicações tecnológicas, ganha outras ainda pouco exploradas/compreendidas, que devem ser regulamentadas e protegidas. Cabe ao Direito continuar tutelando a dignidade diante de práticas antiéticas e com intuitos meramente comerciais sob o ponto de vista de cada passo desse caminho “evolutivo”.
O trabalho foi inicialmente desenvolvido pela coautora RAÍSSA ARANTES TOBBIN no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Cesumar (UNI CESUMAR), no ano de 2021, durante o Mestrado, como atividade avaliativa da disciplina “Dimensões Legais da Bioética”, ministrada pela coautora e orientadora, Dra. VALÉRIA SILVA GALDINO CARDIN, que, posteriormente, contribuiu também para a escrita do trabalho, a definição e o afunilamento do tema e a escolha do aporte teórico. Atualmente, a coautora RAÍSSA ARANTES TOBBIN é Doutoranda em Direito e desenvolve sob a supervisão da mencionada orientadora pesquisa sobre as implicações da utilização das novas tecnologias e da inteligência artificial aos direitos da personalidade.